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Vera da Silva Telles

A cidade nas fronteiras do


legal e ilegal

O presente trabalho foi realizado


com o apoio da CAPES, entidade
do Governo Brasileiro voltada para
a formação de recursos humanos.

ARGVMENTVM
Belo Horizonte
2010
Todos os direitos reservados à
ARGVMENTVM Editora Ltda.
© Vera da Silva Telles

As ideias contidas neste livro são de responsabilidade de seu autor


e não expressam necessariamente a posição da editora.

CIP-BRASIL CATALOGAÇÃO-NA-FONTE | SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVRO, RJ

CONSELHO EDITORIAL
COLEÇÃO SOCIEDADE & CULTURA

Elisa Pereira Reis | UFRJ


Leopoldo Waizbort | USP
Renan Springer de Freitas | UFMG
Ruben George Oliven | UFRGS

ARGVMENTVM
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Rua dos Caetés, 530 sala 1113 – Centro
Belo Horizonte. MG. Brasil
Telefax: (31) 3212 9444
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Sumário

Apresentação .........................................................................................7
Introdução ............................................................................................9

PRIMEIRA PARTE

Experimentações

CAPÍTULO 1

A cidade e suas questões .....................................................................55


Interrogando realidades urbanas em mutação ..................................... 68
Pontos de inflexão, questões em discussão ............................................72

CAPÍTULO 2

Perspectivas descritivas ........................................................................81


A cidade em perspectiva: seguindo os fluxos das mobilidades urbanas... 86
Deslocamentos: a produção do espaço ................................................. 86
Confl itos e disputas no e pelo espaço ....................................... 88
Temporalidades urbanas ......................................................... 89
O tempo político da cidade ...................................................... 90
Percursos: trabalho e as tramas da cidade ........................................... 93
Modulações: os fluxos urbanos entre espaços, territórios e cidade .......... 96
Histórias de um perueiro....................................................... 100
Histórias de um motoqueiro................................................... 103
Reatando pontos e linhas: os elos perdidos da política .........................106

CAPÍTULO 3

Deslocamentos: percursos e experiência urbana ...................................109


Trabalho e cidade: relações redefi nidas .............................................111
Personagens urbanos e seus percursos ..............................................121
O cenário: nas franjas da “cidade global” ...........................................122
A cartografia dos empregos ............................................................... 123
Os tortuosos caminhos das melhorias urbanas .................................... 124
O Xerife ......................................................................................... 125
Diferenças de tempos, diferenças de geração .....................................127
O patriarca Genésio e sua extensa família ......................................... 128
Trabalho, moradia e os tempos da cidade .......................................... 128
Na virada dos tempos ....................................................................... 132
Os jovens empreendedores: nos circuitos faiscantes dos
serviços globalizados ....................................................... 132
O trabalhador precário: no circuito fechado das
agências de trabalho temporário ...................................... 136
O segurança: nos circuitos da segurança privada,
onde todos os fios se cruzam ............................................ 140

SEGUNDA PARTE

Deslocando o ponto da crítica


CAPÍTULO 4

Tramas da cidade: fronteiras incertas do informal, ilegal, ilícito.......... 147

CAPÍTULO 5

Nas dobras do legal e ilegal: ilegalismos e jogos de poder ...................169


Nas fronteiras incertas do informal, ilegal e ilícito .............................. 172
Formas contemporâneas de produção e circulação de riquezas ............ 174
Dinâmicas urbanas redefi nidas .........................................................183
A gestão diferencial dos ilegalismos ...................................................187
Comércio informal e mercadorias políticas ......................................... 190
A periferia é o lugar onde há “ou o acerto ou a morte,
mas não a prisão” ....................................................................... 194

CAPÍTULO 6

Ilegalismos e a gestão (em disputa) da ordem ......................................203


Primeiro momento, anos 1980: o mundo do trabalho e os justiceiros ....219
Segundo momento, anos 1990: a erosão do mundo do trabalho e os
“matadores” ...............................................................................234
Terceiro momento, anos 2000: novos ilegalismos e o traficante ........... 244

Nem conclusões nem considerações finais............................................259

Bibliografia.......................................................................................261
Apresentação

Uma experimentação, é isto o que se vai encontrar ao longo das páginas deste
livro. Não é uma coletânea de textos cuja articulação seria preciso arquitetar
pelas vias de alguma unidade teórica exterior ao andamento de cada um, ao
modo como cada qual foi produzido, às questões que moveram a sua escritura.
Na verdade, o fio que os articula, todos eles, internamente e em diálogo uns com
outros, é essa experimentação cujos sentidos se tenta esclarecer na introdução e,
assim eu espero, explicita-se na própria escritura que tenta seguir, desdobrar e
também deslocar as questões que não estavam previamente dadas, mas foram se
formulando conforme seguíamos as pistas que a pesquisa nos entregava. Experi-
mentação como prática de pesquisa, como forma de produção de conhecimento,
também como experiência de pensamento. Não diria que isso seja uma “tese”
a ser demonstrada. É uma aposta, uma tomada de posição e um exercício de
pesquisa, também de escritura.
A pesquisa que esteve na origem deste livro foi lançada em 2001. Uma pesquisa
qualitativa, de forte conteúdo etnográfico, realizada em duas regiões da periferia
paulista. Em seu ponto de partida, uma dupla inquietação. Um mundo urbano
muito alterado em relação às décadas passadas e que implodia as categorias e re-
ferências pelas quais se discutiam a cidade e seus problemas, a “questão urbana”.
Mas também um mundo urbano que encenava problemas e dramas sociais que
pareciam transbordar os modos como os temas da exclusão social, segregação
urbana, pobreza e vulnerabilidade social eram postos, eram tipificados e pauta-
vam a pesquisa acadêmica. Era preciso prospectar as linhas que se conjugavam
nas tramas da cidade e construir outros parâmetros descritivos para colocar em
perspectiva (e sob perspectiva crítica) realidades urbanas em mutação. Essa a
questão que conduz a primeira parte desse trabalho.
A pesquisa prolongou-se por oito anos, porém não diria que tenha chegado a
um ponto final. Abriu-se a um leque de questões que pautam, agora, no momento
em que estas linhas estão sendo escritas, um programa de investigação empírica
e teórica que apenas se inicia. As inquietações de antes persistem, porém, no
seu foco, está a teia de ilegalismos, novos, velhos ou redefinidos que também
tecem as tramas da cidade. No início, achados de pesquisa que preenchiam os
nossos diários de campo. E a percepção de que estávamos frente a realidades
que não mais poderiam ser discutidas (e descritas) nos termos consagrados nos
estudos urbanos, os descompassos entre a cidade legal e ilegal, cifra de uma
“modernidade incompleta” para evocar um tema que já foi alvo de discussões e
polêmicas, por vezes ácidas, em décadas passadas. O mesmo se poderia se dizer
em relação ao desde sempre expansivo mercado informal, agora inteiramente
redefinido e reconfigurado, pois conectado aos circuitos transnacionais de uma
economia globalizada. No centro dinâmico da vida urbana da muito moderna

7
São Paulo dos anos 2000, uma transitividade entre o informal, o ilegal e o ilícito.
Nas suas dobras, jogos de poder e relações de força nos quais se tem uma chave
de inteligibilidade da violência que atravessa a experiência urbana. E que se
desdobra no que o fi lósofo Agamben chama de “estados de exceção”, práticas e
situações instauradas no centro da vida política (e da normalidade democrática),
fazendo estender uma zona de indeterminação entre a lei e a não-lei, terrenos de
fronteiras incertas e sempre deslocantes que produzem as figuras do homo sacer,
vida matável, em situações entrelaçadas nas circunstâncias de vida e trabalho dos
que habitam ou transitam nesses lugares. Porém, essa a questão que se coloca
em discussão na segunda parte: esses espaços de exceção não são lugares vazios,
é aí que se fazem a experiência da lei, do Estado, da autoridade, da ordem e
seu inverso. Campos de disputa, campos de experiência, talvez se possa dizer,
no sentido que Thompson dá a esse termo. Acontecimentos, fatos, experiências
que se processam no centro dinâmico da São Paulo globalizada, talvez se tenha
aí pistas a serem seguidas se quisermos formular questões que se abram aos
problemas postos em nossa atualidade.
Em sua primeira fase, lançada em 2001, a pesquisa contou com a parceria
com Robert Cabanes que esteve presente, todos esses anos, nessa prospecção
das tramas da cidade, contando com as condições as mais favoráveis propiciadas
por um Convênio CNPq-IRD. A partir de 2007, um programa de cooperação
franco-brasileiro (Convênio Capes-Cofecub), coordenado em conjunto com An-
gelina Peralva, foi especialmente importante para colocar a situação brasileira
sob um jogo ampliado de referências, em sintonia com processos semelhantes em
curso nos chamados países do Norte (e outros lugares do planeta), o que altera
o modo de discutir as questões postas, sobretudo, na segunda parte desse texto.
Um jogo de referências que permite circunscrever o plano de atualidade em que
as realidades descritas se inscrevem.
A pesquisa realizada em conjunto com Robert Cabanes resultou em um livro,
“Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios” (Humanitas, 2006).
Três de seus capítulos foram retrabalhados e incorporados na primeira parte
desse texto. Na segunda parte, o capítulo 4 é uma versão bastante ampliada de
artigo publicado em 2007. 1 O capítulo 5, em sua primeira parte, recupera artigo
publicado em 20092 e segue com um texto inteiramente novo. O capítulo 6 foi
especialmente produzido para compor esse trabalho.

1
Telles, Vera S. Transitando na linha de sombra, tecendo as tramas da cidade. In: Oliveira,
Francisco & Rizek, Cibele S. A era da indeterminação. São Paulo: Boitempo, 2007.
2
Telles, Vera S. Ilegalismos urbanos e a Cidade. Novos Estudos, Cebrap, v.84, 2009.

8
Introdução

São Paulo, como outras tantas grandes cidades do planeta, apresenta um


cenário no qual ganham forma e evidência tangível as transformações que, nas
últimas décadas, afetaram Estado, economia e sociedade. Em seus espaços e
artefatos estão cifrados os modos de circulação e distribuição da riqueza (desi-
guais, mais do que nunca), as mutações do trabalho e das formas de emprego
(e as legiões de sobrantes do mercado de trabalho), a revolução tecnológica e
os serviços de ponta (e as fortalezas globalizadas da cidade), os grandes equi-
pamentos de consumo e os circuitos de ampliados do mercado (e a privatização
de espaços e serviços urbanos). Acompanhando tudo isso, a economia informal,
desde sempre presente na cidade (e no país) expande-se por meio de novas arti-
culações entre a tradicional economia de sobrevivência, os mercados locais, que
se espalham pelas regiões, mesmo as mais distantes da cidade, e os circuitos
globalizados da economia. Trata-se aqui de novas conexões e de uma escala de
redefinições inteiramente em fase com o mundo globalizado, que redesenham
espaços e territórios urbanos nas trilhas de redes de subcontratação que chegam
aos pontos extremos das periferias pelas vias de uma meada inextricável de in-
termediários e intermediações que reativam o trabalho a domicílio e redefinem
o chamado trabalho autônomo, ao mesmo tempo em que os mercados locais são,
também eles, redefinidos na junção das circunstâncias da chamada economia
popular com máfias locais e comércio clandestino de bens lícitos ou ilícitos de
procedência variada. Se é verdade que a cidade oferece todos os ingredientes
que alimentam os discursos e o imaginário da “cidade global”, com seus artefatos
sempre presentes e sempre iguais em todas as grandes metrópoles do planeta,
também é verdade que a vida social é atravessada por um universo crescente de
ilegalismos que passa pelos circuitos da expansiva economia (e cidade) informal,
o chamado comércio de bens ilícitos e o tráfico de drogas (e seus fluxos globa-
lizados), com suas sabidas (e mal conhecidas) capilaridades nas redes sociais e
nas práticas urbanas.
É nesse cenário contrastado que crescem a pobreza, o desemprego e a pre-
cariedade urbana. Também a violência, quer dizer, a morte violenta, “morte
matada”, como se diz em linguagem popular. Em termos técnicos, na lingua-
gem jurídica e policial: homicídios. E a tragédia concentra-se nas periferias
da cidade. Não é o caso de falar de números e cifras. Por ora, basta dizer que
os pesquisadores acostumados a comparações internacionais não hesitam em
dizer que, ao longo dos anos 1990, as cifras chegaram a patamares equivalen-
tes aos de regiões ou países em situação de guerra civil ou conflagração letal.
Mas, como bem sabemos, todo cuidado é pouco quando de trata de lidar com
as proximidades da pobreza e da violência, sobretudo nesses tempos em que
nossa velha e persistente, nunca superada, criminalização da pobreza vem sendo

9
reatualizada sob formas renovadas, algumas sutis, outras nem tanto, na maior
parte dos casos aberta e declarada. Esse é um terreno minado, carregado de
pressuposições e lugares-comuns que estabelecem a equação fácil e rápida entre
pobreza, desemprego, exclusão, criminalidade e morte violenta, equação que
alimenta a obsessão securitária que, também ela, compõe o cenário urbano
atual, da mesma forma como alimenta os dispositivos gestionários que mobilizam
representantes políticos, operadores sociais, voluntários, agentes comunitários
e também a pesquisa acadêmica.
O fato é que não é coisa simples entender o que acontece por esse lado da cidade
de São Paulo (não só nela), pois também aqui, no lado pobre (e expansivo) dessas
recomposições, o mundo social está também muito alterado. Ponto e contraponto de
uma mesma realidade, os capitais globalizados transbordam as fortalezas globais
concentradas no moderníssimo e riquíssimo quadrante sudoeste da cidade, fazem
expandir os circuitos do consumo de bens materiais e simbólicos que atingem os
mercados de consumo popular. Mesmo nas regiões mais distantes da cidade, os
circuitos do mercado e os grandes equipamentos de consumo compõem a paisagem
urbana. São fluxos socioeconômicos poderosos que redesenham os espaços urba-
nos, redefinem as dinâmicas locais, redistribuem bloqueios e possibilidades, criam
novas clivagens e afetam a economia doméstica, provocando mudanças importantes
nas dinâmicas familiares, nas formas de sociabilidade e redes sociais, nas práticas
urbanas e seus circuitos. Por outro lado, ao mesmo tempo e no mesmo passo em
que ganhou forma a versão brasileira das “metamorfoses da questão social”, os pro-
gramas sociais se multiplicaram pelas periferias afora e em torno deles proliferam
associações ditas comunitárias que tratam de se converter à lógica gestionária do
chamado empreendedorismo social, se credenciar como “parceiras” dos poderes
públicos locais e disputar recursos em fundações privadas (e a chamada filantropia
empresarial) e agências multilaterais, isso em interação com miríades de práticas
associativas e ao lado dos movimentos de moradia e suas articulações políticas,
partidos e seus agenciamentos locais, igrejas evangélicas (também proliferantes)
e suas comunidades de fiéis e, claro, a quase onipresença de ONGs vinculadas a
circuitos e redes de natureza diversa e extensão variada. É aí que se vê delinear
um mundo social perpassado por toda sorte de ambivalências, entre formas velhas
e novas de clientelismo e reinvenções políticas, convergências e disputas, práticas
solidárias e acertos (ou desacertos) com máfias locais e o tráfico de drogas. É um
feixe de mediações em escalas variadas que desenham um mundo social a anos-
luz das imagens de desolação das periferias de trinta anos. Seria mesmo possível
fazer um longo inventário de microcenas desses territórios atravessados por lógicas
e circuitos que transbordam, por tudo e por todos os lados, as fronteiras do que
é tomado com muita frequência por “universo da pobreza”. Tudo ao contrário do
que é muitas vezes sugerido pelos estudos sobre a pobreza urbana. E, sobretudo,
inteiramente ao revés das figurações – construídas pelas políticas ditas de inserção
social – de uma pobreza encapsulada em suas “comunidades” de referência e nas
carências da vida.

10
Se as evidências são tangíveis, nem por isso é coisa simples decifrar a di-
nâmica dessas transformações. É bem verdade que o ponto de clivagem das
novas realidades urbanas em relação às décadas passadas já foi vasculhado por
uma extensa agenda de estudos urbanos. Em sintonia com debates então em
curso em várias regiões e países do planeta, a pauta dos debates contemplou as
relações entre cidade e os fluxos globalizados do capital, produção do espaço e
financeirização da economia, reconfigurações espaciais e segregação urbana,
economia urbana e a nova geografia da pobreza, reestruturação econômica e
vulnerabilidade social. As pesquisas multiplicaram-se sob diversas abordagens
teóricas, diferentes procedimentos e escalas de observação, várias medidas da
cidade e seus problemas. No entanto, ainda pouco se sabe sobre o modo os pro-
cessos em curso redefinem a dinâmica societária, a ordem das relações sociais
e suas hierarquias, as mediações sociais e o jogo dos atores, as práticas urbanas
e os usos da cidade. Vistas por esse lado, as realidades urbanas apresentam – e
ainda apresentam – desafios consideráveis. As referências gerais sobre emprego
e desemprego, sobre transformações socialdemográficas e formas de segregação
urbana esclarecem pouco sobre configurações societárias que fizeram emba-
ralhar as clivagens sociais e espaciais próprias da “cidade fordista” com suas
polaridades bem demarcadas entre centro e periferia, entre trabalho e moradia,
entre mercado formal e mercado informal.
Seria quase trivial dizer que está tudo muito alterado em relação às déca-
das anteriores. O que antes foi dito e escrito sobre a cidade e seus problemas,
a “questão urbana”, parece ter sido esvaziado de sua capacidade descritiva e
potência crítica em um mundo que fez revirar de alto a baixo a solo social das
questões então em debate. Foi sob esse prisma que, no capítulo I, “A cidade
e suas questões”, foi revisitado o debate que corria nos anos 1980. Não como
documento de uma época que já se foi e que pode, quando muito, interessar ao
inventário bibliográfico ou revisão histórica exigidos pelos protocolos acadêmicos.
Ao contrário, o feixe de referências e coordenadas que pautavam esse debate pode
ajudar a refletir sobre a diferença dos tempos. As relações entre cidade, trabalho
e Estado (e a questão nacional) definiam as coordenadas de um debate que fazia
do urbano um ponto de condensação de um conjunto de questões que falavam
do país, de sua história e suas destinações possíveis. A cidade – a cidade como
questão – aparecia como cifra pela qual o país era tematizado e em torno dela
organizava-se um jogo de referências que dava sentido às polêmicas, debates e
embates sobre a história, percursos e destinações possíveis da sociedade brasi-
leira. Trabalho e reprodução social, classes e conflito social, contradições urbanas
e Estado eram noções (e pares conceituais) que se articulavam e se compunham
em proposições formuladas nas pesquisas e ensaios que tratavam da moradia
popular e reprodução do capital, entre desigualdades urbanas e relações de
classe, entre migração e pobreza urbana, entre reprodução social e Estado.
Modos de descrever e figurar a ordem das coisas, que era também um modo de
identificar e nomear seus campos de força e horizontes de possíveis.

11
Na virada dos tempos (década de 1990), o espaço conceitual (e crítico) em
que essas referências circulavam foi desativado, talvez tragado pele vórtice de
transformações que fizeram cortar os nexos que articulavam esses pares concei-
tuais, que trouxeram questões que escapavam por todos os lados desses feixes
de referência e que fizeram erodir ou encolher os horizontes de possíveis que
alimentavam as apostas políticas que pulsavam em todo esse debate. Isso que
se convencionou chamar de desregulação neoliberal em tempos de globalização,
financeirização da economia e revolução tecnológica fez por desestabilizar as
referências e parâmetros pelos quais pensar a cidade (e o país) e suas questões,
ao mesmo tempo em que as realidades urbanas modificavam-se em ritmo muito
acelerado. Se as conexões que antes articulavam trabalho, cidade e política foram
desfeitas é como se, depois, cada um desses termos passasse a polarizar outros
feixes de questões e compor outras relações que escapam do espaço conceitual
no qual o debate dos anos 1980 se processava. É desse ponto de clivagem que
partimos. Se antes a questão urbana era definida sob a perspectiva (e promessa)
do progresso, da mudança social e do desenvolvimento (anos 60/70) e, depois,
da construção democrática e da universalização dos direitos (anos 80), agora
os horizontes estão mais encolhidos, o debate é em grande parte conjugado no
presente imediato das urgências do momento, o problemas urbanos tendem a
deslizar e a se confundir com os problemas da gestão urbana e a pesquisa social
parece em grande parte pautada pelos imperativos de um pragmatismo gestionário
das políticas sociais voltadas às versões brasileiras dos quartiers difficiles.
É essa diferença dos tempos que lança a interrogação quanto ao plano de
referência a partir do qual descrever e colocar em perspectiva (e sob perspectiva
crítica) a nossa complicação atual. Este o duplo desafio: a construção de parâ-
metros críticos implica ao mesmo tempo a construção de parâmetros descritivos
para colocar em perspectiva realidades urbanas em mutação. Esta a questão que
se tentou enfrentar ao longo deste livro.
Entre as tipificações (ficções?) das chamadas “populações em situação de
risco” e as análises gerais, o outro lado dos debates atuais, sobre economia urbana
e a “cidade global”, há todo um entramado social que resta a conhecer, que não
cabe em modelos polares de análise pautados pelas noções de dualização social,
que escapa às categorias utilizadas para a caracterização da pobreza urbana e
que transborda por todos os lados do perímetro estreito dos “pontos críticos”
de vulnerabilidade social identificados por indicadores sociais. As tramas da
cidade: este, o foco da pesquisa que esteve na origem deste livro.
A pesquisa beneficiou-se de um programa de cooperação franco-brasileira
(IRD-CNPq) e é grandemente devedora da parceria de Robert Cabanes (IRD),
que se lançou no trabalho de campo junto com uma equipe de jovens pesqui-
sadores, todos eles alunos de graduação e pós-graduandos do Departamento
de Sociologia da Universidade de São Paulo. Essa pesquisa resultou em uma
publicação coletiva (Telles & Cabanes, 2006). Alguns de seus capítulos foram
retrabalhados e incorporados na primeira parte deste livro (capítulos 1, 2 e 3).

12
Quanto ao mais, tudo o que aqui será apresentado alimenta-se desse empreen-
dimento de pesquisa, não apenas do que foi exposto nessa publicação conjunta,
mas também ou sobretudo dos desdobramentos dessa pesquisa levados a efeito
por esse coletivo de jovens pesquisadores cujas questões e achados de pesquisa
foram, tanto quanto as minhas próprias, sempre e isso desde o início, discutidas
conjuntamente.
Lançada em 2001, essa foi uma pesquisa movida por essa interrogação ao
mesmo tempo empírica e teórica lançada pelos desafios postos pela virada dos
tempos – um trabalho de investigação que, no seu próprio andamento, fosse
capaz de fornecer os elementos para se construir o plano de referência a partir
do qual colocar em perspectiva essas realidades urbanas redefinidas no curso
dos últimos anos.
Optamos por um percurso exploratório. À distância de explicações gerais
sobre a “cidade e sua crise” e também de categorias prévias ou tipificações dos
pobres urbanos e excluídos do mercado de trabalho, tentamos ler essas mudanças
a partir das trajetórias urbanas de indivíduos e suas famílias. É sob esse prisma
que tentamos conhecer algo das tramas sociais que configuram espaços urbanos.
A pesquisa está longe de oferecer um panorama geral da cidade e suas transfor-
mações recentes, e nem foi esse o objetivo. Mas nem por isso essas trajetórias
podem ser tomadas como ilustração ou demonstração de algo já sabido e dito como
exclusão social ou segregação urbana. No curso de suas vidas, indivíduos e suas
famílias atravessam espaços sociais diversos, transitam entre códigos diferentes,
seus percursos passam através de diversas fronteiras e são esses traçados que
podem nos informar sobre a tessitura do mundo urbano, seus bloqueios e seus
pontos de tensão, mas também os campos de gravitação da experiência urbana
nesse cenário tão modificado. Entre os deslocamentos espaciais e expedientes
mobilizados para o acesso à moradia, os percursos do trabalho e suas inflexões
recentes, os agenciamentos da vida cotidiana e os circuitos que articulam moradia
e a cidade, seus espaços e serviços, essas trajetórias são pontuadas por situações
que podem ser vistas como pontos de condensação de práticas, mediações e
mediadores nos quais estão cifrados os processos em curso.
É um outro modo de interrogar essas realidades, que não parte de definições
prévias e muitas vezes modelares de exclusão social, de segregação urbana
ou de pobreza e que, no mais das vezes, deixam escapar a rede de relações e
práticas que conformam um espaço social. Ao seguir os traçados dos percursos
urbanos de indivíduos e suas famílias, é a própria cidade que vai se perfi lando.
Não como contexto dado, geral e homogêneo, em função do qual situar “casos”
e explicá-los em suas determinações. São múltiplos os perfis da cidade que vão
se delineando nos contextos variados nos quais se inscrevem os atores e o jogo
tenso (e por vezes confl itivo) de suas relações. Situadas em seus contextos de
referência e nos territórios traçados pelos percursos individuais e coletivos, essas
trajetórias operam como prismas pelos quais o mundo urbano vai ganhando forma
em suas diferentes modulações. São elas, essas trajetórias, que nos orientaram

13
nessa prospecção de realidades em mutação, abrindo-se a novas questões e novas
interrogações que se colocam no andamento dessa “construção exploratória do
objeto” de que fala Bernard Lepetit (1996).
A perspectiva descritiva que as trajetórias urbanas propiciam é questão tratada
no capítulo dois, que leva justamente este título, “Perspectivas descritivas”. Uma
descrição da cidade, seguindo as trilhas das trajetórias urbanas. Um modo de
descrever o urbano colocando em foco a trama das mediações e conexões que
articulam e ao mesmo tempo transbordam campos de práticas nas suas formas
estabelecidas (trabalho, moradia, consumo e serviços, etc.), estabelecendo zonas
de contiguidade e criando passagens onde não se esperava que acontecessem. Não
contextos ou circunstâncias de localização, mas algo que é constitutivo de situações
que traçam o seu próprio território feito de práticas, circuitos de deslocamentos,
zonas de contiguidade e conexões com outros pontos de referência que conformam
o social nas suas fronteiras ou limiares, bloqueios e possibilidades.
No seu conjunto, na contraposição entre histórias e percursos diversos, são
as modulações da cidade (e história urbana) que vão se perfi lando nas diferentes
configurações de espaço-tempo traçadas por essas histórias. Como pode ser visto
no capítulo três, “Deslocamentos: percursos e experiência urbana”, os diferentes
perfis da cidade podem se projetar a partir de um mesmo local ou de uma mesma
família. E é isso que nos pode oferecer uma chave para apreender as dinâmicas
urbanas que definem as condições de acesso à cidade e seus espaços, a trama
dos atores, as modalidades de apropriação dos espaços e seus recursos. É jus-
tamente nessas tramas da cidade que se aloja a complicação atual e que será
preciso, por isso mesmo, auscultar. É nessas tramas que os lances da vida são
jogados, é aí que se processam as exclusões, as fraturas, os bloqueios. Também
as capturas na hoje extensa e multifacetada malha de ilegalismos que perpassam
a cidade inteira e que operam, também elas, nas dobras do legal-ilegal, como
outras tantas formas de junção e conjugação da trama social. Aí também os elos
perdidos da política, tragados que foram pelo princípio gestionário que trata das
“pontas”, da dita governança econômica e, de outro lado, da gestão do social e
administração de suas urgências. No meio, isto é, em tudo o que importa, não
existe o vazio que expressões como a de exclusão social podem sugerir, porém
os fios que tecem a tapeçaria do mundo social, as tramas da cidade e nas quais
estão em jogo os sentidos da vida e das formas de vida.
Menos uma tese, mais uma experimentação. É assim que eu definiria o que
o leitor vai encontrar ao longo destas páginas. Mais interessante do que apre-
sentar as conclusões (se é que existem), o que importa são os percursos pelos
quais se tentou armar um campo de investigação, as questões que surgiram e as
perguntas que, no andamento desse trabalho, redirecionaram a pesquisa, tanto
quanto os parâmetros teóricos para lidar com as questões que se impuseram
nesse percurso de prospecção dos mundos urbanos.
Mas, então, talvez seja o caso de explicitar o que aqui se entende por expe-
rimentação e prospecção dos mundos urbanos. Que se diga, desde logo: não

14
se trata de um trabalho prévio, as preliminares, fase preparatória do que quer
que seja e que venha se apresentar, depois, como principal ou conclusivo. É
um modo de produção de conhecimento. E uma escolha que deriva, em grande
medida, do viés pelo qual se tentou apreender as linhas de força que atravessam
e conformam os mundos urbanos: seguir as mobilidades urbanas, perseguir os
traços das trajetórias de homens e mulheres nos espaços da cidade.
Mobilidades urbanas: como bem nota Jacques Brun (1993), as relações entre
cidade e mobilidade – de mercadorias, de capitais, de informações, de ideias,
de comportamentos e sobretudo de pessoas – é um tema clássico nos estudos
sobre o urbano. Desde os fundadores da Escola de Chicago, seguindo linha-
gens teóricas diversas e sob abordagens também diferenciadas, as mobilidades
urbanas e os deslocamentos espaciais, ocupacionais e habitacionais foram to-
mados e assim pesquisados como cifra para o entendimento das transformações
urbanas, de suas linhas de ruptura e de fratura, mas também de recomposições
e convergências, processos multifacetados por onde diferenciações sociais vão
se desenhando, ganhando forma e materialidade nos espaços das cidades pes-
quisadas (cf. Grafmayer, 1995; Grafmayer e Joseph, 1979). No correr dos anos
1990, a questão ganhou um renovado interesse no contexto de transformações
urbanas que se seguiam em ritmo acelerado, alterando tempos e espaços da
experiência social, redefinindo escalas de distância e proximidade, alterando
práticas sociais e seus circuitos, modalidades de acesso à cidade e seus espaços.
O estudo das mobilidades urbana foi relançado como perspectiva que prometia
superar muitas das limitações da noções, categorias e parâmetros estabelecidos
para medir e caracterizar a segregação urbana, já que transbordados por uma
complexidade inédita das realidades que estavam a exigir abordagens aptas a
captar movimentos e deslocamentos, práticas e jogos redefinidos de atores que
desfaziam os parâmetros conhecidos da “cidade fordista” com seus espaços,
tempos e ritmos definidos nas binaridades bem estabelecidas entre trabalho
e moradia, centro e periferia, produção e reprodução (cf. Brun, 1993; Levy e
Dureau, 2002, Bonnet & Desjeux, 2000).
Mais recentemente, os processos de globalização colocaram a questão da
mobilidade no centro de um empreendimento ao mesmo tempo teórico e empírico
para dar conta das transformações que reviraram de alto a baixo as cidades (e
sociedades). Não por acaso, a noção (ou metáfora, em alguns casos) de fluxos
vem sendo mobilizada para caracterizar essa intensa e ampla mobilidade de
capitais, mercadorias e trabalho, informações e imagens, tecnologias e técnicas
(Lasch & Urry, 1994; Hannerz, 1996; Appadurai, 1996; Castells, 1999), que
atravessa todas as regiões do planeta, ignorando fronteiras nacionais, criando
relações de transversalidades entre povos e culturas, mercados e economias,
formas de vida e práticas sociais. Alain Tarrius (2000) propõe o “paradigma
da mobilidade” como perspectiva descritiva e analítica para apreender a trama
de relações sociais urdidas nos pontos de entrecruzamento de mudanças que
afetam espaços econômicos, normas sociais e racionalidades políticas. John Urry

15
(2000) faz um verdadeiro manifesto pela sociologia dos fluidos em contraposição
a análises baseadas em unidades estáticas e lugares fi xos próprios da sociologia
clássica. Outros vão chamar a atenção para o fato de que os deslocamentos de
bens, mercadorias, informações e de pessoas são fortemente mediados por redes
sociotécnicas e novas tecnologias (Latour,1994; Appadurai,1986). Appadurai
sugere que a combinação de novas formas de mobilidade e novas tecnologias
de comunicação afeta a imaginação social e aciona as diversas figuras do que o
autor chama de “mundos imaginados” (no lugar das comunidades imaginadas
de Benedict Anderson). Hannerz (1996), por sua vez, vai enfatizar a cerrada
trama de interconectividade entre espaços e territórios, que perpassa as formas
cotidianas de vida e os diferentes espaços de interação, o que afeta os próprios
sentidos de local e localidades, bem como os dispositivos de pesquisa capazes de
identificar esse jogo variado de escalas e mediações que perpassam os mundos
sociais, questão também discutida por Appadurai (e outros).
São registros diferentes pelos quais a mobilidade é colocada no centro da
indagação sobre a cidade e suas mutações, cada qual se abrindo ao feixe de
questões postas pelo tempo em que foram formuladas e as temporalidades pró-
prias das cidades em seus contextos de referência. Certamente, a discussão hoje
está muito distante das ênfases dos pesquisadores que, no início do século XX,
debruçavam-se sobre uma dinâmica urbana então em constituição, fervilhando
na Chicago do começo do século, formulando suas questões sob o ponto de
vista da especificidade do urbano, da urbanidade e do cosmopolitismo, opostos
globalmente e estruturalmente ao rural e às características (certamente ideali-
zadas) próprias do vilarejo. No debate contemporâneo essas questões perderam
pertinência. Não por acaso vem-se chamando a atenção para a implosão das bina-
ridades clássicas das ciências do social e do urbano, tais como centro-periferia,
tradição e modernidade, atraso e progresso, ao mesmo tempo em que a escala
e a dinâmica dos atuais deslocamentos humanos não podem mais ser vistos
nos termos clássicos dos estudos de migração e modernização (cf. Appadurai,
1996; Tarrius, 2000): migrantes, refugiados, populações deslocadas, trabalha-
dores em movimento por entre regiões e localidades – movimentos que afetam
a tessitura das tradicionais comunidades de referência, tanto do ponto de vista
dessas populações-em-movimento quanto no registro do modo como são redefi-
nidas para as populações sedentárias. Deslocamentos e formas de mobilidade,
cada qual impulsionado por feixes singulares de circunstâncias e causalidades
(porém, com ressonâncias entre uns e outros): travessia de fronteiras, ocupação
de regiões limítrofes, deslocamentos de trabalho e trabalhadores seguindo os
fluxos dos capitais e das redes de extensão variada por onde opera o chamado
capitalismo flexível, ao mesmo tempo em que o traçado desses deslocamentos
tem impactos consideráveis sobre a reconfiguração dos espaços urbanos e a
morfologia das cidades.
O inventário dessa discussão, bem como das polêmicas nela inscritas, poderia
ir longe. Por ora, importa tão-somente chamar a atenção para algumas questões

16
importantes para bem situar o andamento deste livro e os sentidos da pesquisa
exploratória aqui proposta.
De partida, é importante dizer: a questão da mobilidade não diz respeito a
um tema ou um objeto que viria se justapor como complemento ou acréscimo a
outros previamente definidos no campo empírico das ciências sociais. Tampouco
poderia ser definida como um contexto geral (a globalização) a partir do qual
situar as realidades estudadas. É um plano de referência que redefine o quadro
descritivo (e analítico) das situações investigadas, colocando em mira a teia
de conexões e mediações que as atravessavam. Em outros termos, é um plano
de referência que (re)define o modo de construção de nossos objetos e nossas
questões de pesquisa.
A questão da mobilidade inscreve-se em um espaço conceitual que mobiliza
as noções conexas de circulação e de acessibilidade – acesso (e seus bloqueios)
a espaços, serviços, artefatos, bens e produtos que a cidade oferece e faz cir-
cular de formas desiguais e assimétricas nos espaços urbanos. É um modo de
pensar a cidade (e seus problemas) a partir de referências outras em relação ao
que ficou consagrado por uma certa linhagem de estudos urbanos e pela qual a
cidade é vista sob o ângulo exclusivo da habitação e seu entorno imediato, dito
comunitário ou dos problemas locais a serem geridos de forma eficaz por pro-
gramas localizados. A cidade é feita de cruzamentos e passagens, é atravessada
por experiências que se fazem justamente nos limiares de universos distintos, de
seus pontos de conexão e das redes sociotécnicas que os atravessam e articulam
em um mesmo plano de atualidade. É isso que introduz a questão da circulação,
da mobilidade e da acessibilidade como prisma para a problematização da ci-
dade e suas questões. Como diz Isaac Joseph (1998: 92), pensar a cidade como
domínio da circulação e do acessível (e seus bloqueios) é, de partida, “dizer
que ela é tudo, menos o lugar de formação de uma comunidade”. Apreender os
bairros, em particular os chamados bairros desfavorecidos, diz Joseph, a partir
da cidade é pensá-los no plural, “situados em um plano de consistência que
lhes autoriza a permanecer urbanos”, já que atravessados por uma teia de redes
e circuitos em escalas diversas, pontos de conexão entre territórios diversos,
transversalidades de experiências feitas em seus limiares e nos quais pulsa a
vida urbana e seus problemas.
A questão proposta por Joseph é especialmente interessante, sobretudo pelo
contexto polêmico em que foi formulada: um modo de pensar a cidade e suas
questões que “significa forçosamente um ponto crítico em relação a um vetor
da fi losofia do habitar ancorada na experiência da proximidade e do mundo à
mão” e que está hoje “no coração de práticas gestionárias que buscam corrigir
um déficit de urbanidade” sob o primado de lógicas normativas e concepções
securitárias, também redutoras, enfatiza Joseph, do local posto como lugar por
excelência de formação de identidades e inserção social (cf. Joseph, 1998: 92-93).
Em outros termos: a questão da mobilidade define um plano de referência que
permite situar criticamente os dispositivos gestionários muitas vezes apresentados

17
como exemplos virtuosos de “cidadania local”. No entanto, mais interessante
e mais fecundo do que entrar em polêmicas (no mais das vezes inócuas), está
justamente no parâmetro descritivo ou um dispositivo cognitivo que permita
deslocar a perspectiva pela qual compor e ordenar os fatos, mostrar conexões
e feixes de relações que não se deixariam ver sob o prisma da “comunidade”.
Outros modos de descrever as coisas, permitindo a partir daí colocar uma ordem
de questões que não podem ser resolvidas nos termos habituais, abrindo por
isso mesmo a fenda a partir da qual exercitar a imaginação crítica. É justamen-
te nesse sentido que aqui se diz que a construção de parâmetros descritivos é
também a construção de parâmetros críticos. Não estou segura de termos sido
bem sucedidos nessa empreitada. Mas é uma aposta.
Um plano de referência e um espaço conceitual, a questão da mobilidade
supõe (e exige) uma estratégia descritiva voltada aos pontos de conexão e inter-
secção dos circuitos entrelaçados ou superpostos que fazem a trama urbana.
Isso significa dizer que o entendimento das dinâmicas locais supõe (e exige)
seguir – e seguir no sentido literal, empiricamente – as linhas entrelaçadas que
compõem o social, porém transbordam amplamente o perímetro local, justa-
mente porque fazem o traçado de redes superpostas, de escalas variadas, que
atravessam e definem (ou redefinem) cada situação, colocando-as ao mesmo
tempo em ressonância com outras situações de tempo e espaço. Concretamente,
a questão das mobilidades impõe uma certa modalidade de pesquisa: algo como
a traçabilidade das práticas, suas mediações e conexões, a partir de “postos de
observação” ancorados em situações definidas.
Tomemos um exemplo: nos pontos extremos da periferia leste da cidade de
São Paulo, o tradicional e hoje renovado trabalho a domicílio. Sob uma certa
perspectiva, exemplo paradigmático da atividade de sobrevivência própria ao
mundo da pobreza com todas as limitações e vulnerabilidades que lhe são defini-
doras nos pontos de junção entre precariedade (ou exclusão) social e segregação
urbana. No entanto, basta seguir o traçado dos produtos e pessoas que uma outra
topografia urbana e social seja desenhada. A partir daí é possível desenrolar os
fios dos circuitos variados do chamado mercado informal e, em suas conexões, os
jogos de poder e relações de força de que dependem essa circulação ampliada de
produtos pelas vias de redes de subcontratação que chegam aos pontos extremos
das periferias urbanas. Primeiro, claro está, há os intermediários que fazem
a conexão com os polos globalizados da economia e também com os negócios
“obscuros” em que se misturam máfias locais, os empresários do contrabando e
outros ilícitos, tudo isso ativando o hoje expansivo e rendoso comércio de produtos
falsificados ou simplesmente “desviados”. No entanto, há também associações
comunitárias ditas fi lantrópicas que se transformam em agenciadoras de redes
locais de subcontratação em uma peculiar mistura de apelo solidário, clientelismo
e jogos de poder nas disputas locais, tudo isso redefinido na medida em que é
mobilizado por redes de subcontratação que são acionadas, sabe-se lá porque e
por quem e de modo muito obscuro, pois nunca se sabe ao certo de onde vem a

18
encomenda, muito menos quem paga pelo trabalho feito e para onde vai o produto
realizado. Atravessando tudo isso, nos mesmos espaços e nos mesmos territórios,
os fluxos da migração clandestina trazem para os fundos da periferia leste da
cidade os bolivianos, agora personagens conhecidos da paisagem urbana, que
vivem e trabalham em condições mais do que penosas, já que em boa medida
são cativos dos coreanos que muito frequentemente agenciam a migração e estão
muitíssimo bem instalados no centro da cidade: é daqui que saem as encomen-
das que vão circular pelas redes informais de subcontratação, mobilizando
bolivianos e, mais, boa parte do trabalho a domicilio nessas regiões distantes
da cidade, ativando os circuitos da produção têxtil que, no caso da zona leste
da cidade, se alimenta da história urbana da região e reatualiza a importância
do “centro velho” (Brás, Bom Retiro), onde estão instaladas as confecções, onde
se entrelaçam todos esses fios, abertos e subterrâneos ou clandestinos, e são
igualmente urdidas as vinculações com um mercado inteiramente integrado ao
capital globalizado. Essas questões foram trabalhadas por Carlos Freire (2008).
No início, “apenas” uma pesquisa sobre trajetórias ocupacionais de moradores
instalados no extremo leste da cidade e seus deslocamentos urbanos ao longo
de seus percursos de trabalho. Teria sido mais um e apenas um estudo sobre
trabalho precário e pobreza, se não houvesse essa prospecção que buscou seguir o
traçado das pessoas e dos produtos, bem como os agenciamentos territorialmente
situados que permitem essa articulação entre o trabalho informal e os circuitos
ampliados de economias transnacionais.
É essa teia de mediações e esse jogo de escalas entrecruzadas que podemos
desdobrar a partir de qualquer um dos pontos de venda do hoje proliferante
comércio ambulante, seguindo a traçabilidade dos produtos que circulam nos
centros de comércio popular e que fazem circular produtos de origens variadas,
quase sempre duvidosas, pondo em ação agenciamentos locais e territorializados
(verdadeiros dispositivos comerciais) que fazem a articulação entre o informal e
os circuitos ilegais das economias transnacionais (contrabando, pirataria, falsifi-
cações): pontos de ancoramento de um capitalismo que, como diz Alain Tarrius
(2007), mobiliza os “pobres” como clientes, como consumidores e operadores
ou passadores que garantem a circulação e distribuição de mercadorias que,
sem esses circuitos nas fronteiras porosas do legal e ilegal, quando não ilícito,
não chegariam aos recantos mais pobres das várias regiões do planeta. Disso
temos as evidências na expansão mais do que considerável dos mercados de
consumo popular, que apresentam uma densidade notável no centro da cidade,
mas que se expandem igualmente nos bairros periféricos em mercados locais que
se apoiam em uma trama variada tecida nas fronteiras incertas do informal, do
ilegal e do ilícito. Aqui, todas as situações podem ser encontradas lado a lado,
num total embaralhamento do legal e do ilegal, do lícito e do ilícito, do formal e
do informal: aí os produtos circulam por meio de acordos nem sempre fáceis de
serem mantidos entre organizações mafiosas, gente ligada ao tráfico de drogas,
comerciantes pobres, intermediários dos coreanos (e de outros tantos), além

19
dos técnicos das subprefeituras que tentam fazer valer as regulações oficiais,
tudo isso misturado com pressões, corrupção, acertos obscuros e histórias de
morte. Mas é lá mesmo que circulam produtos de procedência conhecida, des-
conhecida, duvidosa ou simplesmente ilícita, e também o “excedente”, se é que
é possível falar nesses termos, das famílias engajadas no trabalho a domicílio
e que se viram como podem para bem aproveitar o tempo que lhes sobra entre
os ritmos descontínuos e incertos da produção sob encomenda. Voltaremos a
isso no capítulo 5.
Mudando de registro, agora o lado formal-legal das reconfigurações sócio-
urbanas recentes, o mesmo exercício pode ser feito a partir das práticas de
consumo de famílias pauperizadas. Essa foi a pesquisa realizada por Claudia
Sciré (2009) em uma favela situada na periferia sul da cidade. Seria mais um
e apenas um estudo sobre a pobreza e estratégias de sobrevivência, não fosse
um dispositivo de pesquisa que buscou rastrear as práticas e seus circuitos,
as mediações e as conexões pelas quais a economia domestica se redefine em
função das condições de acesso aos grandes equipamentos de consumo que hoje
recortam de ponta a ponta os espaços urbanos, também as periferias da cidade.
Não se trata simplesmente da proximidade física dos hipermercados, shopping
centers e lojas de departamento que hoje disputam os chamados mercados po-
pulares, as ditas classes C e D. A hoje celebrada explosão do consumo popular
não teria sido possível sem a generalização dos cartões de crédito em suas várias
modalidades e foi justamente esse o foco da pesquisa realizada. Mais do que
um assunto interessante, na verdade o rastreamento desse artefato e seus usos
permitiu à pesquisadora deslindar o modo como a lógica da dívida e as práticas
de endividamento sucessivo (transferido para a fatura do mês seguinte) alteram
os modos de organização da vida familiar, bem como afetam os circuitos da so-
ciabilidade e da solidariedade intrapares, com os cartões circulando na teia de
préstimos e contra-préstimos: uns emprestam nome e cartões para outros com o
“nome sujo” na praça ou para ajudar a aquisição de bens para além dos patama-
res de renda definidos pelo salário e, ao final, uns e outros se veem enredados
no esforço por inventar expedientes para negociar a dívida, transferir para o
mês seguinte, usando um cartão para cobrir a dívida de um outro, um cartão
próprio ou cartão emprestado, uma dívida que se paga com outra dívida. Algo
como uma financeirização do tradicional (tornado arcaico) “fiado”, também dos
jogos da reciprocidade popular. Ao fazer a traçabilidade desse artefato urbano
que são os cartões de crédito, vamos encontrar os fios que articulam esses jogos
sociais redefinidos, os equipamentos de consumo, as financeiras, os dispositivos
de crédito, também os procedimentos de gestão da dívida, dito “negociação da
dívida”, mas que não fazem mais do que tornar os indivíduos, dito os “clientes”,
cativos do fluxo financeiro que não pode ser interrompido. Gestão da dívida que,
pelo lado das famílias, desdobra-se em expedientes mobilizados, também nas
fronteiras incertas entre o legal e ilegal, lícito e ilícito, pelos quais a dívida vai
se transferindo de um ponto a outro, até entrar, por vezes, em ponto de com-

20
bustão. Aqui, a partir de uma situação que poderia ser tomada como exemplar
das condições de pobreza e vulnerabilidade social, perfi la-se toda uma outra
dimensão da cidade, os registros tangíveis da modernização urbana que, nos
últimos anos, se fez acompanhar pela proliferação dos grandes equipamentos
de consumo (em suas relações com o capital financeiro) que redefinem a lógica
de produção de espaços urbanos (o que já foi amplamente debatido pela litera-
tura especializada), mas que também afetam dinâmicas sociais e seus pontos
de fricção, reconfigurações societárias que ficariam ilegíveis sob o parâmetro
comunitário que impera em larga medida nos estudos sobre pobreza urbana.
Essas questões serão retomadas no capítulo 3, “Deslocamentos: percursos e
experiência urbana”.
Poderíamos multiplicar os exemplos. Outros serão discutidos ao longo destas
páginas. A rigor, não se trata de exemplos ou de casos interessantes. São situ-
ações nas quais feixes variados de relações e conexões estão consteladas. Em
cada qual, jogos situados de escala. Cada situação é atravessada por processos
transversais nas trilhas muito concretas das diversas formas de conexão e inter-
conectividade, seja pelas mediações sociotécnicas e seus artefatos (os cartões de
crédito, por exemplo, para ficar apenas no caso aqui comentado), seja pelas redes
socioeconômicas, aí incluindo os circuitos obscuros dos mercados informais, o
tráfico de drogas e o comércio de bens ilícitos. Colocadas lado a lado, elas se
comunicam pela transversalidade das questões postas em cada uma, fazendo
perfi lar realidades urbanas contrastadas apreendidas a partir de suas diversas
angulações, jogo de perspectivas lançadas sob diversos prismas.
Se é verdade que o cenário urbano vem sendo alterado em ritmos muito ace-
lerados, os vetores dessas mudanças operam em situações de tempo e espaço.
Processos situados, portanto. E agenciados por um jogo multiforme de atores,
de redes sociais e mediações de escalas também variadas. Por isso mesmo, só
podem ser bem compreendidos nessas constelações situadas. Este o pressuposto
que orienta nosso trabalho: não se trata de partir de objetos ou entidades so-
ciais tal como se convencionou definir de acordo com os protocolos científicos
das ciências sociais (o trabalho, a família, a moradia), mas, sim, de situações e
configurações sociais a serem tomadas como “cenas descritivas”, que permitam
seguir o traçado dessa constelação de processos e práticas, suas mediações e
conexões. E, no contraponto entre cenas descritivas diferentes, a transversalidade
das questões que se colocam.
A partir de cada situação, tal como “postos de observação”, é possível apre-
ender os perfis contrastados da cidade, fazendo a traçabilidade das práticas,
seus circuitos e mediações. É um experimento de pesquisa que pode nos abrir
uma senda para identificar, seguir os traços e traçados dos ordenamentos sociais
que vêm sendo tramados nos tempos que correm. É nesse sentido que se assume
como hipótese teórico-metodólógica a exigência de uma etnografia experimental,
tomando como referência cenas descritivas a partir das quais seguir as pistas
de ordenamentos sociais emergentes.

21
Não se trata de um suposto “trabalho preliminar”, tal como uma aproximação
prévia dos terrenos de pesquisa e que, depois, desaparece na elaboração de um
corpo teórico-conceitual bem delimitado (na melhor das hipóteses, é registrado
nos anexos metodológicos da publicação final). A experimentação como prática
de pesquisa e de produção de conhecimento está na contracorrente desses modos
convencionais que primaram (e ainda persistem) nas ciências sociais, e segue
ao revés das classificações estabelecidas, de entidades já feitas e procedimentos
habituais do saber (cf. Rabinow, 1999). Nos termos de Appadurai (1996), trata-
se da exigência de uma abordagem capaz de abrir-se a uma interrogação sobre
essas configurações complexas e sobrepostas, seus modos de operação, suas
causalidades e suas contingências, captando fluxos e incertezas, ao contrário e ao
revés das antigas imagens de ordem, de estabilidade e sistematicidade próprias
das teorias sociais convencionais. A prática da experimentação acompanha a
etnografia multi-situada proposta por George Marcus (1995), buscando as co-
nexões, as associações, modos de conjugação de tempos e espaços diversos – é
preciso seguir as pistas, diz Marcus, os traços dessas conexões: fazer a traça-
bilidade desses movimentos diversos e que estão cifrados nas várias situações
investigadas. Não por acaso, a etnografia experimental como prática de pesquisa
e prática de produção de conhecimento opera em um espaço conceitual no qual
circulam termos como redes, trilhas, conjunções, conexões e conectores.
Já é lugar-comum dizer que as teorias e categorias convencionais de análise
não dão conta das novas realidades. Mas, então, será preciso levar isso a sério e
saber tirar consequências. Não se trata de inventar novas teorias e muito menos
domesticar essas realidades em alguma matriz explicativa geral. Trata-se, antes
e sobretudo, de fazer da investigação uma experiência de conhecimento capaz de
deslocar o campo do já-dito, para formular novas questões e novos problemas.
Ao invés de dar um salto nas alturas e se agarrar em alguma teoria ou conceito
geral, prospectar as linhas de força dessas realidades em mutação. Mais do que
um conceito, a cidade é um campo de práticas, diz Roncayolo (1978). Essa é
uma sugestão forte a ser seguida e que coloca o plano no qual uma investigação
pode se dar, fazendo surgir feixes de questões que permitam modificar proble-
mas previamente colocados – a “questão urbana” não existe como tal (definição
prévia ou noção modelar), porém é configurada no andamento mesmo dessa
prospecção como questões (sempre parciais) e interrogações (sempre reabertas)
que vão se colocando nessa “construção exploratória do objeto” de que fala
Lepetit (2001). É com essa perspectiva que buscamos seguir, prospectar, as
mobilidades urbanas, seus espaços e territórios.

***

22
Esse trabalho de prospecção dos mundos urbanos abriu-se a uma série de
questões que, na sequência, terminaram por pautar frentes de investigação não
previstas no início, porém que desdobram achados de pesquisa que foram, no
correr dos anos, preenchendo nossos diários de campo. Essas as questões a
serem tratadas na segunda parte deste livro.
O ponto de partida foram as evidências de uma expansiva trama de ilegalis-
mos novos, velhos ou redefinidos, que passam pelos circuitos da hoje expansiva
economia (e cidade) informal, o comércio de bens ilegais, o tráfico de drogas
e suas capilaridades nas redes sociais e práticas urbanas. Bem sabemos que
ilegalismos urbanos não são propriamente uma novidade. São algo que acompa-
nha a história de nossas cidades, item quase obrigatório nos estudos urbanos, já
foram tematizados por uma extensa e importante literatura, para não falar das
circunstâncias históricas que presidiram o desde sempre expansivo mercado
informal. No entanto, o que nos parece merecer uma interrogação mais detida
são as mediações e as conexões pelas quais esses ilegalismos vêm sendo urdi-
dos no cenário urbano. São outras as conexões, outras as mediações, também
outra a escala em que os problemas se colocam. Ao seguir o traçado desses
ilegalismos vemos perfi lar-se mundos urbanos alterados e redefinidos por formas
contemporâneas de produção e circulação de riquezas, que ativam os diversos
circuitos da economia informal, que mobilizam o trabalho sem forma, para usar
a expressão de Francisco de Oliveira, e se processam nas fronteiras incertas do
informal, do ilegal, também do ilícito.
É nesse cenário que vêm ganhando forma as figuras contemporâneas do
trabalhador urbano que transita nas fronteiras porosas do legal e ilegal, formal
e informal, lançando mão de forma descontínua e intermitente das oportunida-
des legais e ilegais que coexistem e se superpõem nos mercados de trabalho, ao
mesmo tempo em que se expande uma zona cinzenta que torna incertas e indeter-
minadas as diferenças entre o trabalho precário, expedientes de sobrevivência e
atividades ilegais. Assim, por exemplo, não é incomum encontrar a figura de um
trabalhador, homem ou mulher, que trabalha durante o dia (trabalho precário ou
não, formal ou não) e, à noite, em meio a proximidades e cumplicidades tecidas
em meio a histórias familiares e jogos das reciprocidades locais, pode se dispor
de modo episódico (ou não) a enrolar papelotes de cocaína a serem vendidos no
ponto de droga instalado em seu bairro, sem por isso se considerar (e ser visto)
comprometido com o “mundo do crime”. Ou então, nos fins de semana, com-
plementa seu parco salário capitaneando um ponto de venda de CDs piratas e,
vez ou outra, tenta a sorte vendendo algum produto de origem duvidosa (sobre a
qual convém não perguntar) que lhe chegou às mãos por gente próxima, ou que
circulou e foi negociado nessa espécie de “balcão de oportunidades” (Ruggiero,
2000) que são as biroscas onde todos se encontram, onde as informações cir-
culam, as oportunidades aparecem em meio às conversas corriqueiras de todos
os dias. Situações como essas não são eventuais, nada episódicas, muito menos
anedóticas. São as figuras contemporâneas do trabalhador urbano que segue

23
os percursos dessas “mobilidades laterais” entre o formal e informal, legal e
ilegal, para usar os termos de Ruggiero e South (1997), ao descrever situações
parecidas que hoje se alojam no centro dinâmico das economias urbanas também
dos chamados países do Norte (cf. capítulo 5).
É sempre possível dizer que nada disso é novidade em nossas cidades, que
isso que está aqui sendo nomeado como “mobilidade lateral” nada mais é do
que a reposição da “viração” própria das desde sempre conhecidas situações
de pobreza. No entanto, se há, hoje, a reatualização de uma história de longa
duração, há também um deslocamento considerável da ordem das coisas. Isso
que foi considerado evidência das incompletudes de nossa modernidade, a “ex-
ceção do subdesenvolvimento”, como diz Francisco de Oliveira (2003), não
apenas transformou-se em regra (está aí para ficar, sem a superação prometida
pelo “progresso”), como se projetou na ponta de um capitalismo que mobiliza
e aciona a reprodução ampliada do “trabalho sem forma”, ao mesmo tempo em
que fez generalizar os circuitos ilegais de uma economia globalizada nas sendas
abertas pela liberalização financeira, a abertura dos mercados e encolhimento
dos controles estatais (Naim, 2006), em um tal intrincamento entre o oficial e o
paralelo, entre o legal e o ilegal, o lícito e o ilícito que essas binaridades perdem
sentido e tornam obsoletas as controvérsias clássicas em torno do formal e o
informal (Botte, 2004; Bayart, 2004). O fato é que as relações incertas entre o
legal e ilegal, formal e informal, lícito e ilícito constituem um fenômeno transver-
sal na experiência contemporânea, também nos chamados países do Norte. São
vários os autores que vêm chamando a atenção para essa transitividade entre o
informal, o ilegal e o ilícito, com uma preocupação, mais ou menos explicitada,
em distinguir a natureza da transgressão que se opera no âmbito da economia
informal ou, então, que define as atividades ilícitas ou criminosas, como o tráfico
de drogas, armas e seres humanos.1
Nas nossas cidades, em particular no caso de São Paulo, essa teia variada
de ilegalismos vem se processando no interior e nos meandros de um cenário
urbano que, em muitos sentidos, desativa todo um jogo de associações pelo qual
se convencionou tratar esses temas, em suas relações com a pobreza, privações
sociais, carências urbanas, ausência do Estado, ou seja: o registro do que falta,
do que falha, do que não se completa. E é isso que coloca a exigência de mudança
de registro e deslocamento do jogo de referências para descrever essas situações
e situar o plano de atualidade em que elas se inscrevem. A questão está longe
de ser trivial, e tampouco haverá de ser resolvida na base de algum torneio
teórico abstrato para enquadrar (explicar?) as novas realidades. Ainda temos,
assim me parece, que saber tirar consequências da desativação do horizonte

1
Essa é questão central de um projeto realizado em parceria com pesquisadores da Uni-
versidade de Toulouse Le Mirail (Acordo Capes-Cofecub, 2007-2011). Essas formulações
e também as questões tratadas no capítulo 5 são grandemente devedoras da interlocução
com Angelina Peralva, com quem partilho a coordenação desse projeto.

24
histórico e do espaço conceitual no qual essas questões foram antes tratadas,
em grande medida a partir da referência normativa dos direitos, a expectativa
de uma cidadania salarial e as promessas de uma “modernidade incompleta”, o
problema enunciado nas primeiras páginas desta introdução, que será tratado
no capítulo 1 e retomado no capítulo 4. Nos termos de Francisco de Oliveira, a
“exceção se tornou a regra” e está no cerne da “era da indeterminação”, ponto
de clivagem em relação às décadas anteriores em que o trabalho (isto é, as rela-
ções de trabalho, relações de classe) estruturava um campo político de confl itos
que dava a medida e pautava a “era das invenções” (Oliveira, 2007). E é isso
propriamente que coloca a importância de se construir os parâmetros descritivos
para pôr em perspectiva (e sob perspectiva crítica) as redefinições dos mundos
sociais que vêm se processando nessa virada dos tempos. Não se trata de um
apego cego ou uma volta à empiria bruta, à falta de uma teoria que nos conforte
em nossas certezas. Descrição não é uma transcrição da realidade, muito menos
um inventário ou coleção de casos interessantes. É um trabalho de construção
que passa pelo modo como se estabelecem ou se fazem ver conexões e relações
que, antes, sob um outro jogo de perspectivas, não faziam parte da cartografia
social ou, então, dos critérios de pertinência e relevância postos pelas perguntas
que se endereçavam ao mundo. Hoje, porém, são outras as perguntas e talvez
sejam estas que ainda têm que ser mais bem formuladas.
Se, como diz Francisco de Oliveira, a exceção tornou-se a regra, o trabalho
sem forma e essa trama multifacetada de ilegalismos estão no coração do ca-
pitalismo contemporâneo, então é caso de se perguntar pelo modo como esses
processos redesenham os mundos urbanos e redefinem ordenamentos sociais.
Mais concretamente: o modo como esses ilegalismos redefinem as tramas urbanas,
as relações sociais e relações de poder em situações variadas.
Essa é uma discussão de fôlego, que vai além do que foi possível realizar no
andamento de pesquisas ainda em curso. Entretanto, há pistas a seguir. E estas nos
foram dadas pelos percursos cruzados dos personagens urbanos cujas trajetórias
tratamos de seguir. Os indivíduos e suas famílias transitam nas tênues fronteiras
do legal e ilegal, sabem lidar com os códigos de ambos os lados, sabem jogar
com as diversas identidades que remetem a esses universos superpostos da vida
social. Mas sabem, sobretudo, exercitar uma especial “arte do contornamento” dos
riscos alojados justamente nessas fronteiras porosas: o pesado jogo de chantagem
e extorsão das “forças da ordem” e a violência da polícia sempre presente nesses
percursos, também a eventualidade de algum desarranjo nos acertos instáveis com
os empresários do ilícito, e não apenas com o tráfico de drogas. Concretamente:
os jogos de poder e relações de força se processam nas dobras do legal e ilegal.
Isso muda inteiramente o modo de descrever as “mobilidades laterais” e permite
ver os sentidos políticos incrustados nessas versões atualizadas da “viração po-
pular” que perde, assim, essa espécie de leveza entre liberada e esperta muitas
vezes associada à cultura popular ou então à “dialética da malandragem”, para
lembrar aqui a fórmula famosa de Antonio Candido.

25
Para colocar em outro registro e adiantando questões trabalhadas no capítulo
5: se queremos entender o lugar desse feixe variado de ilegalismos no tecido
urbano, será importante se deter sobre essa transitividade entre o legal e ilegal
que parece, hoje, estar no centro das dinâmicas urbanas de nossas cidades. Se
há porosidade entre o formal e informal, legal e ilegal, isso não quer dizer in-
diferenciação entre uns e outros. Leis, codificações e regras formais têm efeitos
de poder, circunscrevem campos de força e é em relação a elas que essa transi-
tividade de pessoas, bens e mercadorias precisa ser situada. E, a rigor, descrita.
Não se trata de universos paralelos, muito menos de oposição entre o formal e
informal, legal e ilegal. Na verdade, é nas suas dobras que se circunscrevem
jogos de poder, relações de força e campos de disputa. São campos de força que
se deslocam, se redefinem e se refazem conforme a vigência de formas variadas
de controle e também, ou sobretudo, dos critérios, procedimentos e dispositivos
de incriminação dessas práticas e atividades, oscilando entre a tolerância, a
transgressão consentida e a repressão conforme contextos, microconjunturas
políticas e relações de poder que se configuram em cada qual.
Aqui, a noção de “gestão diferencial dos ilegalismos” pode nos ajudar a
bem situar a questão. Ao cunhar essa noção em Vigiar e punir (1975), Foucault
desloca a discussão da tautológica e estéril binaridade legal-ilegal, para colocar
no centro da investigação os modos como as leis operam, não para coibir ou
suprimir os ilegalismos, porém para diferenciá-los internamente, “riscar os limites
de tolerância, dar terreno para alguns, fazer pressão sobre outros, excluir uma
parte, tornar útil outra, neutralizar estes, tirar proveito daqueles” (Foucault,
2006: 227). Os ilegalismos, diz Foucault em outro texto, não são imperfeições
ou lacunas na aplicação das leis, contêm uma positividade que faz parte do
funcionamento do social, eles compõem os jogos de poder e se distribuem con-
forme se diferenciam “os espaços protegidos e aproveitáveis em que a lei pode
ser violada, outros em que pode ser ignorada, outros, enfim, em que as infrações
são sancionadas”. As leis, diz Foucault, “não são feitas para impedir tal ou qual
comportamento, mas para diferenciar as maneiras de contornar a própria lei”
(Foucault, 1994: 716). Mas é justamente nesses torneios da lei que as questões
se configuram. É isso que está sendo aqui visado ao se chamar a atenção para
o que acontece nas dobras do legal-ilegal. Não se trata de reter ou se ater a
essa binaridade como chave explicativa, mas de seguir, prospectar seus efeitos,
o modo como os jogos de poder se configuram nesses espaços: a distribuição
diferenciada dos controles e, em torno deles, os agenciamentos práticos que se
curvam ou que escapam aos dispositivos de poder implicados nessas categorias
e codificações. E é isso que se pode seguir – e etnografar – seja no registro dos
ilegalismos difusos inscritos nas “mobilidades laterais” do trabalhador urbano,
tal como muito rapidamente indicado acima; seja no registro dos meandros dos
mercados informais que pulsam no centro dinâmico da economia urbana de
nossas cidades, como sugerido páginas atrás; seja ainda nos circuitos do tráfico
de drogas que fizeram multiplicar os pontos de venda por toda a extensão das

26
periferias urbanas. São essas as três situações que serão descritas e discutidas
na segunda parte deste livro.
Por ora, interessa indicar duas ordens de questões que, assim nos parece, estão
no fulcro dos ordenamentos sociais tecidos nesses meandros das tramas urbanas e
que pautam, em boa medida, a discussão a ser feita nos três últimos capítulos:
Primeira: os percursos urbanos e as situações em que estão constelados esses
feixes de ilegalismos são pontuados por jogos de poder e relações de força que se
processam nas dobras do legal-ilegal. No âmbito dos mercados informais, desde
um modesto ponto de venda de CDs piratas ao pulsante comércio informal no
centro da cidade, há outras tantas redes que perpassam essas atividades, que se
compõem e interagem com os circuitos econômicos por onde produtos e pessoas
circulam, redes que passam por dentro das instâncias oficiais-legais e fazem
circular as mercadorias políticas, nos termos propostos por Michel Misse (2006),
também elas ilegais, e das quais dependem os modos de funcionamento desses
mercados, estando no cerne de suas formas de regulação. É o custo político das
transações informais, diz Misse, justamente porque elas operam por fora ou ao
revés das normas oficiais-legais. Mercadorias políticas, quer dizer: corrupção,
acertos na partilha dos ganhos, subornos, compra de proteção e práticas de extor-
são que podem ser mais ou menos ferozes conforme as microconjuturas políticas,
interesses em jogo, alianças feitas ou desfeitas, sempre no limiar de soluções
violentas, entre repressão aberta e histórias de morte. Fiscais da prefeitura, ges-
tores urbanos, operadores políticos, vereadores e suas máquinas políticas, agentes
policiais operam justamente nas dobras do legal-ilegal pelas vias das “ligações
perigosas”, como diz Misse, entre os mercados informais e os mercados políticos,
também ilegais, nos quais se transacionam as mercadorias políticas, que parasi-
tam aqueles e condicionam grandemente o modo como estes se organizam e se
distribuem nos espaços urbanos. São práticas que se movem entre as instâncias
formais-legais e os procedimentos extralegais; são as “forças da ordem” e seus
representantes que fazem uso de suas prerrogativas legais, a autoridade que o
Estado lhes confere, para acionar dispositivos não-legais, deslizando entre acertos
negociados, o arbítrio, chantagem, expropriação e violência aberta. A rigor, isso
também toma parte e é constitutivo desse deslocamento das fronteiras do legal-
ilegal que acompanha as formas contemporâneas de produção e circulação de
riquezas. Em outros termos: uma ampla zona cinzenta que torna indeterminadas
as diferenças entre o legal e extralegal, entre o dentro da lei e o fora da lei. Mas
é por isso também que essas práticas entram em ressonância e se comunicam,
transversalmente ou diretamente, com o jogo igualmente pesado e igualmente
violento dos empresários do ilícito, procedimentos mafiosos postos em ação para
o controle dos pontos de venda ou para as operações pesadas do contrabando,
para os agenciamentos da migração clandestina (bolivianos, chineses, outros),
controles dos circuitos de distribuição, etc.
Quanto ao mercado varejista das drogas ilícitas, é impossível compreender
seus modos de funcionamento sem levar em conta as “ligações perigosas” com

27
os mercados de proteção acionados pelas forças policiais. Essa é questão que já
foi esmiuçada empiricamente e teoricamente por Michel Misse (2006) em seus
estudos sobre os mercados da droga no Rio de Janeiro. Porém, se a situação do
Rio de Janeiro já é bastante conhecida, no caso de São Paulo ainda há muito a
se fazer, os estudos apenas começam. Porém é algo que se pode flagrar e acom-
panhar por meio da observação etnográfica de um ponto de droga instalado em
um bairro de periferia. O pagamento regular da proteção policial faz parte das
rotinas do negócio local. São práticas corriqueiras, mas não banais, com seus
procedimentos, seus tempos, seus lugares, protocolos, a cenografia como as coisas
acontecem. Equilíbrios instáveis que, muito frequentemente, desandam na prática
aberta de extorsão: espancamentos, chantagem sobre uns e outros, ameaça de
prisão, verdadeiros sequestros com a exigência de preços exorbitantes para o
resgate. No alvo estão os “meninos da droga”. Porém, não só: qualquer um que,
nesse trânsito nas fronteiras embaçadas do legal e ilegal, possa oferecer algum
pretexto para pressão, chantagem, ameaça de prisão. Sob a pressão do espan-
camento e, sobretudo, ameaça do infeliz ser levado à Delegacia para ser lavrado
um Boletim do Ocorrências, nas negociações do preço do resgate, como se diz,
cada um “vale quanto pesa”: se é figura importante ou não nos negócios locais,
se tem ou não passagem pela polícia, se tem relações valiosas ou não no “mundo
do crime” ou, simplesmente, quando se trata dos garotos, se a situação ameaça
afetar as famílias e o delicado jogo das reciprocidades vicinais. Isso também
faz parte das rotinas, não apenas do ponto de droga: isso compõe a vida de um
bairro de periferia, faz parte dos cenários locais, circula no repertório popular,
alimenta as histórias, está, enfim, incrustado na ordem das coisas, nas formas
de vida. O que não quer dizer que tudo seja banal ou que esteja banalizado:
uma peculiar experiência com a lei que termina por embaralhar e inverter os
critérios que definem os sentidos de ordem e o seu avesso.
Quando as coisas saem dos eixos (acertos desestabilizados pelas razões as
mais variadas), essas práticas assumem as formas mais violentas: chantagem,
extorsão, invasão, mortes, extermínios. O epicentro é a “biqueira”, ponto de venda
de drogas, mas a zona de arbítrio se expande e afeta todo o entorno. A cena é
conhecida: sob o pretexto de “caça aos bandidos”, sucedem-se as batidas poli-
ciais, invasão de domicílios, espancamentos, abusos de autoridade, expropriação,
também as mortes, execuções sumárias, extermínios. Violência extralegal: aqui,
nesse registro, não se trata propriamente de porosidade do legal-ilegal, não se
trata de fronteiras incertas entre o informal, o ilegal, o ilícito. Mas da suspensão
dessas fronteiras na própria medida em que fica desativada a diferença entre a
lei e a transgressão da lei. E isso significa dizer que é a própria diferença entre
a lei e o crime que se embaralha e, no limite, vem a ser, ela própria, anulada.
É isso que permite acionar uma espécie de licença para matar, sem que isso
seja considerado um crime. É isso o que está posto e exposto nessas situações
que se repetem nas periferias urbanas. É isso o que está posto e exposto nessa
expressão que acompanha os registros policiais – “resistência seguida de morte”:

28
uma categoria que não tem existência legal, mas que é aceita no processamento
judicial, que opera como uma espécie de autorização para matar, avalizada pe-
las instâncias estatais, também judiciais, invertendo tudo e suspendendo todas
as diferenças, de tal modo que toda e qualquer execução vira outra coisa e o
crime é atribuído à vítima em supostas “guerras de quadrilha”, “troca de tiros”,
“resistência à prisão”.
Aqui se está no cerne do que Agamben define como estado de exceção. Nas
suas configurações contemporâneas, práticas e situações instauradas no centro
da vida política (e da normalidade democrática), fazendo estender uma zona de
indeterminação entre a lei e a não-lei, terrenos de fronteiras incertas e sempre
deslocantes nas quais todos e qualquer um se transformam em vida matável, homo
sacer (Agamben, 2002). Poderes de soberania que se multiplicam e se desdobram
nessas pontas em que a presença do Estado, as forças da ordem afetam as vidas
e as formas de vida. É algo que pode ser visto, flagrado e, como propõem Das
e Poole (2004), etnografado, tratado de um ponto de vista antropológico, sob
o prisma de suas condições de operação prática, cotidiana, seguindo os modos
de operação das forças da ordem, seus movimentos, seus tempos, seus procedi-
mentos, também seus rituais e a cenografia que arma em torno de seus modos
de intervenção. É nessas situações e nesses contextos práticos que se pode bem
compreender as conexões internas entre lei e exceção. Na formulação precisa de
Das e Poole, são práticas que articulam simultaneamente o dentro e o fora da lei,
mas que não podem ser entendidas nos termos de lei e transgressão da lei pois
é a própria lei que está em questão, os seus modos de operação. Nos termos de
Agamben: a lei é aplicada nos modos de sua desativação e é isso propriamente
que define os poderes de soberania. Nos termos de Das e Poole, sob o prisma
das condições práticas sob as quais isso se processa: produção das “margens”
que não correspondem a definições territoriais, periferia ou territórios da po-
breza, pois elas se deslocam, se fazem e refazem conforme mudam os alvos, as
conveniências, o foco das atenções dos representantes da ordem, em condições
concretas de tempo e espaço. Margens: não se trata de um fora do Estado e da
lei, lugar de anomia, desordem, estado de natureza. São espaços produzidos pelos
modos como as forças da ordem operam nesses lugares, práticas que produzem
as figuras do homo sacer em situações entrelaçadas nas circunstâncias de vida e
trabalho dos que habitam esses lugares. No entanto, são também lugares em que
a presença do Estado circunscreve um campo de práticas e de contracondutas, no
qual os sujeitos fazem (e elaboram) a experiência da lei, da autoridade, da ordem
e seu inverso, em interação com outros modos de regulação, microrregulações,
poderíamos dizer, ancoradas nas condições práticas da vida social.
A noção de margem proposta por Das e Poole é especialmente interessante,
ainda mais para nós, etnógrafos do urbano, pois afeta diretamente o modo como
se constroem os nossos campos de pesquisa, o critério de pertinência etnográfica,
a definição daquilo que interessa e é pertinente ao estudo etnográfico ou, então,
para usar os termos de Paul Veyne, o modo como se arma a trama descritiva,

29
o cruzamento de linhas múltiplas e itinerários possíveis para colocar em cena
a interação entre as pessoas, as coisas, as circunstâncias materiais, os acasos,
feixes de relações que produzem os acontecimentos descritos (cf. Veyne,1998).
As questões discutidas pelas autoras, coordenadoras de um livro que leva o su-
gestivo título de Anthropology in the margins of the State, serão tratadas no último
capítulo. Por ora, vale dizer que a noção de margem é sobretudo importante pela
perspectiva que abre para descrever e discutir a “exceção que se tornou a regra”,
para retomar aqui a formulação famosa de Benjamin e que Agamben atualiza
em seu O Poder Soberano e a vida nua, e que, muito concretamente, está posta
nas dobras do legal-ilegal, que foi aqui o nosso ponto de partida.
Aqui entramos em uma segunda ordem de questões: esses lugares produzidos
como “margem” são estratégicos para o entendimento dos ordenamentos sociais
urdidos nas fronteiras porosas do informal, do ilegal e ilícito, que, retomando
o argumento de partida, estão no centro da experiência contemporânea, aqui
e alhures. Nas situações extremas da “vida nua”, extremas, porém frequentes,
tão frequentes quanto as formas violentas de intervenção policial nesses lugares,
explicita-se o que está contido, de modo latente ou aberto, nos meandros dos
mercados informais. Também nos ilegalismos difusos que se pode apreender no
mundo social e que está crivado nas “mobilidades laterais” das figuras contem-
porâneas do trabalhador urbano que transita nas fronteiras incertas do formal
e informal, legal e ilegal, também o ilícito. É o que está contido nos jogos de
poder e relações de força que se processam nessas dobraduras da vida urbana,
dobras do legal e ilegal. Mas isso também significa dizer que esses espaços de
exceção não são espaços vazios; é justamente aí, poderíamos então dizer, que as
fronteiras do Estado estão em disputa, os sentidos de lei, de justiça, de ordem
e seu avesso.
Nos centros do comércio popular, nas dobras do legal-ilegal, como mostra
Carlos Freire (2009), estrutura-se um campo de forças, envolvendo uma meada
de atores (ambulantes, lojistas, associações de classe, sindicatos, políticos, fis-
cais, gestores urbanos, forças policiais) em uma disputa, sempre reaberta, entre
negociações e confl itos acirrados, pelas vias de procedimentos públicos e outros
tantos obscuros, mafiosos ou não, em torno dos modos de apropriação da riqueza
circulante e da gestão dos espaços urbanos e suas regulações. Mas essa é também
uma disputa em torno das fronteiras do permitido e proibido, dos protocolos dos
mercados de proteção, bem como dos limites do tolerável nas práticas de extorsão
(cf. Freire, 2009). Não seria arriscado dizer que, nesses campos de disputa,
são as próprias fronteiras da economia que estão se redefinindo nos meandros
(em disputa) dos mercados informais (cf. capítulo 5). Quanto aos mercados de
drogas e suas capilaridades nas periferias urbanas, nos campos de gravitação
que se estruturam em torno das miríades de pontos de venda instalados nesses
bairros, é a própria gestão da ordem que parece estar em disputa, nos pontos de
junção (e fricção) da lei (e seus modos de operação) e outros modos de regulação
que perpassam os ilegalismos e estão ancorados nas formas de vida: protocolos,

30
códigos, procedimentos que operam não à margem da lei, são ativados justamente
nesses pontos nervosos, campos de força que gravitam em torno dos modos de
operação da lei nos seus pontos de incidência nas circunstâncias da vida. Aqui,
nesse registro, como será visto no capítulo 6, trata-se de uma gestão da ordem
que se desdobra em uma gestão dos limiares da vida e da morte: pois é disso
que se trata nesses espaços produzidos como “margem”, espaços de exceção,
pontuados e ritmados pela experiência da morte-matada (ou sua ameaça), a
violência policial e a violência implicada nos (des)acertos internos ao “mundo
do crime”, cujos nexos e ressonâncias mútuas ainda precisam ser deslindados.
O enigma da recente redução dos homicídios nas periferias urbanas, depois de
décadas seguidas de índices altíssimos, está todo cifrado nisso e essa é a pista
que se tentará seguir no último capítulo.
São dois registros que se comunicam, até porque estão cifrados nos percursos
dos trabalhadores urbanos nos meandros dos mercados informais e ilegais. E
estes nos oferecem um prisma especialmente interessante para apreender as
tramas sociais tecidas nas dobraduras da vida urbana. É possível descrever es-
ses percursos a partir dos sinais de algo como os “ardis de uma de inteligência
prática” (Vernant & Detiènne, 1974), inventados, maquinados, para lidar com
as circunstâncias mutantes e incertas nas fronteiras porosas do legal e ilegal.
Os indivíduos também transitam entre o dentro e fora do Estado, maquinam
artifícios nas fronteiras incertas do legal-ilegal, agenciam contracondutas, nego-
ciam regras, limites, protocolos para lidar com as incertezas e os riscos alojados
nessas dobraduras da vida urbana. Não é coisa simples transitar nesses terre-
nos: como mostra Daniel Hirata (2010), é preciso astúcias, artifícios, senso de
oportunidade para lidar com fiscais da prefeitura, negociar os acertos com as
forças da ordem, evitar a prisão, contornar os riscos de morte, garantir acordos
dos quais dependem esses negócios (não apenas os ilícitos), fazer alianças de
circunstâncias, tecer lealdades, discernir quem merece e não merece confiança.
Trata-se aqui, como bem enfatiza Hirata, de um feixe de códigos, de procedimen-
tos e protocolos, não normativos, não categoriais, sempre situacionais, práticos,
relacionais e dos quais depende a passagem por essas fronteiras incertas, ao
mesmo tempo em que, em cada situação, se negociam, se definem e redefinem os
critérios do “certo” e do “errado”, do justo e injusto, os parâmetros do aceitável
e os limites do tolerável. Nos termos propostos por Hirata, formas de conduta e
contracondutas das quais depende essa arte de “sobreviver na adversidade” –
essa expressão circula e faz parte do repertório popular, não tem nada a ver com
estratégias de sobrevivência de que tratam os estudos de pobreza. Não se trata
simplesmente de sobreviver e levar a vida. Trata-se, sobretudo, de contornar as
duas ameaças muito concretas que se colocam em suas vidas. De um lado, o
risco da morte violenta: esse é um dado de seus mundos de vida. Ao falar de
seus percursos, os indivíduos, sobretudo os mais jovens, fazem uma verdadeira
contabilidade dos mortos, pessoas próximas, amigos de infância, vizinhos de
rua, também parceiros nos meandros da vida urbana. Isso também faz parte do

31
repertório popular e também faz a marcação dos tempos de uma história urbana
local. Gente que foi morta pela polícia, isto é: execuções. Ou, então, que se viu
cativa do “condomínio do diabo” de que fala Alba Zaluar (1983), entre os (des)
acertos nos assuntos do “crime” e a lógica da vingança. De outro lado, o risco
de despencar na condição de “pobre-de-tudo”, a depender da caridade de uns
e outros ou da assistência social. Porém, isso significa dizer que, entre a morte
violenta e a pobreza cativa dos dispositivos gestionários, há um socius que vai
sendo tecido justamente em uma experiência que se faz, não à margem da lei,
mas nos pontos de fricção com os agenciamentos de poder e as forças da ordem
alojadas nas dobras do legal-ilegal, formal-informal.
Os rastros desses ordenamentos são deixados justamente por esse personagem
que, na falta de um termo melhor, nomeamos “passador” (cf. capítulo 4), aquele
que sabe transitar por essas fronteiras incertas e “sobreviver na adversidade”.
Uma figura cujo sentido se explicita no seu contraponto com outros dois persona-
gens urbanos, o “pobre-coitado” (ou o “zé-povinho”, termo que circula no repertó-
rio popular) e o “bandido”, cativo de um círculo fechado desenhado entre o jogo
pesado da policia e o “condomínio do diabo”. No ponto e contraponto desses três
personagens, desenha-se algo da nervura desses ordenamentos sociais. Não se
está aqui propondo uma tipologia, muito menos uma categorização das situações
sociais, até porque a experiência social não cabe nem se fi xa nessas definições.
Empiricamente, há uma transitividade entre essas figuras sociais aqui construídas
como personagens urbanos que, por isso mesmo, por essa transitividade, nos
ajudam a deslindar essa meada de fios entrecruzados e a descrever, pelo jogo
de perspectiva que se abre a partir de cada um deles, as situações sociais nas
quais está cifrado um socius que ainda precisa ser bem entendido.

***

Nestas últimas páginas, aqui a título de introdução, retomam-se questões


tratadas, por vezes literalmente, nos três últimos capítulos. Em cada qual, essas
questões foram trabalhadas em contextos definidos de discussão. Em cada qual,
inquietações e perguntas elaboradas no andamento da pesquisa, conforme os
achados de pesquisa nos afetavam e conduziam essa experimentação ao mesmo
tempo empírica e teórica. Em cada qual, momentos diferentes dessa prospecção
dos mundos urbanos, seguindo as pistas de ordenamentos urdidos nas tramas
da cidade, esses terrenos incertos entre a lei e a exceção e que estão, hoje, no
cerne da cena contemporânea.
O capítulo 4, “Tramas da cidade: fronteiras incertas do informal, ilegal e
ilícito”, é uma versão revista de um artigo elaborado para compor uma publicação
com resultados de pesquisas realizadas no âmbito do Cenedic (cf. Oliveira &
Rizek, 2007). Escrito, em sua primeira versão, no início de 2006, em diálogo

32
com questões propostas por Francisco de Oliveira, núcleo desse projeto comum,
é um texto de passagem, em vários sentidos. Foi nesse texto que se tentou uma
primeira aproximação desses terrenos incertos entre o informal, o ilegal e o
ilícito, tal como nos foi possível apreender em nossos campos de pesquisa e
com os quais se tentou trabalhar nas três cenas descritivas apresentadas na sua
segunda parte e aqui mantidas com pouquíssimas alterações.
O ponto de partida foram os sinais que recolhíamos em nosso trabalho de
campo de um mundo social que parecia (e parece) escapar das formas conhecidas
de interpelação política, dos celebradíssimos fóruns públicos de participação
popular e suas supostas virtudes democráticas, também dos programas sociais
que se multiplicam nas periferias urbanas, com suas promessas de redenção dos
males da dita exclusão social. Um campo social que parecia (e parece) vazar ou
transbordar desses dispositivos políticos, mas que nem por isso correspondia às
imagens correntes de anomia e desorganização social, pois nos sugeria diagramas
variados de relações e formas sociais que passavam por essas mediações formais,
porém transbordavam suas regulações e colocavam uma ordem de questões que
nos pareciam implodir a gramática política conhecida. Foi esse o nosso ponto de
partida. Já tínhamos em mira esse feixe variado de ilegalismos entrelaçados nas
práticas urbanas e suas mediações, circuitos e redes sociais. Uma questão que
evoca o tema reiterado nos estudos urbanos, a contraposição de “cidade legal”
e “cidade ilegal”, mas era isso que nos parecia deslocado. Era uma outra ordem
de problemas que essas realidades pareciam colocar: uma crescente e ampliada
zona de indiferenciação entre o legal e o ilegal, entre o direito e a força, entre a
norma e a exceção. Eram realidades que também nos ofereciam um prisma pelo
qual situar criticamente a retórica dos direitos, cidadania, participação popular,
essa tríade de noções que, desde meados dos anos 1990, passou a compor a lin-
guagem e a agenda dos programas sociais nas periferias urbanas: noções agora
esvaziadas de seu sentido político, declinadas em uma gramática gestionária que
arma algo como um jogo de faz-de-conta com a exposição dos casos “edificantes”
e “boas práticas” premiadas e celebradas em fóruns internacionais. Uma verda-
deira implosão semântica do léxico dos direitos, como disse Paulo Arantes (2000)
ao rastrear os usos proliferantes dessas noções, direitos e cidadania, em meio à
virada neoliberal dos anos 1990, do marketing social das empresas, passando
pelas ONGs, também as organizações fi lantrópicas tradicionais até o muito mo-
derno “empreendedorismo social”. Por todos os lados, uma afirmação ritualística
e protocolar da exigência ética da cidadania, mas que apenas confunde política
e bons sentimentos, embaralha as diferenças entre direito e ajuda humanitária,
entre direito e fi lantropia, ao mesmo tempo em que se configuram novas formas
de gestão do social voltadas à administração das urgências das chamadas popu-
lações em situação de risco, noção esta que, como será visto nesse capítulo, não
é inocente em seus pressupostos e suas consequências.
Na primeira parte desse capítulo, tentou-se identificar, ao menos assinalar, a
erosão do espaço político e o espaço conceitual nos quais se especificava o sentido

33
político, polêmico e crítico das noções de direito, cidadania e espaço público.
Uma erosão que se fez acompanhar de novas formas de gestão do social que,
nos termos de Francisco de Oliveira (2003), não são mais do que a administra-
ção da exceção. Mais do que mudanças na conformação das políticas sociais,
não seria arriscado dizer que se trata de uma outra “invenção do social”, para
evocar aqui o título do livro de Donzelot (1984), que se faz no sentido contrário
(ou em outras direções) ao percurso discutido pelo autor ao tratar do diagrama
de relações e confl itos que desaguaram na moderna questão social, tal como
figurada e objetivada no correr do século XX. Não por acaso, os autores que vêm
lidando com esses temas evocam o termo pós-social (referência a Donzelot) ou
pós-disciplinar (referência a Foucault) para discutir as configurações políticas e
sociais que ganharam forma a partir da virada neoliberal dos anos 1980. Parte
dessa discussão será recuperada, não com o objetivo de esgotar um tema que,
em si mesmo, exigiria uma discussão à parte, mas para indicar alguns traços que
nos ajudam a pensar as reconfigurações sociais dos últimos tempos, nas quais
esses novos agenciamentos políticos, sob um lógica gestionária, também têm o seu
lugar. Como diz Frederic Gros (2006), é uma configuração na qual o indivíduo
não comparece como sujeito de direitos, mas como um indivíduo atravessado
por situações de “vulnerabilidade” associadas aos “riscos” (pobreza, doença,
crime, violência...), as quais exigem “uma vigilância constante de sistemas e de
homens” e que acionam a lógica da “intervenção”. Diferente da política (e seus
protocolos de discussão, negociação, deliberação e representação), a intervenção
é regida pelos critérios ditos técnicos de competência dos especialistas e é acio-
nada para restaurar uma ordem ameaçada, restabelecer harmonias rompidas,
reparar disfunções, encontrar soluções eficazes.
Pois bem, nossas perguntas foram formuladas justamente na fenda aberta
entre essa retórica e o teatro político postos em ação pelos dispositivos gestionários
que pontilham as periferias da cidade (não são ficções, fazem parte da ordem
das coisas; deparávamos o tempo todo com esses modos de intervenção social) e
ordenamentos sociais que vinham se fazendo, seguindo os vetores de mudanças
recentes, linhas de força que pareciam transbordar essas formas de gestão do
social e por onde parecia se constelar uma experiência social (e urbana) que
também não respondia ou correspondia às formas conhecidas de interpelação
política. E era isso, esses ordenamentos, que interessava perscrutar. Era isso que
colocava a pergunta sobre os parâmetros a partir dos quais tratar das formas
sociais que vinham se constelando nas fronteiras incertas do formal e informal,
do legal e ilegal, também do ilícito, pontuadas pela experiência recorrente da
morte violenta e da truculência nos modos de operação das forças da ordem,
sobretudo a polícia, mas não apenas ela. Aqui, um comentário necessário: esses
jogos de poder e relações de força, que identificamos nas dobras do legal-ilegal,
entram em ressonância e se comunicam com outras dimensões dos ilegalismos
que atravessam a cidade e se constelam nos espaços urbanos, nas regiões de
ocupação e moradia precária que, ao longo dos anos 1990, se expandiram por

34
toda a mancha urbana, também permeadas de situações de tensão e confl ito em
torno dos litígios de terra, políticas de remoção, práticas truculentas que acom-
panham as chamadas “reintegrações de posse”, enfim, tudo isso que compõe o
que a literatura especializada chamou de “cidade ilegal”. Esse foi tema tratado
na pesquisa original (cf. Telles & Alves, 2006; Alves, 2007) e que compunha
o leque de questões que nos movia e que lançava a interrogação sobre o jogo
de referência a partir do qual situar realidades as quais não mais poderiam ser
tratadas sob o prisma das mazelas de uma “modernidade incompleta” e que
pautara em grande medida os debates nas décadas anteriores.
Esse capítulo estrutura-se em três andamentos. Primeiro: em diálogo com as
questões propostas por Francisco de Oliveira, trabalhando os registros (alguns
deles) da erosão do campo político (e espaço conceitual) dos direitos e cidada-
nia (tal como rapidamente indicado acima), um esforço no sentido de deslocar
o jogo de perspectivas para lidar com essas situações. Aqui nos movimentamos
no espaço conceitual em que se situam as noções de estado de exceção e vida
nua, tal como formuladas por Agamben. Não se trata, longe disso, de “aplicar”
uma teoria ou de enquadrar essas realidades e “explicar” o que quer seja. Se
essas noções são importantes é porque nos ajudam a formular nossas próprias
questões, oferecem um jogo de referências que permitem traçar o plano em que
os problemas podem ser formulados e lançados como questões orientadoras nessa
prospecção dos mundos urbanos redesenhados nos últimos tempos. Em outros
termos: um plano em que os problemas podem se colocar ou uma encruzilhada
deles que exige um trabalho de elaboração teórica por nossa própria conta e
risco, em diálogo com a experiência do próprio trabalho de campo. Como diz
Foucault, os conceitos funcionam como “caixa de ferramentas”, um seu uso
não-categorial; eles nos orientam na formulação de nossas próprias questões a
partir de um certo crivo, perspectiva pela qual essas questões podem ser postas
como algo no qual ressoam os problemas de nossa atualidade. Na verdade,
essa é uma inquietação que comanda, de ponta a ponta, o modo como, nos três
últimos capítulos, tentou-se trabalhar o material empírico que tínhamos à mão.
É por isso que essa segunda parte leva como título a formulação da questão que
se tentou enfrentar nesse capítulo: deslocando o ponto da crítica.
O crivo pelo qual se tentou seguir na prospecção dos mundos urbanos foram
as situações de exceção engendradas nesses terrenos incertos entre o ilegal,
o informal e o ilícito. Mais do que um tema interessante entre outros em uma
agenda de pesquisa, a aposta é que esses terrenos de exceção, justamente porque
estão no coração da vida contemporânea, aqui e alhures, podem nos oferecer os
elementos para pensar e formular os desafios atuais. É aí que se joga a partida
entre a vida nua, quer dizer: vida matável; e as formas de vida, quer dizer: pos-
sibilidades e potências de vida. De alguma forma, e também por nossa própria
conta e risco, acolhemos a sugestão de Agamben quando diz que “é a partir
desses terrenos incertos e sem nome, dessas ásperas zonas de indiferença, que
deverão ser pensadas as vias e os modos de uma nova política” (2003: 189).

35
Não estou nada segura de que um “nova política” seja possível, muito menos
acerca do que ela poderia ser. Porém, a questão é interessante pela própria
indeterminação de seu sentido, algo como uma fenda aberta para apreender as
linhas de fuga que atravessam o atual estado de coisas.
Segundo: no que diz respeito aos ilegalismos urbanos, tal como vêm se per-
fi lando nos circuitos dos mercados informais e ilegais, tratou-se de situá-los em
um outro jogo de escala e sob uma perspectiva ampliada, pertinente às confi-
gurações do capitalismo contemporâneo. Um outro registro da exigência de um
deslocamento de parâmetros: não mais essa espécie de buraco negro a indicar
os avatares, bloqueios e impasses de uma modernidade incompleta ou, para usar
os termos de Francisco de Oliveira (2007), a “exceção do subdesenvolvimento”.
É aqui que ganha pertinência a pergunta sobre os ordenamentos sociais que vêm
sendo urdidos nas dobras do mundo atual. É essa a pergunta que os autores
comentados nesse capítulo (e outros, como será visto no capítulo seguinte) se
fazem quando se propõem a prospectar – e descrever – os feixes das conexões e
suas redes em escalas variadas que se fazem nas fronteiras incertas do formal e
informal, do legal e do ilegal, para apreender o modo como Estado, economia e
sociedade se redefinem entre a implosão de suas formas canônicas e a configu-
ração de novos diagramas de relações e de domínio, também de formas sociais
e de confl ito entre grupos sociais e atores (outros jogos de atores) que também
dão os sinais de uma experimentação histórica a ser seguida de perto.
Terceiro: mais do que simplesmente dizer e postular que “tudo mudou”, é
preciso saber mostrar como esses processos operam em contextos situados. Não
se trata de “demonstrar” uma tese geral, entregar provas e seus certificados
de verdade. Aqui se está no cerne do que antes foi proposto como etnografia
experimental. Em seu ponto de mira, as conexões e as mediações pelas quais
se processam os deslocamentos das fronteiras do informal, do ilegal e do ilí-
cito. Também os agenciamentos práticos ancorados nas circunstâncias da vida
cotidiana, por meio dos quais os indivíduos transitam nessas fronteiras poro-
sas, mas que também operam como conectores dessas linhas cruzadas que
tecem o mundo urbano. Assim, em uma primeira cena descritiva, a meada de
intermediários e os dispositivos situados territorialmente que viabilizam essa
ampla circulação de pessoas e produtos que seguem as trilhas das redes de
subcontratação, tal como foi descrito páginas atrás. Ou então, segunda cena,
as circunstâncias da moradia precária em que o acesso a serviços ou a disputa
em áreas de ocupação mobiliza um jogo de atores no qual se fazem presentes
indivíduos e suas famílias, agentes públicos, lideranças comunitárias, ONGs e
associações de fi liação diversa, inclusive a chamada fi lantropia empresarial. Mas
também os chefes locais do tráfico de drogas e dos negócios ilícitos: é com eles
que é preciso negociar, fazer acordos, chegar a entendimentos, no mínimo para
garantir a proteção para realizar o trabalho esperado, e também para agenciar
os modos como os serviços serão realizados e distribuídos na região. Em uma
terceira cena, é um programa de distribuição de cestas básicas que é, todo ele,

36
agenciado pelos chefes locais do tráfico de drogas, que se encarregam de arti-
cular toda uma rede de colaboradores e aliados, entre comerciantes e perueiros,
clandestinos ou não, além do uso, digamos assim, “solidário” do “excedente”
dos negócios ilícitos locais.
Nessas cenas, poderíamos multiplicá-las, encontramos todos os ingredientes
que compõem a agenda das pesquisas e propostas de “boas práticas” para uma
boa e virtuosa gestão da vida local: solidariedade intrapares, capital social e rede
social. Está tudo aí, não falta nada. Todos os elementos pelos quais se constrói
a ficção comunitária que está, hoje, no coração das formas contemporâneas de
gestão social, a rigor, o biopoder de que fala Foucault (2004) e é por ele identi-
ficado no centro da governamentalidade liberal: gestão das populações, gestão
das vidas, administração de suas urgências. Porém, como diz Bruno Latour
(1994: 115), se o assunto são as redes, não se trata de escolher entre o “local”
e o “global”, para reter os termos da moda, pois “as redes não são, por natureza,
nem locais nem globais, são mais ou menos longas, mais ou menos conectadas”.
E envolvem “boas conexões” e “más conexões”. Quer dizer: o problema todo está
em saber e compreender o modo como os vínculos e conexões operam, já que,
sempre situados, se fazem na composição e conjugação entre circunstâncias, fatos,
coisas e atores. É aí nessas intersecções que as coisas circulam, que os fatos são
produzidos, que tramas de relações e de poder são construídas. É exatamente aí
que se torna perceptível a pulsação do mundo urbano. É por aí que passam as
linhas de força pelas quais o estado de coisas atual se configura e se transforma.
É também aí que se alojam os pontos de fricção dos ordenamentos sociais que
vêm se desenhando ou já se constelaram na virada dos tempos.
Texto de passagem, no seu conjunto, esse capítulo apresenta uma primeira
aproximação de questões que terminaram por pautar todo um programa de pes-
quisa. Alguns de seus resultados são apresentados na sequência. No capítulo 5,
“Nas dobras do legal-ilegal: ilegalismos e jogos de poder”, tentou-se especificar
o lugar desse feixe variado de ilegalismos no tecido urbano. Aqui, a noção-chave
que nos orienta nessa discussão (e descrições) é a de gestão diferencial dos ile-
galismos (Foucault). Páginas atrás já se adiantou a discussão desenvolvida nesse
capítulo. Vale acrescentar algumas questões que esclarecem o modo como se
propõe trabalhar com essa noção. Ilegalismos: nos termos propostos por Foucault,
não se trata de um certo tipo de transgressão, mas de um conjunto de atividades
de diferenciação, categorização, hierarquização postas em ação por dispositivos
que fi xam e isolam suas formas e “tendem a organizar a transgressão das leis
numa tática geral de sujeições” (2004: 226). É importante reter essa diferença
entre ilegalismos e modos de objetivação (a “delinquência” é uma delas, tal
como o fi lósofo discute em Vigiar e punir), os pontos de incidência das clivagens
produzidas e seus efeitos, assim como os campos de gravitação de práticas, de
disputas, de confl itos e jogos de poder. É o que permite colocar em perspectiva,
em um mesmo plano de referência, essas transgressões múltiplas, sem dissolvê-
las sob um nome comum ou em um amálgama confuso e indiferenciado.

37
Como diz Lascoume (1996), “ilegalismos” é um instrumento de análise que,
aqui, no uso que se está fazendo da noção, permite rastrear essa transitividade
entre o ilegal, o informal e o ilícito, que foi aqui o nosso ponto de partida, sem
se deixar cativo, digamos assim, dos objetos e campos de objetivação postos,
no que diz respeito aos temas aqui tratados pela economia, pela sociologia do
trabalho, também pela sociologia urbana (o problema do formal-informal) ou
pela criminologia (crime e delinquência). Mas é também o que permite colocar
em um mesmo plano de referência as formas de controle e poder que se dife-
renciam, que também assumem dimensões territorializadas conforme as formas
e distribuição diferenciadas dos ilegalismos nos espaços urbanos. Formas de
controle que oscilam entre a transgressão consentida, o jogo pesado de chan-
tagem e extorsão implicado na transação das mercadorias políticas, a violência
extralegal e a prisão (isto é, um dispositivo legal) que parece recair sobretudo
sobre uma criminalidade urbana difusa, avulsa, desterritorializada e que vem
abarrotando os dispositivos carcerários, resultado do endurecimento penal dos
últimos anos. Em seus vários registros, a gestão diferencial dos ilegalismos nos
ajuda a traçar as linhas que desenham a cartografia do social e situar seus pontos
de fricção, também suas transversalidades, os “vasos comunicantes”, como diz
Rafael Godoi (2009), nesses lugares em que a experiência com a lei e as forças
da ordem abre-se a uma disputa sobre os sentidos de ordem e seu avesso.
Se é nesse espaço conceitual que se situam as questões postas nesse capítulo,
do ponto de vista empírico e histórico o esforço vai no sentido de situar esses
ilegalismos no cenário atual, no cerne das formas contemporâneas de produção
e circulação de riquezas, os quais têm impactos consideráveis nas dinâmicas
urbanas, também nos chamados países do Norte. Em um primeiro momento,
tratou-se de seguir as pistas que diversos autores nos entregam em suas pesquisas
realizadas nas fronteiras europeias e que interessam na medida em que oferecem
um repertório ampliado de referências pertinentes ao cenário contemporâneo.
São essas as referências mobilizadas para situar e descrever a situação brasilei-
ra a partir de três cenas descritivas. Em cada qual, jogos situados de escalas.
Configurações diferentes dos campos de força nos quais e através do quais os
ilegalismos fazem o traçado da vida urbana. Primeiro, os ilegalismos difusos
inscritos nas “mobilidades laterais” das figuras contemporâneas do trabalhador
urbano: é a cena descritiva que abre esse capítulo. Depois, os circuitos entrela-
çados no comércio informal e que fazem ver os ilegalismos pulsando no centro
nervoso da economia urbana da cidade. Por último, o cenário é a periferia pau-
lista, onde todos esses fios se enredam, também no varejo da droga, um plano
crivado pela clivagem entre ilegalismos e crime.
No capítulo 6, “Ilegalismos e a gestão (em disputa) a ordem”, retomam-se
e desdobram-se questões discutidas na última cena descritiva acima indicada.
Nosso “posto de observação” é um bairro de periferia. O ponto de partida da
discussão é a redução acentuada (e impressionante) das taxas de homicídio na
Grande São Paulo a partir do início dos anos 2000, depois de duas décadas

38
seguidas de curvas ascendentes, com picos altíssimos no final da década de
1990. Mais especificamente: as evidências de que, em torno do mercado varejista
de droga que, desde o início dessa década, estruturou-se mais amplamente na
cidade, sob o controle da organização criminosa que leva o nome de Primeiro
Comando da Capital, o PCC, ganharam forma modos de regulação, mediação
e arbitragem das desavenças e disputas internas aos “negócios do crime”, os
quais buscam estancar as soluções violentas. Um conjunto de práticas, códigos,
protocolos e procedimentos que são sempre situacionais, com modulações que
variam conforme a extensão do problema, a gravidade do assunto, as relações
e comprometimentos envolvidos. São mecanismos de arbitragem. O chamado
“debate” é uma de suas formas, a mais importante. No início, um mecanismo
posto em prática na resolução das desavenças internas aos “negócios do crime”
e às organizações criminosas. Surgiu, primeiro, no universo carcerário (também
aí se deu a diminuição das mortes violentas), transborda, depois, para os bairros
das periferias da cidade e, em pouco tempo, coisa de poucos anos, passou a ser
acionado para a regulação de microconfl itos cotidianos: de brigas de vizinhos
a disputas em torno da distribuição de lotes em áreas de ocupação, pequenos
delitos locais e miríades de situações próprias à vida desses bairros. O “debate”
passou a ser referência que compõe o repertório popular. Não poucas vezes, são
os próprios moradores que procuram o “patrão” da “biqueira” local para arbitrar
litígios e desacertos cotidianos, o que ele pode fazer ou não, a depender das
circunstâncias e das implicações envolvidas. Às vezes, no caso de assuntos me-
nores e localizados, basta a presença do “patrão” da “fi rma”, que intervém para
“trocar uma ideia”, outra expressão que também circula no “mundo do crime”
e fora dele, por todo o bairro, modulação mais informal e de circunstância do
“debate” para a regulação e arbitragem de confl itos locais.
Isso está registrado em nossos diários de campo, nossos e de todos os pes-
quisadores que, nesses anos, fizeram seu trabalho de campo nessas regiões (cf.
Feltran, 2009): qualquer morador diz e repete com convicção: “agora, não pode
matar”. Contraponto com o tempo, pouco tempo antes, em que ao falar de suas
trajetórias, homens e mulheres (mais os homens que as mulheres) faziam uma
verdadeira contabilidade dos mortos: “morreram todos” era a expressão que
então circulava. É coisa de poucos anos: essa diferença também está registrada
em nossos diários de campo. E é daí que se parte para fazer a discussão.
Não é objetivo desse capítulo entrar na polêmica sobre indicadores e fatores
que explicariam as evoluções recentes das taxas de homicídios. Entre muitas
outras, a “hipótese PCC” também circula nessas discussões. E se esta interessa,
é porque em torno dela se pode lançar três ordens de questões.
Primeiro: desde que sem se deixar tomar pela fantasmagoria (que também
circula nesse debate) de um monstro tentacular que impõe seu domínio pelo
terror, é preciso deslindar esse ancoramento do PCC nas tramas sociais das pe-
riferias paulistas. Mais precisamente, esse o fulcro do que se pretende discutir:
o que está em jogo nessa espécie de gestão da ordem que parece passar por

39
mediações, protocolos e códigos distantes (porém, não à margem) da normativi-
dade legal-formal. É nesse ponto que as questões assinaladas páginas atrás serão
trabalhadas: uma gestão da ordem que parece se fazer pelas vias de agencia-
mentos práticos nas dobraduras da vida social, quer dizer: nos pontos em que se
entrelaçam as forças da lei (e seus modos de operação), os ilegalismos (e nesse
caso, a clivagem entre ilegalismos difusos e o crime) e as microrregulações da
vida cotidiana. Isso não é de agora, está presente na história urbana, ao menos
tal como pudemos apreender nos percursos cruzados dos personagens urbanos,
cujas histórias tratamos de reconstruir. O ponto importante a ser enfatizado e que
será trabalhado ao longo desse capítulo: se há uma novidade no acontecimento
PCC, é preciso situá-la nesse plano, nos pontos em que esse acontecimento se
comunica com uma experiência que vem de antes e que faz parte da história
urbana dessa cidade, quiçá de outras.
Segundo: será importante se deter na lógica que parece reger a “pacificação”
desses territórios, pois é isso que pode nos dar as pistas para compreender o
que está em jogo nessas formas de gestão (em disputa) da ordem. Começando
pela hipótese mais evidente, quase óbvia: as razões instrumentais próprias desse
mais do que rendoso mercado em uma situação de controle do PCC sobre o
fornecimento da droga, o que parece ter refreado a disputa de territórios. Mas
o mercado, também o mercado de bens ilícitos, não é uma entidade abstrata. O
seu funcionamento supõe e ao mesmo tempo engendra uma trama complexa de
relações, interações e intercâmbios sociais, redes sociais, também redes e rela-
ções de poder. Sob esse prisma, as coisas ficam menos evidentes e nada óbvias.
Em torno de um ponto de droga, a “biqueira”, estrutura-se um muito instável
equilíbrio entre, de um lado, o jogo de poder posto pela compra de proteção e
a extorsão policial, a mercadoria política, como diz Michel Misse, de que de-
pende o funcionamento do negócio e faz parte de seus modos de regulação. De
outro lado (e ao mesmo tempo), as circunstâncias da sociabilidade local, entre
o respeito às regras da reciprocidade da vida cotidiana, o cálculo refletido para
garantir a cumplicidade dos moradores contra as investidas da polícia e também
a estratégia para controle de território ante grupos rivais. O fato é que as micror-
regulações dos negócios locais da droga confundem-se, em muitos sentidos, com
a gestão e arbitragem de problemas, desavenças, confl itos cotidianos. Brigas de
vizinho, confl itos de família, adolescentes desabusados, barulho excessivo nas
horas tardias da noite, em suma, qualquer coisa que possa chamar a atenção da
polícia ou provocar a hostilidade e má vontade dos moradores, situação delicada
e perigosa, pois é sempre assim que surgem as temidas denúncias anônimas que
acionam a intervenção da polícia. Como diz Daniel Hirata (2010), a “biqueira”
funciona como uma espécie de caixa de ressonância de tudo o que acontece no
bairro e é por isso que termina por se tornar um lugar estratégico para a gestão
da ordem local.
Esse é um cenário também atravessado por redes superpostas e embara-
lhadas de pessoas, trocas, produtos, bens que circulam nas fronteiras incertas

40
do informal e o ilegal, entre expedientes de sobrevivência, o trabalho irregu-
lar, pequenos empreendimentos locais e negócios ilegais vinculados ou não (ou
não necessariamente) a organizações criminosas. E esse é o outro ponto a ser
considerado: essa gestão dos negócios locais, na sua interface com as tramas
cotidianas de bairro, tangencia esse feixe de ilegalismos que também interagem
com as redes da sociabilidade local. São práticas e redes sociais que atravessam
e compõem a vida de um bairro de periferia. E criam outras tantas zonas de
fricção que, também elas, precisam ser bem agenciadas para evitar complica-
ções com a população local e, sobretudo, evitar ocorrências indesejáveis com a
polícia. Esse o outro vetor de regulação dos negócios locais da droga e que se
desdobra na gestão dos confl itos e tensões que podem também desembocar em
soluções de sangue. Como bem nota Daniel Hirata (2010), é nesse plano que
é possível entender a construção social do mercado dos bens ilícitos: em torno
de uma “biqueira”, um feixe de relações em que se articulam os mercados de
proteção, as microrregulações da vida cotidiana e esse feixe de ilegalismos que
estão, hoje, no coração do mundo urbano. E é nesse plano que se pode entender
o ponto de incidência do PCC e suas capilaridades nas tramas da cidade.
Terceiro: ainda resta entender a lógica interna desse conjunto de práticas re-
gidas pelo imperativo de estancar as soluções violentas. Concretamente: estancar
a morte violenta. Estancar, quer dizer: algo que está latente e sempre no limiar
de surgir e se desdobrar em ciclos de vingança que podem ser devastadores,
quase irrefreáveis. Como diz um de nossos entrevistados, “bandido formado”,
como ele mesmo se define, longo percurso na pequena criminalidade urbana,
muitos anos de cadeia e, depois, “gerente” da “biqueira” local: “se você mata...e
não era para o cara morrer, aí você também vai morrer, é a guerra”. Essa “pa-
cificação”, portanto, precisa ser situada em relação a esse longo ciclo de mortes
violentas das décadas anteriores. É isso, a rigor, que ainda tem que ser mais bem
entendido. Mas, então, é de interesse recuperar algo da história urbana recente,
tendo em mira o que parece ter acontecido nessas décadas, ao menos em alguns
bairros (ou muitos) da periferia paulista. Esta é uma questão de pesquisa, pistas
(algumas) que tratamos de seguir em nosso trabalho de campo.
Aqui, nesse ponto, recupera-se a questão discutida no capítulo dois, a im-
portância de se reter a cidade como plano de referência. Não se trata de definir
o “contexto” a partir do qual situar e explicar por derivação de supostas cau-
salidades gerais o que pode ter acontecido nesses lugares. Trata-se de fazer ver
conexões e mediações por onde se processa a experiência urbana e que ficam
inteiramente fora de mira se se atém ao objeto já posto e já codificado como
crime, criminosos e violência, e seus indicadores. Retomando uma questão
apresentada páginas atrás: uma experiência que se processa nas dobras do legal-
ilegal, as relações de poder e força que se processam nesses pontos de fricção
da lei e seus modos de operação. Nos termos de Michel Misse (2007), referência
importante nessa discussão: os “excessos de poder” implicados nos modos de
incriminação postos em ação pelas forças policiais, que se desdobram no uso

41
dos procedimentos extralegais (mercados de proteção, práticas de extorsão) e
da violência letal (execuções) e que estão no cerne do que o autor chama de
“acumulação social da violência”. Nos termos de Das e Poole (2004): produção
das “margens”, espaços de exceção, mas espaços que se produzem nos pontos
de intersecção entre os modos de operação das forças da ordem e outros modos
de regulação ancorados nas circunstâncias práticas de vida, em seus imperativos
de sobrevivência, necessidades de segurança, sentidos de ordem e justiça. Essa
é uma chave possível para conferir inteligibilidade a uma experiência urbana
que se processa entre a violência policial e a “morte-matada” (e sua ameaça)
desencadeada nos pontos incertos de clivagem entre os ilegalismos difusos e o
crime. É nesse registro que se podem apreender mecanismos de uma gestão da
ordem que não se faz à margem da lei e do Estado, que não poderia, por isso
mesmo, ser tão somente tributada ou reduzida a algo como cultura e tradições
populares. Talvez uma economia moral nos termos propostos por Thompson
(1979), ativada nesses campos de gravitação da experiência urbana, campos de
força engendrados nesses pontos de incidência da lei (seus modos de operação),
os ilegalismos e as formas de vida. Com modulações diferentes, conforme tempos
e contextos urbanos que se modificaram no correr das três ultimas décadas,
este é um prisma que se abre a partir das pistas que nos foram entregues pelos
percursos dos personagens urbanos cujas histórias procuramos reconstituir.
É nesse plano que se podem apreender as formas de uma gestão local da
ordem, sempre refeita e sempre desestabilizada pelos ciclos de violência acionados
pela lógica da vingança que escapa e vaza dos agenciamentos e microrregulações
locais. Essa a lógica de vingança que parece ter sido estancada pelos procedi-
mentos postos em ação pelo PCC: mecanismos de resolução de desavenças e
disputas não apenas internas à organização criminosa e aos negócios da droga,
mas esses pontos de fricção que se multiplicam ou tendem a se multiplicar na
própria medida em que os ilegalismos se redefinem, se expandem e se ramificam
no mundo urbano dos anos 2000.
Que se diga, desde logo: esse capítulo não é sobre o PCC, tampouco sobre
o mercado de drogas ilícitas. Se um e outro entram no ponto de mira de nossas
descrições, é porque são hoje fatos incontornáveis do mundo urbano. Para escla-
recer o andamento desse capítulo, talvez sejam importantes algumas observações
prévias sobre o modo como essa pesquisa foi feita.
Em 2001, quando iniciávamos o trabalho de campo, uma das regiões esco-
lhidas para a pesquisa foi o Distrito do Jardim São Luiz, periferia sul da cidade.2
No correr das décadas, essa região sempre compareceu nos primeiros lugares no
ranking dos lugares mais violentos da cidade, quer dizer: no ranking de mortes
violentas, homicídios. Nas entrevistas que então fazíamos e nas observações
que preenchiam os nossos diários de campo, era frequente o comentário: “o

2
Uma outra equipe deslocou-se para o extremo leste da cidade, Guaianazes e Cidade
Tiradentes.

42
problema da região está na rua Y do bairro X”, é lá que as mortes acontecem,
é lá que está o problema. Depois de ouvir inúmeras histórias, ficções ou fatos,
pouco importa, ficou claro que era para lá mesmo que deveríamos nos dirigir.
Não porque estivéssemos interessados no tema da violência, que não era e nunca
foi nosso tema de pesquisa. Mas havia algo como uma lenda-negra desse bairro
e quisemos saber do que se tratava. O “mistério da rua Y”, isso até parecia
título de romance policial: foi assim que chegamos ao lugar. Pela intermediação
do chefe do Centro de Saúde da região, fomos apresentados a uma importante
liderança comunitária. Ela morava (e mora) precisamente lá, na rua Y do bairro
X. E foi aí, precisamente aí, que a pesquisa começou. Não é irrelevante contar
como fomos apresentados: “a professora da USP e seus alunos” estão fazendo
uma pesquisa e ouviram dizer, “todo mundo” diz isso, que “tudo de ruim” que
acontece na região é por conta da rua Y do Bairro X. Isso funcionou como um
“abre-te, Sésamo”. A resposta: “nunca ninguém veio aqui para saber a nossa
opinião”. Em pouco tempo já estávamos em campo, fazendo entrevistas, obser-
vando, preenchendo os nossos diários de campo. Como em outras regiões em
que fazíamos a pesquisa, histórias de vida e trajetórias urbanas.
Logo ficamos conhecidos por conta dessa estranha e inaudita disposição para
ouvir histórias e conversar sobre elas. Foi exatamente por isso que, de uma certa
feita, fomos procurados por um rapaz de 25 anos, aliás genro dessa senhora que
nos acolhia, ex-preso, na verdade, foragido: muitos anos de Carandiru, outros
tantos em outras unidades prisionais. Fazia poucas semanas, pouco mais de um
mês, que ele voltara ao bairro. Evidentemente afetado pela experiência na prisão,
era sobre isso que ele queria conversar – ele queria contar a sua história. Pois
essa história nos ofereceu quase que um roteiro de pesquisa. Ou o script de um
enredo de aventuras, aventuras bandidas. É a história de um trabalhador (com
carteira assinada, bom salário, futuro promissor) que se viu em meio a um enre-
do de vingança familiar (1995) e que terminou por se envolver em uma guerra
sangrenta, muito sangrenta, entre duas gangues rivais; virou “bandido”, foi preso,
amargou longos anos de prisão, fugiu (2001) e, depois de um tempo de rumo
incerto, transformou-se em “patrão” do ponto de venda de drogas no local (2004).
As datas indicadas são importantes, pois dão a marcação dos tempos urbanos, tal
como, aos poucos, pudemos apreender nesse bairro, conforme prosseguíamos na
pesquisa. Pois tratamos de seguir o roteiro ou o script dessa história. O seu perso-
nagem principal funcionou como nosso “embaixador” no “mundo bandido”: outros
também quiseram contar suas histórias, várias. Ao mesmo tempo, entrevistas,
muitas, com moradores e suas famílias, alguns antigos, outros recém-chegados
no bairro, além das conversas “à toa”, micro-histórias de bairro, a observação
etnográfica e os nossos diários de campo. No seu conjunto, um entrelaçado de
histórias bandidas e não-bandidas que nos entregaram elementos para reconstituir
a história urbana local, desde os anos 1980. E por essa via, os elementos, para
situar o ponto de clivagem dos anos 2000, que têm como epicentro o ponto de
droga instalado no miolo desse bairro, nos primeiros anos da década.

43
O fato é que os tempos urbanos desse bairro são também (não só) marcados,
ritmados, por histórias de violência. Isso está posto na história local, também
nas biografias dos moradores comuns. Histórias de justiceiros e chacinas (anos
1980); histórias de “matadores” (expressão nativa, próxima, mas não idêntica,
a “pistoleiros”), mortes encomendadas e o mercado de execuções, guerra entre
gangues de bairro, disputa de territórios, soluções violentas para desavenças
locais (anos 1990), tudo isso permeado e também ritmado pela violência poli-
cial. Nesse capítulo, porém, o objetivo não é fazer o inventário das formas de
criminalidade urbana, muito menos oferecer explicações para a violência urbana.
Mas seguimos os rastros das “histórias bandidas”: histórias de justiceiros (anos
1980), matadores (anos 1990) e traficantes (anos 2000), os três personagens
urbanos que comparecem nas cenas descritivas armadas nesse capítulo. Cada
qual faz a marcação de temporalidades distintas e, sendo assim, talvez nos aju-
de a compreender as inflexões e deslocamentos da história urbana recente, em
compasso com evoluções da economia, sociedade e cidade. Cada qual resulta
de arranjos urbanos e contextos de criminalidade, cuja singularidade interessa
entender. Em torno de cada um desses personagens, configuram-se determina-
das relações com as forças da ordem e com os moradores, estas ancoradas nas
microrregulações locais. Esse o ponto que se tentará trabalhar ao longo dessas
páginas: agenciamentos distintos que, nas suas diferenças, nos informam algo
sobre uma gestão da ordem local que se faz nos pontos de intersecção da lei,
dos ilegalismos e das formas de vida.
Não estou segura de que tenhamos deslindado o “mistério da rua Y”, prova-
velmente não: ainda há muito a ser pesquisado, as lacunas são grandes e esse
capítulo apresenta apenas o que foi possível trabalhar com o material de uma
pesquisa que está longe de ser concluída. Sobretudo o longo (e espantoso) ciclo
de mortes violentas nos anos 1990 persiste como uma caixa-preta a ser ainda
aberta. E esse é, na verdade, o ponto cego das discussões correntes sobre a
queda dos homicídios no início dos 2000: os especialistas acompanham as os-
cilações dos indicadores, esgrimam suas hipóteses e apresentam as razões de
circunstância, sem que se indague sobre as causalidades e circunstâncias que
presidiram as curvas ascendentes de homicídios nas décadas anteriores, em
particular nos anos 1990.3 É uma questão de pesquisa. No que nos diz respeito,
tratamos de rastrear algumas pistas que nos foram entregues pelo trabalho de
campo. Mas outras, muitas outras, ainda precisam ser trabalhadas. Esse capítulo

3
Essa questão esteve no centro das discussões no seminário “Crime, violência e cidade”,
realizado em maio de 2009, como parte de um programa de cooperação franco-brasileiro
(Capes-Cofecub), envolvendo pesquisadores da USP, Unicamp, do Núcleo de Estudos da
Violência, NEV e, pelo lado francês, da Universidade de Toulouse Le Mirail e o CADIS.
Os comentários de Michel Wierviorka (Cadis) foram especialmente incisivos nesse ponto
cego das discussões. Uma primeiríssima e muito provisória versão desse capítulo foi apre-
sentada nesse seminário. E ainda será preciso mais trabalho empírico e teórico para dar
conta dessas questões.

44
pode e deve ser lido como uma primeira aproximação, e suas lacunas, que são
várias, estão ainda à espera de serem enfrentadas no curso de uma pesquisa
ainda em andamento.4
Enfim, não deslindamos o “mistério da rua Y”, mas não hesitaria em dizer
que, nessa pesquisa exploratória, nos foram entregues elementos para se pensar
as questões em jogo na “pacificação” desses territórios, a partir do que pudemos
acompanhar no até então muito mal-afamado Bairro X. Não deixa de ser interes-
sante notar: é justamente na “famosa rua Y” que os “debates” são realizados.
Como bem nota Daniel Hirata (2010) na etnografia de alguns deles, é na rua Y
que se realizam os debates não apenas para os assuntos do local, mas de toda
a região próxima. Tanto assim que, na linguagem nativa, quer dizer, linguagem
bandida, a rua Y é chamada de “o forinho”, corruptela do diminutivo de fórum.
A expressão também circula no repertório dos moradores locais. Antes, um
epicentro das histórias de morte da região. Depois, o epicentro de seus modos
de regulação (cf. Hirata, 2010).
Mas, então, é de interesse se deter na mecânica interna desse modo de arbi-
tragem que leva o nome de “debate”. Adiantando descrições apresentadas nesse
capítulo: é uma espécie de tribunal no qual se vai tentar encontrar soluções não
para quaisquer conflitos e desavenças, mas para aqueles que podem desencadear
desfechos violentos ou que estão no limiar de soluções de morte. Armada a cena
do debate, as partes envolvidas são chamadas a dar sua palavra para esclarecer,
justificar, apresentar suas razões e, se for o caso, se desculpar. No debate estão
sempre em jogo soluções de vida e de morte. O que vale é o poder da palavra.
É um jogo (mais parece duelo) de provas – provas da palavra, da palavra empe-
nhada, do argumento bem posto e aceito (ou não) em suas razões. O mediador
é a figura central: uma figura do PCC, quase sempre de fora do bairro, que
poucas pessoas conhecem, mas que impõe respeito porque é ele quem conduz
os trabalhos e encaminha a deliberação final. O debate sempre acontece com
a presença dos patrões da “biqueira”. Pode se prolongar por vários dias, com
data e hora marcadas e, conforme os casos e a gravidade do problema, outras
pessoas das relações próximas dos envolvidos são chamadas, também patrões
das “biqueiras” vizinhas e, sempre, outras figuras do PCC, dentro e fora das
prisões em comunicação por meio de seus celulares. O resultado pode ser um
acordo ou alguma forma de punição: um “corretivo” (quer dizer: uma boa surra,
que pode ser, mas nem sempre, bastante atroz), a expulsão do bairro, proibição

4
A pesquisa foi realizada em dupla, Daniel Hirata e eu. Por circunstâncias de momento,
esse texto não pôde ser escrito a quatro mãos. As questões aqui discutidas foram elaboradas
nessa parceria de pesquisa ao longo de quase oito anos de trabalho de campo. Em sua
última parte, o texto incorpora um artigo escrito conjuntamente (Telles & Hirata, 2007) e é
amplamente municiado por questões tratadas por Hirata em sua tese de doutorado (Hirata,
2010). Se méritos houver nesse texto, todos eles devem ser partilhados. As imperfeições
são de minha inteira responsabilidade.

45
de vender drogas na região, outras. Ou então, a morte – condenação sumária e
irrevogável (cf. Hirata, 2010).
Essas são situações das quais os moradores não tomam parte, mas os rumores
sempre correm por todos os lados. E todos comentam: foi-se o tempo em que os
justiceiros aterrorizavam os jovens desabusados da região; em que o “mata-mata”
entre grupos rivais transformava o bairro em um verdadeiro campo de guerra
que podia prolongar-se por meses seguidos; no qual morria gente quase todos
os dias por conta de desacertos quaisquer ou simplesmente desafetos entre uns
e outros; em que a polícia aparecia também quase todos os dias, barbarizando
os moradores, sobretudo, os mais jovens, e as execuções também compunham
o dia a dia do bairro, e de todos os outros.
Na cena desses debates, como parece evidente, exercita-se uma modalidade
do poder soberano: “poder matar, deixar viver”. É isso o que está posto nos
protocolos e procedimentos que regem o jogo regulado do exercício da palavra
das partes envolvidas e a deliberação final. Mas, então, seria possível dizer
que se está presenciando algo como poderes de soberania em disputa. Talvez
seja isso o que esteja em jogo nesses espaços produzidos como margem. Se há
uma “pacificação” relativa desses territórios, ela também precisa ser coloca-
da em perspectiva e em relação com as modalidades de operação das forças
da ordem que continuam presentes, marcando e demarcando esses territórios
como espaços de exceção. Os procedimentos extralegais da polícia continuam
operantes, com seus mercados de proteção e práticas de extorsão. A violência
extralegal persiste, as “mortes seguidas de morte” têm aumentado nos últimos
anos, continuam alimentando as listas de mortes violentas, o que pode chegar
a extremos, como aconteceu após as ações do PCC na cidade de São Paulo, em
maio de 2006: 493 execuções pela Policia Militar em uma semana, mais de
mil nos meses seguintes. E há evidências de um recrudescimento dos grupos
de extermínio, que nunca deixaram de existir, mas que parecem ter voltado à
ativa, e de modo bastante virulento, após 2006, conforme relatório do Human
Rights Watch publicado em dezembro de 2009.
No bairro X, os mercados de proteção e práticas de extorsão persistem, tanto
quanto as suas oscilações, que seguem os imponderáveis das microconjunturas
políticas e dos rearranjos internos às forças policiais e equipes que dividem
entre si (e disputam) essa preciosa fonte de renda e poder. A “biqueira” local (e
o entorno imediato) tem sido relativamente preservada (até quando?) das formas
mais truculentas da ação policial. Talvez uma cartografia das execuções policiais
(se é que isso é possível) pudesse esclarecer a lógica que preside a escolha de
lugares e vítimas, acordos desfeitos em alguns casos, revides e vinganças em
outros e também, quem sabe, a distribuição desigual da presença e força do
PCC nesses espaços.
Poderes de soberania em disputa: é uma pista possível a ser trabalhada. Se
isso for pertinente, então também será preciso qualificar melhor a questão. Pois
um não replica o outro, o PCC e seus debates não são o decalque das formas

46
do Estado. Não se trata, como muitas vezes se diz, da aplicação tirânica de um
corpo fechado de normas, regras, leis imperativas emanadas de um corpo cen-
tral. O PCC e seus “debates” não são uma replicação das formas verticalizadas
do Estado. Não operam como Estado paralelo: mais do que um equívoco, seria
uma forma de des-conhecimento insistir nessa tecla que muitas vezes se repete
quando o assunto vem à baila. São outras as lógicas. Mas tampouco se avançaria,
insistindo em encontrar a chave explicativa nos modos de funcionamento interno
da organização, até porque esta é mais porosa e mais modular (não modelar)
do que se supõe, muito distante dos modelos da máfia e congêneres com suas
estruturas piramidais, fechadas, hierarquias e lugares normativamente fi xados.
Na formulação precisa de Fernando Salla (2009: 9), analisar a força ou fraqueza
dos grupos criminosos exigiria perguntar não apenas por suas características
internas, não apenas pela natureza das atividades criminosas que eles dominam,
“mas também pelas transações que são capazes de estabelecer no domínio de seus
negócios com as forças da lei, pelas relações que costuram com as comunidades
onde atuam e ainda pelas transações que atravessam o sistema prisional”.
É sempre possível ponderar que tudo isso é muito instável e é o caso de se
perguntar – e todos se perguntam, também os traficantes e moradores locais
– o que poderá acontecer quando e se o PCC perder o controle do mercado de
drogas em São Paulo. No horizonte dessa pergunta está a situação do Rio de
Janeiro e as sangrentas disputas entre “comandos” rivais. Mas isso são espe-
culações. Porém, mesmo na hipótese de que essa situação não se mantenha, é
preciso também reconhecer que isso já produziu efeitos, fatos e acontecimentos
que compõem e se compõem com a dinâmica urbana de São Paulo. E não é
nada irrelevante lembrar que são fatos e acontecimentos que se processam no
coração de uma metrópole, hoje, amplamente celebrada por sua modernidade
globalizada. Ramificam-se pelos meandros dos ilegalismos engendrados no centro
dinâmico da cidade, e do mundo contemporâneo. Os sentidos de lei, de justiça,
de ordem (e seu inverso) em disputa: talvez seja nisso que se possa apreender
o que está em jogo nesses espaços produzidos como espaços de exceção e que
estão no cerne dos modos de funcionamento do Estado, nessas pontas em que
sua presença afeta as vidas e as formas de vida.
Nem conclusões, nem considerações finais: apenas perguntas as quais, tam-
bém elas, ainda têm que ser mais bem formuladas. E são essas que importam,
pois são elas que podem nos lançar para além do círculo fechado do presente
imediato. Talvez seja essa a experimentação – e o trabalho do pensamento como
experimentação – a que somos levados ao seguir os traços dos ilegalismos nos
meandros do mundo urbano atual.

***

47
Este trabalho não teria sido possível sem um coletivo de pesquisa e os inter-
locutores que nos acompanharam desde o início. Mais do que os agradecimentos
de praxe, o reconhecimento do lugar de cada um nesse percurso. Antes de mais
nada, a Robert Cabanes (IRD, França), com quem partilhei a coordenação da
pesquisa que esteve na origem desse trabalho. Com ele aprendemos a arte do
detalhe, a importância de se deter nos microeventos de que são feitas as traje-
tórias de homens e mulheres. Pesquisador incansável, é ainda dotado de um
especialíssimo talento em abrir frentes de pesquisa, a curiosidade fecunda em
seguir os achados de pesquisa, aberto, sempre, ao imprevisto do trabalho de
campo. Sem isso, teria sido impossível a pesquisa exploratória sobre a qual tanto
foi dito nesta introdução. E isso foi mais do que importante na formação de um
coletivo de pesquisa, constituído, no início, por jovens estudantes (bolsistas de
Iniciação Científica e pós-graduandos) que se tornaram pesquisadores experientes
e, hoje, nossos parceiros de pesquisa.
O projeto inicial foi desenvolvido em grande medida nos quadros do Cenedic.
A interlocução com Francisco de Oliveira acompanhou todo esse percurso. Com
ele aprendemos a importância da imaginação crítica e a tarefa da crítica nesses
tempos em que a política parece ter deslizado para a gestão das urgências, da
“exceção que se tornou a regra”. A crise da política (e a erosão de suas media-
ções), foco de suas reflexões, é questão presente nas linhas e entrelinhas desse
texto, tanto quanto esteve presente, também nas linhas e entrelinhas, no livro
cuja coordenação partilhei com Robert Cabanes. Cibele Saliba Rizek acompa-
nhou passo a passo essa pesquisa, e também as pesquisas que, depois, foram
desenvolvidas pelos jovens pesquisadores como pós-graduandos. No encontro
de questões e inquietações comuns, apreendemos muito sobre os sentidos da
cidade e suas figurações, sobre a indeterminação dos tempos que correm e
reordenamentos sociais cujas lógicas tratamos de perscrutar.
Reafirmando uma interlocução já de longa data, foram várias as oportunidades
de discutir nossas questões com Lúcio Kowarick. Também vários os momentos
em que, trabalhando juntos nos pontos de convergência de nossas respectivas
pesquisas, pudemos ver confi rmada a questão que Lúcio sempre e desde há
muito nos apresenta: a cidade como espaço de luta, mesmo ou, sobretudo, nos
registros mais agudos desse “viver em risco” que conforma a vida urbana e que
ele sabe tão bem pesquisar e lançar ao debate.
Com Angelina Peralva, mais do que uma interlocução fecunda, a parceria
em um projeto comum (Acordo Capes-Cofecub) foi decisiva para o giro de pers-
pectivas a fim de lidar com os ilegalismos urbanos, tema central da segunda
parte deste livro. A possibilidade que se abriu para pensar essas questões sob
outros prismas, “postos de observação” instalados nos chamados países do Nor-
te, e suas fronteiras. Outras questões em jogo, outros campos polêmicos, outros
tantos desafios, outros repertórios de referências empíricas e teóricas. Colocar
minhas próprias questões em discussão com interlocutores muito distantes das
nossas linhagens e campos polêmicos foi um exercício especialmente fecundo.

48
Por sua vez, aqui, em suas várias, e uma delas prolongada, “missões de pesqui-
sa”, para usar o termo técnico desses convênios, Angelina não deixou intacto o
nosso coletivo de pesquisa. Junto com os jovens pesquisadores, lançou-se nos
meandros do comércio informal e nos ajudou a calibrar a pesquisa em sintonia
com situações parecidas, hoje recorrentes do outro lado do Atlântico. Sobretu-
do, amiga e parceira, é uma convivência que me confi rmou a possibilidade de
se tocar uma pesquisa, formar coletivos, juntar e agregar pessoas (nisso, o seu
talento é impressionante) com base em relações fundadas na reciprocidade, na
generosidade. E, sobretudo, no imenso prazer que a prática do conhecimento e
da descoberta pode nos propiciar, coisa rara e preciosa nesses tempos em que im-
pera essa espécie de empreendedorismo acadêmico que nos enreda numa gestão
pragmática, quando não burocrática, de nossas agendas, o que só faz enterrar e
sufocar o trabalho de reflexão e o exercício da imaginação criadora.
Esse projeto conjunto me permitiu estreitar os laços com Sérgio Adorno,
parceiro no convênio Capes-Cofecub e interlocutor constante e importante no
andamento de nossas pesquisas. Junto com Angelina, a montagem e encaminha-
mento do seminário “Crime, violência e cidade” (maio 2009) foi um momento
importante nesse percurso. Momento de cruzamento de pesquisas diferentes,
com seus respectivos enfoques, abordagens, ênfases, questões formuladas sob
prismas diversos. Sobretudo, um momento que consolidou um espaço de in-
terlocução feito dos pontos de encontro de nossas respectivas perspectivas de
pesquisa. E que nos ofereceu um repertório de questões que nos ajudaram a
lidar com problemas para os quais estávamos (ainda estamos) pouco municia-
dos. Afinal, ao lidarmos com os ilegalismos urbanos, entramos em um terreno
em que se colocam os problemas da violência, do crime, da prisão, da polícia,
das políticas de segurança. Para mim, para nós, foi e tem sido especialmente
valiosa a possibilidade de abrir essa interlocução com os colegas do Núcleo de
Estudos da Violência.
Fernando Salla, um encontro especialíssimo. Com sua inteligência aguda, seu
domínio notável desses assuntos espinhosos e, sobretudo, a generosidade com
que dialoga, acolhe as questões que se lhe apresentam, interage e se dispõe a
uma elaboração conjunta feita dessa interlocução; a tudo isso este livro é muito
devedor. Com Alessandra Teixeira aprendi muitíssimo sobre a lógica da exceção
incrustada nos dispositivos penais e nas políticas de segurança e, por essa via,
abriu-se todo um leque de questões importantes para entender as situações com
as quais nos deparávamos no trabalho de campo. Com Fernando e Alessandra,
montamos um grupo de discussão, também junto com Marcos Alvarez, outro
parceiro no convênio Capes-Cofecub, jogando na roda de nossas discussões
as inflexões atuais das políticas de controle social. Mais Daniel Hirata, Rafael
Godoi, Fernanda Matsuda, cada qual trazendo as questões de suas respectivas
pesquisas. É um coletivo que se reúne apenas pelo prazer da discussão conjun-
ta e pela certeza de um espaço fecundo no cruzamento de nossas respectivas
questões, também competências adquiridas em campos muito diferentes de

49
pesquisa. Várias das questões apresentadas nos dois últimos capítulos deste
trabalho trazem as marcas dessas discussões.
Por iniciativa de Hélène Rivière D’Arc, amiga de longa data, desde as mi-
nhas primeiras passagens por Paris, nos circuitos que me foram abertos pela
parceria com Robert Cabanes, veio-me a oportunidade de compor um programa
de pesquisa, sediado em Paris (ANR-AIRD), sob a coordenação de Christian
Azaïs e Marielle Pepin-Lahalleur, agregando um amplo coletivo de pesquisadores
que desenvolvem seus respectivos trabalhos de campo na Cidade do México,
em Buenos Aires, Caracas e também em São Paulo. Tive a oportunidade de
discutir algumas das questões aqui tratadas em um seminário realizado na
Cidade do México (em julho 2009), uma interlocução valiosa pelos vínculos
construídos com os colegas e pela troca e intercâmbio de achados de pesquisa e
perspectivas analíticas pertinentes ao lugar dos ilegalismos urbanos na dinâmica
de nossas cidades. A participação nesse programa de pesquisa desdobrou-se
em um convênio USP-IRD, permitindo a alocação de recursos no trabalho de
campo, em particular na pesquisa sobre o comércio informal, levada a efeito
por Carlos Freire.
Finalmente, o coletivo de pesquisa sem o qual nada disso teria acontecido.
Com Daniel Hirata, presente desde o seu início, uma parceria contínua de
pesquisa, sobretudo no empenho partilhado em deslindar o “mistério da rua
Y”. As questões apresentadas na segunda parte deste livro foram elaboradas
no andamento dessa pesquisa e dessa parceria. Infindáveis discussões quando
voltávamos do trabalho de campo, a troca de nossos diários de campo e de
achados de pesquisa, leituras conjuntas de textos de referência. Escrevemos um
artigo juntos. Boa parte do que é apresentado nos últimos capítulos é resultado
dessa convivência de pesquisa. Outra boa parte é devedora das questões que
Daniel trabalhou em sua tese de doutorado. Rafael Godoi, e sua pesquisa sobre
os “vasos comunicantes” entre o bairro e a prisão, tratou de ir atrás de achados
de pesquisa que preenchiam os nossos diários de campo e, com isso, abriu uma
frente de investigação sobre essa outra faceta das fronteiras porosas do legal
e ilegal, importante, também ela, para entender as dinâmicas urbanas locais.
Carlos Freire, por sua vez, enveredou pelos meandros do comércio informal. O
seu talento de pesquisador e a acuidade das questões que formulou no andamento
de sua pesquisa foram especialmente importantes para o tratamento que aqui se
deu sobre o tema. Claudia Sciré nos fez conhecer melhor a outra face da cidade,
o seu lado formal-legal, porém pelas vias das práticas de endividamento que
sustentam o hoje celebrado consumo popular e que entram em ressonância com
o que acontece nesses terrenos incertos entre o informal, o ilegal e o ilícito.
Todas as nossas questões de pesquisa foram discutidas conjuntamente. Desse
coletivo também participam Eliane Alves, com sua pesquisa sobre os ilegalismos
que atravessam a produção dos espaços urbanos; José César de Magalhães, com
suas reflexões sobre a lógica que parece presidir as novas formas de gestão do
social. Do entrecruzamento das várias questões de pesquisa e desse empenho

50
partilhado, desde o início, o livro que ora se apresenta, oriundo de minha tese
de livre-docência, é imensamente devedor.
Parte da pesquisa aqui apresentada contou com auxílio à pesquisa do CNPq.
Mas, desde o seu início, esse coletivo não teria se mantido sem as bolsas de
iniciação científica, de mestrado e doutorado. Também a bolsa que me coube
e o adicional que lhe é indexado permitiram condições mais favoráveis para o
andamento da pesquisa. A esta instituição, o meu agradecimento. Ao programa
AIRD-ANR, o agradecimento por recursos de pesquisa e apoio de que pudemos
desfrutar nos dois últimos anos.

51
PRIMEIRA PARTE

Experimentações
CAPÍTULO 1

A cidade e suas questões

Em 1982, um artigo que levava o título de “O Estado e o urbano” lançou um


ponto de tensionamento nos debates que corriam na época. Nesse artigo, Francisco
de Oliveira traçava as linhas de um diagrama de relações que faziam da cidade o
cenário de um conflito cujo epicentro era o próprio Estado (Oliveira, 1982). Para
lembrar o título de outro artigo publicado alguns anos antes, em 1978, era um dia-
grama de relações que articulava “acumulação monopolista, Estado e urbanização”
e definia a “nova qualidade do conflito de classes” (1978: 65-76). A cidade era
o seu cenário. E o urbano, o solo tecido no ponto de inflexão de uma intervenção
estatal que redefinia as relações entre campo e cidade, que regulamentava as
relações entre capital e trabalho e articulava produção industrial e acumulação
ampliada do capital (Oliveira, 1978). Nesse agenciamento das relações entre eco-
nomia, cidade e espaço nacional, afirmava-se a potência do Estado na articulação
geral da economia – o Estado “definia-se como potência de acumulação do capital
privado”, definia-se, por isso mesmo como “lugar onde se arbitra a distribuição do
excedente social” (1978: 53). A face política disso, continua o autor, foi o desman-
che do poder político das classes trabalhadoras no pós-64 e a reiterada anulação
das vozes das classes populares. Nas cidades, todo esse processo ganhava forma,
estava corporificado nos seus espaços, pulsava na nova estrutura de classes que
aí se materializava e explodia na pobreza urbana, na massa crescente de traba-
lhadores pobres que se viravam por sua própria conta e risco nas periferias que
então se expandiam e nas mil faces do problema urbano,

da poluição ao caos dos transportes urbanos, inevitavelmente criado pelo seu


oposto, o automóvel, a dramática repetição da questão habitacional popular e
a monótona repetição das soluções milagrosas, de que o fracasso da experi-
ência do BNH parece não ter servido de imunização contra a retórica fácil; o
aumento exponencial da insegurança do morador urbano, da criminalidade,
da multiplicação coelheira do banditismo urbano, das chagas sociais expressas
numa urbanização que se faz sem água e esgoto, a promiscuidade urbana que
converte doenças geralmente consideradas não-epidêmicas em epidemias que
ameaçam converter-se em catástrofes, como o recente exemplo da meningite e
agora da encefalite; o descontrole do uso do solo urbano, em que a especula-
ção imobiliária atua desenfreadamente [...], o recente fenômeno dos guetos de
ricos que se isolam e se autarquizam nos faraônicos conjuntos “Ilhas do Sul”,
“Portais do Morumbi”, “Moradas das Torres do Sol” [...], que são o oposto dos
guetos dos pobres, expressos na multidunária formação de vilas e jardins como
se apelidam os bairros pobres de São Paulo. (Oliveira, 1978: 68)

55
Essa “fenomenologia urbana”, descrita com força e contundência no artigo de
1978, parece ecoar nos problemas urbanos atuais, não fosse o aumento brutal
de escala; tudo agora, mais de três décadas depois, elevado à enésima potência.
Porém, acontece que, hoje, o problema urbano não é o mesmo de antes. Na
época, já dizia o autor que “o problema urbano não é essa fenomenologia em
que se compraz a tecnocracia, buscando solucionar exatamente o que só vê na
aparência; por baixo, à maneira dos rios subterrâneos, corre uma articulação
global que confere unidade ao todo e, por isso, e não por outra razão, a imagem
é a mesma nos mil pedaços” (1978: 68). Agora, com a distância dos anos e para
refletir sobre a diferença dos tempos, poderíamos dizer que essa diferença está
cifrada no campo de gravitação em que o problema urbano então se configurava,
que permitia que os seus “mil pedaços” entrassem em ressonância e que fornecia
o feixe de referências de um debate que tomava a cidade como questão.
O texto de 1982 (e também o de 1978) pode ser visto, hoje, como a inscrição
polêmica de um campo de debate que vinha se armando e se firmando naqueles
anos. A cidade como questão era definida com base em um conjunto cruzado de
proposições que circulavam entre os fóruns do debate acadêmico e do debate
político. Produção e consumo, trabalho e reprodução social, exploração e espolia-
ção urbana, classes e conflito social, contradições urbanas e Estado eram noções
– e pares conceituais – que circulavam, se articulavam e se compunham em
proposições formuladas nas pesquisas e ensaios que então tratavam da moradia
popular e dos processos de periferização urbana, que discutiam as relações en-
tre a autoconstrução da moradia e a reprodução do capital, entre desigualdades
urbanas e relações de classe, entre migração e pobreza urbana, entre reprodução
social e Estado. No correr dos anos 80, esse conjunto de proposições definiu um
espaço conceitual que se redefinia em sintonia com os ventos políticos da época.
Essas proposições foram metabolizadas nos então proliferantes estudos sobre mo-
vimentos sociais e, no andamento do debate, os deslocamentos de ênfases foram
grandes, das versões mais deterministas da noção de “contradição urbana” (ênfase
nas “estruturas”) até a tematização das dimensões culturais, da “experiência de
classe”, as identidades e subjetivações, passando pelas questões da cidadania e
da participação política, da importância do jogo dos atores na dinâmica política,
as imbricações entre espaços institucionais e a dinâmica “vinda de baixo”.1 Esse
debate tinha variações internas importantes e apresentava modulações conforme
as linhagens teóricas, tradições disciplinares e o modo como uns e outros tra-
balhavam paradigmas teóricos distintos em sintonia com as mudanças nos ares
dos tempos por aqui e alhures. A polêmica também era grande e por vezes feroz,
sobretudo no que diz respeito à natureza e ao sentido político dos movimentos
sociais (cf. Paoli, 1995). O que importa aqui dizer é que variações, modulações
e dissonâncias, polêmicas e divergências, tudo isso “fazia sentido”.

1
Para uma ótima avaliação desses deslocamentos, cf. Kowarick (2000) e, também, Valla-
dares e Freire-Medeiros (2002).

56
Visto de agora, poderíamos dizer que tudo isso, esse jogo cruzado e polêmico
de referências, se processava num plano de consistência que permitia que as
proposições circulassem e a polêmica se estruturasse em um jogo de coordena-
das que fazia com que fatos, eventos e processos fossem figurados, tematizados
e formulados como questões pertinentes.
É esse jogo de referências e coordenadas que seria interessante aqui reter. Não
como documento de uma época que já se foi e que pode, quando muito, interessar
ao inventário bibliográfico ou à revisão histórica ensinada aos jovens estudantes
nos seus primeiros anos de universidade. Pois é essa mesma distância que nos
provoca a inquietação quanto aos parâmetros ou ao plano de referência a partir
do qual descrever e colocar em perspectiva a nossa complicação atual.
Para bem situar as coisas, ainda há uma outra questão a ser colocada. A
consistência e a pulsação polêmica desse campo de debate davam-se no ponto
de cruzamento entre uma experiência histórica, que vinha então sendo reinter-
pretada, e um horizonte de expectativas (cf. Koselleck, 1990) quanto aos futuros
possíveis do país. Esse debate recolhia um movimento crítico que vinha da dé-
cada anterior e dava mais um lance na reinterpretação do país, de sua história e
de suas possibilidades. Aliás, é esse movimento crítico que define o andamento
do texto aqui comentado. Nas linhas que traçam a maior parte de “O Estado e
o Urbano”, o autor reatualiza o percurso da “crítica à razão dualista”, título de
artigo lançado dez anos antes (Oliveira, 1972). Em 1972, anos de chumbo da
ditadura militar, a inteligência crítica do país estava investida da exigência de
rever e revisitar explicações e interpretações sobre as inflexões e rupturas da
história recente, o ponto de clivagem representado pelo Golpe Militar de 1964
e elucidar os percursos e destinações da economia e sociedade brasileiras. A
inscrição polêmica de Francisco de Oliveira nesse debate foi importante e ecoou
por toda a década. Ao fazer a “crítica à razão dualista”, ao mostrar a simbiose do
“arcaico” e “moderno”, do formal e do informal e o modo como essas relações
eram tecidas, postas e repostas na lógica mesma da acumulação capitalista, o
autor definia um plano de referência que projetava as figuras do “atraso” – a
urbanização caótica, o terciário inchado, a economia de subsistência, o trabalho
informal, a pobreza que se espalhava por todos os lados – no centro mesmo da
moderna economia urbana e do conflito de classes.
Era um debate em marcha, um campo de debate no qual as proposições de uns
entravam em ressonância com outros, e as referências circulavam em inscrições
polêmicas sobre o país, as cidades, a economia e as derivações da modernização
brasileira. Claro, a questão tinha muitas faces, os temas eram vários e as pro-
blemáticas também. Mas, aqui, o que interessa é situar o lugar do “urbano” – o
urbano como questão – no andamento das coisas.
Em 1975, a publicação de São Paulo, crescimento e pobreza, resultado de um
estudo promovido pela Pontifícia Comissão de Justiça e Paz, dava eco a esse debate
e fazia circular amplamente, para além dos circuitos especializados e estritamente
acadêmicos, um conjunto de proposições que estabelecia as relações entre acumu-

57
lação e pobreza, que desmontava o “mito da marginalidade” associado à pobreza
urbana e que lançava as noções de periferia e de urbanização periférica que,
nos anos seguintes, orientariam a descrição dos problemas urbanos das grandes
cidades (Kowarick e Brandt, 1975). Em 1979, Lúcio Kowarick cunhou a expressão
“espoliação urbana”, que circulou amplamente nesses debates, como referência
que dava forma e sentido aos problemas urbanos nas suas relações com a “supe-
rexploração do trabalho” própria ao “capitalismo periférico” (Kowarick, 1979).
Nesse livro, Kowarick reatualiza o trabalho crítico anterior (1975), e o problema
da pobreza e segregação urbana aí comparece como questão que desloca os ter-
mos então propostos pelas teorias da modernização e da marginalidade urbana,
para situá-las no centro das “contradições urbanas” do capitalismo moderno. E
é esse movimento crítico que estava cifrado nas pesquisas e estudos sobre um
amplo leque de problemas que então configuravam a “questão urbana”. A impor-
tância que, nesses anos, ganhava o tema da autoconstrução da moradia popular
é especialmente esclarecedora: longe de ser apenas a constatação de práticas e
fatos recorrentes nas nossas cidades, a autoconstrução aparecia como evidência
– e era construída como evidência – que permitia figurar as relações entre o
“arcaico” e o “moderno”, entre o formal e o informal, de tal modo que práticas e
tradições populares da auto-ajuda operavam como um prisma que esclarecia as
relações entre a superexploração da força de trabalho e as formas selvagens de
urbanização ou, então, para colocar nos termos do debate, aquilo que então se
convencionou chamar de urbanização por expansão de periferias.2
Mas, então, isso significa dizer que, se havia um espaço conceitual que definia
a consistência desse campo de debate, não é porque aí se formulavam categorias
e noções mais adequadas ao estado de coisas, mas pelo plano de referência que

2
A questão já havia sido formulada por Francisco de Oliveira, em 1972, em sua “crítica à
razão dualista” e será retomada por quase todos os estudos desse período sobre a moradia
popular. Vale lembrar a passagem famosa: “uma não-insignificante porcentagem das re-
sidências das classes trabalhadoras foi construída pelos próprios proprietários, utilizando
dias de folga, fins de semana e formas de cooperação como o mutirão. Ora, a habitação,
bem resultante dessa operação, se produz por trabalho não-pago, isto é, supertrabalho.
Embora aparentemente esse bem não seja desapropriado pelo setor privado da produção, ele
contribui para aumentar a taxa de exploração da força de trabalho, pois o seu resultado – a
casa – reflete-se numa baixa aparente do custo de reprodução da força de trabalho – de
que os gastos com habitação são um componente importante – e para deprimir os salários
reais pagos pelas empresas. Assim, uma operação que é, na aparência, uma sobrevivência
de práticas de economia natural dentro das cidades, casa-se admiravelmente bem com um
processo de expansão capitalista, que tem uma de suas bases e seu dinamismo na intensa
exploração da força de trabalho. [...] a expansão do capitalismo no Brasil se dá introdu-
zindo relações novas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo, um modo de
compatibilizar a acumulação global, em que a introdução das relações novas no arcaico
libera força de trabalho que suporta a acumulação industrial-urbana e em que a reprodução
das relações arcaicas no novo preserva o potencial de acumulação liberado exclusivamente
para fins de expansão do próprio novo”(Oliveira, 1972: 32).

58
atravessava esse debate e que fazia do urbano e da cidade o ponto de condensação
de um conjunto de questões que falava do país, de sua história e suas destinações
possíveis. Os rumos possíveis da sociedade brasileira era a questão que atravessava
todo esse debate e definia a pulsação polêmica de proposições que reabriam a
interrogação sobre as relações entre desenvolvimento capitalista, modernização e
modernidade. A cidade – a cidade como questão – aparecia como uma cifra pela
qual o país era tematizado e, em torno dela, organizava-se um jogo de referências
que dava sentido às polêmicas, divergências, debates e embates sobre a história,
percursos e destinações da sociedade brasileira.3
Talvez seja possível dizer, seguindo nas trilhas de Roberto Schwarz (1999:
156), que esses anos testemunhavam mais um capítulo (o último?) de um debate
que fazia da “defasagem entre as aspirações da modernidade e a experiência
efetiva do país um tópico obrigatório”, um debate que mobilizava a imaginação
crítica na aposta de que seria possível superar as mazelas da sociedade e trazer
as maiorias, desde sempre relegadas às fímbrias da modernização capitalista,
ao universo de uma cidadania ampliada. Pois bem, essa aposta foi perdida. Ao
menos, foram desestabilizados os termos em que foi formulada. É a questão que
o próprio Schwarz lança ao debate em um artigo de 1993: como pensar o país
quando a norma civilizada na qual, desde sempre, o país se espelhou, apenas
nos promete, nesses tempos de capitalismo globalizado, uma modernização que
não cria o emprego e a cidadania prometidos, mas que engendra o seu avesso na
lógica de um mercado que desqualifica – e descarta – povos e populações que
não têm como se adaptar à velocidade das mudanças e às atuais exigências da
competitividade econômica? Como pensar o país se “o aspecto da modernização
que nos coube, assim como a outros, for o desmanche ora em curso, fora e dentro
de nós?” (Schwarz, 1993: 156).
Na outra ponta, o que se desfez como horizonte histórico e referência crítica
foi a própria noção de superação, noção fundante dos debates que percorriam
as décadas anteriores. É esse o sentido polêmico da questão que, novamente,
em 2003, Francisco de Oliveira trouxe ao debate público ao usar a imagem do
ornitorrinco para descrever o país:4 um monstrengo feito de pedaços desconjunta-
dos, diferenças, defasagens, descompassos, desigualdades, que, não sendo mais

3
É um debate que, como mostra Cibele Rizek (2003), vem de antes, é contemporâneo à
própria formação da sociologia, fundando “um modo de pensar o país e seus processos
de transformação a partir da cidade” e suas relações com a industrialização e a moder-
nização.
4
“Como é o ornitorrinco? Altamente urbanizado, pouca força de trabalho e população no
campo, dunque nenhum resíduo pré-capitalista; ao contrário, um forte agrobusiness. Um setor
industrial da Segunda Revolução Industrial completo, avançando, tatibitate, pela terceira
revolução, a moleculardigital ou informática. Uma estrutura de serviços muito diversifica-
da numa ponta, quando ligados aos estratos de altas rendas, a rigor, mais ostensivamente
perdulário que sofisticado; noutra, extremamente primitivo, ligado exatamente ao consumo
dos estratos pobres. [...]” (Oliveira, 2003:132-133).

59
atravessados por uma virtualidade de futuro, não mais articulados internamente
por uma “dialética dos contrários”, ficam onde estão, um neoatraso, como diz
Roberto Schwarz em seu comentário, fatos irrevogáveis de nossa realidade, sem
solução e sem superação possível no cenário do capitalismo globalizado e de
uma revolução tecnológica que aprofunda e torna irreversível o abismo entre os
países. Escrito em diálogo tenso com o texto de 1972, também ajuda a marcar
a diferença dos tempos que o separam do texto de 1982 comentado no início.
Nos vinte anos que se passaram, muita coisa aconteceu e muita coisa mudou
neste país. A democracia e as instituições democráticas se consolidaram e o jogo
político seguiu, mal ou bem, com tropeços e complicações, as regras da normali-
dade democrática. Mas, seguindo os pontos polêmicos do autor, as conexões que
articulavam o “Estado e o urbano” foram cortadas ou viradas pelo avesso sob a
lógica de um duplo desmanche, por cima e por baixo, a rigor, modulações de um
mesmo movimento: a autonomização dos mercados em tempos de financeirização
da economia e revolução tecnológica desfaz a sociabilidade plasmada no trabalho,
ao mesmo tempo em que retira autonomia do Estado – “o Estado se funcionaliza
como máquina de arrecadação para tornar o excedente disponível para o capital”,
diz Francisco de Oliveira. Quanto às políticas sociais, desconectadas (e impotentes
para tanto) de um projeto de mudar a distribuição de renda, “transformam-se em
antipolíticas de funcionalização da pobreza” (2003: 11). O que antes era perce-
bido como exceção, singularidade de um movimento histórico que, esperava-se,
haveria de alcançar algum patamar de normalidade, transforma-se em regra – as
desigualdades abissais, a pobreza urbana, o desemprego, o “trabalho sem forma”
das multidões de ambulantes que ocupam os espaços da cidade, bem, tudo isso
está aí para ficar. É a “administração da exceção”, diz Francisco de Oliveira em
um artigo que leva o título “O Estado e a exceção: ou o Estado de exceção”.5
As questões propostas pelo autor vão muito além do que está sendo comentado
nestas notas.6 Entretanto, o que interessa aqui é apenas reter o sentido do petardo
crítico lançado ao debate. Se a equação que se estabelecia entre trabalho, direitos
e cidadania foi quebrada, se o movimento histórico que lhe dava plausibilidade
foi interrompido, se a “hipótese superadora”, para usar os termos de Schwarz,7 foi

5
Esse texto foi apresentado como conferência de abertura de um fórum acadêmico de
pesquisa urbana, em 2003, e pode ser considerado uma prévia do que viria a ser o Orni-
torrinco, publicado nesse mesmo ano (esse bicho esquisito e desconjuntado já comparece
aí como figura do estado atual do país)
6
Uma discussão, em várias vozes e sob aspecto diversos, das teses de Chico de Oliveira
pode ser encontrada nos vários artigos que compõem uma coletânea voltada ao debate da
obra do autor (Cf. Risek e Romão, 2006). Vale também dizer que parte dos argumentos que,
aqui, vêm sendo desenvolvidos retomam questões que tive a oportunidade de desenvolver
em um artigo que compõe esta mesma coletânea (Cf. Telles, 2006).
7
Hoje, diz Schwarz (1999: 58), o “naufrágio da hipótese superadora” aparece como o
“destino da maior parte da humanidade”, não sendo neste sentido uma experiência se-
cundária.

60
erodida, então com quais parâmetros, ou a partir de quais parâmetros, colocar
sob perspectiva crítica o atual estado de coisas? Como discernir as linhas de força
que permitam reabrir essa potência de confrontar o presente e ampliar o horizonte
dos possíveis, essa mesma potência (e essa aposta) que, de alguma forma, está
(estava) contida na ideia de superação? A questão está longe de ser simples. A
rigor, é o próprio problema que ainda precisa ser formulado e bem posto. E isso,
claro está, não é coisa que se resolva assim de uma penada, e certamente não vai
ser qualquer contorcionismo teórico que haverá de abrir caminhos.
Para reatar a discussão do início, o que vale aqui reter é a desestabilização das
referências e parâmetros pelos quais pensar o país e, reatando pontos e linhas,
a cidade e suas questões. Isso que se convencionou chamar de desregulação
neoliberal em tempos de globalização, financeirização da economia e revolução
tecnológica, pode ser lido como a desmontagem do diagrama de referências que
conferia sentido, dava ressonância e qualificava a potência política das “mil faces”
do problema urbano. O que antes foi dito e escrito sobre a cidade e seus proble-
mas, a “questão urbana”, parece ter sido esvaziado de sua capacidade descritiva
e potência crítica em um mundo que fez revirar de alto a baixo o solo social das
questões então em debate.
E é por esse lado que seria interessante retomar a questão. É por esse lado
que cobra interesse o confronto dos tempos e das pulsações dos debates que os
atravessam ou atravessavam. Pois é isso que pode nos dar uma medida – medida
inquietante – do estilhaçamento da inteligência crítica nesses últimos anos. Não
se trata apenas de constatar a indigência dos debates recentes, em grande parte
conjugados no presente imediato. Isso seria trivial, além de correr o risco de um
julgamento excessivo e injusto com uns e outros. O problema é mais de fundo.
O problema está nas nossas dificuldades de discernir o que anda acontecen-
do nos tempos que correm e perscrutar as linhas de força que os atravessam.
Na voragem de transformações que se superpõem em velocidade cada vez mais
acelerada, o passado parece se esvanecer como referência trabalhada na ex-
periência social, ao mesmo tempo em que o futuro torna-se indiscernível, e o
horizonte dos possíveis parece devorado pela imprevisibilidade e aleatoriedade
de fatos, acontecimentos e circunstâncias que parecem operar apenas no “tempo
real” do mercado e seus imperativos (ou idiossincrasias). É como se vivêssemos
um presente inteiramente capturado pelas urgências do momento, e não nos
restasse muito mais do que a sua gestão cotidiana, sem conseguir escapar do
círculo de giz traçado entre a denúncia estéril e o pragmatismo, quando não a
razão cínica, que apenas afirma o que está posto, de tal forma que parece nada
nos restar senão gerir o que nos é dado a viver no presente imediato. Hoje, a
cidade parece armar o palco de algo como uma cacofonia, que, em um certo
sentido, também traduz no plano do pensamento ou da inteligência crítica o
esfacelamento das referências cognitivas e normativas que permitiam pautar o
debate e suas polêmicas internas. Parece que se perderam de vez as conexões
que articulam o econômico, o político, o urbano e social: a economia é coisa que

61
parece transitar definitivamente em outra galáxia de referências, a política passa
a se reduzir ao problema da gestão das urgências de um presente imediato e o
urbano parece se desconectar de vez com a política, para ser confinado às formas
diversas, velhas e novas, de gestão da pobreza. Quanto ao mais, face à erosão de
referências futuras e em nome das urgências do presente, o campo fica aberto
para um pragmatismo “bem fundado” que se apoia na pesquisa acadêmica para
propor programas sociais aos “excluídos” do mercado de trabalho. Na prática,
esse deslocamento (e esvaziamento) do espaço crítico termina por reatualizar o
que Topalov (1994) define como “epistemologia da fi lantropia”, que fragmenta
a análise social na descrição cientificamente fundada de cada grupo social (as
várias figuras dos “excluídos”) alvo de políticas focalizadas. Nesse registro, a
reflexão (e a prática) fica inteiramente cativa do diagrama liberal nas formas
possíveis de “gestão da pobreza”. Um campo político encapsulado na gestão do
presente imediato, sem abertura para outros possíveis. Mas, com isso, é o próprio
espaço da crítica que se esvai. Sem a abertura que exige a imaginação para o
discernimento das virtualidades contidas no real, possibilidades de outros modos
de fazer a experiência do mundo, só resta a constatação – “então tá, é isso aí”. E
a repetição, o clichê – apenas a afirmação do que está posto. Um real reduzido
ao possível e um futuro rebatido no presente imediato.

***

Essa foi a marca dos anos 1990, talvez melhor dizer: da virada dos tempos.
Como bem sabemos, o abalo sísmico provocado pelas mudanças do capitalismo
contemporâneo atingiu os países e regiões do planeta em ritmos e intensidades
diferentes. As defasagens de tempo são consideráveis e as diferenças das confi-
gurações sociais e políticas que assumiram nos diversos locais, também. Mas, no
turbilhão das transformações, o deslocamento e desestabilização das referências
foi geral. Como diz François Hartog (2003), as desilusões das promessas liber-
tárias dos anos 1960, a crise do Estado Previdência, o aumento do desemprego
e o reaparecimento brutal da pobreza nas cidades do Primeiro Mundo parecem
ter sido os lances que abriram as primeiras fissuras em um “regime de historici-
dade” no qual o futuro era figurado como um tempo que haveria de ser ou que
poderia ser (ao menos imaginado) como melhor do que o presente. Não mais o
tempo das promessas de que se alimentava a política, e também a crítica social.8

8
Bom historiador que é, o autor chama a atenção e descreve ao longo de seu livro todas as
censuras e críticas endereçadas à noção de progresso que, desde as primeiras décadas do
século XX e, sobretudo, a partir da segunda guerra mundial, tratavam de problematizar os
desencantos do mundo moderno, a barbárie e a violência que acompanharam o andamento
da história recente. Porém, argumenta Hartog, todas essas críticas de alguma forma ainda

62
Fecha-se, diz o autor, lançando mão da hermenêutica histórica de Koselleck,
um tempo em que o presente era tematizado na relação tensa entre campos de
experiência e horizontes de expectativas. Mas aí é o próprio presente que se
transforma, devorado pelo “tempo real” do capitalismo contemporâneo sob os
imperativos do “just-in-time” da produção flexível, da financeirização da econo-
mia e da revolução tecnológica. Presenteísmo: um outro regime de historicidade,
“regimes de temporalité du présent” (2003: 125-126). Para Zaki Laidi (1998),
também inspirado em Koselleck, um presente doravante cortado do passado que
não mais tem como ser atualizado na própria medida (e na velocidade) com que
suas soluções se tornam inoperantes, ao mesmo tempo em que o futuro tampouco
aparece como referência capaz de mobilizar expectativas. Nessa temporalidade
conjugada apenas e tão-somente no presente imediato, entramos na “era das
urgências”. A “urgência” tornou-se a unidade de medida do tempo que rege
discursos e práticas de todos os atores:9 gestão “eficaz” do presente imediato por
oposição às promessas incertas, aleatórias, improváveis de um futuro indiscernível.
Gestão dos “riscos” de um social não mais declinado na gramática dos direitos
e garantias sociais, de que a proliferação de dispositivos de ajuda social e a ati-
vação do discurso humanitário são evidências tangíveis. Primado das urgências
– econômicas, militares, humanitárias, sociais, ecológicas, em todas uma lógica
que parece mimetizar e desdobrar a lógica da financeirização do capitalismo

estavam mergulhadas em uma certa configuração do tempo: um certo regime de histori-


cidade, isto é, em modos de relação com o tempo – modos de relação do presente com o
passado e o futuro. Se esse regime de historicidade aparece, agora, profundamente alterado,
os sinais dessa mudança também vêm de mais longe, mas ganham uma configuração hoje
identificável no que o autor vai chamar de presenteísmo. Seus primeiros sinais ganham
evidência nos anos 1970, anos de uma funda inflexão no andamento acelerado da história
do pós-guerra: anos de ouro do planejamento, das grandes construções e reconstruções
nacionais (o que inclui sistema de relações de trabalho e a montagem dos serviços públicos),
modernização das estruturas estatais, tudo isso no cenário de guerra fria, competição pela
partilha imperialista do mundo e corrida armamentista. Tempos da modernização, enfim.
E que, para nós, tem correspondências evidentes com o que foi convencionado chamar de
ciclo desenvolvimentista. Para o bem ou para o mal, era o que dava plausibilidade à noção
de progresso. E este, pela sua forte aderência, no imaginário social, era também o que
conferia vigor e sentido à uma crítica que, de alguma forma, tematizava as “promessas não
cumpridas da modernidade”, para lembrar aqui a fórmula famosa de Harbemas.
9
Como diz François Ost (1999: 279), referindo-se às questões discutidas por Zadi Laidi,
“agora que não parecemos não estar mais em condições de formular projetos, de traçar
perspectivas ou de rearticular promessas, apenas nos resta ajustar dia a dia as opções
que resultam de nossos compromissos, estes também frágeis e instáveis. Na falta de um
futuro mobilizador e de exterioridade simbólica, apenas nos resta renegociar entre nós,
na imanência de nossas relações imediatas, as figuras provisórias do bem comum sempre
rediscutidos. Na impossibilidade de tornar credíveis expectativas portadoras de sentido,
a urgência nos fornece agora uma legitimação de substituição na qual nossas sociedades
procedurais são obrigadas a se acomodar”.

63
contemporâneo (cf. Calhoun, 2004). E é isso que ativa dispositivos de exceção
que derrogam práticas, normas e direitos estabelecidos em nome dos supostos
imperativos dos fatos supostamente imediatos e supostamente urgentes a apelar o
pragmatismo da gestão eficaz, senha para que o princípio gestionário termine por
se impor e erodir o campo da política na lógica, como diz François Ost (1999),
de uma “derrogação permanente”, de tal modo que, no limite, é o não-direito
que penetra nos procedimentos e agenciamentos institucionais.
Em 1995, Robert Castel já acusava os efeitos desestabilizadores da erosão
das expectativas sociais mobilizadas pela noção (ou imaginário) do progresso,
ao descrever as situações de precariedade social e de “individualismo negativo”
que acompanharam a desmontagem da mediação pública dos direitos sociais.
Naqueles anos, no cenário francês, já estavam em curso as tendências de uma
refilantropização da pobreza, agenciamentos locais de programas sociais voltados
aos ditos excluídos, “remetendo a arranjos particulares o que as regulações cole-
tivas não podem mais comandar” (1998: 472). Na mira do autor, estava a erosão
da própria “questão social”, transfigurada no registro de “problemas sociais” a
serem geridos tecnicamente ou tratados pelas formas renovadas da fi lantropia –
“administração do social”, diz Castel, que reativa a lógica da assistência tradicional
que se imaginava enterrada de vez pela vigência dos modernos direitos sociais.
Em 1996, Rosanvallon e Fitoussi faziam um diagnóstico em tudo convergente
com as questões tratadas por Castel, ao chamar a atenção para o deslizamento da
questão social nas figuras de problemas sociais que apelam aos “bons sentimen-
tos” da compaixão e solicitude perante os “excluídos”, em uma perversa confusão
entre política e bons sentimentos – “o desenvolvimento da ideologia humanitária
sobre as ruínas da política tradicional corresponde ao mesmo movimento” (1996:
21). É nessa mesma figura do “excluído” que os autores identificavam os sinais
inquietantes de uma demissão da política, ao sugerir uma dualização da socieda-
de que deixa na penumbra os processos societários geradores de precarização e
vulnerabilidade social, e que termina por reativar “a visão mais arcaica do social”
como lugar de disfunções e patologias que reclamam a intervenção compensatória
das políticas sociais sempre seletivas e sempre focalizadas nos segmentos mais
vulneráveis da população.
Em 1999, Jacques Donzelot lançava mão da noção de secessão para falar da
“nova questão urbana” que seguia a desativação do campo político e do horizonte
utópico das lutas urbanas dos anos 1960 e 1970. Alimentava-se das ruínas do
“urbanismo funcional” e da desintegração da sociedade industrial, tangíveis na
degradação dos bairros operários e da habitação social.10 E desdobra-se nas

10
“Concebidos para a residência de populações atraídas à cidade pelos empregos indus-
triais, esses ‘quartiers’ consagravam sua integração na sociedade pelo trabalho. A habitação
social recompensava uma estabilidade no emprego e uma docilidade no trabalho, para as
quais contribuíam as instituições públicas (escolas, centros sociais, policia, etc.). Agora, a
habitação social mais do que recompensar a estabilidade no emprego, termina por afastar

64
evidências do “urbanismo afinitário” de uma elite que se dessolidariza com os
destinos comuns da cidade (e da sociedade) para se confinar na exclusividade
de suas regiões de moradia, “les villes emergentes”, versão francesa, diz o autor,
da peri-urbanização dominante nos Estados Unidos. Longe de ser consensual, a
questão lançada por Donzelot abriu-se a controvérsias e polêmicas, não raro atra-
vessadas por críticas ácidas e contraposições igualmente agudas, mas a pauta de
discussão estava lançada e, no seu centro, a “crise urbana” e seus sentidos. Uma
crise que parecia ser não mais uma reposição de uma série de outras tantas que,
como mostra Topalov (1991), entre fatos e representações, estiveram na origem
das ciências da cidade nos anos finais do século XIX.11 Dessa vez, são os próprios
saberes da cidade e as ciências do urbano que são abaladas em suas bases: “com
infinitas variantes ou através de múltiplas controvérsias, nossas disciplinas e seus
paradigmas se edificaram sobre uma base comum: o elo estreito entre discurso
científico e o progresso social, entre os saberes sobre a cidade ou o território e
um projeto progressista de racionalização” (1991: 28). É esse elo que parece se
dissolver e, com isso, é a base desta construção que se desmancha sob “a ofensiva
prática e intelectual” das ditas “forças do mercado”,12 desmontando a relação
privilegiada que as ciências do urbano (e seus operadores) sempre mantiveram
com a política, visando seja ao Estado (projetos, práticas, programas ou utopias
associadas ao planejamento urbano), seja ao “povo” muitas vezes visto como
portador de uma potência política capaz de transformar o próprio Estado.13

as oportunidades no emprego que, alem de se tornarem instáveis, requer disponibilidade


e mobilidade. ....Descendentes diretos da classe operária ou migrantes recentes, os mo-
radores dessas zonas estão marcados pelo fracasso. Vivem dos recursos da ajuda social e
dos tráficos mais ou menos ilegais [...] Toda concepção do ‘bairro operário’ se encontra
subvertida pelos efeitos da desindustrialização (Donzelot, 1999: 104).
11
“A cada época, os especialistas da cidade e do território podem, de fato, mobilizar
sem risco uma terminologia da ‘crise’ paa enunciar a urgência de uma ‘questão urbana’”
(Topalov, 1991: 28).
12
“[...] diria que tudo se passa como se um longo período histórico estivesse em vias de ter-
minar. A ofensiva prática e intelectual das forças que denominamos de ‘mercado’ conseguiu,
de fato, destruir, tijolo por tijolo, uma casa que compreendia muitas moradias. Entre seus
construtores e habitantes existe aqueles que, a partir das últimas décadas do século XIX, têm
por ofício decifrar a ordem escondida sob a desordem urbana e demandar uma intervenção
consciente da sociedade sobre o curso ‘natural’ das coisas” (Topalov, 1991: 29).
13
“Ora, acontece que o povo lhe escapa. Assim, hoje, na europa ocidental, as explosões
sociais se produzem justamente nos espaços urbanos nascidos de um projeto reformador; os
bairros de habitação popular. Em outros lugares, principalmente na América do norte e do
sul, malogram as esperanças nos movimentos sociais urbanos. Constata-se sua integração
no cotidiano da vida municipal, seu controle pela criminalidade organizada, sua deriva
política populista ou simplesmente o retorno das famílias a estratégias individualizadas”
(Topalov, 1991: 36).

65
Vale a pena reter as questões propostas por Topalov, pois sugerem todo o
interesse que pode ter uma reflexão sobre as categorias de análise e o espaço
conceitual em que elas circulam. Sabemos muito bem que no campo das ciências
humanas, e com as particularidades próprias à sociologia urbana, a crítica às
categorias e suas redefinições é algo que se faz em compasso com a interpretação
das mudanças e deslocamentos que se dão no mundo social e ao modo como se
formulam as novas exigências interpretativas em diálogo com as questões políticas
colocadas, com suas promessas, desencantos ou hesitações – é a dupla hermenêu-
tica de que fala Giddens ou, para colocar nos termos de Boltanski, a dimensão
reflexiva da experiência social e que define a própria lógica interna das ciências
sociais. Mas resta a dúvida se esse trabalho reflexivo chegou a se realizar, se
os deslizamentos ou deslocamentos nas óticas descritivas do urbano não foram
tragados pelos “ares do tempo”, em boa parte mediados pelas nova demandas
da pesquisa social vindas de um perfil da política social voltada aos “excluídos”
e às versões brasileiras dos quartiers difficiles. A questão é de interesse e valeria
todo um programa de pesquisa. Preteceille (1998), ao discutir os percursos da
sociologia urbana francesa, chama a atenção para o fato de que as categorias de
análise se modificam conforme se alteram as estruturas da cidade, as políticas
urbanas, o problema social e suas expressões políticas. É sob essa perspectiva,
diz o autor, que é possível situar a interrogação clássica, constitutiva da sociologia
urbana, sobre a divisão social da cidade e que vai ser formulada e figurada de
formas diferentes conforme as conjunturas históricas e contextos intelectuais. E
é sob essa perspectiva que se deve situar os temas recorrentes nos anos 1990 da
fragmentação urbana e dualização social. Trabalho crítico e reflexivo em torno
das categorias de análise, essa é a sugestão forte das proposições de Preteceille,
buscando os nexos que articulam as referências que circulam entre a pesquisa
acadêmica e suas matrizes intelectuais (mutantes conforme os momentos e as
modas), as políticas urbanas e seus operadores políticos, os atores sociais e as
configurações do conflito social em cada momento. Uma história dos conceitos,
como sugere Koselleck, lembrando que estes são sobretudo categorias práticas que
circunscrevem as disputas e polêmicas que dão a cifra de um presente configurado
na tensão entre “campos de experiência” e “horizontes de expectativas”.
Quanto à questão da segregação urbana, tema quase onipresente nos debates
sobre o urbano, Jacques Brun (1994) nota que essa é uma noção de “conteúdo
semântico extensivo”, que varia conforme as conjunturas e a escala de pertinência
dos problemas em pauta, sem chegar a ganhar o estatuto de um conceito claro,
oscilando entre uma acepção descritiva e empírica, e a conotação moral (de de-
núncia). Daí o risco, sempre presente, de deslizar do descritivo para o explicativo,
sem que se explicite a ordem das relações e dos processos em pauta. Como diz
Grafmayer (1994: 86), “noção multiforme, sensível tanto aos contextos históricos
como às modas intelectuais, a segregação é ao mesmo tempo uma categoria de
análise e uma categoria prática, pré-noção carregada de implícitos e instrumentos
de medida, objeto de discussão entre especialistas e tema de debates públicos”.

66
A pluralidade de usos e a polissemia de sentidos interna ao conceito precisam ser
vistas, diz ainda o autor, em relação com os deslocamentos do campo de perti-
nência dos problemas que, a cada conjuntura intelectual e histórica, se pretende
descrever e explicar. Por isso mesmo, a temática da segregação urbana opera como
um revelador particularmente eficaz das modalidades pelas quais a história interna
das ciências sociais se articula com a demanda pública e também com os temas,
obsessões e ficções que mobilizam o debate público e a cena mediática”.14
Está aí uma discussão necessária, ainda a ser feita.15 Por enquanto, vale di-
zer que essa é uma discussão que poderia nos dar mais elementos para refletir
sobre a diferença dos tempos. Se o espaço conceitual de antes foi esvaziado, suas
questões também foram esvaziadas de potência crítica: foi desativado o plano de
referência que definia a direção das perguntas e questões, conferia intensidade
crítica e polêmica aos debates. Arriscando um pouco mais: não se trata, talvez,
de um esvaziamento conceitual, mas de um outro agenciamento das palavras e
as coisas em outros polos de gravitação das questões.
Antes as questões urbanas eram definidas sob a perspectiva (e promessa) do
progresso, da mudança social e desenvolvimento (anos 1960/70) e, depois, da
construção democrática e dos direitos sociais como cifra de uma modernidade
pretendida como projeto (anos 80). Agora, os horizontes estão mais encolhidos,
o debate em grande parte é conjugado no presente imediato das urgências do
momento, e o problema da pobreza urbana tende a deslizar e, no limite, a se
confundir com os problemas da “gestão urbana”. Não por acaso o debate sobre
os “problemas sociais” plasmados nas cidades termina por mobilizar uma outra
fi leira de noções que compõem hoje a agenda da pesquisa urbana – gover-
nabilidade, governança, capital social, redes sociais e outros tantos que talvez
pudéssemos inventariar para averiguar o modo como essas referências circulam
entre pesquisadores e centros de pesquisa, operadores políticos e formuladores
de políticas sociais, ONGs, agências multilaterais e agências de financiamento
de programas sociais.
Tudo isso é um tanto apressado, reconheça-se. As redefinições e deslocamentos
no campo da pesquisa acadêmica é algo também a ser bem entendido, mas essa
é uma outra discussão que vai além do que se propõe e se tem condições de fazer

14
No prefácio a esse livro voltado a uma avaliação do lugar e sentidos da noção de segregação
nas várias ciências do urbano no contexto francês, Marcel Roncayolo (1994: 17), comentando
as imprecisões e deslizamentos de seus usos, chama a atenção para a importância de uma
“história das palavras”, uma “história epistemológica” que contemple tanto a organização
da pesquisa, como a prática e mesmo a “ideologia do conhecimento. Ademais, diz ainda o
autor, “as condições de difusão das técnicas, dos métodos e de suas implicações conceituais,
não são uma questão trivial e a cidade (e não apenas a segregação especial) é, deste ponto
de vista, um bom terreno de experiência”.
15
Essas são questões que se abrem a um fecundo campo de investigação ainda pouco usual
no ambiente intelectual brasileiro. Por isso mesmo, vale registrar todo o interesse de livro
recente de Livia Valladares (2005) sobre a “invenção da favela”.

67
aqui. Se a questão foi aqui lançada, é apenas e tão-somente porque nos ajuda a
melhor situar a ordem de problemas que temos pela frente.
Pois é essa diferença dos tempos que lança a interrogação quanto ao plano de
referência a partir do qual descrever e colocar em perspectiva (e sob perspectiva
crítica) os processos em andamento. Questão nada trivial. Pois em torno das “zo-
nas de turbulência” pelas quais essas mudanças se processaram, as realidades
urbanas também se modificaram (e vem se modificando), e isso em ritmo também
muito acelerado. E são essas linhas de força que será preciso prospectar.
Talvez tenhamos que fazer um percurso mais exploratório. Prospectar os
deslocamentos que reconfiguram e redesenham nossas realidades urbanas para,
nas suas dobras, chegar a identificar e formular o feixe de questões que exige
a imaginação crítica para apreender os campos de força que atravessam essas
realidades.

Interrogando realidades urbanas em mutação

O debate sobre as recomposições urbanas sob o impacto das transformações


recentes no capitalismo contemporâneo foi aberto nos anos 1990, prolongando-se
pela década seguinte. A literatura é vastíssima. Em que pesem variações temáticas,
diferenças interpretativas, divergências e polêmicas de ressonâncias variadas, é
um campo de debate em que se tratou de deslindar as vias pelas quais as lógicas
da produção flexível, da financeirização da economia e do papel do terciário de
ponta alteraram a anterior organização da “cidade fordista”, produzindo rearti-
culações dos territórios por onde circulam capitais, bens, mercadorias, serviços e
também populações em situações diversas de emprego, desemprego e exclusão do
mercado de trabalho. Quanto à cidade de São Paulo e sua região metropolitana,
já temos à disposição um volume considerável de informações e pesquisas que
mostram a sua redefinida (e reafirmada) centralidade nas dinâmicas nacional e
regional, e seu lugar nos circuitos globalizados da economia (cf. Martoni, 1999;
Marques e Torres, 2000). Pelo lado das atuais reconfigurações socioespaciais,
as pesquisas abriram o debate sobre as forças operantes na produção do espaço,
os novos padrões de segregação urbana, sobre a nova geografia da pobreza ur-
bana e da vulnerabilidade social (cf. Taschner e Bogus, 2000; Caldeira, 2000;
Torres e Marques, 2001). No entanto, ainda pouco se sabe do modo como os
processos em curso redefinem e interagem com a dinâmica societária, a ordem
das relações sociais e suas hierarquias, as práticas sociais e os usos da cidade,
as novas clivagens e diferenciações que definem bloqueios ou acessos diferen-
ciados aos seus serviços e espaços. Ainda será preciso decifrar o modo como as
atuais reconfigurações econômicas e espaciais redesenham o mundo social e seus
circuitos, os campos de práticas e relações de força. Vistas por esse ângulo, as
realidades urbanas apresentam desafios consideráveis. As referências gerais sobre

68
emprego e desemprego, transformações sociodemográficas e formas de segregação
urbana esclarecem pouco sobre configurações societárias que embaralham as
antigas clivagens sociais e espaciais próprias da “cidade fordista”, com as suas
polaridades bem referenciadas entre centro e periferia, entre trabalho e moradia,
entre mercado formal e mercado informal.
De um lado, é o caso de se perguntar de que modo as novas realidades do
trabalho (e do não-trabalho) redesenham os espaços urbanos e seus territórios e re-
definem práticas sociais e os circuitos que articulam moradia, trabalho e serviços.
As circunstâncias do desemprego prolongado, do trabalho intermitente e incerto ou
do não-trabalho redefinem tempos e espaços da experiência social, desfazem ou
refazem em outros termos o jogo de referências traçadas entre trabalho e moradia
e que pautam ritmos cotidianos e tempos sociais. Alteram, poderíamos dizer, a
própria experiência urbana, seguindo os circuitos descentrados dos “territórios
da precariedade”. É um outro traçado urbano, seguindo a nova geografia dos
empregos e as novas polaridades e segmentações entre os reduzidos e seletivos
empregos estáveis e as miríades de empregos precários que se proliferam nas
fronteiras pouco nítidas entre o mercado formal e informal, entre os circuitos
da economia globalizada e os contextos locais das tradicionais “atividades de
sobrevivência”, também elas em expansão e também elas redefinidas por suas
conexões com as redes de subcontratação ou, então, com os circuitos locais de
consumo e circulação de bens.
Por outro lado, ponto e contraponto de uma mesma realidade, os capitais
globalizados transbordam as fortalezas globais concentradas no moderníssimo e
riquíssimo quadrante sudoeste da cidade e fazem expandir os circuitos do consumo
de bens materiais e simbólicos que atingem os mercados de consumo popular.
Shopping centers e grandes supermercados se multiplicaram no correr da década e
desenharam um grande arco que chega até as periferias mais distantes da cidade,
alterando o mercado de terras e valores imobiliários, provocando redistribuições
demográficas e deslocamentos populacionais, mas também redefinindo as dinâ-
micas locais do tradicional mercado informal e da economia popular. O fato é
que esses grandes equipamentos de consumo já compõem a paisagem urbana,
redefinem circuitos e práticas urbanas, alteram escalas de distância e proximidade
e operam como referências de tempos/espaços cotidianos.
Finalmente, o universo popular das periferias pobres da cidade é também ele
redesenhado por um intrincado e multifacetado jogo de atores. Isso que a litera-
tura vem designando como novo associativismo popular poderia (ou deveria) ser
visto como um campo muito variado de práticas que mobilizam redes e circuitos
muito diferentes na sua história interna, nas suas extensões, na natureza de suas
vinculações e implicações nas dinâmicas locais: “entidades sociais” e suas parce-
rias com os poderes locais para a implementação de programas sociais diversos;
ONGs com suas vinculações em redes de extensões variadas; partidos políticos e
seus agenciamentos locais; movimentos de moradia e suas articulações políticas;
associações comunitárias ancoradas na história local; igrejas e congregações

69
evangélicas que vêm se proliferando pelas periferias da cidade com práticas
associativas em torno de suas comunidades de fiéis.
Se é evidente o aprofundamento de desigualdades e distâncias sociais, também
é verdade que os modelos polares de análise pautados pelas noções de dualização
social não dão conta das novas realidades, se é que não produzem uma imagem
desfocada do mundo social. Poderíamos dizer que estamos frente não a dualiza-
ções, mas, sim, à disjunção ou dessimetria (essa sim problemática), sobretudo no
que diz respeito aos jovens dos bairros pauperizados da cidade, entre integração
econômica, integração política e integração cultural (Hammouche, 1998). É nessa
disjunção que se tem o registro das dimensões societárias das atuais mudanças
no mercado de trabalho (e suas exclusões), mudanças que interagem (em relações
de convergência, tensões ou descompassos) com uma crescente e diversificada
rede de integração nos circuitos dos bens culturais e simbólicos, ao mesmo tempo
em que a sociedade de consumo (e a lógica do mercado) parece se estender por
todos os cantos, atingindo territórios tradicionalmente considerados como lugares
paradigmáticos da “pobreza desvalida” (Valladares, 1999). É ainda uma sociedade
atravessada por processos societários inéditos e novas formas de sociabilidade,
de subjetivação e construção de identidades (Cabanes, 2002), além de novos
padrões de mobilidade e acesso aos espaços urbanos e seus serviços, e também
as ambivalentes redes sociais tecidas entre a dinâmica familiar, os espaços de
lazer e consumo, o hoje crescente mundo das ilegalismos entre formas diversas
de criminalidade e o tráfico de drogas.
São as linhas de força dessas mudanças que ainda será preciso compreender.
À distância de definições prévias ou diagnósticos estabelecidos sobre as evoluções
recentes da cidade, optamos por um percurso mais exploratório. Buscamos ler
essas mudanças a partir da trajetória de indivíduos e suas famílias: seus deslo-
camentos espaciais em busca da moradia, seus percursos ocupacionais e suas
inflexões nas circunstâncias do desemprego e precarização do trabalho, as práticas
cotidianas que articulam espaços de moradia e a cidade, seus espaços e serviços.
É por esse prisma que tentamos conhecer algo das tramas sociais que configuram
espaços urbanos. A pesquisa está longe de oferecer um panorama geral sobre a
cidade e suas transformações recentes, nem é esse o nosso propósito. Mas nem
por isso essas trajetórias podem ser tomadas como ilustração ou demonstração
de algo já sabido e dito como “exclusão social” ou “segregação urbana”. Através
das práticas, dos eventos, das inflexões e destinações que singularizam essas
trajetórias, é possível apreender os movimentos e as tensões do campo social.
No curso de suas vidas, indivíduos e suas famílias atravessam espaços sociais
diversos, seus percursos passam por diversas fronteiras, e são esses traçados que
podem nos informar sobre a tessitura do mundo urbano, seus bloqueios, suas
fraturas, pontos de tensão.
É um modo de levar a sério que as diversas linhas de força (e suas zonas de
turbulência) das mudanças recentes estão também traçando outros ordenamentos
sociais que desfazem, deslocam, redefinem referências e mediações da trama

70
social, tempos e espaços da experiência urbana, práticas urbanas, seus circuitos
e deslocamentos. As trajetórias e cenas urbanas em que elas transcorrem podem
oferecer indicações sobre as lógicas e dinâmicas societárias em curso.
Três ordens de questões orientam esta investigação:
Questão empírica: é nesse cenário contrastado que crescem a pobreza, o
desemprego e a precariedade urbana. E também a violência. Morre-se e mata-se
muito na cidade de São Paulo (e não só nela). A tragédia concentra-se nas regiões
periféricas da cidade. Mas, como nos ensina Alba Zaluar (2004), se quisermos
entender alguma coisa do que acontece nessas regiões, será preciso investigar a
linha de sombra que perpassa a cidade inteira, em que se articulam a sedução
encantatória do moderno mercado de consumo e o bloqueio de chances promis-
soras no mercado de trabalho, as práticas ilícitas que atravessam a dita economia
informal (e não só, como bem sabemos) e os circuitos do tráfico de drogas, com
suas capilaridades nas práticas cotidianas e nas tramas da sociabilidade popular.
“Viver em risco” é a forte expressão que Lucio Kowarick (2000, 2009) propõe
ao analisar a vulnerabilidade socioeconômica e civil do Brasil urbano atual, mas
que também sinaliza processos e circunstâncias que estão longe de se deixarem
capturar por indicadores e tipificações ou definições categoriais de “pobres” e
“excluídos”. Daí a exigência de construção de parâmetros descritivos para colo-
car em perspectiva realidades urbanas em mutação. Uma abordagem que abra
uma senda investigativa ao revés das ênfases hoje predominantes nos estudos de
pobreza, grandemente pautados por tipificações e categoriais de políticas sociais
voltadas às versões brasileiras dos quartiers difficiles. Entre as tipificações (ficções?)
das chamadas “populações em situações de risco” e as análises gerais, o outro
polo dos debates atuais, sobre economia urbana e a “cidade global”, é todo um
entramado desse mundo que resta a conhecer. É nesse terreno que um estudo
sobre trajetórias e mobilidades urbanas pode se mostrar fecundo, à distância de
expilações gerais sobre a “cidade e sua crise” e também de definições categoriais
ou identitárias das populações urbanas.
Questão política: ao mesmo tempo em que se faz (ainda se faz) a celebração das
virtudes democráticas dos chamados fóruns públicos de participação, ao mesmo
tempo em que se faz a celebração (talvez, sobretudo) das virtudes políticas dos
dispositivos ditos comunitários para a solução dos dramas locais, é o caso de se
perguntar por um campo social que parece escapar, por todos os lados, dessas for-
mas e modos de interpelação política. É o caso de interrogar os sinais e evidências
de uma ampliada e crescente zona de indiferenciação entre o legal e o ilegal, entre
o direito e o não-direito, entre a norma e a exceção, projetando uma inquietante
linha de sombra no conjunto da vida urbana, zona de indiferenciação que cria
situações cada vez mais frequentes, que desfazem formas de vida e transformam
todos e cada um potencialmente em “vida matável” (Agamben, 2002). Para usar
os termos de Michel Agier (1999, 2002), entre a “cidade global” ou a “cidade
genérica”, com seus artefatos iguais em todas as grandes metrópoles do planeta e
os extremos da “cidade nua” (e a gestão da pura sobrevivência biológica dos que

71
perderam tudo o que constitui uma forma de vida), há uma zona incerta, que não
se reduz às fronteiras físicas (se é que estas existem) do que chamamos periferia,
pois passa por todo o entramado da vida social, pelas práticas e suas mediações,
pelos circuitos da vida urbana e as conexões que se fazem nas dobraduras da
vida social. São questões que se impuseram no centro de nossas pesquisas e que
definem, por isso mesmo, um horizonte de indagações sobre os ordenamentos
sociais que vem sendo urdidos nas tramas da cidade. As trajetórias urbanas são
pontuadas e demarcadas por situações que podem ser vistas como espaços de
condensação de práticas, mediações e mediadores que armam como que micro-
cenas descritivas em que esses processos podem ser flagrados.
Questão teórico-metodológica: já é lugar comum dizer que as teorias e catego-
rias convencionais de análise não dão conta das novas realidades. Mas, então, será
preciso levar isso a sério e saber tirar consequências. Não se trata de inventar novas
teorias e muito menos domesticar essas realidades em alguma matriz explicativa
geral. Trata-se, antes e sobretudo, de fazer da investigação uma experiência de
conhecimento capaz de deslocar o campo do já-dito, para formular novas questões
e novos problemas. Ao invés de dar um salto nas alturas e se agarrar em alguma
teoria ou conceito geral, prospectar as linhas de força dessas realidades em mu-
tação. Mais do que um conceito, a cidade é um campo de práticas, diz Roncayolo
(1978). Essa é uma sugestão forte a ser seguida e que coloca o plano no qual
uma investigação pode se dar, fazendo surgir feixes de questões que permitam
modificar problemas previamente colocados – a “questão urbana” não existe
como tal (definição prévia ou noção modelar), mas é configurada no andamento
mesmo dessa prospecção como questões (sempre parciais) e interrogações (sempre
reabertas) que vão se colocando nessa “construção exploratória do objeto” de que
fala Lepetit (2001). É com essa perspectiva que buscamos seguir, prospectar, as
mobilidades urbanas, seus espaços e territórios.

Pontos de inflexão, questões em discussão

Para bem situar as coisas, será interessante reatar com o começo e partir do
diagrama de referências e relações que armaram o cenário urbano como questão
nos anos 1980. Pois, se o que importa é decifrar processos e práticas, então é
também preciso dizer que estes só se deixam ver nos deslocamentos e pontos de
inflexão que vão compondo as realidades urbanas, nas questões e novos proble-
mas que surgem – as “zonas de turbulência” que marcam os pontos de inflexão,
abrindo-se a outras configurações a serem decifradas.
Então, começando pelo começo. Já no final dos anos 1980, o sinal de alarme
foi dado. Em 1991, ao fazer o balanço de “cinquenta anos de urbanização”, Vil-
mar Faria (1991) acusava a dificuldade de situar o sentido das evoluções urbanas
nas décadas anteriores. Eram tempos incertos, atravessados pelas dificuldades

72
econômicas (crise, hiperinflação) e atribulações políticas (governo Collor), mas
eram sobretudo anos que já traziam as marcas das mudanças do capitalismo
contemporâneo. Quais os parâmetros, qual a medida para avaliar e colocar em
perspectiva essas evoluções? Durante décadas, lembra Faria, a reflexão sobre a
sociedade urbana fundiu-se e confundiu-se com a “reflexão sobre os processos
de mudança social que caracterizavam a constituição de uma sociedade urbano-
industrial – pobre e de consumo, heterogênea e desigual – na periferia da econo-
mia mundial crescentemente internacionalizada” (1991: 99). E durante décadas
as transformações urbanas foram pensadas a partir de uma projeção de futuro
formulada seja nos termos da modernização e progresso, seja nos termos do desen-
volvimento autônomo, da reforma ou revolução, mas que ordenava processos e dados
das realidades urbanas do ponto de vista dos obstáculos ou entraves estruturais
a serem superados por alternativas políticas capazes de acelerar ou redirecionar
processos sociais. Pois bem, nota Faria, chegamos ao final dos anos 80 sem poder
avalizar as esperanças de que essas teorias se alimentavam. Além de terem perdi-
do a “força aglutinadora”16 de outros tempos, as mudanças recentes no país e no
mundo deslocaram a ordem das evidências que pareciam dar-lhes plausibilidade.
O problema, diz Faria, é: se esses modelos teóricos perderam vigência, se suas
promessas perderam plausibilidade, com o seu esvaziamento também se perdeu
“um fio condutor, um parâmetro, uma medida” para análises prospectivas.
A questão é interessante sobretudo pelo momento em que foi formulada. No
início dos anos 90, trazia embutida uma pergunta sobre as destinações possíveis
de uma transformação que, no correr das décadas, revirou o país de alto a baixo.
É certo que, nesses anos, foram plasmadas as fundas desigualdades regionais,
urbanas e sociais que caracterizam a sociedade brasileira, bem como os traços
conhecidos da pobreza urbana concentrada nas periferias das grandes cidades.
Mas também é verdade que tudo isso foi processado no bojo de um vigoroso ciclo
de integração urbana – é esse o andamento do texto de Faria. Essas décadas
foram caracterizadas por deslocamentos espaciais consideráveis (fluxos migra-
tórios), pela construção de uma estrutura urbana ampla e diferenciada (apesar
de muito segmentada e desigual internamente), pela formação de um mercado
de trabalho unificado e a “contínua incorporação de massas de trabalhadores
às relações sociais de caráter mercantil e, mais especificamente, às relações de

16
“Amalgamadas muitas vezes de forma contraditória pelo jogo político das forças sociais – e
sem que aí faltasse a força aglutinadora do sentimento nacionalista e terceiro-mundista –
essas visões de mundo davam eco aos ‘projetos de desenvolvimento’ das elites hegemônicas
‘modernizantes’ e substância à análise crítica e à prática política das contra-elites. O Brasil,
eterno país do futuro, urbano, industrial e desenvolvido – se possível socialista – podia
ser pensado e ‘projetado’. [...] Mesmo quando a internacionalização da economia integrou
o país de forma dinâmica na expansão capitalista do pós-guerra, o confronto político dos
interesses contemplados e postergados por essa integração deu substância teórico-ideológica
à política e alimentou de esperanças a análise social e, portanto, a análise prospectiva dos
problemas urbanos” (Faria, 1991: 99).

73
assalariamento da força de trabalho”.17 No final da década de 1980 já havia
sinais de inflexão nesse processo. E as evidências vinham da interrupção do
ciclo histórico de mobilidade social ascendente. A questão veio a público através
de um artigo de Pastore publicado em 1993 e teve ressonâncias importantes
nos debates daqueles anos. Pastore mostrava, então, que, em comparação com
a década de 1970, diminuía a proporção de indivíduos que subiram na escala
social e, pela primeira vez, desde que essas informações vinham sendo obtidas,
aumentou a proporção dos que desceram na pirâmide social. Esse é um fenômeno
novo na história social brasileira, diz Pastore. E para Faria, em artigo de 1992
sobre a conjuntura social brasileira, “talvez pela primeira vez no passado recente
segmentos e gerações têm a dura experiência da mobilidade bloqueada [...] e
as implicações dessa inflexão nas expectativas constituem uma das. principais
dimensões do problema social na presente conjuntura” (1992: 113).
Dez anos depois, o que eram sinais de um ponto de inflexão confirmou-se e
desdobrou-se no novo cenário social das grandes cidades. Nesses dez anos, como
se sabe, o país entrou em compasso com o capitalismo contemporâneo – abertura
dos mercados aos capitais globalizados, reestruturação produtiva, novas tecnologias,
mudanças nas práticas gerenciais, flexibilização do contrato de trabalho e, para
dizer tudo isso de uma só vez: a implosão da chamada “norma fordista”, com os
efeitos conhecidos no aumento do desemprego de longa duração, na precarização
do trabalho, nos contingentes crescentes de sobrantes do mercado de trabalho. O
assalariamento recuou de forma contínua ao longo da década, e os novos padrões
de funcionamento do mercado de trabalho trouxeram a quebra de uma estrutura
ocupacional que, mal ou bem, durante décadas permitiu a integração de amplos
contingentes de uma força de trabalho pouco ou nada qualificada, interrompendo
o ciclo histórico de mobilidade ocupacional e social. Na melhor das hipóteses, resta
o que a literatura especializada chama de mobilidade circular, e o resultado é a
tendência a uma crescente polarização no mercado de trabalho e o aprofundamento
das desigualdades sociais (Comin, 2003). O mais importante, porém, são os deslo-
camentos, que foram consideráveis: da indústria para os serviços, do assalariamento
para o trabalho informal, do emprego para o desemprego, do mercado para uma
nebulosa de situações em que transitam os sobrantes entre as atividades domésticas
e a chamada economia de sobrevivência, mas sempre com o selo de uma pauperi-
zação crescente. E se o assim chamado mercado informal aumenta (mais de 50%
da população ativa na Região Metropolitana de São Paulo, entre assalariados sem
carteira de trabalho e o chamado emprego autônomo), também aí os deslocamentos

17
“A expansão capitalista no Brasil [...] teve força dinâmica suficiente para criar um volume
considerável de novos empregos na indústria de transformação, nos transportes, na produção
de energia e com outras atividades correlatas, na construção civil, nas telecomunicações
e no comércio moderno, nos serviços de intermediação financeira e de apoio às atividades
produtivas, na administração pública direta e indireta e nos serviços sociais, desenvolvendo
as ocupações modernas e diferenciando a estrutura social urbana” (Faria, 1991: 104).

74
foram importantes. Como mostra Álvaro Comin (2003), há evidências de que os
capitais conectados nos circuitos da economia globalizada tendem a capturar os
nichos em que tradicionalmente operavam parcelas importantes dos segmentos
informais urbanos nos interstícios da economia urbana. Sendo assim, a simbiose
do tradicional-moderno tratada por Francisco de Oliveira no início dos anos 70 foi,
também ela, cortada, essas atividades sendo empurradas para fora dos circuitos
centrais da economia, compondo o cenário da pobreza urbana e, na avaliação de
Comin, acenando com “a barbárie típica que já se incorporou sistemicamente à
vida de nossas sociedades, nos centros e também nas periferias”.18
Na face urbana das mudanças, as inflexões também foram consideráveis – e é
sobretudo por esse lado que se pretende, aqui, seguir a discussão. A mobilidade
social medida por referência aos deslocamentos na hierarquia das ocupações,
funções e profissões é apenas um lado ou uma das dimensões do que Maurizio
Gribaudi (1987) nomeou como “ciclo de integração urbana”: deslocamentos es-
paciais, integração no mercado de trabalho urbano-industrial, acesso à moradia
e aos serviços urbanos compuseram os eixos em torno dos quais esse movimento
se realizou.
Para colocar nos termos do debate dos anos 1980, eram eixos que desenhavam
um espaço social no qual se processavam as “contradições urbanas”, no qual
se expressava “o novo caráter do conflito de classes”, e a “espoliação urbana”
ganhava tradução política nos “novos movimentos sociais” com suas reivindica-
ções por equipamentos e serviços de consumo coletivo nas distantes e precárias
periferias das grandes cidades. Mas, então, isso significa dizer que a mobilidade
social sinalizava um movimento de integração urbana em que se entrecruzam
percursos ocupacionais e trajetórias espaciais (habitacionais). E também uma
relação política com a cidade (cf. Gribaudi, 1987). A maioria dos que fizeram
os grandes deslocamentos em direção à cidade nos anos 1960 e 1970 foram os

18
“Uma parcela importante dos segmentos informais urbanos, que estruturavam sua repro-
dução de baixa capitalização de setores como o comércio e a construção civil, e também
em certas franjas mais periféricas das cadeias industriais, foram sendo deslocadas destes
nichos exatamente pelo fato de que aos poucos capitais mais volumosos foram penetrando
estas atividades. [...] Paralelamente, a expansão das redes supermercadistas, de moda e
vestuário, o enorme desenvolvimento do mercado imobiliário (apoiado na modernização
das técnicas de produção de edificação, cada vez mais intensivas de capital e menos de
trabalho), os enormes ganhos de produtividade dos setores produtores de bens de consumo
(que ao reduzirem substancialmente seus preços tornaram improdutivos certos serviços de
reciclagem e conserto de roupas, calçados e eletrodomésticos mais comezinho), a expansão
das redes de serviços pós-consumo (grandes concessionárias de automóveis, revendas e
postos autorizados de manutenção de máquinas e equipamentos) e mesmo a disseminação
de formas mais modernas e capitalizadas de prestação de serviços como alimentação
(cadeias de fast-food), limpeza e cuidados pessoais (redes de lavanderias e cabeleireiros),
certamente operam no sentido de reduzir os interstícios nos quais as modalidades de
auto-ocupação encontram sua forma de reprodução ou pelo menos tendem a afastá-los dos
circuitos centrais, mais dinâmicos, para a periferia” (2003: 142).

75
agentes da chamada urbanização por expansão de periferias, experimentaram
a autoconstrução da moradia mobilizando esforços familiares e a solidariedade
intrapares, organizaram-se em associações locais e reivindicaram melhorias ur-
banas. Pelo lado do trabalho, parte deles se integrou nos núcleos dinâmicos da
economia e formou as bases da organização e movimentação sindical que tanto
marcaram a década de 1980. É essa dinâmica que foi tematizada nos debates
que corriam naqueles anos, de tal maneira que poderíamos mesmo dizer que os
termos desse debate traduziam em seu próprio registro um espaço social cons-
truído nas linhas que entrelaçavam trabalho, cidade e política.
E é por esse lado que também podemos falar de uma ruptura do diagrama
de relações que definiam a pulsação histórica e política desse espaço social. Por
certo, produção e reprodução social, exploração do trabalho e espoliação urbana são
pares conceituais que dizem respeito a processos sociais efeitos a serem vistos sob
o prisma da análise sociológica. O problema não é bem uma questão de categorias
e das teorias que lhes dão fundamento. O problema está no plano de consistência
que conferia potência crítica às descrições das realidades urbanas do período – é
isso que parece ter se esvaziado, de tal maneira que essas categorias deixam de ser
operantes para colocar em perspectiva e sob perspectiva crítica a dinâmica urbana
que se desenhou a partir dos anos 1990. Para colocar em outros termos: parecem
não ser mais suficientes, ao menos no agenciamento conceitual em que eram mobi-
lizadas, para especificar e qualificar a “questão urbana” – ou urbano como questão
e problema que desafia a imaginação sociológica (e a invenção política).
Nos anos 1990, a segregação urbana continua operante, e o crescimento peri-
férico da cidade continua a acontecer. No entanto, a dinâmica já não é a mesma,
os deslocamentos socioespaciais respondem a outras circunstâncias. Em contraste
com as décadas passadas, não são mais alimentados pelos fluxos migratórios que
diminuíram no correr da década de 1980 e chegaram a apresentar saldos negati-
vos nos anos 90. Respondem a fatores de expulsão que ainda precisam ser mais
bem compreendidos, mas que se dão no cruzamento entre as forças operantes
no mercado de terras e a especulação imobiliária, a fragilização dos vínculos de
trabalho e encolhimento de alternativas de emprego, e outros tantos que vêm de
uma história já antiga de ausência ou precariedade de políticas habitacionais.
Para usar os termos de Yves Grafmayer (1995), se nas décadas anteriores os
deslocamentos espaciais traduziam “trajetórias de inserção”, agora são as “traje-
tórias de exclusão” que predominam. Em um cenário urbano muito alterado, e no
contraponto de uma diminuição relativa da concentração populacional nas áreas
centrais e regiões do seu entorno, a cidade de São Paulo conheceu uma verdadeira
explosão demográfica em seus pontos mais distantes;19 as ocupações de terra vão

19
Conforme Taschner e Bogus (2001: 31-44), “Nos anos 90, acentuou-se a periferização:
entre 1991 e 1996 todos os anéis, com exceção do periférico, apresentaram taxas negati-
vas. Assim, a totalidade do crescimento municipal, de quase 200 mil pessoas entre 1991
e 1996, foi devida ao aumento populacional na periferia. O anel periférico foi responsável

76
se espalhando em cada pedaço de área livre nas regiões periféricas de assenta-
mento já consolidado e fazem a mancha urbana se expandir nas chamadas “zonas
de fronteira” e também nas áreas de proteção ambiental, reservas florestais ao
norte e mananciais ao sul; e pontilhando os grandes eixos desses deslocamentos,
os núcleos de favelamento mais do que duplicaram no correr da década. Entre
favelas, ocupações de terra, loteamentos irregulares ou clandestinos, estima-se
que a “cidade ilegal” atinja mais da metade da população paulistana.20 Essa não
é uma situação exclusiva de São Paulo, sabemos (cf. Maricato, 2000, 2001). E
tampouco é coisa recente, também sabemos. Porém, ganha configurações novas
nos anos 90, seja pelas proporções que o problema ganhou, exigindo uma ordem
de soluções que desafia os poderes públicos às voltas com restrições de recursos
e a fragilização dos instrumentos de política urbana; seja pela multiplicação de
situações de risco social21 ou, então, pela combinação por vezes explosiva, sobre-
tudo nas regiões mais distantes da cidade, entre a questão social e os problemas
ambientais que a afligem;22 seja ainda pela constituição de uma zona cinzenta,

por 43% do incremento populacional nos anos 60, por 55% nos anos 70, por 94% entre
1980 e 1991 e por 262% entre 1991 e 1996”.
20
“Cidade clandestina” é o título de uma reportagem da Folha de São Paulo, edição de
22/04/2002, com dados relativos aos loteamentos irregulares no município de São Paulo:
“os loteamentos e condomínios clandestinos ocupam um quinto do território de São Paulo.
São 338,8 milhões de m² tomados por áreas residenciais e comerciais que não existem
legalmente para a prefeitura. Nesse espaço vivem cerca de 3 milhões de pessoas, um terço
da população da capital. O tamanho da chamada cidade paralela dentro da São Paulo
oficial é superior à área urbana de Ribeirão Preto, um dos maiores municípios do interior
do Estado”.
21
Conforme Marques e Torres (2000), “Em termos concretos, existiam na Região Metropo-
litana de São Paulo em 1998 aproximadamente 1,7 milhões de pessoas (10% da população)
com rendimento familiar inferior a 2 salários mínimos, ou R$302,00, de acordo com a
PNAD-IBGE. [...] Esta grande população miserável tem que habitar as franjas e interstí-
cios urbanos mais precários. Neste sentido, a existência de áreas de risco ambiental com
péssimos indicadores sociais e sanitários [...] mostra que existe claramente uma periferia
da periferia. Essa hiperperiferia implica a condensação e acúmulo num espaço menor de
riscos sociais, residenciais e ambientais de diversas origens, genericamente atribuídos ao
contexto periférico mais abrangente. Assim, os riscos ambientais e sociais são desigual-
mente distribuídos (ou os primeiros são distribuídos sobre os segundos), criando um círculo
perverso de pobreza e péssimas condições de vida em locais específicos (mas nem por isso
numericamente desprezíveis). A isso se somam condições praticamente nulas de mobilidade
social ascendente. Essas condições, talvez ainda mais graves que as descritas nas “periferias
da espoliação urbana” são cercadas por condições médias relativamente elevadas para os
padrões periféricos tradicionais, indicando um padrão de segregação mais complexo, mais
difícil de conceituar e medir, mas nem, por isso menos injusto”.
22
Como mostra Martins (2003: 174), em São Paulo, as leis de proteção aos mananciais
viraram letra morta diante das ocupações que vieram se sucedendo: “essa região protegida
registrou, nas duas últimas décadas, um dos maiores índices de crescimento demográfico

77
aliás também em expansão, em que se misturam várias ilegalidades, dos grileiros
de terra e imobiliárias fraudulentas, passando por políticos corruptos, “entidades
sociais” de atuação duvidosa e, claro, o tráfico de drogas e as multifacetadas
redes mobilizadas no assim chamado comércio ilícito.
Tudo isso tem sido amplamente notado e fartamente documentado por pes-
quisas recentes. Aliás, é preciso que se diga: a quantidade e a qualidade da
informação hoje disponível são notáveis. Grades complexas de indicadores sociais
e sofisticadas cartografias urbanas fazem o traçado da pobreza no conjunto da ci-
dade, dos pontos críticos de concentração da exclusão territorial e vulnerabilidade
social à distribuição desigual dos equipamentos urbanos e serviços sociais. E no
seu conjunto vão desenhando os contornos de uma cidade muito desigual, mas
também heterogênea, com diferenciações importantes atravessando e compondo
os territórios da pobreza. São evidências que vêm alimentando os debates recen-
tes sobre os assim chamados novos padrões da segregação urbana. Descobre-se
que a cidade é muito mais heterogênea do que se supunha, que seus espaços
são atravessados por enormes diferenciações internas, que pobreza e riqueza se
distribuem de formas descontínuas, que os novos empreendimentos imobiliários e
equipamentos de consumo alteram as escalas de proximidade e distância entre po-
bres e ricos, que os investimentos públicos realizados nos últimos anos desenham
um espaço que já não corresponde ao continuum centro-periferia enfatizado pelos
estudos urbanos dos anos 80 e que, enfim, somando tudo, se as desigualdades
e diferenças existem e aumentaram nos últimos anos, elas se cristalizam em um
espaço fragmentado que não cabe nas dualidades supostas nos estudos anteriores
(cf. Marques e Bichir, 2001; Torres e Marques, 2000).
O volume das informações impressiona, e a escala das transformações ur-
banas recentes também. O universo das evidências empíricas permite hoje o
retrato detalhado da distribuição da pobreza nos espaços da cidade, e os recursos
técnico-metodológicos hoje disponíveis permitem montar o caleidoscópio urbano
a partir da composição de microdados que indicam clivagens e diferenciações
das quais mal se suspeitava sob a ação das forças estruturantes da economia e da
política. Mas nem por isso essa massa de informações é suficiente para discernir
as linhas de força que atravessam o atual estado de coisas, e pelas quais essas
transformações operam. Da informação ao conhecimento, a distância é grande:

do conjunto da cidade. Neste quadro, a principal questão ambiental urbana é hoje, em São
Paulo, antes de tudo, um problema de moradia e de carência ou insuficiência de política
habitacional [...] se a dualidade das condições urbanas edificadas, com ilhas de eficiência,
na cidade vem viabilizando, nos anos recentes, o funcionamento dos negócios e empresas
da nova economia, as condições ambientais, que são indivisíveis, começam a demonstrar
seu limite, chegando a situações críticas que afetam não só a parcela excluída, mas toda a
comunidade – das pessoas físicas aos próprios negócios, como é o caso do limite de dis-
ponibilidade de água potável, da poluição dos mananciais e redução de sua carga abaixo
dos níveis de segurança, das enchentes, da crise da energia elétrica e da proliferação das
doenças como a dengue...” .

78
há mediações a serem percorridas. E, sobretudo, as evidências da tragédia social
(e a grade de seus indicadores) estão longe de definir um plano de referência
que nos permita colocar em perspectiva essas evoluções, ter uma cifra pela qual
problematizar os tempos que correm e reabrir a interrogação sobre a cidade como
questão, para além da constatação (e denúncia) dos “problemas sociais” e das
recomendações bem fundadas de uma intervenção social direcionada aos pontos
mais críticos da realidade urbana.
O fato é que, hoje, sabemos mais e melhor sobre as características da pobreza
urbana, sobre o modo como se distribui nos espaços das cidades e as variáveis
que compõem sobre as situações de vulnerabilidade social e exclusão territorial.
Mas sabemos pouco sobre as dinâmicas, processos e práticas sociais operantes
nesse cenário tão modificado de nossas cidades. Sabemos mais e melhor sobre a
escala dos problemas sociais e os pontos críticos espalhados pela cidade e seus
territórios. Mas não sabemos discernir as linhas de força que atravessam essas
realidades.
Se a cidade é um campo de práticas, para lembrar aqui novamente a sugestão
de Roncayolo (1978), então as evidências empíricas que indicadores e cartografias
nos entregam podem e devem ser entendidos como pontos de cristalização de
práticas e processos, como pontos de condensação de tempos sociais e tempora-
lidades urbanas, experiência social sedimentada e história incorporada (Bour-
dieu) que será preciso reativar para o deciframento dos sentidos e direções das
evoluções recentes, das tensões e fricções que atravessam as realidades urbanas.
Mas colocar a cidade em perspectiva e como perspectiva significa assumir um
certo prisma para exercitar esses postulados básicos da análise sociológica. Não
é apenas um contexto, tampouco apenas o solo no qual situar o registro de con-
dições de vida e suas mudanças – não é a mesma coisa que espacialização de
dados e variáveis. A vida urbana é toda colocada sob o signo da mobilidade, diz
Grafmayer (1995). E os fluxos migratórios, os deslocamentos espaciais e mobi-
lidades habitacionais, os percursos ocupacionais e suas inflexões no tempo e no
espaço, traduzem na escala dos destinos individuais e coletivos a dinâmica das
transformações urbanas.23 Essa pode ser uma via fecunda para uma redescrição
das mudanças recentes.

23
“[...] a vida urbana é toda ela colocada sob o signo da mobilidade : migrações, mobilida-
des residenciais, os deslocamentos diários impostos pela especialização dos espaços. Estes
fatos de mobilidade são portadores de desestabilização de pertencimentos e certezas. Mas
são, ao mesmo tempo, os meios e os signos de adaptações mais ou menos bem sucedidas
às exigências da condição citadina. Traduzem assim, na escala dos destinos individuais, a
ambivalência dos processos de desorganizações/reorganizações que são certamente cons-
titutivos de toda vida social, mas que se exacerbam na cidade moderna. Os autores da
Escola de Chicago desenvolveram amplamente este tema, dando eco à ideia simmeliana da
necessária imbricação, no seio dos processos sociais, de ordem e desordem, de integração
e ruptura” (Grafmayer, 1995: 89).

79
Sabemos que essa é uma questão definidora da sociologia urbana. Desde a
Escola de Chicago e seguindo linhagens teóricas diversas, as mobilidades urba-
nas e as relações entre os deslocamentos espaciais, ocupacionais e habitacionais
foram tomadas e assim pesquisadas por muitos como cifra para o entendimento
das transformações urbanas, de suas linhas de ruptura e de fratura, mas também
de recomposições e convergências, processos multifacetados por onde diferencia-
ções sociais vão se desenhando, ganhando forma e materialidade nos espaços das
cidades pesquisadas (cf. Grafmayer, 1995; Grafmayer e Joseph, 1979; Grafmayer
e Dansereau, 1998; Gribaudi, 1998). Esse é um prisma de análise que ganha,
hoje, no debate contemporâneo, renovado interesse no contexto de transformações
que se seguem em ritmo acelerado, alterando tempos e espaços da experiência
social, redefinindo práticas e seus circuitos, desestabilizando referências e iden-
tidades coletivas, criando outras tanto junto com novas clivagens sociais e outros
“campos de gravitação” da experiência social.
Mas, então, isso também significa dizer que, pelo prisma das mobilidades
urbanas e seus pontos de inflexão no tempo e no espaço, é possível reativar
questões colocadas em outros contextos e recuperá-las sob outras perspectivas,
com outros dados e novas perguntas. E sendo assim, as questões tratadas nos
anos 70/80, e comentadas por Vilmar Faria no início dos 90 (a mobilidade social
bloqueada), podem ser aqui tomadas não como registro interessante de uma re-
ferência bibliográfica necessária nos protocolos acadêmicos, mas como questão
que se desdobra em outras tantas, que se redefine em um outro tempo e outras
configurações sociais. E talvez seja desse ponto que interessa começar, e tentar
puxar as linhas que a partir daí vão se delineando.

80
CAPÍTULO 2

Perspectivas descritivas

Mobilidades urbanas: trajetórias habitacionais, percursos ocupacionais, des-


locamentos cotidianos nos circuitos que articulam trabalho, moradia e serviços
urbanos. Três dimensões entrelaçadas nas trajetórias individuais e familiares.
Na definição precisa de Grafmayer (2005), na ótica dos atores, essas formas de
mobilidade são não apenas interdependentes, mas sobretudo diversas facetas de
um processo único de reorganização das condições de existência. Seus eventos
precisam, portanto, ser situados nos tempos e espaços em que as histórias se
desenrolam. É por essa via que se deixam ver como pontos de condensação de
tramas sociais que articulam histórias singulares e destinações coletivas. Tempos
biográficos organizam trajetórias que individualizam histórias de vida, e estão
inscritos em práticas situadas em espaços e nos circuitos urbanos que as colocam
em fase com tempos sociais e temporalidades urbanas.
Seguir as mobilidades urbanas não é, portanto, a mesma coisa que fazer a
cartografia física dos deslocamentos demográficos. Não é tão simplesmente fazer o
traçado linear de seus percursos (pontos de partida, pontos de chegada). Tempos
biográficos e tempos sociais se articulam na linha de sucessão (das genealogias
familiares e suas trajetórias), mas também supõem uma espacialização demar-
cada pelas temporalidades urbanas corporificadas nos espaços e territórios da
cidade.1 Espaço e tempo estão imbricados em cada evento de mobilidade,2 de tal
modo que, mais importante do que identificar os pontos de partida e os pontos de
chegada, são esses eventos que precisam ser interrogados: pontos críticos, pontos
de inflexão, de mudança e também de entrecruzamento com outras histórias –
“zonas de turbulência” em torno das quais ou pelas quais são redefinidas (des-
locamentos, bifurcações) práticas sociais, agenciamentos cotidianos, destinações
coletivas. E são esses eventos que nos dão a cifra para apreender os campos de
força operantes no mundo urbano, a trama das relações, de práticas, conflitos e
tensões, enfim, a pulsação da vida urbana – a redistribuição de possibilidades,
bloqueios, aberturas ou impasses que atravessam e individualizam cada história
de vida, mas que também a situam em um plano de atualidade.

1
Como sugere Roncayolo (1997), os tempos e cronologia não sincronizados mas contempo-
râneos no presente histórico da cidade: o tempo dos assentamentos, das políticas urbanas,
das evoluções da economia, da implantação das redes e serviços urbanos, dos operadores
políticos, dos urbanistas, etc. Ver também: Lepetit, (1993, 2001).
2
Para uma discussão sobre as relações entre tempo e espaço imbricados nos “fatos de
mobilidade”, ver Tarrius (2000, 2003).

81
Poderíamos, então, dizer que as mobilidades urbanas são demarcadas e com-
passadas por eventos atravessados por três linhas de intensidade. A linha vertical
das cronologias, em que os tempos biográficos se sucedem em compasso com o
tempo social-histórico. No âmbito interno das famílias, a sucessão das gerações
com suas linhas de continuidade e rupturas, heranças familiares transmitidas,
redefinidas ou reinterpretadas conforme mudanças nos agenciamentos cotidianos e
nas hierarquias internas. A linha horizontal das espacialidades, em que os tempos
se efetuam: as práticas urbanas deixam suas marcas no espaço e estas se objetivam,
ganham forma e constroem referências que permitem entrecruzamentos com outras
histórias, outros percursos, outros eventos que pontilham a história urbana – não
a linha das fi liações familiares, mas a das comunicações transversais que fazem
conexões com outros pontos de referência do social (e da cidade). Atravessando
tudo isso em uma linha perpendicular, os eventos políticos que ganham forma e
também operam como referências práticas que compõem os territórios urbanos:
a cronologia dos investimentos públicos, os descaminhos da moradia popular,
os conflitos sociais e suas derivações, práticas de tutelagem e clientelismo, que
vêm de muito tempo e persistem entrelaçadas com as mediações democráticas
de representação política, formas de ação coletiva e de solidariedade, que se
alimentam de fontes diversas e também vêm de tempos diferentes, aberturas e
retrocessos políticos que se sucedem aos calendários eleitorais. Eventos e situações
que podem ser tomados como vetores que conectam espaços e territórios com os
tempos políticos da cidade.
De partida, é preciso dizer que se está aqui se colocando à distância das ima-
gens (e descrições) correntes de uma cidade fragmentada, recortada por enclaves
de riqueza, nichos de miséria e territórios de pobreza. Os percursos traçados por
indivíduos e famílias nos orientam através de diversas fronteiras, nos indicam as
modulações da vida urbana e suas inflexões, suas fissuras, tensões, bloqueios,
possibilidades. Se existem fraturas, não derivam de uma categorização prévia,
mas procedem da prospecção desses percursos, das relações que se entrecruzam
e se superpõem nas histórias individuais e os modos como estas vão se conjugando
nos tempos e espaços em que transcorrem. Nas palavras de Jacques Revel (1998:
22), seguir o traçado das trajetórias urbanas de indivíduos e famílias significa
seguir “a multiplicidade dos espaços e dos tempos, a meada das relações nas quais
(um destino particular) se inscreve”. É uma abordagem do social que responde
a um “programa de análise das condições da experiência social restituídas na
sua máxima complexidade”. Enriquecer o real, diz ainda Revel, um modo de
descrever o mundo urbano.
Ao seguir os percursos de indivíduos e famílias, são traçadas as conexões que
articulam diversos campos de práticas e fazem a conjugação com outros pontos de
referência que conformam o social. Os percursos e seus circuitos fazem, portanto,
o traçado de territórios, e são esses territórios que interessa reconstituir. É preciso
que se diga que estamos aqui trabalhando com uma noção de território que se
distancia das noções mais correntes associadas às comunidades de referência.

82
É com um outro plano de referência que estamos aqui trabalhando. Nos eventos
biográficos de indivíduos e suas famílias, há sempre o registro de práticas e redes
sociais mobilizadas nos agenciamentos cotidianos da vida, que passam pela re-
lações de proximidade, mas não se reduzem ao seu perímetro. Feitos de práticas
e conexões que articulam espaços diversos e dimensões variadas da cidade, os
territórios não têm fronteiras fixas e desenham diagramas muito diferenciados
de relações conforme as regiões da cidade e os tempos sociais cifrados em seus
espaços. São esses circuitos que as trajetórias urbanas permitem apreender e que
interessa compreender: a natureza de suas vinculações, mediações e mediadores,
agenciamentos da vida cotidiana que operam como condensação de práticas e
relações diversas.
É aí, nessas dobraduras da vida social, que toda a complicação urbana dos
tempos que correm pode ser flagrada; é aí que acontecem as exclusões, as fratu-
ras, os bloqueios, e também as capturas na hoje extensa e multicentrada malha
de ilegalismos que perpassam a cidade inteira e que operam, também elas, como
outras tantas formas de junção e conjugação da trama social. Pontos de junção
e conjugação da vida social que operam como campos de gravitação de práticas
diversas: seus agenciamentos concretos, sempre situados, sempre territorializa-
dos, são atravessados pelas linhas de força das tensões e conflitos, dos acertos
e desacertos da vida, das possibilidades e bloqueios, e também dos limiares de
outros possíveis.
É um plano de referência que permite colocar a cidade em perspectiva. No
plano dos tempos biográficos, é toda a pulsação da vida urbana que está cifrada
nos espaços e circuitos por onde as histórias transcorrem. Na contraposição entre
histórias e percursos diversos, são as modulações da cidade (e história urbana)
que vão se perfi lando nas suas diferentes configurações de tempo e espaço. E
isso implica duas ordem de questões:
Primeiro, uma estratégia descritiva: lançar mão da noção de território supõe
operar com a categoria de espaço. Como se sabe, a categoria de espaço lida com
a simultaneidade e permite apreender as coisas no plano da contemporaneidade
que constitui sua espacialização (Benoist e Merlin, 2001). Daí a exigência des-
critiva, diferente do princípio narrativo do tempo: contar uma história, descrever
um espaço. Um trabalho descritivo que escapa seja da abstração desencarnada
dos números e indicadores, seja da referência exclusiva (e problemática) ao local,
espaços ou micro-espaços das “comunidades”. Não se trata de negar a história,
muito menos a narrativa daqueles que contam seus percursos e elaboram suas
experiências. Trata-se, isso sim, de traçar a simultaneidade de tempos sociais e de
tempos biográficos distintos. Simultaneidades que permitem traçar a contempora-
neidade entre, de um lado, os que falam, com um tom épico e também nostálgico,
dos tempos do emprego farto e dos seus percursos na cidade das promessas dos
anos 60/70 e, de outro, as gerações mais novas cujas experiências já não podem
ser conjugadas no tempo do progresso e das promessas, ou são conjugadas em
um outro jogo de referências tecido entre a dureza do desemprego e do trabalho

83
incerto, a atração encantatória do moderno mercado de consumo, mas também os
novos circuitos de sociabilidade tramados na interface das mudanças operantes
no mundo do trabalho e na cidade, e seus espaços. Simultaneidades de tempos e
espaços diferenciados: tempos biográficos e tempo social sedimentados no que hoje
é chamado de periferia consolidada com sua serrada trama de relações sociais,
e as regiões mais distantes em que a urbanização ainda se faz em ato, conjugada
no tempo presente entre as inseguranças e percalços das ocupações de terra, da
precariedade urbana e conflitos sociais pautados por uma truculência cuja des-
medida termina por atualizar os tempos de longa duração de nossa história.
É no confronto entre as diversas situações que, tal como num prisma, a cida-
de vai se perfi lando nos seus focos de tensão, nos seus campos problemáticos.
A questão vai surgindo no entremeio, no momento em que o caleidoscópio gira
e faz ver toda a complicação do mundo urbano. Não a “questão urbana”, pois
isso suporia uma definição prévia e modelar. Mas as diferentes modulações do
mundo urbano em cada uma dessas configurações. Toda a complicação atual
pode ser apreendida aí. Mas é nisso também que a noção de território pode se
mostrar operante. Se é preciso a crítica, é no jogo das comparações que ela vai
sendo tecida, ou melhor: é nesse jogo de simultaneidades que os parâmetros da
crítica podem ser construídos, evitando, na falta de outro ancoramento, o risco
sempre presente de fazer dos “tempos fordistas” um modelo normativo a partir
do qual tudo o que vem depois só pode aparecer no registro do vazio (“não tem
mais”, “não é mais assim”), quando não temperado pelo lamento nostálgico do
que poderia ter sido, mas não foi. Porém, o vazio não tem potência. A complica-
ção está nas positividades tecidas nas realidades urbanas atuais que traçam as
linhas da atualidade.
O que importa é puxar essas linhas (ao menos algumas, ou o que o fôlego da
investigação permitir) e, a partir daí, tentar apreender o plano de atualidade que
atravessa as histórias e situações as mais contrastadas. A cidade não dissocia,
diz Lepetit (2001); ao contrário, faz convergir ao mesmo tempo práticas, hábitos,
comportamentos e histórias vindas de outros momentos e de espaços diversos.
Vale a citação completa:

[A cidade] não dissocia: ao contrário, faz convergirem, num mesmo momento,


os fragmentos de espaços e hábitos vindos de diversos momentos do passado.
Ela cruza a mudança mais difusa e mais contínua dos comportamentos citadinos
com os ritmos mais sincopados da evolução das formas produtivas [...] Não se
trata de colocar lado a lado as formas e os comportamentos, mas de considerar
os atores e as modalidades de apropriação. Assim, a questão das temporalidades
urbanas é colocada de outro modo. A cidade nunca é absolutamente sincrônica:
o tecido urbano, o comportamento dos citadinos, as políticas de planificação
urbanística, econômica ou social desenvolvem-se segundo cronologias diferen-
tes. Mas ao mesmo tempo, a cidade está inteiramente no presente. Ou melhor:
ela é inteiramente presentificada por atores sociais nos quais se apoia toda a
carga temporal. (Lepetit, 2001:141 e 143)

84
Segundo, um espaço conceitual: um modo de pensar a cidade (e seus proble-
mas) a partir de referências outras em relação ao que ficou consagrado por uma
certa linhagem da sociologia urbana e pela qual a cidade é vista sob o prisma
exclusivo da habitação e seu entorno imediato ou comunitário, ou dos problemas
locais a serem geridos de forma eficiente por programas localizados, focalizados.
A cidade é feita de cruzamentos e passagens, e é isso que introduz a questão da
circulação, da mobilidade e da acessibilidade como prisma para a problematização
da cidade e suas questões. Como diz Isaac Joseph (1998: 92-93), pensar a cidade
como domínio da circulação e do acessível (e seus bloqueios) é, de partida, “dizer
que ela é tudo, menos o lugar de formação de uma comunidade”. Apreender os
bairros, notadamente os bairros desfavorecidos “a partir da cidade, é pensá-los
no plural justamente porque situados (territórios, redes, comunicações) em um
plano de consistência que lhes autoriza a permanecer urbanos”.3
A cidade é feita de cruzamentos: não se trata de imaginários difusos, é questão
posta na materialidade de seus artefatos e redes que articulam espaços e territórios,
e que os conectam (mas também separam e bloqueiam) com os centros urbanos
e as várias centralidades em torno das quais gravita a vida urbana, definindo
vetores de práticas e deslocamentos cotidianos. Não existe cidade sem centros e
subcentros, diz Flávio Villaça (2001), e sem eles a cidade se volatilizaria como
o gás que sai de uma garrafa: teríamos vilarejos ou comunidades, não uma ci-
dade. Mas é também por isso que, como diz Roncayolo (1997: 241), não haveria
sistema urbano “se não houvesse uma infra-estrutura de redes técnicas para
suportar as trocas de produtos, de pessoas, de informações, de signos – tudo o
que constitui o metabolismo urbano”. Habitação, serviços urbanos e transportes
não compõem tão simplesmente os “contextos gerais” que servem para enquadrar
práticas sociais e o jogo dos atores. Terreno clássico das lutas urbanas, estas
políticas condicionam os circuitos de práticas cotidianas, delimitando tempos,
espaços e ritmos das mobilidades urbanas e as formas de acesso ou bloqueios à
cidade e seus espaços.
É sob essa perspectiva que a questão da segregação urbana pode ser situada.
Nas mobilidades urbanas, nos seus percursos e deslocamentos, temos uma chave

3
Para Joseph (1998: 92-93), em diálogo com o debate francês e sob uma perspectiva forte-
mente polêmica, “pensar o espaço das cidades como ordem de circulação e como organização
da separação, significa forçosamente submeter à crítica aguda todo um vetor da fi losofia do
habitar ancorada na experiência da proximidade e do mundo à mão. Ora, esta experiência
está no coração dos pensamentos da identidade e das práticas gestionárias que procuram
corrigir um déficit de urbanidade pela imposição de identificações imaginárias. [...] Concepção
securitária de um lugar, mas sobretudo uma concepção redutora e localista da proximidade
como sendo o lugar ou o representante representativo do chez-soi”. O alvo da crítica de Joseph
são as armadilhas de uma suposta nova cidadania pensada em termos locais. Contra isso,
o autor propõe pensar a cultura urbana da circulação e coloca no seu centro a questão da
acessibilidade: não se trata, diz o autor, de fazer a apologia da mobilidade e muito menos
do nomadismo. A acessibilidade diz respeito a espaços, objetos e serviços.

85
para apreender as dinâmicas urbanas que (re)definem as condições de acesso à
cidade e seus espaços. Seguindo as questões propostas por Flavio Villaça (2001),
mobilidades urbanas, deslocamentos espaciais e acessibilidade são fenômenos
sociais entrelaçados. Sob esta perspectiva, a noção de segregação urbana define-se
em um plano conceitual a ser considerado. Não é a mesma coisa que distribuição
da pobreza no espaço, não é um problema afeito apenas ao problema dos “pobres
e desvalidos” da cidade e não é questão que se reduz às medidas dirigidas aos
pontos (e micropontos) da vulnerabilidade social. Como diz o autor, a noção de
segregação diz respeito a uma relação – relação entre localidades e a cidade. Não
é uma relação física dada pelas escalas de distância e proximidade, tal como se
poderia medir no mapa da cidade. É uma relação social que diz respeito à dinâmica
da cidade, aos modos como a riqueza é distribuída (e disputada) e corporificada
nas suas materialidades, formas e artefatos (Harvey), definindo as condições
desiguais de acesso a seus espaços, bens e serviços. A questão da acessibilidade,
portanto, é fundamental. Como diz Bernard Lepetit (2001: 76), citando Lucien
Febvre, o historiador, “na cidade como na natureza, o único problema é o da
utilização de suas possibilidades”.

A cidade em perspectiva: seguindo os


fluxos das mobilidades urbanas

Deslocamentos: a produção do espaço

Pelo prisma das mobilidades urbanas e seus territórios, a história passada


não se volatiliza nas brumas do tempo a serem recuperadas apenas pelo trabalho
da memória (ou pelo balanço bibliográfico). Ela está corporificada e incorporada
nos espaços e seus artefatos – traços materiais da vida social que são também
vetores e referências de práticas e relações sociais atuais (cf. Grafmayer, 1995,
Joseph, 1998).4 O “ciclo de integração urbana” que seguiu entre os anos 70 e
até meados dos 80 ganhou forma e materialidade no que a literatura define como
“periferia consolidada”. Vistas de hoje, com suas ruas pavimentadas, razoável
cobertura de serviços e equipamentos urbanos, mal deixam imaginar o “fim de
mundo” que eram no início dos anos 70 – “aqui era só mato” é a expressão cor-

4
Para David Harvey (1996: 51), mobilizando um outro arsenal teórico e por referência a
outras questões, “o conjunto dos processos que se dão no espaço, que eu chamo de urba-
nização, produz inúmeros artefatos – uma forma construída, espaços produzidos e sistemas
de recursos de qualidades específicas, organizados em uma configuração espacial distinta.
A ação social subsequente tem que levar em conta tais artefatos na medida em que muitos
dos processos sociais (tais como os deslocamentos casa-trabalho) se tornam fisicamente
interligados”.

86
rente dos moradores quando narram seus percursos, epopeias urbanas contadas
e relembradas como evidências de uma vida que, mal ou bem, foi construída,
e assim narrada, sob o signo do “progresso”. Progresso: seta do tempo na qual
os acontecimentos – eventos biográficos, eventos familiares, eventos urbanos
– estão (ou parecem estar) em sincronia com o tempo social da urbanização.
Para os que chegaram à segunda metade dos anos 80, a cidade já estava muito
distante das promessas da “cidade do progresso” dos anos 70, os percursos
urbanos já serão outros, a experiência social não irá mais refazer essa peculiar
articulação entre trabalho, moradia e cidade que marcou os “cinquenta anos de
urbanização” descritos por Vilmar Faria (1992). Entre as circunstâncias de uma
crise econômica prolongada e uma reestruturação produtiva já em curso, de um
lado e, de outro, as impossibilidades de refazer o périplo da autoconstrução da
moradia nas periferias da cidade, muito provavelmente serão essas populações
que irão alimentar o crescimento das favelas e das ocupações de terra nos anos
90. Ainda será preciso conhecer melhor os percursos e trajetos dessas popu-
lações. Podemos dizer que, muito provavelmente, aí se tem a convergência dos
caminhos cruzados dessas figuras conhecidas na paisagem urbana, os traba-
lhadores pobres – as classes inacabadas, para usar a expressão de Francisco
de Oliveira (1981), que vão se virando nas franjas do formal e informal, entre a
sucessão de trabalhos incertos e desemprego recorrente. E que têm percursos
urbanos também marcados pela sucessão de habitações precárias, despejos de
casas alugadas, moradias improvisadas, acolhimento esporádico de familiares,
passando por uma sucessão de ocupações temporárias até chegar a estabelecer
“casa e família” nos interstícios do mundo urbano, ou nas fronteiras da periferia
da cidade. A esses se agregam os que não chegaram a concretizar as promes-
sas dos tempos do progresso, que não realizaram o “sonho da casa própria” e
que, na mudança dos ventos, sobrantes do mercado de trabalho, vão perfazer
as trajetórias de exclusão, para usar os termos de Grafmayer. São esses dife-
rentes percursos urbanos e diferentes configurações da experiência urbana que
escapam aos indicadores sociais que medem e identificam os pontos críticos de
vulnerabilidade social no espaço da cidade.
Duas gerações, dois ciclos urbanos: os tempos biográficos estão, portanto,
em compasso com o tempo histórico e as temporalidades inscritas nos espaços
e territórios traçados por esses percursos. Essa é uma primeira diferenciação a
ser feita, que nos oferece referências importantes para entender a pulsação das
tramas sociais inscritas nas diversas situações sociais.
Por outro lado, e esse é o ponto a ser aqui enfatizado, essas histórias são
também contemporâneas entre si. Entrecruzam-se na dinâmica da produção dos
espaços e territórios: os campos de confl ito que acompanham os deslocamentos
espaciais; as temporalidades urbanas inscritas nos equipamentos coletivos; as
tramas associativas que articulam dinâmicos locais com os tempos políticos da
cidade.

87
Conflitos e disputas no e pelo espaço

Esses mesmos territórios que receberam as primeiras gerações em sua epopeia


de progresso na “cidade grande” são pontilhados por ocupações que se sucederam
em ritmos e intensidades diferentes, daí resultando um verdadeiro mosaico de
situações, histórias e trajetórias que se corporificam em uma paisagem em que
mal se distinguem as fronteiras entre bairros consolidados, áreas de ocupação
ou ainda o favelamento que vai se espalhando por todos os lados.
Não se trata tão simplesmente de deslocamentos espaciais. A produção dos
espaços passa por um intrincado jogo de atores e campos multifacetados de con-
flitos e tensões. As ocupações podem surgir “da noite para o dia”, como dizem
os moradores do entorno, um barraco aqui e outro ali, uma semana depois já
um amontoado que vai crescendo ao sabor das direções que o vento imprime aos
rumores – “ouvi dizer que estavam invadindo por lá, então eu fui ver e fiquei...”,
criando clivagens tensas ou abertamente conflituosas em um mesmo território de
referência. No mais das vezes, arma-se um acirrado campo de disputas pelos usos
dos “espaços vazios”, terras públicas ou sem proprietário definido, envolvendo
moradores, poderes públicos e os “invasores”, e por vezes os chefes locais do
narcotráfico que dominam o “ponto”. São disputas que podem se dar nas formas
abertas da negociação, que podem ser resolvidas pela violência e força bruta, ou
seguir acordos tecidos nas zonas de sombra do jogo dos interesses inconfessá-
veis, para não dizer ilícitos. Mas há também a presença ativa dos movimentos de
moradia que se alimentam das heranças das grandes mobilizações dos anos 80,
que mobilizam os “recém-chegados, mal alojados” e promovem ocupações em
outras paragens da cidade. Atravessando tudo isso, os pontos de cristalização e
reatualização dos vários ilegalismos que atravessam a cidade e que são acionados
na produção dos espaços urbanos, passando por associações de atuação duvidosa,
máfias locais, grileiros, as malhas da corrupção e do “comércio ilícito”, além de
uma nova figura que, ao que parece, vem ganhando espaço nos últimos tempos
como mediador entre as vários ilegalismos e que vai se especializando na arte
de intermediação de compra e venda de terrenos irregulares – uma espécie de
grilagem consentida e superposta a várias camadas geológicas de posse ilegal de
terras. 5 Pouco entenderemos da “cidade ilegal” que sempre existiu na cidade de
São Paulo (e todas as outras grandes cidades brasileiras, é bom que se diga), que
cresceu e continuou crescendo nos últimos anos, se não levarmos em conta esse
intrincado e tenso jogo de atores que produzem essa mesma ilegalidade. Não se

5
A situação identificada por Luciana Correa Lago (1994: 214) no Rio de Janeiro parece
que está também se reproduzindo em São Paulo: “[...] já há indícios de que começam a se
difundir, nos anos 90, novas formas de aquisição de lotes pelas camadas de baixa renda,
em que o loteador passa a ter o papel de gerenciador do processo de ocupação ilegal de
uma gleba a ser apropriada por um grupo de pessoas. Há um acordo entre o loteador e os
futuros moradores quanto à não-titulação da propriedade e não-cumprimento das exigên-
cias urbanísticas”.

88
trata de uma fronteira para além do Estado, de suas leis e regulações públicas.
Legal e ilegal, formal e informal, lícito e ilícito aí estão imbricados nas práticas,
nas tramas sociais, nas disputas ou alianças entre atores diversos, tudo isso con-
densado e encenado nos agenciamentos que presidem essas disputas cotidianas
(e por vezes ferozes) pelo/no espaço.

Temporalidades urbanas

As temporalidades urbanas estão inscritas nos serviços e equipamentos


urbanos que demarcam espaços e territórios, pautam ritmos cotidianos, cir-
cunscrevem circuitos das práticas urbanas e estabelecem as conexões (e seus
bloqueios) com os espaços da cidade. De partida, a temporalidade própria dos
investimentos públicos que recortam territórios, redistribuem os usos de seus
espaços, alteram o mercado de terras e também abrem as sendas de novas ocu-
pações (e disputas pelo/no espaço) que vão se instalando nos interstícios dessas
zonas em mutação.
Seguindo as circunstâncias e tempos acelerados do capital globalizado, os
grandes equipamentos de consumo também chegaram lá, redefinindo os circuitos
de que são feitos esses territórios e suas referências. São polos de gravitação das
práticas cotidianas. Redefinições dos espaços e circuitos das práticas urbanas:
“antes eu tomava dois ônibus e levava uma hora para encontrar uma lata de leite
em pó para as crianças”, lembra uma senhora de 60 anos ao descrever as evoluções
urbanas recentes no bairro onde mora. Referências de sociabilidade: práticas que
articulam as redes sociais da vizinhança e parentela com os modernos circuitos
do consumo e lazer; grupos de jovens e garotos que se encontram nos shopping
centers, cada qual organizando seus tempos (e parcos orçamentos) contando com
o “programa de fim semana”. Por certo, práticas de consumo e lazer estabelecem
relações entre o “universo da pobreza” e os circuitos do mercado. No entanto, as
coisas são mais complicadas e estão longe de validar qualquer celebração fácil das
supostas virtudes da moderna sociedade de consumo. Pois esses equipamentos
de consumo são fluxos socioeconômicos poderosos que redesenham os espaços
urbanos, redefinem as dinâmicas locais, redistribuem bloqueios e possibilida-
des, criam novas clivagens e afetam a própria economia doméstica interna às
famílias e suas redes sociais. A chegada dos grandes equipamentos de consumo
desestabiliza ou pode desestabilizar as circunstâncias da economia local: o pobre
proprietário do tradicional bar, bazar ou negócio montado na garagem de sua
casa, que vê sua clientela encolher – é sempre possível encontrar produtos mais
baratos nos grandes supermercados, também mais diversificados, além dos “signos
de distinção” que acompanham os cartões de crédito que esses estabelecimentos
tratam de popularizar. Centros de consumo, é também por lá que se encontram
os novos e excludentes empregos, no mais das vezes intermediados por agências
de trabalho temporário, empresas terceirizadas e mais uma nebulosa de práticas
fraudulentas que mal escondem a conhecida (e proibida) merchandagem de mão-

89
de-obra,6 e que vão mobilizando, entre os circuitos urbanos locais, os operadores
de caixas registradoras, balconistas, porteiros, faxineiras, empregados para servi-
ços variados, e também os seguranças privados. E os cartões de crédito também
chegaram lá e, com eles, práticas de endividamento que redefinem a economia
doméstica, tomando o lugar ou deslocando o tradicional “fiado” que preenchia
as páginas das “cadernetas de compra” do também tradicional (e também em
extinção) dono de bazar e mercearia “ali-do-lado” ou, então, as regras da pres-
tação e contraprestação do jogo das reciprocidades que sempre fizeram parte da
“lógica da viração” tão própria do mundo popular. Mas, então, é o caso também
de se perguntar pelas complicações que aí vão se configurando, pontos de tensão
entre as novas lógicas (e obrigações) mercantis e as circunstâncias do desemprego
prolongado, do trabalho precário ou, simplesmente, do não-trabalho.

O tempo político da cidade

Os espaços e territórios são também produzidos nos muito diferenciados dia-


gramas de relações e vinculações que atravessam as tramas associativas locais:
associações locais (e as assim chamadas entidades sociais) vêm se proliferando
desde o início dos anos 90, com suas parcerias e convênios com organismos pú-
blicos, conforme ganhou forma e realidade a municipalização das políticas sociais
em um contexto de aumento da pobreza e do desemprego prolongado: programas
de distribuição de leite e de cesta básica, ou alocações de formatos variados de
renda mínima, compõem hoje o elenco dos dispositivos que as famílias acionam
para lidar com as urgências da vida, ao mesmo tempo em que são ativadas formas
novas e velhas de clientelismo e tutelagem ou, então, de formas nem sempre muito
perceptíveis, as linhas tortas ou subterrâneas pelas quais se dá a disputa por recur-
sos e poder nos agenciamentos locais. É mais do que frequente encontrar famílias
cuja sobrevivência passa em grande medida pelos programas sociais, variados e
múltiplos ao mesmo tempo, mobilizando homens e mulheres, adultos e crianças,
conforme uns e outros se ajustam (ou não) aos critérios de credenciamento que os
qualificam como “público-alvo”. Muito concretamente, as alocações de recursos
já fazem parte da “viração popular” e, nas suas trajetórias e percursos (que é o
nosso assunto, afinal de contas), fatos e circunstâncias (“eventos de mobilidade”,

6
Foi recorrente em nossas entrevistas na região sul da cidade a referência a uma cooperativa
que reúne cerca de 2 a 3 mil (!?) “cooperativados” e que presta os mais diversos serviços, da
faxina à segurança privada, nos supermercados da região, lojas de departamento, shopping
centers, e também nas casas noturnas e nos bingos que vêm se multiplicando nas grandes
avenidas que recortam a região. Não foi possível conferir a informação e saber do que se trata,
mas os nossos entrevistados são unânimes na descrição: ganhos baixos e incertos, ausência
de direitos e garantias, empregos que surgem e desaparecem conforme a aleatoriedade das
demandas e a duração do “contrato”. Claramente, nenhum foi capaz de explicar como são
geridos os “contratos de serviços”, e muito menos o volume e destinação dos recursos, a
não ser a constatação óbvia de que não são distribuídos entre os “cooperativados”.

90
para usar a linguagem técnica), também contam com essas mediações. Também
muito concretamente, poderíamos fazer o traçado dessa muito peculiar “metamor-
fose da questão social”, de cidadãos reivindicantes a públicos-alvo, enredando-se
a partir daí em uma outra teia de relações, em que não faltam desconcertos com
critérios que ninguém entende muito bem (aliás, nem mesmo os gestores locais
desses programas), que mudam conforme os ares dos tempos e o gestor de plantão
ou, então, que simplesmente deixam de existir porque os recursos não existem
mais, porque a “entidade social” não renovou o convênio/parceria, porque mu-
dou o prefeito e suas prioridades, ou simplesmente porque o centro de interesse
e disputa dos operadores políticos foi deslocado para outras paragens. Às vezes,
para escapar dessas oscilações no jogo mutante de relações de força, nada mais
seguro do que seguir o mais do que sólido caminho das lealdades políticas do
velho e persistente clientelismo ou então (ou junto com) a solidariedade ativa do
chefe local do narcotráfico que trata de mobilizar comerciantes, perueiros, amigos
e aliados para garantir recursos para as cestas básicas distribuídas por lideranças
comunitárias, em autêntica e verdadeira interação com a “economia solidária” que
deita raízes nas práticas da autoajuda e solidariedade intrapares, tão presentes no
mundo popular. Tudo isso, como se vê, em fina sintonia com os tempos.
É certo que há também a face moderna e mais globalizada disso tudo. Sobretu-
do a partir da segunda metade da década de 90, em um cenário já marcado pelo
encolhimento de recursos públicos e aumento da pobreza, e também da violência,
as atividades comunitárias e associações de moradores se transformam em ope-
radores das formas “modernas” de gestão social – gestão da pobreza. Entramos
na “era dos projetos” e das parcerias; é a linguagem do Terceiro Setor alterando
a anterior gramática política dos movimentos sociais7 e redefinindo a paisagem
local, conforme a maior ou menor presença de ONGs com seus projetos, parcerias
e vinculações em redes de extensão variada. Na prática, o “velho” e o “novo”
se confundem, as fronteiras não são lá muito claras, até porque tudo acontece
por vezes nos mesmos espaços e territórios, e os personagens – também não
poucas vezes – passam e transitam entre um e outro.8 É verdade que os progra-

7
Uma líder local, antiga e aguerridíssima militante dos movimentos de moradia, que esteve
na frente das também aguerridíssimas reivindicações do pedaço onde mora, e que hoje
está no comando de uma Associação de Moradores, formada justamente nos agitados anos
da década de 1980, assim fala das atuais dificuldades para obter recursos e apoio público
para implementar programas sociais no bairro: “passamos a buscar parcerias porque nós
somos uma Sociedade de Amigos de Bairro, e isso não significa nada, embora seja de grande
valor, mas o pessoal lá fora não enxerga... Eles querem saber de organizações que tenham
técnicos, que produzam projetos. Nós não sabemos fazer isso, mas a gente ia buscar quem
sabe e que tinha projeto [...] Temos que ter um corpo técnico, um assistente social, uma
psicóloga, um gestor de projetos e é caro um profissional desses. Dentro da comunidade
não tem. A gente sente muita falta. Se tivesse, seria muito maior e faria muito mais [...]”.
8
A mesma líder da nota anterior, agora empenhada em transformar sua associação co-
munitária em uma organização de formato moderno, quem sabe uma ONG, também se

91
mas implementados são muito variados, mais modernos e mais empreendedores,
“emancipatórios”, dizem seus operadores; também eles afetam e interagem com
as dinâmicas familiares e seus expedientes de vida, mas contam com a mesma
aleatoriedade, com a diferença de que os ventos que sopram aí vêm de outros
lugares, das agências financiadoras, dos formuladores de programas, de seus
avaliadores, etc., etc., etc.

***

Produção do espaço urbano: deslocamentos espaciais e disputas pelo espaço;


tramas sociais e mediações institucionais; temporalidades urbanas e os tempos
políticos da cidade. Poderíamos seguir um longo inventário de microcenas desses
territórios atravessados por lógicas e circuitos que transbordam por todos os lados
as fronteiras do “universo da pobreza”. Ao contrário do que muitas vezes sugere
a literatura que trata do “mundo da pobreza” e, ainda mais, no contrapelo das
figurações de uma pobreza encapsulada no universo de suas privações e que são
construídas pelas atuais políticas ditas de combate à exclusão, esses territórios são
atravessados por lógicas distintas. Lógicas do mercado, certamente. Mas também a
presença de atores políticos e institucionais situados em circuitos de práticas que,
também elas, transbordam e fazem transbordar o perímetro estreito do “mundo
da pobreza”, mesmo quando essas práticas se efetivam nos agenciamentos locais
de gestão da pobreza e das urgências da vida.
Para retomar os termos dos debates correntes sobre os novos padrões de
segregação urbana, se é certo que o modelo centro-periferia não é mais vigente,
mais do que os indicadores que medem as distribuições sociodemográficas no
espaço, são esses múltiplos polos de gravitação das práticas cotidianas que sina-
lizam realidades em mutação. É aqui que talvez se esclareça a importância de
perseguir as práticas e circuitos das mobilidades e trajetórias urbanas. São elas
que nos dão as pistas desses pontos de condensação e de polos de gravitação que
definem a pulsação dessas dinâmicas urbanas. Situadas em seus contextos de
referência e nos territórios traçados pelos percursos individuais e coletivos, essas
trajetórias operam como prismas pelos quais o mundo urbano vai ganhando forma
em suas diferentes modulações. São essas variações que fazem ver as “zonas de
turbulência”, pontos críticos em torno dos quais se dão deslocamentos e inflexões
nas histórias individuais e familiares. E também fazem ver os mundos possíveis

empenha para credenciar sua “entidade” perante os órgãos públicos para a distribuição
de leite e cestas básicas; também ela aciona os apoios e favorecimentos do novo e velho
clientelismo político, e em torno desse mesmo personagem não faltam histórias, rumores, é
verdade, sobre práticas pouco visíveis e não dizíveis quanto aos meios e usos dos recursos
que mobiliza para colocar em prática seus programas.

92
e de possíveis construídos nas diferentes configurações sociais tecidas por esses
percursos, com suas tensões internas e as linhas de força de suas aberturas,
bloqueios, impasses.

Percursos: trabalho e as tramas da cidade

Bifurcações nas destinações de uns e outros: traçados que precisam ser se-
guidos para colocar em perspectiva reconfigurações de mundos sociais. E por aí
apreender o drama do desemprego ou do trabalho precário, para além da consta-
tação monocórdia da “exclusão social”, mas tal como esses dramas se configuram
em mundos sociais e tramas de relações que escapam dos dados e indicadores que
medem as transformações recentes no mercado de trabalho. Assim, por exemplo,
a história de um ex-motorista de uma empresa pública de transporte (CMTC) pri-
vatizada no início dos anos 1990. Como tantos outros da geração dos que fizeram
o périplo “a caminho da cidade” (anos 1970), instalou-se no que então era uma
distante periferia carente de recursos urbanos. Com poucos dias em São Paulo,
conseguiu emprego – “naquela época era fácil conseguir emprego, nem precisa
procurar, era o emprego que procurava” é a frase comum repetida por muitos
ao falar daqueles tempos de “emprego farto”. E logo depois já estava seguindo a
carreira de motorista, com todas as garantias e proteções do “emprego fordista”:
garantias de estabilidade, salário, convênio médico, direitos sociais. E foi assim
que se lançou no empreendimento da construção da casa própria, realizou o
“modelo do chefe provedor” e enfrentou “aqueles tempos difíceis”. Tudo seguia
nos eixos até o momento em que veio a privatização e a demissão. A partir daí,
segue-se uma sucessão de tentativas fracassadas de montar um negócio por conta
própria. A aposta no comércio local não vingou. A história dessas tentativas e fra-
cassos vai encenando o mundo social tramado pelos estreitos e frágeis circuitos do
assim chamado mercado informal: a concorrência dos grandes empreendimentos
comerciais que chegaram nesses anos, a pauperização da clientela, a fragilidade
dos arranjos improvisados nas malhas das redes sociais locais entre parentes e
conhecidos, equilíbrios frágeis rompidos por dívidas que não podem ser pagas,
promessas não cumpridas, desacertos entre uns e outros. O ex-motorista entrou
em desespero, sumiu de casa e foi encontrado semanas depois dormindo nos
bancos da rua do centro da cidade, junto com mendigos e outros infelizes do
destino. Voltou para casa e converteu-se a uma igreja evangélica. Quatro anos
depois, já no final de 2001, encontramos esse trabalhador fordista que virou um
conta-própria fracassado tentando a sorte em um dos programas municipais de
“emprego e renda” que levava o sugestivo nome de “Começar de Novo”. Se antes
o trabalho o articulava com o mundo urbano e suas regulações (direitos, o 13o
salário com o qual conseguiu dar entrada na compra do terreno, o salário certo
e o convênio médico que garantiram o tratamento de uma fi lha doente), agora,
na virada dos tempos, sua história termina por se re-centrar nos circuitos locais
de seu território – sem sucesso nas tentativas do trabalho por conta própria e

93
sucesso incerto (muitíssimo incerto) no programa da prefeitura. Seria mais uma
história de uma vida que desaba no universo da pobreza (o trabalhador fordista
que virou “público alvo” de programas de combate à exclusão), não fosse o
jogo das circunstâncias, também elas construídas por uma trajetória que passou
pelos fios dos engajamentos políticos e da militância local, e que levou o nosso
ex-motorista a dar outras destinações à sua vida, agora pelos circuitos das redes
sociais acionadas por partidos e operadores políticos vinculados aos agenciamentos
dos poderes públicos. O ex-motorista fordista virou então um “assessor local”,
aliás uma figura que começou a se fazer presente e cada vez mais frequente a
partir da metade dos anos 1990.
Poderíamos dizer que é a história de um recentramento nos circuitos locais
do território, agora pela via das mediações políticas. A partir daí, os percursos
do ex-motorista, aliás como muitos outros, vão seguindo as tortuosas, quando não
nebulosas, veredas que seguem o eixo verticalizado das máquinas políticas, pas-
sando por uma zona cinzenta na qual são pouco discerníveis as diferenças entre
partidos e orientações, entre a ação social e clientelismo político – zona cinzenta
em que “todos os gatos são pardos”. E que vai alimentando e se alimentando
das microrrelações de favor, ao mesmo tempo em que a ação social de uns e de
outros fica também sujeita (e vulnerável) às disputas de poder e influência que
marcam a trama política local. As histórias são muitas. Importa notar a construção
desse campo de forças que vai como que sorvendo energias e enroscando seus
fluxos em diagramas de relações, capturas, poderíamos dizer, que dizem algo,
ou muito, das recomposições sociais e reconfigurações do jogo de relações que
fazem, também elas, os traçados de um território.
Entre uma passagem e outra: a tessitura social construída no entrecruzamento
dos percursos sociais, as circunstâncias de vida e contextos de referências. Em
cada ponto de virada (o mercado local, os programas sociais da prefeitura, partidos
e poderes locais): campos de gravitação no qual convergem histórias diversas.
E colocam em evidência – encenam – as forças e relações de forças operantes
no mundo urbano e seus territórios: as mutações do trabalho e as redefinições
excludentes dos mercados, certamente; mas também as regulações locais e as
disputas em torno da gestão urbana que são também elas sinais dos tempos e
sinalizam outros vetores de práticas e redefinições das dinâmicas locais.
Por certo haveria muito mais a dizer e descrever na história desse ex-motorista,
a começar das recomposições internas à história da família, com suas hierarquias
redefinidas, solidariedades familiares reativadas e os percursos traçados pelos
fi lhos para fazer face a situações que afetaram a todos – recomposições sociais
também operantes no mundo urbano.
Por ora, o que importa é chamar a atenção para a perspectiva descritiva que
essas trajetórias permitem. Na história desse ex-motorista, trabalhador fordista
que foi pego pela virada dos tempos, temos um percurso ocupacional que seria
pouco perceptível se ficássemos presos a proposições gerais (genéricas?) sobre a
“exclusão social”. É certo que tratar do trabalho supõe discutir as questões em

94
pauta atualmente: o encolhimento dos empregos e o desemprego, a desmontagem
das regulações do trabalho e os percursos do trabalho precário, o trabalho incerto
e o estreitamento dos horizontes de futuro. Porém, o que importa é colocar em
evidências as práticas e suas mediações e, por essa via, os circuitos e conexões
na desigual geometria dos empregos que redefinem as escalas de distâncias e
proximidades entre as regiões da cidade. E nisso, tentar apreender a nervura
própria do campo social, que não se deixaria ver se nos mantivéssemos presos
às binaridades clássicas na análise do trabalho e do urbano: formal-informal,
centro-periferia, emprego-moradia, trabalho-família. Entre esses pontos de re-
ferência, arma-se um campo social feito num jogo multicentrado e multifacetado
de práticas, mediações e relações de força que tecem, de formas nem sempre
evidentes, os campos de possibilidades e também os bloqueios para o acesso e
efetivações de possibilidades de trabalho e condições de vida.
É um outro modo de abordagem do trabalho, geralmente tratado seja no terreno
da economia, das inflexões no mercado de trabalho e mudanças nas formas de
organização de trabalho (o núcleo duro da sociologia do trabalho), seja sob o prisma
da cronologia das trajetórias ocupacionais, seja ainda pelo ângulo das referências
e experiências que conformam identidades e identificações coletivas. Impossí-
vel fazer economia dos processos estruturadores do social. Também impossível
desconsiderar as sequências cronológicas dos trajetos ocupacionais. Tampouco
poderíamos passar por cima da polêmica questão das dimensões estruturadoras
do trabalho na conformação de identidades, formas de vida e projetos sociais.
No entanto, vista pelo ângulo dos espaços e seus territórios, essa conjugação
entre estruturas, tempos e subjetividades arma um campo social que não cabe
em linearidades simples.
Se é verdade que o cenário urbano vem sendo alterado sob o impacto de
deslocamentos urbanos e recomposições societárias nas condições de trabalho
precário e desemprego prolongado, esses processos operam em situações de tem-
po e espaço. Processos situados, portanto. E agenciados por meio de uma série
multifacetada de mediações e conexões de natureza e extensão variadas. Por isso
mesmo, só podem ser bem compreendidos nessas constelações situadas. Se são
as cenas descritivas que nos permitem flagrar o traçado de práticas, mediações
e mediadores, são os seus personagens que oferecem os fios que precisamos
seguir.9 É nas linhas traçadas por esses personagens que é possível apreender

9
A inspiração aqui vem de Deleuze e Guatarri (1992: 91), sem a pretensão de fazer jus a
tudo o que os autores sugerem ao falar dos personagens sociais: “Simmel e Goffman levaram
muito longe o estudo destes tipos que parecem frequentemente instáveis, nos enclaves ou nas
margens de uma sociedade: o estrangeiro, o excluído, o migrante, o passante, o autóctone
e aquele que retorna a seu país. Não é por gosto de anedota. [...] Parece-nos que o campo
social comporta estruturas e funções, mas nem por isso nos informa diretamente sobre
certos movimentos que afetam o Socius. Os campos sociais são nós inextrincáveis, em que
os três movimentos (territorialização, desterritorialização e reterritorialização) se misturam;
é necessário pois para desmisturá-los diagnosticar verdadeiros tipos ou personagens. O

95
as práticas urbanas e os vetores policentrados em torno dos quais esse mundo
social vai sendo desenhado. Eles nos oferecem os fios e trilhas que precisamos
perseguir para apreender as conexões que tecem os mundos sociais e, a partir
daí, chegar não a conclusões fechadas, mas a perguntas e novas questões que
abram perspectivas sintonizadas com os possíveis inscritos na realidade dos fatos
e circunstâncias.

Modulações: os fluxos urbanos entre espaços, territórios e cidade

Trabalho, moradia, cidade: trama de relações e mediações que ganham con-


figurações diferentes conforme as regiões da cidade. Não se trata de diferenças
internas à geografia física da cidade e seus espaços. Tempos, história e condição
dos assentamentos nos vários pontos da cidade são uma questão certamente
importante, e disso vai depender grandemente a maior ou menor densidade,
enraizamento e extensão das redes sociais que estruturam o mundo popular.
As diferenças são sobretudo construídas pelas desigualdades das malhas de
conexões e acessos que articulam esses pontos com a cidade, e é isso que vai
definir as diferentes escalas de proximidade e distância: medidas sociais, não-
físicas ou geográficas. Acessos desiguais e diferenciados aos serviços sociais,
aos equipamentos de consumo, aos centros e subcentros da cidade. E, claro,
acessos desiguais e diferenciados aos polos de emprego. Em uma palavra, é da
segregação urbana que se trata.
Assim, para falar apenas das regiões em que nossa pesquisa foi realizada: no
lado sul da cidade, o Distrito do Jardim São Luís se estende por trás da ponta sul
do eixo urbano dos espaços globalizados da cidade de São Paulo. Um hipermer-
cado (Carrefour) e um majestoso Centro Empresarial, um dos ícones da “cidade
global”, marcam limites e limiares entre os dois mundos. O Distrito do Jardim São
Luís começou a crescer, se expandir e se espalhar a partir dos anos 70, acom-
panhando os fluxos dos empregos industriais. É um cenário que traduz muito da
história da chamada “urbanização periférica”, acompanhada pelos movimentos
populares que foram conseguindo, no correr dos anos, as melhorias urbanas. É

comerciante compra um território, mas desterritorializa os produtos em mercadorias, e


se reterritoraliza sobre circuitos comerciais. No capitalismo, o capital e a propriedade se
desterritorializam, cessam de ser fundiários e se reterritorializam sobre os meios de produ-
ção, ao passo que o trabalho, por sua vez, se torna trabalho abstrato reterritorializado no
salário:é por isso que Marx não fala somente do capital, do trabalho, mas sente necessidade
de traçar verdadeiros tipos psicossociais, antipáticos e simpáticos, O capitalista, O prole-
tário [...] Não é sempre fácil escolher os bons tipos num momento dado, numa sociedade
dada: assim o escravo liberto como tipo de desterritorialização no império chinês Tchu,
figura do Excluído, do qual o sinólogo Tokei fez o retrato detalhado. Acreditamos que os
tipos psicossociais têm precisamente esse sentido: nas circunstâncias mas insignificantes
ou mais importantes, tornar perceptíveis as formações de territórios, os vetores de dester-
ritorialização, o processo de reterritorialização”.

96
um cenário em que transcorrem histórias e trajetórias da geração que chegou
em São Paulo nos tempos de oferta abundante de emprego e maiores chances de
vida – as referências a isso são constantes: as grandes fábricas de Santo Amaro
(Caterpillar, Metal Leve, MWM) fazem parte da memória local e pontuam muitas
das biografias. “Bons empregos”, aquisição da casa própria (muitas vezes em
loteamentos clandestinos) e melhorias urbanas (via movimentos populares) com-
põem uma história comum, e também as histórias individuais e familiares. Mas
essas histórias agora se misturam com todas as outras que acompanharam e vêm
acompanhando a chegada das novas levas de moradores desde meados dos anos
80, mais intensamente e mais aceleradamente a partir dos 90. Hoje, a paisagem
é a de um incrível empilhamento de casas e construções precárias, e o distrito
se transformou num dos maiores pontos de concentração de favelas da cidade de
São Paulo. O impacto da reconversão econômica é nítido nessa região, que foi
o principal pólo de concentração das indústrias fordistas da cidade. As grandes
plantas industriais desapareceram. E os pontos de referência se deslocaram para
o lado da modernidade neoliberal e financeira da cidade, que vai pontilhando os
limiares da região. De um lado, os shopping centers, que, no correr dos anos 90,
partindo do lado mais rico da cidade, foram se espalhando na direção sul. É um
amplo arco de centros de consumo frequentados por gente que sai dos bairros da
periferia sul da cidade. E do outro lado, direção oeste, as vias de acesso levam
ao centro da riqueza globalizada. É por lá que estão os excludentes empregos
“modernos”. É tudo relativamente próximo e de acesso também relativamente
rápido, apesar dos transtornos do trânsito e da péssima qualidade dos transportes.
Para ir direto ao ponto: é por aí que pulsa toda a complicação dos tempos. Não por
acaso, foi dessa região que saíram os Racionais MC’s, um dos importantes grupos
de rap da cidade, ao menos o que ganhou maior projeção e influência entre a
garotada pobre e negra da cidade. Nessa região, os fluxos da pobreza e da riqueza
se tangenciam o tempo todo, se entrecruzam nos grandes centros de consumo e
nessa especial mistura do legal e ilegal, regular e irregular, lícito e ilícito de que
são feitos os circuitos dos empregos, que, do polo “moderno-moderníssimo” da
economia, vão se ramificando pelas redes de subcontratação e trabalho precário.
E também se entrecruzam nas redes do tráfico de drogas, do crime organizado
e das mil formas de “comércio ilícito”.
Do outro lado da cidade, no extremo leste, estão as chamadas “zonas de
fronteira”,10 que concentram os piores indicadores de vulnerabilidade social e

10
Conforme Rolnik (2000), “O termo fronteiras é utilizado não somente porque os territórios
assim definidos localizam-se junto à divisa do Município de São Paulo com os municípios
de Itaquaquecetuba, Ferraz de Vasconcelos e Mauá, mas também por serem frentes de
crescimento populacional e urbano registrados nas altas taxas da década de 1980 e da
primeira metade da década de 1990. [...] De uma maneira geral, os territórios das fron-
teiras circunscrevem aproximadamente as áreas dos distritos de Jardim Helena, Itaim
Paulista, Vila Curuça, Lajeado, Guaianazes, José Bonifácio, Cidade Tiradentes, Iguatemi
e São Rafael. São distritos que estão entre os mais excluídos da cidade apresentando alta

97
“exclusão territorial”.11 É uma região que cresceu no correr dos anos 80, uma
verdadeira explosão demográfica em grande parte induzida pelos programas ha-
bitacionais do governo (municipal e estadual). Diferente da região sul, em que os
assentamentos foram se processando na lógica privada do mercado, a presença do
Estado aqui é inegável. Os grandes conjuntos habitacionais estão lá como evidência
inescapável, mas também como evidência de precariedade e formas de segregação
igualmente induzidas pelo próprio Estado. São programas habitacionais desco-
nectados de políticas urbanas. Nas frestas abertas pelos investimentos públicos,
foram-se instalando ocupações e favelas e, no entorno, foram-se espalhando os
loteamentos clandestinos e mais um outro tanto de áreas de ocupação.12 Aqui,
os grandes equipamentos de consumo não chegam a constituir uma referência
das práticas cotidianas e ainda predominam as redes locais de supermercado de
porte médio.13 Nessa região distante e precária, é a presença/ausência do Estado
que circunscreve polos de referência e campos de força que demarcam tempos
e espaços. A começar da paisagem urbana, este amplo espaço dominado pelos

concentração de população com baixa renda, pouca oferta de hospitais, unidades básicas
de saúde, creches, empregos, equipamentos e espaços públicos de lazer”.
11
Conforme Rolnik et al. (1999), a exclusão territorial é definida pela “privação de direi-
tos sociais e aspectos materiais – necessidades básicas, e também ausência de acesso à
segurança, justiça, cidadania e representação política”). Em geral, os “territórios excluídos
constituíram-se à revelia da presença do Estado – ou de qualquer esfera pública – e portanto
desenvolvem-se sem qualquer controle ou assistência. Serviços públicos, quando existentes,
são mais precários do que em outras partes da cidade”.
12
“Na década de 1980, Cidade Tiradentes e José Bonifácio, localizados no extremo da
Zona Leste, “tiveram os maiores crescimentos populacionais dentre os 96 distritos admi-
nistrativos do município. Cidade Tiradentes teve o maior incremento. Sua população saltou
de 8.603 habitantes em 1980 para 96.281 em 1991 a uma taxa de crescimento anual um
pouco maior do que 100% (101,92%). A cada ano da década de 1980, Cidade Tiradentes
dobrava a sua população”. Trata-se de construções com “uma organização espacial frag-
mentada em função do seu processo de implantação em fases e do relevo acidentado que
caracteriza os extremos da Zona Leste. ... essa fragmentação produz uma série de espaços
vazios entre as áreas do conjunto que foi rapidamente ocupada por favelas e loteamentos
clandestinos” (Rolnik, 2000).
13
Como mostra Raquel Rolnik (2000: 55), no correr dos anos 1990, a zona leste aparece
como frente de investimentos privados, articulando capital comercial-financiero em opera-
ção associada com o capital imobiliário: “a ação governamental se faz presente através dos
investimentos públicos em infraestruturas de saneamento, transporte, drenagem, energia,
iluminação, implantação de vias, pavimentação, etc. [...] que criam condições para acolher os
investimentos privados”. Mas é um desenvolvimento limitado à lógica mercadológica voltada
para os grandes negócios – “trata-se de aproveitar uma oportunidade lucrativa construída
pela conjugação de fatores físico-espaciais, econômicos e urbanísticos, com ausência de
uma política urbana [...] Porém, nada disso supera a permanência da precariedade nas
áreas de fronteira: “esta justaposição da precariedade e dinamismo presente na zona leste
reforça o padrão atual de segregação social”.

98
assentamentos irregulares é pontilhado por grandes, e alguns imensos, conjuntos
habitacionais da CDHU que brotam da terra aqui e ali, demarcando o tempo
social (e político) nos espaços urbanos e seus traçados, e nos quais se pode sentir
a pulsação de um território feito dessa especial conjugação entre intervenção
pública, precariedade urbana e toda a malha das irregularidades, quando não
ilegalismos, que se espalham pela região. Nos seus pedaços mais precários, a
presença do Estado é evocada o tempo todo exatamente pela sua ausência, pelas
dificuldades de acionar os órgãos públicos responsáveis pelas melhorias urbanas
que nunca chegam, ou chegam com atraso, ou chegam ainda de modo descom-
passado. Cenários que atualizam os idos dos anos 70 (tão presentes nas histórias
de nossos personagens da região sul), porém em um tempo/espaço no qual as
figuras do “progresso” urbano não têm mais lugar. Os chamados “programas de
emprego e renda” da Prefeitura de São Paulo estão lá para demarcar no espaço
que os tempos já são outros, que o urbano e o trabalho já não podem mais ser
conjugados no mesmo andamento, que “O Estado e o Urbano”, para lembrar o
artigo comentado no capítulo anterior, articulam-se agora em um outro diagrama
de relações, não mais as regulações públicas que conformavam e articulavam
mercado, espaços nacionais e a cidade, mas as formas de gestão do social e da
pobreza: em um momento no qual as dimensões universalistas da cidade foram
cortadas para serem, a rigor, desfiguradas nos circuitos do “mercado global” e do
falso brilhante do cosmopolitismo mercantilizado dos novos serviços e espaços de
consumo, o urbano parece mesmo se enrodilhar e se encapsular nas figuras da
“comunidade” – ao invés da cidadania urbana (negada ou conquistada ou reivin-
dicada), os “públicos-alvos” conformados por aqueles que parecem não ter outra
existência fora das circunstâncias que os determinam nas suas “carências”.
Neste pedaço da cidade, a distância é um problema sério. As dificuldades dos
deslocamentos intra-urbanos são consideráveis, apesar da abertura e expansão
de uma linha do metrô, da renovação de uma linha de trem, da ampliação e me-
lhoramentos das vias públicas. O acesso aos polos de emprego nas regiões mais
centrais da cidade continua difícil e penoso, e mesmo entre as regiões contíguas
as conexões são difíceis e demoradas pelas vias indiretas ou então inexistentes
das linhas de transportes. Para os que foram pegos pela virada da sorte nesses
anos, perderam emprego e moradia em outras paragens, e chegaram em busca
de alternativas mais baratas, o isolamento pode ser dilacerante – “aqui é como
um exílio”, disse uma de nossas entrevistadas.
A distância não é uma métrica simples entre pontos e localidades distintos no
espaço. Circunscreve campos de tensão e problemas que têm sentidos e modu-
lações diferentes conforme os tempos de assentamento das famílias, suas redes
sociais, recursos e possibilidades construídos em seus percursos de vida. A dis-
tância tampouco é um espaço vazio, é algo que vai se especificando nas dobras
do mundo social, nos pontos de junção entre espaços e que são demarcados por
todas as complicações dos meios de transporte e circulação pela cidade.

99
Histórias de um perueiro

Se, como diz Bernard Lepetit (2001: 76), na cidade “o único problema é o da
utilização de suas possibilidades”, então é importante compreender os modos de
articulação entre formas e usos da cidade. Assim é a história de um ex-metalúrgico
que virou um próspero perueiro na região. Transitando nas dobras do mundo
fordista e das realidades urbanas em mutação, seus percursos tornam percep-
tível a formação de territórios. São práticas que informam sobre os movimentos
que afetam o mundo social. E tornam perceptíveis os fios que fazem a trama de
campos sociais, que, neste caso, irão como que se densificar na configuração de
um campo de gravitação em torno do qual ganha forma uma das mais explosivas
dimensões da vida urbana na zona leste da cidade, envolvendo usuários, empresas
de transportes, poderes públicos e esse novo e poderoso personagem urbano que
são os “perueiros”, legais ou clandestinos.
Francisco, 36 anos (em 2001), trabalhava numa grande indústria metalúrgica
desde 1984. Era um operário qualificado, ajustador e ferramenteiro com forma-
ção profissional. Em 1993, a fábrica fechou as portas para se instalar no interior
de São Paulo. E foi então que Francisco se lançou como perueiro e teve sucesso
nesse seu empreendimento. Na verdade, ele começou a “lotar” em 1984, logo
que entrou na metalúrgica. O problema de transporte sempre foi grave na região,
e foi nessas carências da vida urbana que Francisco foi construindo seus campos
de possibilidade. Na época, os lotações eram raros e, como ele diz, “o pessoal
daqui não tinha transportes, não tinha ônibus, não tinha asfalto, não tinha nada,
era só terrão”. Comprou uma perua e complementava o salário com o transporte
dos colegas de trabalho no início e no final da jornada. E nisso foi incentivado
por sua ativíssima e muito pragmática esposa.
O casal mora entre Guaianazes e Cidade Tiradentes, em um bairro que apre-
senta um dos piores índices sociais da cidade de São Paulo. Não por acaso, foi lá
mesmo que a Prefeitura resolveu dar início (2001) a seus programas de “geração
de emprego e renda”. Porém, o casal navegava, então, com os ventos da boa sorte:
bom salário, carreira profissional promissora, casa própria, alguma poupança
doméstica amealhada com muita hora-extra e jornadas suplementares nos fins de
semana. Mas a distância era um problema. Os agenciamentos domésticos eram
complicados – tudo longe, tudo difícil: centros de compras, hospital, centros de
saúde, creche. Quando ainda trabalhava, Lindalva, a esposa, fazia um percurso
para ela também penoso. Era vendedora no centro da cidade, no Brás, e depois
um pouco mais ao norte da cidade. Tomava o trem que fazia a ligação do extremo
leste ao centro da cidade: desgaste do tempo de percurso e também do empurra-
empurra dos trens sempre superlotados – “eu preferia estar madrugando do que
pegar aquele inferno de trem esmagando as pessoas”. Depois, quando largou o
trabalho para cuidar dos fi lhos pequenos, ficava em casa e, então, observava:
como ela, todos os moradores da região dependiam do comércio e serviços que
só existiam no centro de Guaianazes: mercados, correios, banco, comércio. Nessa

100
época, “ir para o centro” queria dizer ir até a estação de trem em torno da qual
esse comércio cresceu. Acontece que não havia nenhuma linha de ônibus direta
do bairro que cobrisse o percurso. E foi então que surgiu a ideia. Compraram
uma perua e começaram a “lotar”. Foi uma iniciativa e um empreendimento do-
mésticos. Cobriam o trajeto do bairro até Guaianazes. E Francisco, por sua vez,
transportava os colegas da empresa – “era quando o pessoal saía do trabalho,
eu ficava com a perua, saía de madrugada, dava duas ou três viagens; à tarde eu
continuava trabalhando. Naquela época eram poucas as peruas – aqui, só tinha
eu e mais um cara que também trabalhava lá”.
Em 1993, a fábrica fechou as portas, vieram as demissões. E foi então que
Francisco se lançou e se firmou como perueiro. E isso terminou por projetá-lo no
olho do furacão dos acirrados conflitos que, hoje, opõem proprietários de linhas
de ônibus, usuários, poderes municipais e, claro, os próprios perueiros, também
eles, em instáveis relações de aliança e conflito entre clandestinos e legalizados.
Não há como não ver nisso tudo as formas como circunstâncias e meios foram se
conjugando para a erosão, em ato, ao vivo, das regulações públicas que até então
davam a pauta e o tom das reivindicações em torno do universal direito de ir e
vir. Sinais de um fundo deslocamento dos conflitos urbanos. Antes, juntamente
com outras tantas demandas, os transportes públicos compunham uma pauta de
reivindicações com inegável dimensão universalizante – poderíamos mesmo dizer
que o “universal direito à cidade” era a linha de intensidade que atravessava os
então “novos movimentos sociais urbanos” cantados em prosa e verso nos debates
dos anos 80.
Nessa virada dos tempos em que a política deslizou e se desfigurou nos termos
da “governança urbana”, os conflitos urbanos parecem enrodilhados numa quase
impossível gestão desse emaranhado de relações, interesses e forças em oposi-
ção, tudo isso no cenário explosivo de uma cidade ingovernável. Francisco é um
perueiro bem-sucedido: com suas três ou quatro peruas, que cobrem percursos
rendosos, sua história (ou a história que ele conta) mal deixa ver o outro lado,
nada edificante, de uma história que é também feita (ou sobretudo feita) de uma
disputa feroz, por vezes mortal, nas tramas das relações mafiosas que controlam
o hoje expansivo negócio do dito transporte alternativo.
Assim, um outro lado dessa história, contada por uma perueira não tão bem-
sucedida, na verdade, uma perueira proletária: trabalha como motorista ou co-
bradora, e também como fiscal nos pontos das peruas. Celeste, 28 anos, mora
com seu marido e fi lhos em uma casa alugada, incrustada no meio da imensidão
dos conjuntos habitacionais de Cidade Tiradentes. Mora lá desde pequena e,
desde pequena, acompanhou as aventuras dos perueiros que então começavam
a se fazer presentes na região, ainda em meados dos anos 80. Celeste sempre
“lotou”, desde os 14 anos – por gosto e paixão, diz ela. Desde cedo, quando
ainda era garota, fez amizades e conhecimentos com gente da região. E foi assim
que começou a acompanhar os perueiros quando ainda tinha 10 anos. Depois,
começou a trabalhar para eles – “então, a gente sempre teve essa amizade;

101
quando faltava um perueiro ou quando precisava de uma ajuda, eles ligavam e
diziam – ‘dá pra você fazer uma viagem para mim? Dá para você cobrar pra mim’;
sempre foi assim, então a gente não é fixo, é como se fosse um quebra-galho... ou
para cobrir aquele perueiro que não veio ou aquele que não estava dando nada.
Entendeu? É assim...”.
Celeste conta muitas histórias dos perueiros da região. Viu surgirem as primei-
ras peruas e acompanhou todos os lances de uma história cheia de conflitos com
os poderes públicos, com as empresas de ônibus, e também entre eles próprios.
Ela conta que, na época, só havia três linhas de ônibus para cobrir uma região
vasta, mais do que vasta. Surgiu a primeira perua: “foi um senhor que fundou a
lotação... ele comprou a primeira perua, daí foi chamando um outro e mais um
outro que tinha perua, foram entrando, entrando, então foi se juntando o grupo,
e o grupo se tornou o dono do ponto... Depois, se alguém quisesse entrar, tinha
que pagar para comprar a vaga, para poder rodar. É assim, tem que pagar para
poder trabalhar”. O sistema funciona bem, diz Celeste, “mas existe uma máfia”.
É assim que ela descreve as coisas: “o dono da linha é o chefão; o fiscal é o fi-
lho; o fiscal também; o outro fi lho tem perua, o sobrinho também... então é uma
máfia. Entendeu?”.
Ao longo dos anos, a geografia do poder foi se alterando. O chefão morreu,
foi morto há alguns anos: “mataram ele por causa da linha... queriam ficar com
a linha, tomaram a linha dele. Entendeu?”. Entendemos. Apesar de ser difícil
saber (mas podemos imaginar) como se dão as disputas pelo “ponto” e o jogo
de forças das relações mafiosas, que, também sabemos ou podemos imaginar,
não são apenas locais, estendem-se por toda a região. Celeste também descreve
em detalhes como a coisa funciona. E é dos clandestinos que ela fala, gente que
sabe muito bem burlar a fiscalização e se organiza um bocado para isso: “eles
se comunicam por rádio e têm os repórteres-motoqueiros [sic] que saem com
os rádios, vão atrás das viaturas [de polícia] e vão avisando – ‘olha, a viatura
está em tal lugar, está entrando em tal avenida, e então todo mundo some’”. Os
“motoqueiros-repórteres” se espalham pelas avenidas e instalam seus postos de
observação nos principais pontos de circulação.
Celeste defende com convicção o direito de lotar, fala mal dos motoristas de
ônibus, elogia o serviço dos perueiros e não poupa críticas à Prefeitura, que “quer
tirar o ganha-pão” do pessoal que vive das peruas. Comenta que os perueiros são
muito unidos e muito organizados. Não hesitam em quebrar os ônibus e interditar
as avenidas quando se percebem lesados ou ameaçados: “são unidos mesmo e
eles vão quebrar, não perdoam não, porque eles falam assim: se podem apreender
nosso carro e deixar a gente sem o ganha-pão pra sustentar nossos fi lhos, eles
podem também ficar sem carro... então eles quebram, tacam fogo em ônibus, dão
pedrada, quem estiver dentro leva tudo pedrada. E esse é o perigo”. Podem ser
também bastante solidários entre si, tampouco hesitam na ofensiva de iniciativas
quando o assunto é defender o seu direito a circular pelas avenidas da cidade.
Assim foi no caso de um acidente no trânsito: uma perua que se chocou com um

102
caminhão. Morreram cinco. Acontece, explica Celeste, que a tragédia ocorreu
em um cruzamento perigoso, em uma das principais avenidas que cortam a re-
gião – “há muito tempo estávamos pedindo pra colocar sinalização”. Aconteceu
o desastre: “nós, os perueiros, ajudamos quem estava machucado, pagamos o
enterro das pessoas que não tinham condições. E, depois que acabou o enterro,
nós fomos pra avenida, interditamos o trânsito, colocamos uma fi leira de pneus
no meio da rua misturados com pau, madeira e tudo, e tocamos fogo pra chamar
atenção, pra ver se eles colocavam a sinalização. Até hoje não tem essa sinalização.
Entendeu? Lá não tem sinalização nenhuma, não tem faixa pra pedestre... é um
retão, quem pega aquilo ali puxa 120 a 140 km/hora. Entendeu?”.
Os perueiros estão em todos os lugares. Também nas periferias da zona sul da
cidade. O comentário frequente nos rumores ventilados pelas regiões da cidade,
que a mídia vez por outra também trata de divulgar, é que as relações com as redes
do tráfico de drogas são mais do que episódicas, que os interesses e circunstâncias
se cruzam e entrecruzam em nós inextrincáveis, tudo misturado nessa linha de
sombra que atravessa os circuitos do mundo social. É verdade que, depois (2002-
2003), a Prefeitura marcou alguns tentos nesse jogo complicado: negociou com
empresas de transportes e perueiros a partilha das linhas principais e secundárias
que servem a cidade e avançou na regulamentação do transporte alternativo. Os
perueiros “legais” ganharam espaço (algum espaço, ao menos) em relação aos
clandestinos. Mas a imprensa tem noticiado: o jeito encontrado para ficar em dia
com a lei tem sido, frequentemente, a formação de cooperativas de trabalhadores.
Nesse caso, os perueiros ficaram em fase e em compasso com a modernidade
neoliberal: as cooperativas, várias delas, mal escondem a prática conhecida de
fraude trabalhista, e os valores que deveriam ser partilhados cooperativamente
desaparecem por vias que ninguém sabe quais são, viram fumaça...

Histórias de um motoqueiro

As histórias também circulam pelo Distrito do Jardim São Luís. Aqui, no


entanto, mais do que os perueiros, são os motoboys que podem ser tomados como
personagens urbanos que esclarecem um tanto dos fios intrincados que constituem
e atravessam os territórios urbanos. Se os perueiros encenam a conjugação de
circunstâncias que fazem da distância um problema e um nó inextrincável de
relações tramadas nesse jogo de luz e sombra em tempos de erosão das (desde
sempre) frágeis regulações públicas da cidade, os motoqueiros, aqui nesse outro
pedaço da cidade, fazem ver os pontos de combustão desse entramado de relações
urdido nas “ligações perigosas” desses fluxos de riqueza e de pobreza que se
tangenciam e se entrecruzam o tempo todo.
É possível encontrá-los em bandos circulando pelas ruas e avenidas que cor-
tam a região. E é frequente encontrá-los limpando e lustrando suas máquinas
nas portas de suas casas. Trabalham para as inúmeras empresas de serviços
terceirizados que atendem os luminosos circuitos da riqueza globalizada. Ou sim-

103
plesmente navegam nas ondas dos serviços terceirizados que vão se espalhando
por todos os lados. “Quem tem moto está com a faca e o queijo na mão”, disse
um de nossos entrevistados, ao comentar as dificuldades do emprego. Com a
moto, vai-se virando como pode, nem que seja para fazer um bico ou outro como
entregador de pizza. E, tendo uma moto, são maiores as chances (chances?) de
ser chamado por alguma agência de emprego ou de serviços terceirizados para
cobrir a demanda das empresas que circundam a região – “tenho um monte de
colegas que se viram, alguns têm moto, os que não têm fica mais difícil, é mais
fácil com a moto”. A moto opera também como “objeto de desejo” para muitos
desses jovens. São capazes de “fazer qualquer coisa” para adquirir uma, nem
que seja pelas vias certas ou tortas do endividamento. Até arriscar um emprego
“seguro” para tentar a “sorte” (e o azar) em nome dessa espécie de ícone moder-
no que junta sonhos de consumo, símbolos de distinção (e marca de virilidade,
talvez) e esperanças de emprego:

Aí eu tinha um pensamento. Era época que começou motoboy pra lá, motoboy
pra cá, e eu sempre gostei de moto, aí eu comecei pôr na minha cabeça que eu
tinha que trabalhar de motoboy. E o que aconteceu? [...] eu queria ser motoboy,
eu queria comprar uma moto, e foi a época que o meu cunhado tinha acabado
de comprar uma moto, então de vez em quando eu andava de moto, então meu
sonho era moto.
[...] eu sempre gostei de andar de moto [...] e a gente escutava falar... eu tinha
amigos que ‘tava começando de motoboy “ah, eu ganho vinte reais a cada
hora”, então, se eu faço dez horas num dia, eu ganho quatrocentos reais”. [...]
Quando começou a febre porque tinha pouco e ganhava-se bem, né; então,
como eu gostava de andar de moto e era uma chance de ganhar bem, associei
uma coisa a outra e coloquei aquilo na cabeça: “não, eu quero ganhar bem e
eu quero andar de moto”. Aí não deu certo [...].

“Aí não deu certo”: Mariano (24 anos, em 2001) queria porque queria uma
moto e trabalhar como motoqueiro. Largou o emprego que tinha (de office-boy,
com carteira de trabalho assinada, em uma metalúrgica em Santo Amaro). Mas
era véspera de Natal e, a essas alturas, já tinha pulverizado suas parcas economias
com compras e mais compras nos centros de consumo da região. Não sobrara
nada para a moto – “saí desse emprego, fiquei sem moto, fiquei sem nada”. Há
outras histórias, muitas delas longe de conter esse tom de leveza e graça com que
Mariano fala de seus frustrados “sonhos de grandeza”.
Assim é a história de Arnaldo (22 anos, em 2001), filho de um ex-metalúrgico,
que, nos agitados anos da década de 1980, esteve na linha de frente das mobili-
zações operárias do período. Arnaldo bem que tentou seguir o exemplo do pai e
conseguir um emprego industrial. Porém, os tempos já são outros e, de demissão
em demissão, só lhe resta mesmo a moto como alternativa para os bicos que encon-
tra pelo caminho. Além do mais, é apaixonado por motos, seu assunto preferido,

104
e é sempre possível encontrá-lo nas imediações de sua casa junto com os amigos,
todos motoqueiros, lustrando as máquinas e se preparando para saírem juntos,
em bando, para alguma “balada” na região. Houve um tempo em que Arnaldo
acreditava que a moto haveria de lhe abrir as portas do mercado de trabalho.
Não deu muito certo. Em 1998, começou a trabalhar de motoboy na ContaFácil,
empresa terceirizada que presta serviços para a Sabesp: enviar aviso de atraso
de pagamento nas contas de água – “você vai na casa da pessoa, a pessoa tem
três contas atrasadas e você vai lá entregar o aviso de corte; a pessoa tem uma
semana para pagar, se não pagar, vai outra pessoa lá, fecha o registro e lacra o
registro”. Ficou apenas um ano e saiu em 1999. Saiu porque era muito perigoso,
além de não ter carteira assinada, tampouco oferecer alternativas promissoras. A
descrição de Arnaldo é precisa: sem registrar em carteira, a empresa exige que o
funcionário tenha sua própria moto. O máximo que garantem é um convênio com
uma oficina de peças – “[...] se a moto quebra, vai lá, pega a peça e paga no outro
mês [...] não tem registro em carteira e, se tem acidente, aí você fica ferrado”.
Além do risco de acidentes de trânsito, o perigo maior está na própria natureza
do serviço. Tinha que circular nas regiões onde as pessoas não pagam contas de
água, ou seja: no fundo mais pobre da periferia da cidade. E não poucas vezes,
nesse percurso, o motoqueiro voltava a pé, sem a moto: “era muito perigoso...
trabalhava com moto, ia em muita periferia... tem um vizinho que trabalha lá,
já roubaram a moto dele [...] tenho dois colegas que trabalhavam lá, os dois já
perderam moto... é mais periferia, favela, pro lado do Capão, tudo área perigosa.
Parque Santo Antônio, Jangadeiro, Capão, Jacira... o pior lugar era o Jacira... esse
colega meu roubaram a moto lá no Jacira”. Perspectivas de futuro? Nenhuma, diz
Arnaldo e diz com firmeza: é trabalho para os que já não conseguem mesmo outra
coisa na vida: “a maioria é cara que já teve passagem na polícia, não consegue
outro emprego e daí tem que apelar para isso aí. É cara que já foi preso... não dá
futuro, não dá nada, acho que não”.
O trajeto de um motoqueiro é mais do que eloquente para se pensar o modo
como a experiência do trabalho abre-se ou desenrola-se nas múltiplas facetas
da experiência urbana. É como se esse trajeto também percorresse a linha de
intensidade que atravessa os vários mundos sociais que se sobrepõem e compõem
a realidade urbana: a empresa pública de saneamento urbano, as novas formas
de gestão e as práticas da terceirização, os insolváveis em tempos de “verdade
tarifária” imposta pela lógica triunfante do mercado, a pobreza da periferia, e mais
a legião dos que foram pegos pela “maldição do destino” e não mais conseguem
emprego em canto nenhum, tudo isso misturado com as energias mobilizadas por
esse objeto do desejo que são as motos, e que vão também constelando referências
importantes na sociabilidade cotidiana dos jovens nessa região.
As histórias que circulam são também muito confusas, tão confusas que pare-
cem dar plausibilidade aos rumores e suspeitas de que as empresas de motoboys,
assim como os perueiros, são hoje “frente de investimento” do dinheiro sujo. E, ao
que parece, essas empresas estão se proliferando nessa região situada nas franjas

105
das “cidade global”. A história de Fernanda, 20 anos (em 2001), diz alguma
coisa disso. Seu irmão tentou se lançar em uma empresa de motoboys. Não foi
bem-sucedido e, em pouco tempo, estava enterrado em dívidas. Porém, a garota
ajudava o irmão e “ganhou experiência”, como se diz. Depois, a sorte do destino
a levou para um escritório imobiliário no Centro Empresarial, que fica ali, na
fronteira do Jardim São Luís, portal da “cidade global”. Era secretária e sua tarefa
era lidar com as empresas de motoboy. Saiu-se tão bem que foi chamada por um
motoboy bem-sucedido, que queria montar uma empresa própria em Itapecerica
da Serra, município da Grande São Paulo contíguo à periferia sul da cidade e
não muito distante da região em que tudo isso estava então acontecendo. O rapaz
trabalhava então numa empresa que “era bem falada, eu conhecia a maioria dos
funcionários, eles iam direto falar comigo... aí eu falei ‘tudo bem’”. Daí para frente
é uma sucessão de promessas não cumpridas, pagamentos não efetuados, cobran-
ças de dívidas atrasadas, enquanto o dinheiro sumia por meandros inexplicados
(inexplicáveis, talvez). É uma história muito confusa. Fernanda conta que os planos
não eram modestos: montar a parte operacional em São Paulo, com motoboys,
perua e ônibus. E, em Itapecerica, o plano era montar pacotes turísticos para as
escolas. O rapaz falava em promover excursões até Barretos, no interior de São
Paulo. Fernanda logo se põe a campo e pede para o irmão providenciar o mate-
rial gráfico necessário para a divulgação – cartazes, cartões de visita, envelopes
com logotipo. Nesse meio tempo, a família toda de Fernanda já estava envolvida
nesse negócio. A mãe foi chamada para fazer a faxina do escritório, a irmã foi
contratada como secretária e havia ainda uma amiga do bairro que ajudava nos
serviços internos. Ninguém recebeu pagamento. Os motoqueiros, mais de vinte,
tampouco. E passaram a se recusar a trabalhar enquanto o pagamento não fosse
efetuado – “ele nem aparecia na firma com medo dos motoboys”.

Reatando pontos e linhas: os elos perdidos da política

Fernanda é uma garota com secundário completo e muito empreendedora.


Tem uma família muito articulada, mora em um bairro com uma super-densa
malha de relações sociais, tudo também muito organizado, muito ativo, muito
solidário. Em uma palavra: é uma garota portadora de um vasto capital social,
para usar aqui uma expressão corrente no jargão sociológico. Afinal, foi assim
que conseguiu o emprego que poucos conseguem, no Centro Empresarial de
São Paulo. Apesar da pouca idade, a trajetória ocupacional de Fernanda é no-
tável, uma sucessão razoável de empregos, todos eles obtidos através da trama
de relações por onde circulam informações e as “boas recomendações”. Mas é
uma trajetória também notável pela instabilidade e vulnerabilidade, sempre nas
fronteiras entre o mercado formal e informal – arbitrariedades várias, demissões
sucessivas, salários atrasados, direitos desrespeitados. Bem, nada a estranhar,

106
afinal redes e capital social não deixam de repor as circunstâncias de circuitos
empobrecidos de uma região igualmente empobrecida e que acionam empregos
precários de um mercado de trabalho, com o perdão da tautologia, precariza-
do. A empreendedora Fernanda bem que chegou perto de escapar das tramas
da precariedade quando, mobilizando seu capital social, teve acesso a um dos
ícones da modernidade globalizada e conseguiu o promissor emprego no Centro
Empresarial. Porém, foi esse mesmo capital social que o rapaz da empresa de
motoboys tratou de mobilizar para o seu fraudulento negócio. Em pouco tempo,
a única coisa que esse capital social acumulado lhe rendeu foram muitas dívidas
(contas de telefone e água atrasadas em razão de um salário que nunca foi pago),
compromissos não respeitados (o irmão empenhou o próprio nome para conseguir
a impressão dos cartazes), além de muitos sustos, o pior deles quando apareceu
no escritório um “cliente” encolerizado para cobrar a “sua parte”, de arma na
mão, impropérios na boca e ameaça de barbarizar o local. Porém, o moço das
motos a essas alturas já tinha se evaporado com os dividendos expropriados do
capital social alheio, e ninguém sabia por onde andava.
A empreendedora Fernanda é vizinha do jovem motoqueiro em um bairro
que poderia constar do rol dos casos exemplares de capital social e redes sociais
atuantes. E tudo pode parecer muito edificante, se o parâmetro for a “comunida-
de”, a “cidadania local” e o “empreendedorismo social” – tudo isso está lá. No
entanto, como diz Bruno Latour (2000), se o assunto são as redes, é preciso ver
que as redes “são mais ou menos longas, mais ou menos conectadas”. E também
envolvem “boas conexões” e “más conexões”. Quer dizer: o problema todo está
em saber e compreender o modo como os vínculos e conexões operam, já que,
sempre situados, se fazem na conjugação entre atores, circunstâncias, fatos e ar-
tefatos. É aí que se torna perceptível a pulsação do mundo urbano. É isso o que
essas histórias permitem perceber. E é por isso que o perueiro, o motoqueiro e a
moça empreendedora comparecem aqui como personagens urbanos que fazem
ver os traçados que constroem os territórios, em suas relações com a cidade e
suas dimensões.
Mas isso ainda abre uma outra questão: com exceção talvez do perueiro
bem-sucedido, os personagens aqui comentados colocam outras questões. Afinal,
onde situar cada um deles? São pobres infelizes da sorte? Excluídos? Se não, faz
algum sentido dizer que são então “incluídos”? São personagens que fazem os
seus percursos nas tramas do mundo social. E essas categorias (e binaridades)
ficam estreitas demais para colocar em perspectiva as questões que essas histórias
nos abrem. Os campos de força e toda a complicação dos tempos que correm
estão exatamente nos pontos de conexão dessas tramas que fazem a tapeçaria
do mundo social.
Esses personagens escapam às categorias habituais que pautam os debates
recentes. Não correspondem à figura canônica do trabalhador regular, tampouco
à do mercado informal, e muito menos às tipificações correntes dos “pobres” e
“excluídos”, público-alvo dos programas ditos de inserção social. No entanto, seus

107
percursos fazem ver a teia de relações e campos de força que estruturam o mundo
social, mas que se esvanecem sob os termos correntes do debate atual.
É aqui também que se aloja o desafio da invenção política, essa mesma que
nos tempos atuais foi tragada pelo princípio gestionário que trata das “pontas”, do
lado vitorioso da boa governança econômica e, do outro lado, a gestão do social.
E no meio, quer dizer, em tudo o que importa, não existe o vazio que expressões
como a de “exclusão social” podem sugerir, porém os fios que tecem o campo de
uma experiência urbana ainda a ser bem entendida. Mas, então, essas trajetórias
e os personagens urbanos que nos permitem traçá-las nas cenas e cenários nas
quais essas histórias transcorrem também nos dão pistas para pensar os elos
perdidos da política na trama social de que é (são) feita(s) a(s) cidade(s).

Riobaldo, que tem a sabedoria dos grandes contadores de história, sabe do


que fala quando diz que a vida é um rodamoinho e que o demo está nas ruas.
Ele sabe do que fala quando diz que o real não está no começo, nem no final,
mas no meio da travessia.
“Digo: o real não está na saída nem na chegada; ele se dispõe para a gente é no
meio da travessia”.
São as veredas que fazem o Grande Sertão
(Grande Sertão: veredas, Guimarães Rosa)

108
CAPÍTULO 3

Deslocamentos:
percursos e experiência urbana

Os efeitos excludentes das mutações do trabalho sob o impacto da reestrutu-


ração produtiva em tempos de revolução tecnológica e globalização da economia
já foram matéria de uma vasta literatura sobre o tema. No entanto, ainda pouco
se sabe sobre as configurações societárias urdidas nas dobras dessas transforma-
ções. Entre, de um lado, os artefatos da “cidade global” sob o foco dos debates
entre urbanistas e pesquisadores da economia urbana e, de outro, os “pobres” e
“excluídos” tipificados como público-alvo das políticas ditas de inserção social,
há todo um entramado social que resta conhecer. E é isso justamente que situa
o terreno em que ganha pertinência relançar a discussão sobre os sentidos e os
lugares do trabalho na tessitura do mundo social. Se o trabalho não mais estrutura
as promessas de progresso social, se os coletivos “de classe” foram desfeitos sob
as injunções do trabalho precário, se direitos e sindicatos não mais operam como
referências para as maiorias, se tudo isso mostra que os “tempos fordistas” já se
foram, o trabalho não deixa de ser uma dimensão estruturante da vida social.
Mas é isso também que abre a interrogação sobre as novas configurações sociais
nas quais essa experiência se processa. Não se trata tão-somente da ampliação do
mercado informal e do aumento das hostes dos excluídos do mercado de traba-
lho. Concretamente, e aqui seguimos as pistas de Francisco de Oliveira (2003),
a chamada flexibilização do contrato de trabalho significa uma informalização
que penetrou todas as ocupações e redefine por inteiro as relações de classe. É
o trabalho “sem forma” que se expandiu no núcleo do que antes era chamado de
“mercado organizado” e, com isso, como enfatiza o autor, as relações entre classe,
representação e política foram para o espaço. Na base desse processo está o salto
nas alturas da produtividade do trabalho em tempos de revolução tecnológica e
financeirização da economia, de tal modo que o processo de valorização se descola
dos dispositivos do trabalho concreto, já não depende da quantidade e dos tempos
do trabalho da produção fordista (está para além da medida) e termina por implo-
dir todas as distinções conhecidas: tempo do trabalho e tempo do não-trabalho,
trabalho e consumo; as diferenças das ocupações perdem relevância do ponto de
vista desse movimento da valorização do capital, ao mesmo tempo em que foi para
os ares a divisão entre trabalhadores ativos e o que antes era chamado de exército
industrial de reserva. É o trabalho abstrato levado a extremos, “trabalho abstrato
virtual”, que captura, mobiliza e transforma processos sociais e as atividades as
mais disparatadas em sobrevalor. Quebra-se o vínculo entre trabalho, empresa
e produção da riqueza e são outros os agenciamentos pelos quais a riqueza se

109
produz e circula nos espaços de valorização do capital: para seguir as situações
comentadas por Francisco de Oliveira, a maquinaria abstrata de produção de
valor é acionada a cada vez que se utilizam os caixas eletrônicos dos bancos ou
quando, no recinto privado da vida doméstica, se acessam serviços e produtos
pela Internet; são as formas de entretenimento, lazer, gostos e estilos de vida que
movimentam um capital que faz do “nome da marca” o principal esteio de sua
valorização, ao mesmo tempo em que joga na mais radical irrelevância social
miríades de trabalhadores espalhados pelas redes de subcontratação no mundo
inteiro, submetidos ao trabalho precário, incerto, mal pago e degradado. É uma
gente sujeita aos espaços físico-sociais do trabalho concreto, mas que desaparece
sob a pirotecnia do marketing e do espetáculo cultural (Fontenelle, 2002). Zarifian
(2003) fala de uma “economia de serviços” que não tem nada a ver com as divisões
conhecidas de setores de produção, que a rigor transborda por todos os lados e
torna irrelevantes essas mesmas divisões, pois diz respeito à trama de relações
materiais e imateriais entre produção e consumo – publicidade, efeitos de marca,
ações de marketing, cartões de fidelidade e tudo o mais que acompanha o produto
ou o serviço vendido/consumido, de tal forma que os consumidores terminam por
participar da formação do valor, apesar de não entrarem em nenhuma contabi-
lidade e em nenhum instrumento de gestão. Outros vão lançar mão da noção de
“trabalho imaterial” para discutir essas atividades que não são codificadas como
trabalho, que tentam fixar normas culturais, modas, gostos e padrões de consumo,
que capturam e organizam os “tempos da vida”, e não mais apenas os “tempos do
trabalho”, tornando cada vez mais difícil diferenciar tempo do trabalho e tempo
da reprodução (cf. Lazzarato, 1992; Aspe et al., 1996).
São mutações de fundo. Mas, então, é preciso reconhecer que isso muda tudo
nas relações entre trabalho e cidade. Os pares conceituais que antes pautavam o
debate sobre a “questão urbana” – produção e reprodução da força de trabalho,
exploração e espoliação urbana, contradições urbanas e conflito de classe – ficam
deslocados em um cenário em que as formas do trabalho implodem, seja no regis-
tro de um trabalho que se descola dos dispositivos do trabalho concreto; seja no
registro do trabalho precário, intermitente, descontínuo e que torna inoperantes
as diferenças entre o formal e informal; seja ainda no registro das multidões dos
sobrantes que se viram como podem, transitando entre as improvisações da vida
cotidiana, expedientes diversos nas franjas do mercado de trabalho e as miríades
de programas sociais voltados aos “excluídos” – nesse caso, é a diferença entre
trabalho e reprodução social que fica esfumaçada.
Por outro lado, esse constante entra-e-sai do mercado em meio aos diversos
expedientes de trabalho precário termina por alterar as referências que pautavam
e ritmavam a vida social. Se é verdade que a desconexão entre trabalho e empresa
já faz parte da paisagem social, isso também significa que os tempos da vida e os
tempos do trabalho tendem a se articular sob novas formas, não mais contidas nas
relações que antes articulavam emprego e moradia, trabalho e família, trabalho
e não-trabalho (cf. Bessin, 1999). Eram binaridades que pautavam os ritmos da

110
vida social, tendo por referência as regularidades e os disciplinamentos impostos
pelas formas de emprego (cf. Supiot, 1994; 1999). Mas, então, será necessário se
desvencilhar dessas binaridades, assim como a do formal-informal, para apreender
a nervura própria do campo social, que não se deixaria ver se nos mantivéssemos
presos a elas na análise do trabalho e do urbano.
É uma situação que está a exigir um giro em nossas categorias, de modo a cons-
truir um plano de referência que permita colocar em perspectiva e figurar esses
processos, recolocar os problemas, pôr outros tantos e perceber, nas dobras das
redefinições e desagregações do “mundo fordista”, outros diagramas de relações,
campos de força que também circunscrevem os pontos de tensão, resistências ou
linhas de fuga pelas quais perceber a pulsação do mundo social.
Mas, então, será preciso mudar o foco das atenções. Talvez seja preciso um
deslocamento do jogo de referências para re-situar o trabalho no mundo social.
Não tanto as verticalidades que construíram o trabalho nas formas conhecidas
(e suas regulações centralizadas), mas os vetores horizontalizados de relações
que articulam trabalho, a cidade e seus espaços, outros agenciamentos sociais e,
também, outros eixos em torno dos quais desigualdades, controles e dominação
se processam, afetam formas de vida e os sentidos da vida (cf. Zarifian, 2000).
Também é o caso de se perguntar de que modo as novas realidades do tra-
balho (e do não-trabalho) redesenham mundos sociais, as relações de força e
campos de práticas que fazem a tessitura da cidade e seus espaços. Ainda: de
que modo são redefinidas práticas sociais e as mediações que conformam uma
experiência social sob outro diagrama de relações e outro jogo de referências. As
circunstâncias variadas do trabalho precário e intermitente redefinem tempos e
espaços da experiência social (cf. Sennet, 2000). Alteram, poderíamos dizer, a
própria experiência urbana, seguindo os circuitos descentrados dos “territórios
da precariedade” (cf. Le Marchand, 2004).
Talvez seja, então, o caso de prospectar os pontos de clivagem dessas novas
realidades seguindo as práticas (e suas mediações) nesses circuitos redefinidos do
mundo social. Pontos de clivagem que podem ser apreendidos nos deslocamentos
da experiência social e que cavam fundo a diferença entre as gerações. Essa pode
ser uma via de entrada para a descrição desse mundo social redefinido. Na virada
dos anos 1990, início dos 2000, a diferença entre as gerações tinha a peculiaridade
de coincidir com mudanças no mundo do trabalho e nas dinâmicas urbanas.

Trabalho e cidade: relações redefinidas

Seguir os traçados das mudanças (e conturbações) do mundo urbano signi-


fica levar a sério processos e práticas que só se deixam ver nos deslocamentos e
nos pontos de inflexão, de entrelaçamento, e bifurcações que vão compondo as
realidades urbanas. Se no capítulo anterior foram comentados os deslocamentos

111
nos espaços urbanos e nos percursos ocupacionais, estes também se processam
no interior das famílias – na linha vertical da sucessão ou linhagens familiares,
para lembrar a questão discutida páginas atrás. A diferença entre as gerações é
um crivo que permite ver e figurar outras dimensões e outras facetas das recon-
figurações urbanas (e sociais) engendradas nesses anos.
Para as primeiras gerações, a virada dos tempos significou a desestabilização
dos andaimes do mundo em uma situação que bloqueia perspectivas de vida,
que invalida práticas conhecidas e descredencia saberes acumulados, “formas de
ser e de fazer”, como diria Bourdieu, e os colocam em uma espécie de errância
em que ficam embaralhadas as fronteiras entre o trabalho, a viração própria
do mercado informal e a condição de “pobre”, público-alvo de políticas sociais.
São figuras que podem esclarecer os sentidos da erosão do “mundo fordista” e
encontram paralelos nas situações descritas em A Miséria do Mundo (Bourdieu,
1997) ou, então, na “decomposição da classe operária” discutida por Pialoux e
Beaud (2003). Mesmo que nem tudo possa ser descrito sob o signo da tragédia
pessoal daqueles cujas vidas desabam ladeira abaixo, e mesmo para aqueles que
ainda conseguem se manter nos seus empregos e sobreviver à “desestabilização
dos estáveis” (Castel, 1999), o tempo do progresso e de suas promessas esgotou-
se – “naquele tempo bastava a experiência, agora é tudo mais difícil”. Quanto
ao futuro, “agora é contar com a sorte”. Incertezas que se instalam no centro
mesmo de um projeto de vida que se alimentava das promessas de um futuro mais
promissor para os fi lhos – “fizemos até agora tudo o que foi possível, agora é com
eles”. O futuro dos fi lhos? “Não sei, ninguém sabe... só Deus sabe”. Incertezas
quanto às possibilidades de um emprego promissor. Mas, também, incertezas
sobre os destinos da prole, o receio de que entrem no “mau caminho” ou, então,
de serem atingidos pela violência de todos os dias – “eles saem e a gente nunca
sabe se eles voltarão para casa com vida”.
Para os mais jovens, sobretudo para os que já nasceram na cidade, a situação
ganha outras configurações e tem outros sentidos. Suas histórias já não podem ser
compassadas pelas venturas e desventuras da epopeia do progresso que estrutura
a narrativa da geração de seus pais. As circunstâncias atuais do mercado de tra-
balho não significam uma degradação de condições que foram melhores ou mais
promissoras em outros tempos; já entraram num mundo revirado, em que trabalho
precário e desemprego compõem um estado de coisas com o qual têm que lidar,
e estruturam o solo de uma experiência de trabalho em tudo diferente da geração
anterior. A experiência da urbanização (e a relação com a cidade) não se faz mais
nas referências da passagem campo-cidade e na marcação dos eventos que davam
o compasso do “progresso” na cidade. Para eles, o “progresso” já chegou e está
constelado nas características de uma sociedade de consumo tão ampla quanto
excludente, recortada por serviços e equipamentos urbanos que chegam até os
pontos mais distantes das periferias das cidades, atravessada por um ethos do
consumidor que se alastra até os segmentos urbanos mais pobres, valendo-se do
progressivo endividamento das famílias por meio da generalização dos cartões de

112
crédito e extensão dos procedimentos de crédito ao consumidor. Enfim, tudo isso
já marcava os anos 80,1 porém foi potenciado, acelerado e redefinido no correr
da década de 1990, sob a lógica financeirizada dos capitais globalizados que
capturam espaços urbanos, atividades econômicas e seus circuitos.
Sabe-se que é sobre os mais jovens que recai todo o peso do desemprego e
do encolhimento das alternativas de um trabalho mais estável e promissor. É em
torno deles que se cristalizam de maneira mais evidente as diversas formas de
trabalho precário – trabalho temporário, terceirizado ou cooperativado, muito
frequentemente mediadas por agências de emprego e prestadoras de serviços. E
é em torno de suas figuras que se entrecruzam os fios de um mundo social que
se reconfigura nas dobras do “mundo fordista” que se desfaz. Para Pialloux e
Beaud (2003), a “decomposição da classe operária” não tem a ver apenas com
a dissolução dos coletivos do trabalho, mas também com a “ruptura na sucessão
das gerações”. A experiência do trabalho incerto e descontínuo, as esperanças
frustradas de um emprego regular e a impossibilidade de um outro futuro que
não seja o círculo fechado tramado entre o trabalho precário e o desemprego,
tudo isso terminou por alterar as relações com o trabalho, com o emprego, com
o sindicalismo e a política. E desdobrou-se na erosão das referências “de classe”
a partir das quais as identidades eram definidas e os critérios de reconhecimento
de si e dos outros eram construídos.
Essas são questões importantes e que precisam ser perseguidas para entender
as dinâmicas societárias reconfiguradas no correr desses processos. Mas con-
têm ou podem conter uma armadilha quando a discussão toma como parâmetro
exclusivo a experiência prévia construída nos “bons tempos” da norma fordista.
O risco aí é fazer uma descrição em negativo, que termina por falar sempre do
mesmo (o trabalho fordista), apenas com os sinais invertidos. O problema não é
tanto cair nas trampas da idealização de algo que não tem por que ser celebrado
(essa é a crítica mais fácil de ser feita, e já foi feita por muitos), mas de ficar
aprisionado num jogo de referências que não permite apreender os sentidos da
experiência social que vem se desenhando. A diferença dos tempos e a ruptura
das gerações é algo que precisa ser bem entendido, não para fazer a comparação
ponto a ponto (era assim, não é mais), mas para situar os deslocamentos e bifur-
cações de uma experiência social que vai se fazendo em um outro diagrama de
relações e referências que redefinem espaços e territórios. Situação que exige
um trabalho de deciframento do social capaz de flagrar campos de força que se

1
Como mostra Vilmar Faria (1992: 107), a expansão da sociedade de consumo no Brasil
urbano deu-se em grande parte através de uma agressiva política de crédito direto ao
consumidor, a absorção do ethos do consumidor também entre os segmentos urbanos mais
pobres e o progressivo endividamento das famílias: “tornou-se mais fácil endividar-se para
adquirir, à vista e no dia-a-dia, um litro de leite ou um quilo de carne. Por isso e apesar
de tudo o mercado de bens de consumo expandiu-se para além dos limites impostos pela
rígida distribuição de renda e pelos salários baixos”.

113
desenharam no traçado das reconfigurações do mundo social e, quem sabe, polos
de gravitação por onde experiências diversas e talvez disparatadas se articulem
ou, pelo menos, convirjam e se entrecruzem em torno de outras referências e
novas constelações de sentido.
Por certo, será importante compreender as mutações do trabalho e de seus
significados, o modo como isso afeta formas de subjetivação, padrões de socia-
bilidade, critérios de reconhecimento, relações com o tempo e projetos de vida
(Sennet, 1998; Bessin, 1999). Porém, ainda sabemos pouco sobre a experiência
do trabalho (e da cidade) dessas novas gerações. Mesmo supondo que o trabalho
(e os locais de trabalho) tenha perdido o anterior poder de gravitação como locus
de investimento subjetivo, nem por isso deixa de ser um mediador importante na
experiência social. Então, talvez possamos seguir nesse empreendimento explo-
ratório e tentar identificar as linhas de intensidade que atravessam os percursos
dos mais jovens, um outro diagrama de referências que articula moradia, trabalho
e cidade.

***

O fato é que, ao perseguir os trajetos e percursos dos mais jovens, desenha-


se um outro perfi l da cidade. Ou melhor: é um ângulo pelo qual a cidade vai se
perfi lando com todas as ambivalências e complicações que recobrem os tempos
atuais. Os percursos dos mais jovens (entre os 20 e 30 anos, pouco mais, pouco
menos) fazem ver o outro lado da modernização neoliberal dos anos 90: os gran-
des equipamentos de consumo pontilhando os espaços em um grande arco que
chega próximo aos bairros mais distantes da periferia.
Em que pese tudo o que se tem dito sobre fragmentação urbana e dualização
social, o fato é que esses circuitos globalizados se constituíram como polos de
gravitação importantes para as novas gerações que se lançam no mercado de
trabalho e na vida urbana de uma maneira geral. Os shopping centers, que se mul-
tiplicaram nos últimos anos e se espalham pelas diferentes regiões da cidade, são
referências urbanas importantes – é por lá que circulam os jovens das periferias
pobres da cidade. E eles não se contentam com suas versões mais empobrecidas,
quando não um tanto mal ajambradas, dos shopping centers de periferia. Quando
as escalas de distância e proximidade permitem, sobretudo nas periferias que se
estendem por trás das fronteiras da “cidade global” (a periferia sul da cidade),
esses jovens não se intimidam com os brilhos faiscantes dos centros de consumo e
lazer da classe média enriquecida e branchée nos modernos circuitos do mercado
cultural. É por lá mesmo que eles circulam, em bandos, com grupos de amigos
ou com suas famílias.
Os grandes equipamentos de consumo e seus circuitos são referências ur-
banas importantes também porque são fontes de emprego. No mínimo, isso nos

114
obrigaria a levar a sério a sugestão de Saskia Sassen (1998) de que entender as
novas realidades urbanas exige que se desvencilhe do que a autora define como
“narrativas da exclusão”: uma descrição das cidades globais – ou dos espaços
globalizados – que tem como única referência os winners dos altos circuitos do
capital.2 Não por acaso, vale lembrar, no mesmo passo em que esses equipamentos
se espalharam pela cidade, também fizeram proliferar o igualmente muitíssimo
moderno trabalho temporário mediado por agências de emprego conectadas a
empresas terceirizadas de prestação de serviços. E são também por esses cir-
cuitos que os mais jovens fazem seus percursos, sempre descontínuos e sempre
instáveis, no mercado de trabalho. E por esses circuitos fazem uma experiência
da cidade tensionada entre a brutalidade das desigualdades (velhas e novas), a
sedução encantatória do moderno mercado de consumo, mas também o jogo de
possibilidades e bloqueios para o acesso a uma vida urbana ampliada.
Eis o ponto que coloca as novas gerações no centro nevrálgico desse mundo
social que vem se configurando. São jovens que se lançam no mundo em um
momento em que o encolhimento dos empregos e a precarização do trabalho
acontecem ao mesmo tempo e no mesmo passo em que os circuitos da vida urbana
se ampliam e se diversificam.
Isso nos abre um outro feixe de questões que precisariam ser mais bem
trabalhadas. Nesse mundo social redefinido, a experiência do trabalho (e do
não-trabalho) entrelaça-se com a experiência da própria cidade. Porém, se é
assim, então será importante escapar dessa clivagem que atravessa o debate
contemporâneo entre, de um lado, a economia urbana, a “cidade global” e os
winners dos circuitos globalizados do mercado e, de outro, a “exclusão social”,
os territórios da pobreza e o mundo dos perdedores. O que se trata de ver aqui
são as relações entre cidade e trabalho. Relações que não podem mais ser vistas

2
“... na avaliação predominante, os conceitos fundamentais de globalização, economia
da informação e telemática sugerem que o lugar não importa mais e que o único tipo de
trabalhador que conta é o profissional com sólida formação” (Sassen, 1998: 16). Com isso,
ficam fora da história da globalização atividades e tipos de trabalhadores tão vitais quanto as
finanças e telecomunicações globais. Ademais, “[...] focalizar o trabalho que está por detrás
das funções de comando, a produção no complexo das finanças e da prestação de serviços e
os mercados tem o efeito de incorporar os recursos materiais subjacentes à globalização e toda
a infra-estrutura de empregos e de trabalhadores que não são vistos como pertencentes ao
setor corporativo da economia: secretárias, faxineiros, caminhoneiros que entregam software,
a variedade de técnicos e de empregados que trabalham em consertos e todos os empregos
que tem que ver com a manutenção, pinturas e reforma das construções onde aquele setor
se localiza”. Há, portanto, uma multiplicidade de economias envolvidas na constituição da
denominada economia global. Trata-se de reconhecer “tipos de atividades, trabalhadores e
empresas que jamais estiveram instalados no centro da economia ou que foram desalojados
desse centro por ocasião da reestruturação ocorrida nos anos oitenta e, em consequência,
foram desvalorizados em um sistema que dá um peso excessivo a uma concepção estreita do
que é o centro da economia. A globalização portanto pode ser encarada como um processo
que envolve múltiplas economias e culturas relativas ao trabalho (1998: 158).

115
nos termos do debate dos anos 80, mas que, por isso mesmo, precisam ser re-
colocadas se quisermos também escapar de uma visão empobrecida do mundo
social reduzido às suas supostas binaridades.
E é a própria experiência das novas gerações e seus circuitos, no nervo exposto
das complicações atuais, que nos dá as pistas para tentar um giro no modo de
descrever o mundo social. Pois são essas mesmas experiências que tornam no
mínimo problemáticas as visões que hoje prevalecem de uma cidade fragmentada
entre enclaves fortificados e globalizados, de um lado, e, de outro, o mundo da
pobreza confinado nos bairros também pobres espalhados pelas periferias da
cidade. As evidências imediatas sustentam ou podem sustentar essa visão das
coisas, porém podemos nos perguntar se essa não é uma medida estreita demais,
que se fixa em certos pontos de cristalização dos fluxos da riqueza e fluxos da
pobreza, que, vistos de um outro parâmetro, transbordam por todos os lados
essas definições socioespaciais.
Não se trata, que se diga desde logo, de contrapor à “cidade dos muros”, para
lembrar a expressão cunhada por Teresa Caldeira (2001), uma suposta (e falsa)
democratização da “nova sociedade do consumo”. A questão é outra. E o que
estamos aqui sugerindo é um outro modo de figurar e descrever esse mundo social.
Mas, então, será preciso também recolocar o lugar dos grandes equipamentos
de consumo nesse mundo atravessado pelos circuitos globalizados do capital.
Sair de sua figuração como lugares paradigmáticos da “sociedade do consumo”.
E tomá-los por aquilo que são no movimento mesmo de valorização do capital.3
Pois nesses tempos globalizados, seguindo os movimentos acelerados de dester-
ritorialização do capital, a riqueza social (o sobrevalor, é bom dizer) também se
corporifica (e circula por entre os) nos espaços da cidade, pedaços globalizados
que vão cortando e recortando o mundo urbano:4 as fortalezas globais concen-
tradas no côté pós-moderno da cidade e as formas predatórias e excludentes de
apropriação privada do solo urbano (cf. Fix, 2001); os grandes equipamentos de
consumo e lazer que se concentram nesses mesmos espaços, mas se espalham
num grande arco que chega até mesmo às periferias da cidade, também cortando

3
As relações entre acumulação capitalista, espaço e os “artefatos urbanos” é questão
especialmente discutida por David Harvey (1994)
4
Como diz Veltz (1996: .XX), “as grandes cidades [são] uma formidável máquina de ace-
leração dos fluxos, que ligam os ritmos do consumo e dos modos de vida aos da produção
e dos capitais, limitando a incerteza ao garantir às empresas as possibilidades as mais
amplas de externalização dos riscos (por exemplo, pelo uso massivo da subcontratação) e
acesso aos mercados mais flexíveis de trabalho mais qualificado. Braudel caracterizava as
cidades como transformadores elétricos que aumentam as tensões, precipitando as trocas.
Será preciso então se espantar que, na economia moderna da rapidez, estas tiram das
cidades o essencial de seu crescimento? Mas essas formidáveis tensões temporais estão
também na origem das desigualdades as mais radicais e que se concentram nas megaci-
dades, expressando a ‘telescopage’ entre esta precipitação e a ausência de perspectiva de
uma ampla parcela da população”.

116
e recortando o mundo da pobreza; da cultura transformada em mercadoria às
chamadas intervenções urbanas, pelas quais a cidade passa a ser ela própria ge-
rida e consumida como mercadoria (cf. Arantes, 2000); tudo isso e mais alguma
coisa, ao mesmo tempo em que segue, numa extensão sem limite, a mercantili-
zação de tudo e todos. As empresas de bens e serviços desenvolveram, no correr
desses anos, eficazes procedimentos para aproveitar as “potencialidades” desse
enorme e expansivo mercado popular: afinal, os pobres também consomem e a
financeirização dos orçamentos domésticos, por meio dos cartões de crédito que
se popularizam, instala o pobre consumo dos pobres, um consumo pingado, de
pouco em pouco, nos circuitos acelerados do capital financeiro (cf. Sciré, 2009).
O fato é que qualquer um que circule pelos bairros das periferias mais pobres
haverá de encontrar a parafernália do consumo moderno e pós-moderno e have-
rá de encontrar o morador pobre desses lugares mais-do-que-pobres exibindo,
junto com a fatura de uma dívida sempre adiada, as versões populares (ou nem
tanto) de cartões de crédito, ou os cartões de compra dos grandes equipamentos
de consumo que chegaram por lá: é a financeirização do popular fiado. Eis aí os
“sujeitos monetários sem mercado”, para usar a expressão cunhada por Kurtz
(1992). Ou o “homem endividado”, essa figura da “sociedade do controle”, como
diz Deleuze (1992), que vem substituindo o “homem confinado” da sociedade
disciplinar descrita por Foucault.
É o caso de se interrogar pelas “afinidades eletivas”, para lembrar a formulação
weberiana, entre o “trabalho sem qualidade” descrito por Sennet e a lógica do
endividamento. Não mais projetos de aquisições futuras com base no princípio
da previdência no bom uso do orçamento doméstico, o salário e o cálculo da
poupança possível mês a mês. Nos termos de Weber, os disciplinamentos morais
da ética do trabalho e sua consonância com a racionalidade própria do moderno
trabalho industrial ou, para colocar em outra chave teórica, com a sociedade
disciplinar discutida por Foucault. Agora, o consumo descola-se do trabalho e a
lógica é outra, não a lógica da poupança, mas o cálculo da “capacidade de endi-
vidamento”, a qual é ditada, como bem sabemos, pelas operadoras dos cartões
de crédito pelas vias de procedimentos que faz cada um se enredar em um dívida
sem fim, negociada e renegociada a cada momento, com a possibilidade de ela
se estender indefinidamente no tempo. É todo um jogo social que se declina no
presente imediato, tanto quanto a viração própria dos mercados informais e do
trabalho precário: o que vale não é mais um projeto articulado à persistência
do trabalho, mas a lógica do ganho (diferente do salário) que se faz em meio às
oportunidades que surgem (e desaparecem) com a mesma aleatoriedade dos
jogos de azar, aliás da mesma maneira como funciona o cassino do mercado
financeiro. Que se diga: como também acontece com os ganhos financeiros, do
ponto de vista da dívida (e dos acertos e expedientes inventados para lidar com
ela), a origem do dinheiro não tem nenhuma importância, pouco importa se foi
o salário ou os ganhos incertos na viração dos mercados informais, de origem
honesta ou duvidosa.

117
Como diz Cláudia Sciré (2009), a pobreza, também ela, foi financeirizada. A
lógica da dívida altera modos de organização da vida familiar. E afeta os circuitos
da sociabilidade e da solidariedade intra-pares, com os cartões circulando na
teia de préstimos e contrapréstimos: uns emprestam nome e cartões para outros
com o “nome sujo” na praça ou para ajudar a aquisição de bens além dos limites
disponíveis em seus respectivos cartões e, ao final, uns e outros se veem enreda-
dos no esforço por inventar expedientes para negociar a divida, transferi-la para
o mês seguinte, usando um cartão para cobrir a dívida de um outro, um cartão
próprio ou cartão emprestado, uma dívida que se paga com outra dívida, em
uma forma peculiar de financeirização das jogos da reciprocidade popular. Ao
fazer a traçabilidade desse artefato urbano que são os cartões de crédito, vamos
encontrar os fios que articulam esses jogos sociais redefinidos, os equipamentos
de consumo, as financeiras, e mais todos os expedientes mobilizados, também
nas fronteiras incertas entre o legal e ilegal, lícito e ilícito, regidos pela lógica
da dívida que vai se transferindo de um ponto a outro, até entrar, por vezes, em
ponto de combustão.
É bem verdade, diz Deleuze (1992: 224), que o capitalismo mantém em
escalas sempre crescentes a extrema miséria das maiorias, povos e populações
“pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento: o controle
não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão
dos guetos e favelas”. No entanto, para usar a linguagem do fi lósofo em outros
textos, os “fluxos urbanos”, liberados pela subtração dos dispositivos do trabalho,
circulam e encontram outros agenciamentos e pontos de cristalização de que é
evidência este promissor e expansivo mercado que é o tráfico de drogas, aliás,
também ele globalizado e conectado nos circuitos desterritorializados do capital
financeiro. Nada mais eloquente do que o retrato desenhado por Alba Zaluar
(1996: 55-59) de um garoto metido no tráfico de drogas no Rio de Janeiro: o
menino favelado “com uma AR-15 ou metralhadora UZI, considerados símbolos
de sua virilidade e a fonte de grande poder local, com um boné inspirado no
movimento negro da América do Norte, ouvindo música funk, cheirando cocaína
produzida na Colômbia, ansiando por um tênis Nike do último tipo e um carro
do ano”. Isso não se explica, diz Zaluar, e com razão, pelos níveis de salário
mínimo ou pelo desemprego, e muito menos pelo peso das camadas geológicas
da tradição ou resquícios da violência costumeira do sertão, como muitas vezes
se diz: “entender como o ilícito e o ilegal se enraizaram no setor informal para
comandar um exército de desempregados e sócios menores é fundamental”, até
porque tudo isso põe em movimento bens materiais e monetários que entram na
circulação de mercadorias do mundo capitalista.
Entre a brutalidade da destituição dos miseráveis e os brilhos faiscantes
desse capitalismo pós-moderno, entre o futuro sempre adiado (como a dívida,
deixada para o dia seguinte, para um dia qualquer...) e o também muito pós-
moderno presente imediato do garoto do tráfico em que tudo isso se conjuga no
verso-e-reverso do capitalismo contemporâneo, há um entramado de linhas que

118
se cruzam e entrelaçam, que atravessam e transbordam os domínios estritos da
pobreza e da riqueza (esses que oferecem as evidências imediatas de uma cidade
fragmentada ou dualizada, apartada) e vão montando um socius que ainda será
preciso conhecer melhor.
Pelo lado do trabalho, são também esses e outros traçados que vão redese-
nhando o mundo social e a paisagem urbana. É o que acontece nos circuitos
descontínuos do trabalho precário, temporário ou subcontratado. Passando pelos
polos descentrados no tecido urbano, vão serpenteando os pontos em que a riqueza
se cristaliza nos espaços da cidade com as redes de subcontratação e agências de
trabalho temporário, ao mesmo tempo em que esses mesmos circuitos da riqueza
alimentam as conhecidas atividades de sobrevivência do dito mercado informal,
reativam o velho conhecido trabalho em domicílio de antanho e passam por mil
formas de práticas ilícitas que se espalham por todos os lados.
Mas, então, retomando um ponto deixado solto mais atrás, é o caso de se in-
terrogar pelos modos como a experiência das desigualdades vem se processando,
junto com a vivência dos bloqueios a possibilidades de vida em um tempo que
celebra o desempenho, a performance e o sucesso como medidas (aliás, inefáveis)
de autonomia individual.5 Se não é mais remetida às configurações coletivas de
classe, seria possível arriscar a dizer que essa experiência vem sendo configurada
nos espaços da cidade e seus circuitos. A imagem do garoto do tráfico é eloquente
nesse sentido. No seu contraponto, o fenômeno rap é algo mais do que um fenô-
meno cultural interessante em nossas cidades. Como bem nota Maria Rita Khel
(2000: 212), as músicas dos Racionais MC’s são a expressão de uma recusa do
presente, resistência ao presente, sem nenhuma transcendência. Um presente
imediato, afirmado no “ter atitude”, para usar a expressão dos “manos”. Recusa
e denúncia do mundo reluzente do consumo. Recusa também do mundo do crime.
Resistência ao presente pelo ato de permanecer vivo, “contrariando a estatística”.6
E declarar o seu lugar: “essa porra é um campo minado/quantas vezes eu pensei
em me jogar daqui/ mas aí, minha área é tudo o que eu tenho/a minha vida é
aqui e eu não consigo sair/ é muito fácil fugir, mas eu não vou/ não vou trair
quem eu fui, quem eu sou”, eis o trecho de uma de suas músicas. Resistência ao
presente, “atitude” de afirmação que desencadeia princípios horizontalizados de
identificação, que acena talvez para “devires minoritários” (Deleuze) que escapam

5
Como bem nota Eheremberg (1991), a autonomia não é mais pensada como recusa às
subordinações de um mundo disciplinar (cf. os movimentos culturais dos anos 60), mas
é agora figurada à imagem e semelhança da empresa, e o seu princípio é a concorrência
e competição. Da atual celebração do esporte transformado em espetáculo de massa à
projeção do empresário bem-sucedido (aliás, também mediatizado e transformado em
celebridade) como padrão moral a ser seguido, passando pelo consumo, eis as figuras do
“novo individualismo” que vem se configurando desde meados dos anos 80.
6
“[...] permaneço vivo, eu sigo a mística, 27 anos contrariando a estatística... eu sou apenas
um rapaz latino-americano apoiado por mais de cinquenta mil manos”.

119
dos axiomas que capturam energias sociais e afirmam outras possibilidades de
vida, outras maneiras de problematizar a existência.
O fato é que os grupos de rap são uma referência importante nas periferias da
cidade. Suas apresentações e as letras de suas músicas metabolizam a vivência
da pobreza periférica, mas em uma cifra em tudo e por tudo além do perímetro
estreito do “mundo da pobreza” – não por acaso, são também eles um fenômeno
globalizado, falam não para a “comunidade”, falam para o “mundo” ou por essa
outra globalização feita por baixo, nas linhas e fluxos que escapam dos “aparelhos
de captura” do capitalismo contemporâneo. Isso valeria, por certo, uma discussão
à parte. Mas se vale arriscar em uma seara além de nossas competências, é porque
esses grupos compõem as realidades das periferias urbanas.
Como diz um de nossos entrevistados (falaremos dele mais à frente),

periferia a gente fala assim, é mais pessoas humildes, que não têm condições
de se divertir, ter bom estudo, isso e aquilo, fazer uma faculdade… um diver-
timento, não tem condições de ir no shopping comprar uma roupa de marca…
aquela música dos Racionais diz tudo… Pra mim, periferia é isso aí.

Esse é o depoimento de um rapaz de 30 anos, que mora em um bairro na


periferia sul da cidade. Ele entrou na vida adulta já em um mundo revirado, que
não encontra alternativas fora do trabalho precário (agências de trabalho tempo-
rário), amarga períodos prolongados de desemprego e viveu a virada dos tempos
também pelo outro lado, o da violência que em poucos anos dizimou quase todos
os seus amigos de infância e adolescência. Também “contrariou a estatística”.
Apesar disso tudo, afirma sua identificação com o lugar, diz que é lá mesmo que
quer ficar depois do casamento:

[...] só quem mora aqui mesmo é quem sabe contar a história do bairro… pe-
riferia é um lugar até gostoso de se divertir, tem gente que fala que não, mas
periferia é periferia mesmo.
Mas o que é então a periferia? [foi a pergunta]
Periferia? Aquela música dos Racionais diz tudo… periferia é isso aí.

Do outro lado da cidade, no fundo da zona leste, em uma área de ocupação


recente e condições incrivelmente precárias de vida, é assim que um jovem de
20 anos fala de sua paixão pelo rap: “é a minha religião”, diz ele. A princípio,
“ouvia só por ouvir”, até perceber que a música tinha a ver com ele, “com o seu
dia a dia”, “com o cotidiano da periferia”. Para ele, não faz diferença se o grupo
Racionais MC’s é da zona sul, pois “periferia é periferia em qualquer lugar, Rio
de Janeiro, São Paulo, Brasília, qualquer lugar…”. O rapaz associa o seu gosto
pelo rap e o recente interesse pela política: “as duas coisas se complementam”,
diz ele, “tem tudo a ver a ideologia do rap com a do PT”. Ambos são movidos,
segundo ele, pelo “ideário da igualdade”.

120
Personagens urbanos e seus percursos

A experiência das novas gerações e seus circuitos, no nervo exposto das com-
plicações atuais, nos dá as pistas para tentar outra descrição do mundo social. É
sob essa perspectiva que tratamos de seguir os percursos dessas novas gerações.
São situações traçadas pelos circuitos das trajetórias de seus personagens. Perso-
nagens urbanos, podemos dizer. Em seus contextos de referência, essas trajetórias
operam como prismas pelos quais o mundo urbano vai ganhando forma em suas
diferentes modulações. São esses personagens que tornam práticas urbanas e
vetores policentrados perceptíveis, em torno dos quais esse mundo social vem
se desenhando.
O cenário: uma região situada na periferia sul da cidade de São Paulo, que
começou a se expandir a partir dos anos de 1970, acompanhando os fluxos dos
empregos industriais. Nessa região, que foi o polo industrial da “cidade fordis-
ta”, são nítidos os sinais da reconversão produtiva, bem como as recomposições
urbano-espaciais da década de 1990, sob o impacto do muito próximo e rico
quadrante da modernização globalizada da cidade. É o cenário descrito no capí-
tulo anterior. As entrevistas foram realizadas entre 2001 e 2002. Um momento
especialmente interessante para flagrar a virada dos tempos. Pelo lado urbano,
os grandes equipamentos de consumo, o uso generalizado dos cartões de crédito,
o consumo da parafernália eletrônica moderna-moderníssima, o que inclui o uso
dos celulares, tudo isso ainda era uma relativa novidade. Os sinais da moder-
nização urbana misturavam-se com a dureza do desemprego prolongado e as
incertezas do trabalho precário. E também a violência que dizimava sobretudo
os mais jovens.
A virada dos tempos está cifrada nas inflexões e nas circunstâncias de vida
dos que, tendo chegado a São Paulo nos anos de 1970 ou no início dos 1980,
fizeram um percurso pelos empregos fabris, chegaram às então distantes e deso-
ladas periferias da cidade, realizaram o “sonho da casa própria” pelas vias da
autoconstrução da moradia, se viram às voltas com loteamentos clandestinos e se
envolveram nas lutas sociais do período. Ou então se instalaram precariamente
no que haveria de se transformar, vinte anos depois, em uma grande favela, na
qual, e como contraponto da épica dos movimentos sociais, o clientelismo velho
de guerra se faz presente e operante nas dobras e redobras dos vários ilegalismos
de que é feito o mundo social.
Para essas famílias, a diferença dos tempos coincide com a diferença das
gerações e são sobretudo os jovens personagens dessas histórias que podem
informar-nos alguma coisa sobre os vetores e as linhas de força que deslocam os
polos de gravitação da geração anterior (entre o trabalho e as melhorias urbanas
locais), e redefinem campos sociais. Seguindo as trilhas dos mais jovens vão se
delineando os perfis ambivalentes da modernidade globalizada: uma experiência
social que se configura nos limiares e nas passagens entre mundos distintos, entre

121
o universo empobrecido da periferia e os shopping centers, os lugares prestigiosos
de consumo e lazer (referências urbanas inescapáveis para essa geração), os baixos
empregos do terciário moderno e os circuitos do trabalho precário que tangenciam
os fluxos da riqueza plasmados nos espaços urbanos. São esses limiares e essas
passagens (e seus bloqueios) que precisam ser bem compreendidos e bem situados,
pois é aqui que se arma uma teia de relações (e tensões) que via de regra escapa
às definições modelares de exclusão social e de segregação urbana.
São esses percursos, da segunda ou terceira geração, que nos fazem perceber
as conexões entre trabalho e experiência urbana. Não mais as referências que
ordenavam a experiência social dos tempos do “trabalho fordista” da primeira
geração. Não mais as mediações do trabalho regulado, dos direitos trabalhistas
e sindicatos, que ritmavam os tempos da vida e os articulavam com os tempos
políticos da cidade. Nem por isso o trabalho, mesmo precário e descontínuo,
incerto e de futuro mais incerto ainda, deixa de ser um poderoso conector com
o mundo social. Outra experiência de trabalho, outra experiência urbana. Outro
diagrama de referências e relações que redefine os agenciamentos da vida e das
formas de vida, e nos quais e pelos quais é possível apreender a nervura própria
desse campo social redefinido.

O cenário: nas franjas da “cidade global”

No miolo do Distrito do Jardim São Luiz estende-se um longo e grande arco de


três favelas. Não é coisa fácil discernir suas fronteiras, se é que elas existem para
além dos marcos oficiais da Prefeitura. Por convenção iremos chamar de favela
Cruzeiro o cenário em que transcorrem os percursos de nossos personagens.
É uma favela contígua a um bairro que esteve no centro dos movimentos
pela regularização dos loteamentos clandestinos (nos anos 1970) e, depois, das
reivindicações por melhorias urbanas que agitaram a década de 1980. Modu-
lações de uma história urbana e da história de toda uma geração. Em ambos os
lugares, são evidentes os sinais de um mundo operário que se desfez no correr
dos anos 1990. Porém, isso ganhou configurações diferentes aqui e lá. Na Vila
Marinalva,7 havia a conjugação entre o “sonho da casa própria” (e os loteamentos
clandestinos), a passagem pelo trabalho regulado (tempos fordistas) e um campo
de forças em torno do qual gravitaram as comunidades eclesiais de base, a ala
progressista da Igreja Católica, a esquerda clandestina e, depois, o Partido dos
Trabalhadores. Na favela Cruzeiro, é uma história tecida em outra constelação
de relações, simultânea à primeira, não menos estruturadora de nossa história

7
Os nomes de lugares e pessoas são todos fictícios, com exceção do Distrito do Jardim São
Luiz, cujo nome foi mantido. Cenário e personagens de Vila Marinalva foram tratados em
Telles e Cabanes (2007, capitulo 3).

122
recente, porém que passa por uma peculiar conjugação entre todas as ilegalidades
e irregularidades de que é feita a vida interna de uma favela e as intrincadas
redes do clientelismo político que disso se alimenta o tempo todo.

A cartografia dos empregos

Numa rua paralela à favela, estão instaladas algumas fabriquetas de peças


e componentes de automóveis e eletrodomésticos. Chegaram entre meados da
década de 1970 e a metade dos anos 80. Como se pode imaginar, parte consi-
derável de seus trabalhadores é morador da Cruzeiro. Adalto, 45 anos, trabalha
por lá desde 1983. Antes, trabalhou na indústria de bicicletas Monark. Foi o
seu primeiro emprego em São Paulo, em 1978. A Monark é uma referência
constante nas histórias dos moradores da favela Cruzeiro. Muitos passaram por
lá – “aqui, quase todo mundo da Cruzeiro começou trabalhando na Monark...
um trabalhava e avisava que a firma ia pegar funcionário, avisava e o outro ia”.
A Monark fica na Avenida das Nações Unidas (Marginal Pinheiros), não muito
longe do lugar onde está atualmente o hipermercado Carrefour. Está instalada
na região desde 1951. Não é demorado chegar até lá: apenas um ônibus, não
mais do que trinta minutos de deslocamento. Como lembra Adalto, “quando era
de manhã só via neguinho indo para o mesmo lado. Já pegava o ônibus e ia todo
mundo”. Estão aí as coordenadas de um universo operário. Parte considerável
de nossos entrevistados passou pela Monark. Podemos supor que a conformação
dessa geração não independe das redes familiares e de sociabilidade que foram se
estruturando conforme as famílias se instalam na favela. As redes familiares são
acionadas nas estratégias de migração – funcionam como referência e acolhem os
recém-chegados, além de garantir a solidariedade nas situações difíceis. Também
redes que operam como canais de passagem para o mercado de trabalho. Uns
conseguem empregos para outros, avisam quando aparecem oportunidades. E
foi assim que muitos passaram pelo trabalho na Monark:

Eu lembro que, quando eu casei, eu morava de aluguel no Jardim São Luís e


todo mundo da casa trabalhava na Monark. Aí, eu fui trabalhar também junto
com eles, eu ia todo dia com eles, voltava junto com eles (Lucila, 46 anos).

Eram os tempos das grandes plantas industriais e do emprego farto, que se


distribuíam entre Santo Amaro e Socorro, polo industrial dos “tempos fordistas”.
Vinte anos depois, a cartografia dos empregos (ou do desemprego) mudou muito.
O eixo dos empregos deslocou-se para um estreito circuito próximo à favela –
“agora ficou o pessoal todo trabalhando por conta, outro meio de vida”. Ou para
as fabriquetas ao lado – “agora o pessoal trabalha mais aqui pertinho”. Mas
a favela Cruzeiro está muito próxima, nas franjas dos modernos circuitos dos
serviços que passam pelo Distrito do Jardim São Luís: é por lá que transitam os
mais jovens, sobretudo eles, mas não apenas.

123
Os tortuosos caminhos das melhorias urbanas

Os primeiros moradores chegaram no início dos anos 1970. O adensamento


da favela acelerou-se no correr da década de 1990. Conforme cresceu a favela,
também cresceu a influência e poder de Lino, um personagem quase onipresente
em tudo o que acontece nesse território. Ele atua como uma espécie de árbitro da
“compra e venda” dos terrenos, quando não opera como um verdadeiro grileiro
local. É poderoso. Por isso, acostumamo-nos a falar dele como “o Xerife”: além
dos assuntos de posse, é ele quem arbitra a distribuição das ligações clandestinas
de água e de energia elétrica, mantém o controle da distribuição de cestas básicas
doadas pelo Governo do Estado e é o conduto que liga o poder institucional às
redes do clientelismo político local. Tudo passa por ele.
Os dados são imprecisos, porém, de acordo com um levantamento improvisado
feito pela associação de moradores, a favela Cruzeiro tinha, em 2001, cerca de
200 famílias. Barracos, a maior parte de alvenaria. As ruelas e veredas estão
todas cobertas de cimento. Coisa do Xerife, que, através de um acerto com um
amigo, conseguiu que o cimento velho de uma construtora fosse jogado na favela.
Em 1982, chegaram as redes de água e eletricidade. Chegaram e, junto com elas,
foi-se armando uma outra rede, uma intrincada rede de ilegalismos pelos quais
também as relações de poder foram se estruturando. A presença do Estado ia
como que se dobrando na face interna da favela para lançar os vetores a partir
dos quais o traçado dos ilegalismos segue o fluxo das ligações clandestinas de
água e luz. Junto com isso, um diagrama das relações e hierarquias de poder,
seguindo as gambiarras de luz e o fluxo da água desviada das casas que ganharam
seus próprios relógios de medição. As redes de eletricidade só atingem as casas
que dão para a rua principal. Dai são puxadas as ligações clandestinas, mas é o
Xerife que controla e arbitra a sua distribuição, e também os pagamentos. Quanto
à água, são apenas três medidores coletivos. É quase desnecessário dizer que um
deles está instalado na casa do Xerife. É daí que a água é desviada para atender
as famílias que moram mais próximo do núcleo interno da favela.
A Associação de moradores foi fundada em 1984. Esteve sob o comando do
Xerife até 2001, quando ele perdeu as eleições para um grupo de moradores
alinhados (embora não muito convictamente) com o PT. O Xerife era malufista.
Se não por convicção, por interesse – e dos fortes. O Xerife era cabo eleitoral e
não perdia nenhuma oportunidade para aproveitar (e se aproveitar) das redes de
influência acionadas com as máquinas partidárias, políticos locais e “conhecidos”
dentro da máquina estatal e municipal. Era o principal articulador dos moradores
com os poderes públicos para a solução de litígios em torno das redes urbanas
de serviços. Os programas sociais promovidos pela Prefeitura passavam por ele,
até porque eram implementados através da associação de moradores. Assim,
por exemplo, o programa do leite, invenção, aliás, da gestão Maluf (1992-1996),
que passou a programa estadual. O Xerife sempre controlou o credenciamento
das famílias. Quando perdeu as eleições, um de seus trunfos era boicotar a

124
informação e fazer o possível para impedir que a associação desse seguimento
ao programa.
O poder do Xerife aumentou no correr das duas gestões malufistas. Perdeu
as eleições em 2001, porém a roda da vida continuou girando. O Xerife montou
outra Associação. É uma mistura de grilagem com movimento de moradia. Lino
tratava de identificar áreas que poderiam ser loteadas, fazia o levantamento de
todas as irregularidades do “pedaço” e... ocupava. Quer dizer: é isso o que ele
dizia que pretendia fazer. O Xerife era bem relacionado com a polícia, sempre foi.
Fazia parte do Conselho Municipal de Segurança, o Conseg. Com isso, acreditava
que haveria de conseguir o respaldo necessário para suas operações, evitando
complicações com a polícia. A ocupação acabaria sendo uma grande encenação
que terminaria com a venda do terreno a um preço muito mais baixo do que o de
mercado. Dessa forma, conseguiria os terrenos e, de quebra, o apoio dos futuros
moradores. Os planos do Xerife? Candidatar-se a vereador a partir da base de
apoio que esperava construir com os “condomínios de periferia”.

O Xerife

Lino, o Xerife, tem 53 anos (em 2001). Mora na região mais interna da favela
com a esposa Dalva (45 anos) e a sogra. Seus dois fi lhos casaram e moram por
perto. A casa de Lino tem todo o jeito de um barraco de favela: sala e cozinha
compõem um único cômodo e o banheiro fica do lado de fora, compartilhado por
quatro pessoas que ocupam dois cômodos contíguos. Porém, estavam lá, à vista
de todos, um aparelho novo de DVD, uma TV e um aparelho de som. Tudo o que
acontece na favela passa por ele e, ao que parece, também os assuntos, digamos
assim, escusos. Era ele quem “tomava conta” do local, agenciando os negócios
“duvidosos”, também arbitrando, se é que se pode assim dizer, as desavenças
relacionadas ao “mundo do crime”. Ele não hesitava em fazer uma contabilidade
superlativa de mortes que ele e os filhos teriam encomendado ou nas quais estariam
envolvidos de alguma forma. Histórias rocambolescas que mais pareciam tiradas
de um faroeste de má qualidade. Certamente havia muito de bravata nisso tudo
e todo um jogo de cena para impressionar os jovens e espantados pesquisadores
que o entrevistavam.8 Era tudo muito exagerado, porém nem tudo era inventado.
Não era possível saber se ele estava diretamente envolvido em atividades crimi-
nosas, mas tudo indicava que operava, no mínimo, como interceptador de objetos
roubados. A casa do Xerife, bem no miolo da favela, com todas as evidências à
mostra para quem quisesse ver, era o ponto de gravitação de atividades (e pes-
soas), digamos assim, duvidosas.
A trajetória do Xerife é bastante interessante. Lino nasceu no interior do Ceará
(Iguatu) e chegou a São Paulo em 1977. Tinha então 28 anos. “Lá onde a gente

8
Daniel Hirata e José César de Magalhães compunham a equipe de pesquisa, o primeiro
como Bolsista de Iniciação Científica, o segundo como assistente de pesquisa.

125
morava não tinha como sobreviver”, diz. Mas, parece que os motivos foram outros:
veio fugido de uma briga pesada que terminara em morte. Chegando a São Paulo,
quatro dias depois, começou a trabalhar na metalúrgica Fama, onde ficou por
quatro anos. Segue depois um percurso operário nas indústrias da região de Santo
Amaro: Fevap (dois anos), Standard (três anos), Monark (três anos), uma das fabri-
quetas ao lado da favela (três anos) e, finalmente, a Villares (cinco anos). Entrou na
Villares em 1986 e saiu em 1991 por problemas de saúde. Trabalhava na pintura,
sem proteção, e terminou por adquirir problemas respiratórios sérios. Foi demitido.
Processa a empresa. Estava de licença médica e não poderia ser demitido. Ganhou
a causa, porém o litígio ainda estava em aberto quando o entrevistamos (2001):
batalha judicial pelo reconhecimento de sua condição de funcionário da empresa e
pela sua reintegração na função. Lino sabia que não seria reintegrado, até porque
ele fora considerado incapacitado para exercer esse tipo de trabalho. Entretanto,
sabia muito bem fazer a conta de quantos salários atrasados a Villares lhe devia.
Uma quantidade considerável: salários e encargos trabalhistas correspondentes a
nove anos e quatro meses! O único problema era que a Villares não existia mais:
fora dividida em três outras empresas e, até então, não tinha sido possível saber
qual delas (se é que alguma) havia herdado o patrimônio e as dívidas trabalhistas.
Lino tinha um advogado que cuidava disso para ele. Até então, sem sucesso. Mas
os recursos dessa indenização entravam nos planos de Lino.
A história recente de Lino é cheia de veredas tortuosas. Quando ganha a
causa contra a Villares por demissão indevida, ainda em 1991, recebe uma boa
indenização. Pulverizou o dinheiro na compra de um carro, com gastos excessivos
e mais 21 dias de viagem para o estado de origem, soltando o dinheiro farto com
os familiares – “o tempo que eu passei lá, eles não passaram necessidade”. Em
pouco tempo o dinheiro acabou. Depois, não conseguiu mais emprego em indús-
tria. Bem que tentou, porém não passava pelo exame médico e, além do mais, o
processo contra a Villares constava de sua documentação, o que era um motivo
de recusa de emprego. Lino não poderia ter emprego registrado em carteira de
trabalho, sob pena de perder os direitos pelos quais estava brigando. Em 2001,
trabalhava como zelador em um prédio de apartamentos próximo à favela. Era uma
cooperativa que prestava serviço terceirizado para “tudo”: limpeza, segurança,
manutenção, portaria. Eram cerca de 2 mil cooperativados:

a gente se inscreve como sócio contribuinte. A gente paga aquela taxa e arruma
emprego. Aí, no primeiro salário, desconta os 15 reais e os 36 reais de INSS;
do segundo salário em diante, eles só descontam o INSS e, quando a gente
sai, a gente recebe o que a gente pagou corrigido. Pode passar 5, 6 anos que a
gente recebe, corrige. [A cooperativa existe há dois anos] [...] foi a lei que eles
lançaram para acabar com o direito do trabalhador.

Desde muito cedo Lino passou a se dedicar aos assuntos da associação de mo-
radores. Lino fazia circular recursos pelas vias dos obscuros canais do clientelismo

126
político. Sempre foi cabo eleitoral, principalmente de Paulo Maluf. As estratégias
de favorecimento pessoal e práticas clientelísticas eram constitutivas da maneira
como Lino encaminhava a política local. Era assim que administrava a distribui-
ção de cestas básicas, distribuía presentes de Natal e doações que chegam para
a associação, agenciava seus apadrinhados para bicos em campanhas eleitorais.
Os esforços para as melhorias urbanas terminaram por se transformar em um
espaço de agenciamento pessoal de Lino sobre os moradores. A começar de sua
própria casa, espécie de sede de seu poder pessoal: é de lá que muitos moradores
puxam as ligações clandestinas e é para ele que pagam as contas de água e luz.
Todos os eventos que marcaram a história da favela, desde o cimento nas ruas
até a chegada das redes de água e energia, trazem as marcas do poder de Lino,
suas redes de influência, suas conexões com construtoras, com vereadores, com
homens das máquinas políticas dos partidos.
É sempre difícil saber o que é ficção e bravata, e o que é real nas histórias que
conta. Porém, o fato é que, em 2001, Lino era membro do Conseg – o Conselho
Comunitário de Segurança, órgão de representação local, espaço de participa-
ção democrática e cidadã, como se diz, vinculado ao governo do Estado. É com
essa rede de influência e proteção que ele contava para se lançar em seu novo
empreendimento: negócios com compra e venda de terras. Quer dizer: grilagem.
E, a partir daí, lançar-se como vereador nas eleições seguintes.
Há algo mesmo de fascinante na história desse cearense que virou favelado,
que se transformou em operário metalúrgico de uma grande empresa paulista,
que conhece muito bem e briga pelos seus direitos, que se embrenhou nas tramas
do clientelismo político, que transita o tempo todo entre o legal e o ilegal, que
é “representante da sociedade civil” no Conseg, que pretende então se tornar
grileiro e que quer se lançar como vereador, representante político local. Não é
pouca coisa... Não há nada de anedótico em tudo isso. Pois o que temos aí é um
personagem que faz ver todas as dobraduras de que é feita a vida social. Muito
longe das binaridades, são nelas ou através delas que os fios que tecem o campo
social são perceptíveis, atravessam e compõem a vida interna da favela Cruzeiro
(e seus territórios), para colocá-la em sintonia fina com toda a complicação do
mundo social.

Diferenças de tempos, diferenças de geração

O tempo e a passagem do tempo deixam as marcas no território e deslocam


suas coordenadas, redefinem o jogo dos atores e as mediações que compõem os
campos de força das disputas locais. São essas marcações que nos dão as pistas
das redefinições da trama do mundo social que veio se redesenhando desde o
início da década de 1990. E os fios que tecem a trama social também passam
pelas histórias das famílias. Aqui, nesse registro, é sobretudo a diferença entre

127
as gerações que nos dá a cifra da atualidade e de toda a complicação que pode
estar contida nos tempos que correm.

O patriarca Genésio e sua extensa família

São moradores antigos, um dos primeiros “invasores” (esse é o termo que eles
próprios utilizam – “é tudo invasão”) no final dos anos 70. São cinco famílias
que dividem o mesmo terreno. São histórias que se cruzam em torno do núcleo
principal, Seu Genésio (70 anos, em 2001) e a esposa, Dona Francisca (69 anos).
Genésio é o chefe de uma família numerosa e, sobretudo, muito unida, que não
se desliga do núcleo familiar. Casaram-se e ajeitaram-se no terreno da própria
favela, com casas bem construídas e bem equipadas. A casa de Seu Genésio dá
para a rua principal. Seis cômodos: três quartos, sala, banheiro, cozinha e mais
uma garagem na frente, ocupada com dois carros da família, um Santana do
falecido marido de uma das fi lhas e um Corsa de outro fi lho casado.
Seu Genésio nasceu em Presidente Prudente (interior paulista) e, em 1952,
foi para o Paraná. Casou-se com Dona Francisca e constituiu família. Trabalhava
como meeiro, plantando milho, arroz, feijão e café. Em 1978, “perdeu tudo” em
decorrência de uma seca. Genésio tinha então 45 anos e veio com a família toda
para São Paulo. Venderam o que tinham, colocaram a família em um ônibus e
chegaram com seus nove fi lhos – “colocamos tudo num saco, juntamos os fi lhos
e viemos! Tudo de ônibus. Chegamos aqui sem nada!”.
A filha Lucila, a mais velha, então com 23 anos, já estava em São Paulo. Veio
antes para encontrar o marido, que foi o primeiro a desistir da roça para tentar
a vida na cidade. Moravam no Jardim São Luís e dividiam uma pensão com dois
outros amigos. Seu Genésio e a família chegam um ano depois. Ficam 15 dias em
sua casa. Por intermédio de conhecidos do Paraná que já estavam por aqui, ficam
sabendo de um barraco disponível na favela Cruzeiro. Seu Genésio “compra” o que
então era uma construção precária de madeira, com apenas dois cômodos. “Fomos
fazendo a casa, como um joão-de-barro”, diz Seu Genésio. Todas as economias
vindas do trabalho foram jogadas nesse empreendimento, que levou anos a fio para
chegar à situação atual. A família de Seu Genésio permaneceu junta nessa emprei-
tada. Os filhos casaram, constituíram família e construíram suas próprias casas
no mesmo terreno, junto à casa dos pais. Além da importância da rede familiar,
havia também a vantagem da oferta de empregos no entorno imediato.

Trabalho, moradia e os tempos da cidade

Alguns meses depois de sua chegada a São Paulo, Seu Genésio conseguiu o
que seria o seu primeiro e único emprego ao longo de toda a sua vida na cidade.
Por indicação do genro, começa a trabalhar numa metalúrgica de Santo Amaro,
emprego que manteve por 19 anos. Os fi lhos também conseguiram, em pouco
tempo, emprego em São Paulo. Lucila já trabalhava na Monark (seu primeiro

128
emprego na cidade), assim como seu marido e os colegas de pensão. O marido
trabalhou lá por dez anos e, Lucila, por dois anos e meio, até o nascimento do
primeiro fi lho. Foi essa também a porta de entrada no mercado de trabalho para
Adalto e Inês: em pouco tempo já estavam trabalhando na Monark. Com exceção
do fi lho mais novo, Jorge (31 anos, em 2001), a estabilidade nos empregos é uma
regra para todos os membros da família. Seu Genésio aposentou-se depois de
19 anos na mesma empresa. Lucila, a mais velha, trabalha há oito anos como
mensalista numa casa de família no entorno de Santo Amaro. Os outros, depois
da Monark, seguiram no emprego fabril, no circuito local das fabriquetas ao
lado. Adalto estava então no mesmo emprego havia 17 anos. Lurdes (41 anos),
assim como a irmã Lindalva (39 anos), ambas solteiras e morando com os pais,
estavam então no mesmo emprego havia muito tempo. Lurdes trabalhava havia
18 anos em uma fabriqueta de peças para máquinas de lavar roupa. O tempo de
emprego não valeu melhorias de salário: era uma empresa pequena, com menos
de 50 trabalhadores, e ela ganhava R$ 350,00. Então, por que não tentara coisa
melhor nos tempos em que o emprego era mais farto? “Fui ficando porque o em-
prego era perto”, Lurdes explicou. Era menos cansativo e o salário mais baixo
era compensado pela economia dos gastos de condução.

***

São histórias que giram em torno do trabalho e da vida interna da favela. Dois
campos de gravitação de suas experiências. Genésio era fi liado ao Sindicato dos
Metalúrgicos de São Paulo. Se hoje o seu mundo parece quase que encapsulado
nas fronteiras da favela e no universo da família, nem sempre foi assim:

No começo eu ia muito na cidade, agora não. No início, a firma não tinha con-
vênio. Então, logo no primeiro ano comecei a pagar o convênio pelo sindicato,
era na época do finado Joaquinzão. Lá tinha de tudo, era tudo gratuito, remé-
dio, médico, tudo. Então eu ia muito no sindicato. No sábado, quando eu não
trabalhava, eu ia no sindicato. Paguei o sindicato até aposentar...

Agora que se aposentou, diz Genésio com um fino tom de ironia: “eu não vou
pra lugar nenhum, só como e durmo...”. Não apenas o patriarca Genésio, mas
muitos outros têm suas histórias marcadas pelos tempos do trabalho regulado e
do sindicato. Aliás, também Lino, o Xerife. O jogo da troca de favores e as redes
de proteção, que o Xerife soube e sabe tão bem manipular, também passou por
aí: diz conhecer os personagens da história sindical recente e não são poucas
as histórias (ou bravatas) que conta ao relatar como conseguiu apoio, favores e
favorecimentos de uns e outros. Além do mais, valendo-se dos “direitos devidos”
de uma grande empresa (que não existe mais) – que ele espera e faz de tudo para
receber – é que ele define parte de seus mirabolantes planos de futuro.

129
Outros seguiram outros fios, participaram de greves e fizeram parte, de um
jeito ou de outro, da movimentação política do período. Assim, por exemplo, a
história de Arivaldo: tinha 16 anos quando chegou a São Paulo, em 1976. Veio
de Minas Gerais, acompanhando a mãe, que havia se separado do marido. Foram
morar em um cômodo alugado no Jardim Miriam. E logo começou a trabalhar
como ajudante em uma oficina mecânica de fundo de quintal. O começo de sua
história na cidade é turbulento. Depois do Jardim Miriam, moram em vários lu-
gares nos arredores da região. Sempre cômodos alugados. Passaram pelo Parque
Santo Antônio. Ali foram enganados por um grileiro, que lhes vendeu um terreno
irregular na estrada de Itapecerica da Serra. Gastaram todas as economias na
compra desse terreno. Sofreram uma ação de reintegração de posse. E perderam
tudo. Foi então que se mudaram para a favela Cruzeiro.
Era o ano de 1977. Nesse período, Arivaldo arruma trabalho na construção
civil. Depois de trabalhar algum tempo em uma lavanderia, consegue emprego
de ajudante de produção na Monark, como tantos outros moradores da favela.
Participa das grandes greves operárias do período, e foi nessa época que começou
a se aproximar do pessoal, que, pouco tempo depois, estaria alinhado com o PT
– “toda vida eu fiz campanha para o PT, mas nunca fui fi liado. Fiz campanha
espontânea, eu ia lá, pegava o material e falava ‘vou distribuir’”. A passagem
pelas greves operárias foi importante no percurso de Arivaldo e iria influenciar
seu posicionamento no jogo político interno à favela Cruzeiro. Sempre participou
da associação de moradores, sempre alinhado “à esquerda”, sempre em relação
tensa quando não de oposição ao Xerife. Apesar da participação nas greves ter
lhe custado o emprego na Monark, Arivaldo avalia a experiência de um modo
muito positivo:

[...] era bom, não me arrependi de ter feito isso, porque valeu como experiên-
cia. Se eu tivesse que fazer novamente, a vida da gente é uma luta mesmo...
quando a gente para e olha pra trás, a gente fala que valeu a pena, porque eu
tentei fazer as coisas boas e não fiz nada para me envergonhar, que eu possa
ter vergonha, porque tentei.

Depois da Monark, Arivaldo só conseguiu empregos irregulares na construção


civil, primeiro para construtoras, depois, como autônomo. Casou-se em 1982. Um
ano depois, nasceu o primeiro fi lho. O segundo fi lho ganhou o nome de Nelson
Mandela:

Foi homenagem. O Nelson Mandela. Aquele homem, acho que não dá para
definir. A luta dele! Uma pessoa que é condenada à prisão perpétua, de repente
ele consegue ser presidente do próprio país que oprimia ele, então a luta dele
serve de inspiração. É impressionante. Vale a pena a perseverança que ele tem.
[...] Não libertou só ele, porque a África tem um continente do tamanho que é
a África, quando a gente olha no mapa e vê tudo aquilo!

130
Diagrama de relações e de referências em torno do trabalho: eram tempos em
que o trabalho operava como um poderoso conector das histórias de cada um com
uma história coletiva (e seus conflitos), com uma trama mais ampla de relações
sociais (e também de composições políticas) e com a cidade.
A conquista das melhorias urbanas na favela: um segundo campo de gravi-
tação. Água, luz, esgoto, entre outras melhorias: foco de um contínuo empenho
cooperativo dos moradores, entre a invenção de soluções improvisadas, pressões
junto à Sabesp, negociações com a Prefeitura. Também aqui se arma um diagrama
de relações e referências. É certo que os jogos de poder e hierarquias internas à
favela foram grandemente traçados em torno (e pelas) melhorias que conseguiram
com o tempo. Conflitos internos não faltaram. Mais do que eventos pontuais da
história interna de uma favela, arma-se aí também o diagrama de relações com
o entorno, com políticos, com disputas políticas, com órgãos públicos, com as
tramas do clientelismo político, com as igrejas locais, com o PT, com agentes
sociais, voluntários, militantes comunitários.
Essas questões são importantes de serem notadas. De um lado, são refe-
rências que nos permitem ver como a história interna da favela compõem-se
com circunstâncias e atores da história social e da história política da cidade.
O catalisador desses vetores foi a Associação de Moradores. As coisas sempre
passam pela associação: dos programas sociais da Prefeitura aos agenciamentos
internos para a solução dos problemas da vida comum. E compõem-se com outras
dimensões e outras facetas da história social e da história política, seja quando
estas vêm cifradas pelas nebulosas relações de poder e influência do poderoso
Xerife, seja quando vêm cifradas pelas forças alinhadas à esquerda, seja, ainda
ou sobretudo, quando tudo isso se mistura e suas diferenças ficam indiscerníveis
nas dobraduras da vida social.
Trabalho, moradia, política: três polos de referência, abrindo-se a feixes de
relações e composições com a vida social, urbana e política. Três polos que se
conjugam numa história comum e na configuração desses territórios. Jogo cruzado
de referências que arma a tessitura de um mundo social e permite que as histórias
singulares entrem em ressonância no tempo político da cidade.
É por referência a essa configuração que se têm elementos para entender
alguma coisa da virada dos tempos para além da constatação do aumento da
pobreza, do desemprego e da violência. Ela ajuda a entender as inflexões que os
mais jovens sinalizam. São os jovens personagens dessas histórias que podem
nos informar alguma coisa sobre os vetores e linhas de força que desestabilizam
campos sociais prévios, ou os redefinem, deslocam suas fronteiras, abrem-se para
outros e também traçam as linhas que desenham as novas figuras da tragédia
social.

131
Na virada dos tempos

Os jovens empreendedores: nos circuitos faiscantes dos serviços globalizados

Os percursos da nova geração são muito diferentes daqueles traçados pelos


pais. São outros tipos de emprego e, também, outros centros de gravidade. As
relações familiares e o apego à família são fortes: todos valorizam a “família unida”,
suas histórias e a solidariedade que existe entre todos. Porém, as referências que
estruturaram a vida de seus pais já não são as mesmas. Se continuam existindo,
não é em torno delas que suas vidas transitam. Seus centros de gravitação já são
outros.
Maurício, 22 anos, é fi lho de Lucila, empregada doméstica, ex-metalúrgica
da Monark. Seu pai teve uma trajetória contínua no trabalho fabril, apenas in-
terrompida por motivos de saúde, quando então passou a trabalhar de motorista
em uma agência de empregos. Maurício começou a trabalhar em 1999. Tinha
então 16 anos e conseguiu, por indicação de conhecidos dos pais, um emprego de
office-boy no Parque Aquático The Waves. Ficou ali apenas seis meses. O parque
fechou, foi à falência. No seu lugar foi construído um supermercado Extra e, ao
lado, pouco tempo depois, uma das maiores e mais sofisticadas academias de gi-
nástica, a caríssima Unysis. Depois, por intermediação do próprio pai, foi trabalhar
também como office-boy numa agência de emprego. Era a agência em que o pai
trabalhava como motorista. Progrediu de office-boy para auxiliar administrativo.
Depois de dois anos, o serviço caiu, a empresa se afundou em dificuldades finan-
ceiras e Maurício perde o emprego. Amarga dois anos de desemprego: inúmeras
e persistentes tentativas sem sucesso. Quase sempre em lojas de shopping centers,
algumas de grifes famosas: “eu queria trabalhar com público, é isso o que eu
gosto e, daí, falei – vou me dar bem”. Fez entrevista na Ellus, marca conhecida
de jeans, mas a concorrência era muito grande: sessenta pessoas para dez vagas –
“todo mundo querendo entrar, pessoal que trabalha, pessoal que estava cursando
faculdade, tinha até modelo, sabe?”. Não foi chamado. Continuou procurando
por dois anos. Espalhava currículos por onde passava, quase se desesperou. A
chance aparece quando uma vizinha o apresenta para a assessora de imprensa
de dois cantores populares, famosos no mercado musical: o cantor pop Maurício
Manieri e o “forrozeiro” Frank Aguiar. Quando o entrevistamos em 2001, fazia
poucos meses que trabalhava lá como auxiliar de escritório. A empresa ficava
no Morumbi, na avenida Giovanni Gronchi. O seu trabalho era atender os tele-
fonemas, cuidar das agendas, marcar entrevistas. Acompanhava alguns shows
dos cantores pela cidade. Esse emprego jogou Maurício em um mundo social
que seria inimaginável para seus pais. Vez por outra, acompanhava os shows,
no Olympia, por exemplo, badalada e prestigiosa casa de espetáculos da cidade.
Gostava do serviço que fazia:

132
Gosto, é bom… Na quinta fui no Olympia, frequento camarins, essas coisas,
é legal… viagem é só ela que faz, porque isso sai caro (hotel, avião, etc.), vou
junto só quando é preciso. Quanto tiver uma turnê no Rio, vou também – só
quando é cidade grande...

Maurício transitava pelo “circuito nobre” da cidade, entre Moema, Pinheiros e


Vila Madalena, passando pelo centro e as danceterias conhecidas. Nesses lugares,
ele assim dizia, há “tudo quanto é tipo de gente que você pode imaginar, desde
garota de programa até milionário, porque fica tudo misturado... você nem sabe
quem é a pessoa...”. Disse que começou a transitar pelos circuitos badalados da
cidade ainda nos tempos em que trabalhava na agência de empregos: fez amigos,
conheceu muita gente e, vez por outra, conseguia entrar de graça nas grandes
casas de espetáculo da cidade, pelas mãos de “gente conhecida” lá de dentro.
Além dos shopping centers, os bares e pontos de encontro no centro da cidade ou,
então, nos agitadíssimos bairros de classe média: Moema e Vila Nova Conceição,
Pinheiros e Vila Madalena. “Tenho amigos de São Paulo inteiro”, diz Maurício. É
bem possível que o rapaz estivesse exagerando um tanto e carregasse nas tintas
com que pintava sua experiência nas “baladas” da cidade. Mas, exagero ou não,
o fato é que ele já estava mirando para outros lugares e de outros lugares. So-
nhava em fazer uma “faculdade de comunicação” e encontrar o seu lugar nesses
faiscantes circuitos dos modernos serviços da “cidade global”. Achava que tinha
jeito e talento para isso.
Pode ser que nos anos que se seguiram à entrevista (2001), esse sonho dourado
não tenha ido longe e que o rapaz tenha batido de frente com as regras mais do
que excludentes dos modernos-moderníssimos circuitos globalizados. Porém, os
lances da vida já configuravam um outro jogo de referências e outros prismas
pelos quais a cidade se lhe apresentava. Diferente da geração dos seus pais, que
valorizam essa espécie de “mundo à mão” que a favela lhes oferece – a família
que está por perto, os empregos ali do lado. Para Maurício, na favela tudo é longe
e a periferia não tem nada: “na periferia não tem mesmo o que fazer... não tem
nada por aqui perto, não tem de jeito nenhum... procura padaria, tem que andar
500 metros. Então é tudo longe, não tem nada... tem que andar bastante para
fazer alguma coisa, tem que ir até o centro, tem que ir até a Vila Olímpia”. Os
lugares são todos muito perigosos – “tem muita briga, às vezes até sai morte”.
Além do mais, é tudo muito feio: “aqui não tem nada, não tem nem paisagem
agradável para ver”.

Mas como é circular em Moema e morar aqui?


Você quer saber como eu me sinto quando eu volto para cá? Eu me sinto estra-
nho, as pessoas me tratam também de um jeito diferente. Porque aqui as pessoas
não tiveram muita oportunidade, tiveram muito menos do que eu, tiveram menos
sorte do que eu. Minha mãe sempre foi diarista, meu pai sempre trabalhou,
sempre tentaram dar o melhor pra gente; era escola pública, mas ele (o pai)

133
incentivava, ficava em cima. Comecei a trabalhar cedo, comecei a conhecer as
pessoas, a aprender bastante. As pessoas aqui, a cultura para eles é nada...
fazem curso até a 8a série e acham ótimo. As pessoas acham que tenho muito
estudo... tem gente como eu, que estudou e começou a trabalhar desde cedo.
Mas a maioria... quando eu digo “não vou nesse lugar porque não é legal”, eles
dizem “ah, você é metido, pensa que é rico ...”. Daí foram se afastando.

Nair, 17 anos, prima de Maurício, tampouco tinha Cruzeiro como referência:


falava da violência local, avaliava que o pessoal era grosso e mal-educado e, além
do mais, achava que os jovens de sua idade pouco se esforçavam para melhorar
de vida. Disse conhecer “a favela toda, todo mundo”, mas que não tinha amizade
“para sair”. Acompanhava o primo nas baladas noturnas. “Quando eu saio”, diz
Nair, “vou lá para o lado dos Jardins, o pessoal lá tem mais educação... não é
essas coisas que a gente vê, desse monte de cara, um querendo ser mais homem
do que outro”. Assim como Maurício, o mundo que Nair tinha em mira era muito
diferente das referências de vida de seus pais.
O pai de Nair é operário metalúrgico. Como seus irmãos e tantos de seus
vizinhos da favela, começou seu percurso fabril pela Monark, em 1978, logo que
chegou a São Paulo, acompanhando a família. Dois anos depois, conheceu sua
futura esposa, também operária da Monark. Ele trabalhava na linha de solda.
Três anos depois, sua vista estava comprometida; pediu para ser transferido
para outra seção, não foi atendido e achou melhor buscar outros rumos. Pediu
para ser mandado embora, recebeu os direitos devidos e amargou oito meses
de desemprego. Em 1982, estava trabalhando em uma outra metalúrgica da
região. Foi mandado embora em uma onda de demissões. Em 1983, começou a
trabalhar uma pequena metalúrgica na rua ao lado da favela. No momento em
que o entrevistamos, ainda se mantinha no mesmo emprego, dezoito anos sem
interrupções. Ainda nos tempos da Monark, em 1980, formou o time de futebol
da favela Cruzeiro e, em 1982, foi eleito presidente do time, o “Clube Cruzeiro”,
cargo que ocupou por 12 anos. Em 1983, já estava participando da associação
de moradores como diretor esportivo e, dali para frente, continuou e persistiu no
seu envolvimento com as melhorias da favela, com a promoção de seu time de
futebol e, sobretudo, com a sua própria família.
Como seu pai, Nair é uma trabalhadora, muito jovem trabalhadora, já empe-
nhada em construir o seu próprio lugar no mundo. Porém, as suas coordenadas
desenhavam um outro universo de referência: o mercado de trabalho já não era o
mesmo da época em que seus pais e tios se lançaram na vida. A cidade tampouco
era a mesma. Nair começou a trabalhar muito cedo e seus percursos dizem algo
dos novos circuitos dos empregos da região: em 1995, aos 11 anos de idade,
trabalhava em uma pequena firma terceirizada que montava brinquedos para o
McDonald’s. Várias meninas da favela Cruzeiro trabalhavam lá. Quem tocava o
negócio era a tia de uma vizinha, na garagem de sua própria casa, em uma rua
próxima à Rua Giovanni Gronchi, avenida que faz a ligação entre o pauperizado

134
Jardim São Luís e o riquíssimo Morumbi. No seu entroncamento estão o Carrefour
e, também, como é de esperar, a loja do McDonald’s.
Trabalhava nesse negócio e, nos fins de semana, distribuía folhetos de propa-
ganda nas ruas. Em 1998, trabalhou seis meses numa empresa que monta canetas
para propaganda: era ano eleitoral e havia muito serviço. Depois, em um período
em que não conseguia emprego nenhum, resolveu montar, junto com a mãe, um
negócio de revenda de roupas. Não deu muito certo. Em 2001, aos 17 anos,
conseguiu, por indicação de uma amiga, emprego como atendente na Companhia
Atlética, no Shopping Morumbi: lugar de ricos e famosos em busca de “saúde e
boa forma”. Para ela, a boa sorte havia chegado. É de lá que Nair esperava alçar
voo: estava apenas esperando chegar a maioridade para conseguir empregos mais
promissores nas lojas desse luminoso circuito do consumo de alta renda. Apostava
no apoio que acreditava que haveria de receber do gerente – “ele gostou do meu
trabalho”. E também dos “conhecimentos” que fez de pessoas que trabalhavam
como vendedores em lojas de marca nos shopping centers. Nair também pensava
em seu futuro: queria aprender inglês, fazer um curso de enfermagem, juntar
algum dinheiro nessa profissão para então realizar o sonho de uma faculdade de
fisioterapia. Enquanto esperava a boa sorte, Nair acompanhava o primo Maurício
em suas andanças pela cidade, entre shopping centers e os bares da Vila Madalena,
Pinheiros e Moema.
Os dois primos tinham em mira outros horizontes. Isso não significava a recusa
da sociabilidade local. Na verdade, entre os circuitos ampliados da cidade e o
mundo local da favela não há propriamente oposição. Coexistem tempos, circuitos
e redes distintas dentro do mesmo espaço. São mundos diferentes, mas o domínio
dos dois códigos não é excludente e eles transitavam entre um e outro com desen-
voltura. Assim, Nair, tão crítica em relação aos seus jovens vizinhos, não deixava
de notar seus vínculos locais: as pessoas são solidárias, dizia, “quando tem um
problema todos tentam ajudar”. Além do mais, “todo mundo que mora aqui, as
minhas amigas cresceram junto comigo, a gente brincou junto, gosto das pessoas...
desde quando nasci eu moro aqui, então já acostumei com o pessoal daqui”.
Maurício também dizia ser difícil sair dali, valorizava a família e o apoio que
sempre recebera dos pais. Para ele, a sua “boa sorte” não veio por acaso. Falava
com admiração do pai, que sempre trabalhou e valorizava a perseverança no
trabalho, e da mãe, que batalhou a vida inteira. Além do mais, dizia Maurício,
ele se empenhava e se esforçava em melhorar de vida: com o segundo grau
completo, queria continuar os estudos; nunca vacilou na procura do emprego e
tentava tirar o melhor de si para encontrar um lugar na vida. Enfim, Maurício é
um empreendedor, aliás, como sua prima Nair. É assim que ele se enxergava (e
ela também). E, para ambos, é esse o crivo que faz a diferença em relação aos
seus amigos de infância e vizinhos. “Também tem gente como eu”, dizia Maurício,
“gente que batalha e quer mudar de vida”. Porém, avaliava: “a maioria fica onde
está, vai se acomodando, não quer saber de nada, não tenta outros voos para suas
vidas” e vai se enredando pelos caminhos tortos da vida. Essa é uma clivagem

135
complicada, bem sabemos. O ethos empreendedor do individualismo mercantil
está todo cifrado aí, também sabemos. Mas é nesse código que ele formulava as
esperanças de construir uma vida plausível. É nessa clivagem que está o nervo
(um deles) exposto do mundo.
Maurício é um personagem que esclarece algo sobre o modo como a dobra-
dura entre os mundos é feita, entre a materialidade da cidade e seus circuitos e
a natureza das conexões (e dos conectores) que operam esse jogo de acessos e
bloqueios. É aí, nessas dobraduras, que se desenha o drama social. O problema
não é bem morar em favela. Maurício tampouco via nisso um obstáculo para
entrar nos “circuitos modernos” onde transitava, ou para seguir uma carreira na
“área de comunicação”, como ele dizia. No mínimo, isso nos obriga a usar de
toda cautela quando lançamos mão das noções em voga de exclusão social. Não se
trata de negar ou relativizar o drama social. Mas de tentar definir melhor o campo
ou o plano em que o problema pode ser configurado. Há sempre passagens que
podem ser percorridas. Talvez o problema esteja nessas passagens, nos acessos
modulados que elas permitem e nos seus bloqueios. Talvez o problema esteja
também no modo como as referências, trabalho, moradia e sociabilidade vão se
compondo (ou decompondo) na configuração dos mundos sociais.
Esses jovens personagens, terceira geração da família de Seu Genésio e Dona
Francisca, estavam encontrando passagens para o mercado de trabalho, por mais
que estas fossem incertas e não necessariamente promissoras. De toda forma,
estavam indo. Não é o caso de muitos de seus vizinhos, talvez a maioria deles.
Mas por isso mesmo os seus percursos nos ajudam a compor o quadro das com-
plicações atuais: o mundo dos serviços e seus circuitos modernos, verdadeiro
campo de gravitação (referências, possibilidades, também os bloqueios) em um
cenário de encolhimento dos empregos e de trabalho precário.

O trabalhador precário: no circuito fechado das agências de trabalho


temporário

Os percursos desses jovens encantados com os circuitos faiscantes da “cida-


de global” têm que ser confrontados com outros, com os circuitos desenhados
nas franjas da cidade global, que se alimentam da riqueza que aí circula sem
conseguir romper o círculo de ferro do trabalho precário. Assim, a história de
Jorge, 31 anos, o fi lho mais novo do patriarca Genésio e tio, portanto, dos jovens
empreendedores.
O rapaz tem uma história em tudo e por tudo diferente dos irmãos mais ve-
lhos. Tem uma trajetória ocupacional errática, não consegue se estabelecer nos
empregos e vai seguindo os anos entre períodos de trabalho precário e desem-
prego. Começou a trabalhar cedo, aos 13 ou 14 anos, num ferro velho próximo à
favela Cruzeiro. Também trabalhou como “catador de bolinha” nas quadras de
tênis do Clube Esportivo do Banco do Brasil, ao lado da favela. O emprego mais
estável que conseguira foi em uma empresa que fazia tabuleiros e barracas para

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os feirantes da região. Tinha 17 anos e fora registrado em carteira de trabalho
quando chegara aos 18 anos. Ao todo, ficara ali por cinco anos. Aos 23 anos
resolveu tentar suas chances, queria trabalhar em empresas metalúrgicas. Era o
ano de 1993. Jorge entra no mercado de trabalho num momento em que as coisas
já tinham mudado muito. Impossível reproduzir a estável trajetória de trabalho
de seus irmãos. Nos anos que se seguiram, Jorge transitou por uma sucessão
de trabalhos temporários. Não conseguiu se estabelecer em nenhum lugar. No
máximo, por um ano e meio em uma pequena metalúrgica nas proximidades.
Depois, não mais do que alguns meses em uma empresa ou outra.
O único traço de continuidade em sua história ocupacional era a intermedia-
ção das agências de emprego temporário. Sem agências, “nem adianta insistir”,
dizia Jorge. E o único traço comum com seus irmãos mais velhos é a circulação
pelo que poderíamos chamar de mercado local. Se no caso dos outros esse raio
de circunferência dos empregos foi, em grande parte, demarcado pelas redes
sociais por onde circulavam informações, no caso de Jorge a coisa era diferente.
Os mais velhos entraram e se estabeleceram no mercado de trabalho em tempos
de “emprego farto”. No caso de Maurício, os tempos são outros e a entrada no
mercado se faz em boa medida pela intermediação das agências. A primazia do
mercado local é imposta pelas próprias agências? Essa é a avaliação do próprio
Jorge: as empresas não aceitam quem mora mais longe, pois isso as levaria a
um maior ônus legal e obrigatório (vale-transporte) para cobrir despesas com
transportes.

As empresas só pegam gente da redondeza?


Diz Jorge: É, na redondeza, que nem em Santo Amaro, tinha uma agência que
tava dando... tinha uma firma aqui... acho que perto da Cidade Dutra, mas
já tava dando preferência pra quem mora mais no local, porque... não quer
pagar condução...
[...] eles pagam duas condução, mais de duas eles, não... se você quiser, você tem
que pagar do seu bolso. Aí já fica complicado, porque o salário é mixaria.
[...] Às vezes a agência dá condução... tudo é a agência que dá... tem firma que
quer mais gente da redondeza, que nem... tem um mercado aqui na Raposo
Tavares, tem duzentas vagas lá... o cara fica lá, você conversa, nem adianta você
conversar porque eles quer mais pessoas da redondeza mesmo, nem adianta ir
lá. Eu mesmo, eu outro dia fui numa agência, tinha uma firma aqui no Taboão,
a mulher falou: “Você mora onde?”. Eu falei que morava aqui na Estrada de
Itapecerica; ela falou: “Ah, pra você já não serve, o pessoal quer gente lá da
redondeza mesmo, porque eles não pagam condução”... e não davam benefício
nenhum, não davam cesta básica, não davam vale-transporte, e ainda por cima
a pessoa tinha que levar marmita...

É verdade que alguns furam o cerco e conseguem emprego. Mas, então, en-
tram em um circuito fechado, muito difícil de ser rompido. Assim aconteceu com

137
Marcelo, 22 anos, que morava em um bairro ao lado, quase encostado à favela
Cruzeiro. Tinha o secundário completo, fizera curso de informática, um outro curso
com o indefinível nome de “técnicas comerciais” e estava sempre atento a outros
tantos que lhe surgissem pela frente. Conseguiu um emprego de caixa no Carre-
four. Um trabalho temporário. Até que se saiu bem e conseguiu ser contratado.
Mas ponderava, com razão, que caixa de supermercado não é futuro e nem dá
futuro para ninguém. No máximo, de caixa a repositor de estoques. Mário espe-
rava mais da vida. Foi demitido e se lançou novamente no mercado de trabalho.
Porém, como ele dizia, a sua ficha já estava marcada: uma vez em supermercado,
sempre em supermercado – “no que você coloca a experiência de supermercado
no currículo, um American Express, uma Xerox, uma firma não vai te chamar, o
cara da empresa vai te olhar e vai falar, o cara é supermercado, vai trabalhar em
supermercado”. Tentou por todos os meios disponíveis outras entradas no mercado
de trabalho: apelo a amigos e conhecidos, curricula vitae espalhados por todos
os cantos. A resposta era sempre a mesma: as empresas não contratam ninguém
a não ser pela intermediação das agências, agências de emprego e agências de
trabalho temporário. Depois de algum tempo, foi chamado para trabalhar no Extra
(hipermercado, ao lado do Carrefour). “Caí na real”, disse Marcelo, “não tem jeito”,
ou isso ou, então, o desemprego. Aceitou o emprego. Quando o encontramos (em
2001), já havia sido promovido a repositor de estoques.
Voltando a Jorge, as luzes faiscantes dos serviços globalizados não faziam
parte das suas cogitações. Com seus 30 anos, seus percursos no mundo urbano
foram diferentes daqueles dos seus muito jovens sobrinhos. Circulou, sim, pela
cidade, mas para comprar discos e CDs nas lojas que se concentram em duas ou
três galerias do centro, ponto de encontro das “tribos urbanas” aficionadas do
rap e do hip-hop. Era lá que ele se abastecia para movimentar um animadíssimo
grupo de som que formou com amigos nos anos finais da década de 1980. Ani-
mavam festas particulares no entorno, também em bares da região. Com o tempo,
o grupo se desfez. Os bares fecharam as portas e a clientela foi sumindo. Parte
dos membros do grupo também sumiu – alguns foram mortos, outros fugiram:
“[...] acabou, não tem mais nada... aqui, mataram o colega nosso aí mesmo... aí,
acabou com tudo, né, não tem mais nada...”.
Maurício é figura de passagem entre as gerações dos irmãos e dos sobrinhos.
Mas, então, vale re-situar as referências: Maurício entrou na vida adulta (anos 90)
em um mundo já revirado. Viveu a virada dos tempos também pelo outro lado, o
da violência que foi, pouco a pouco, dizimando seus amigos e que terminou com
o grupo de som que acompanhou por sete anos de sua história recente. Além do
grupo de som, também um muito ativo grupo de pagode. O grupo tocava num
posto de gasolina na estrada de Itapecerica da Serra e, também, em alguns clu-
bes da zona leste da cidade. Chegou a tocar até mesmo em cidades do interior
e no litoral paulista. Mas o tempo fechou. Ao lado do posto, os donos de uma
padaria, de uma pizzaria e de um restaurante Frango Frito pressionaram para
acabar com a festa. Talvez a concorrência, pois as pessoas preferiam a animação

138
do pagode. Mas há também histórias confusas de batidas policiais e gente que
foi pega com droga, um outro que estava armado. Há relatos de denúncias feitas
pelos comerciantes do entorno de que o lugar estaria se tornando um ponto de
distribuição de drogas. Em 1997, o grupo de pagode terminou. A violência que
começou a campear na região, assim nos foi contado, terminou por assustar as
pessoas. Preferiam lugares fechados, mais seguros, como os karaokês que existem
nas avenidas que cortam a região. Ao que parece, parte do pessoal do pagode
terminou por se enroscar nos caminhos da droga e da criminalidade violenta. As
histórias que Genalto (20 anos), vizinho do patriarca Genésio, conta são confusas,
talvez haja um bocado de exagero e um outro tanto de ficção. É preciso tomá-las
com precaução. Porém, verdade ou ficção, traçam as referências que compunham
o cenário social, tal como este se configurou no final dos anos 1990:

[...] Tocava, tocava eu e (cita o nome de quatro colegas)... Ia bastante gente, aí,
de um tempo para cá, os cara que tocavam com a gente começaram a entrar em
ideia errada, o outro lá começou a roubar, tomou um tiro na boca e tá preso,
ele e o primo dele – roubavam banco mesmo, aí um dia resolveu roubar aí
na boca da favela um carro (de entrega) da Souza Cruz (empresa de cigarros).
Aí, a casa caiu, foi preso, levou um tiro na boca [...] O outro morreu, ele tava
nessas aí, mas ele morreu na boca da favela, do outro lado, na entrada de lá,
de treta com os cara, os cara ainda avisaram pra ele “sai fora que os cara vão
te matar”, “mata nada”; aí, no outro dia os cara mataram ele – os caras ainda
avisaram... ele não acreditava, foi até na quermesse que tava tendo na rua de
lá, quando ele desceu, os cara meteu o sangue nele e no irmão dele... Acabou
o grupo por causa disso, não dava certo. Ainda tentamos fazer um grupo com
os cara daqui de cima, mas não deu certo...

As quermesses e as festas juninas, que haviam sido também animadas e


famosas, atraindo gente dos bairros contíguos, também deixaram de acontecer.
Eram festas organizadas pela Igreja. Foram se acabando. Por causa da violência,
assim disseram. O pessoal ficava com medo, avaliam. Histórias de gente que foi
morta durante a festa (acerto de contas). As festas acabaram, o grupo de pagode
se desfez, o grupo de som também. A diversão dos outros tempos acabou e a
molecada de hoje em dia, dizia Jorge, não quer mais saber de futebol, só quer
mesmo ter uma motinha:

[...] o pessoal que a gente andava antigamente mesmo, a gente era muito unido,
hoje em dia você não vê a molecada, hoje em dia a molecada é... mais andar de
motinha, isso e aquilo, quer mais saber de moto, isso e aquilo... na nossa época,
mesmo quando a gente era mais adolescente, era tudo diferente, tinha campo,
a gente gostava de jogar bola, as molecada hoje em dia nem isso liga. [...] É,
antigamente na nossa época era muito difícil da gente ter uma motinha, hoje em
dia é fácil, hoje você com mil reais você compra uma moto aí, uma moto.

139
E para piorar as coisas, não dá mais para voltar tarde da noite para casa. A
violência é muita, é tudo muito perigoso:

Naquela época era melhor pra se divertir do que hoje. Porque você podia sair,
vamos supor, nove horas, chegar meia noite, uma hora que ninguém mexia com
você. Hoje não, se você sai, vamos supor, dez horas da noite, você tem que
esperar o dia amanhecer pra você poder vir embora, você não sabe se você vem
ou não porque... é muita violência, hoje em dia aí é muito neguinho que anda
drogado. Naquela época não, a pessoa ia com intenção de curtir mesmo.

Enfim, Jorge também “contrariou a estatística”, para evocar o trecho da música


dos Racionais MC’s, grupo rap que é uma referência importante nas periferias
da cidade e certamente um polo de identificação para Jorge, como para tantos
outros.

O segurança: nos circuitos da segurança privada, onde todos os fios se cruzam

Passagem por passagem, nada mais reveladora que aquela realizada por Ge-
raldo, 27 anos, segurança em um hotel cinco estrelas na Avenida Luiz Carlos
Berrini, coração globalizado da cidade, polo de irradiação do chamado terciário
moderno de última geração. Geraldo é o fi lho mais velho do Xerife. Se Lino, o
Xerife, deixou-se enredar na vida local da favela, entre expedientes obscuros da
vida e as malhas do clientelismo local ao velho estilo, Geraldo aprendeu muito
bem a transitar pelos circuitos modernos do mundo social. Como os jovens empre-
endedores seus vizinhos, sabia fazer as passagens entre o mundo da favela e os
circuitos da “cidade global”. Porém, não deixa de ser curioso notar: um percurso
inteiramente enredado nessa nebulosa de relações duvidosas e obscuras tramadas
em torno do Xerife, mas que se desdobrava na muito prestigiada atividade de
segurança privada nos circuitos nobres da “cidade global”.
Ele começou a trabalhar aos 19 anos. Era o ano de 1993: trabalhou como
garçom em um flat, em Moema. Ficou apenas três meses. Depois, trabalhou por
um ano em uma das pequenas fábricas ao lado da favela. Por intermédio de um
amigo, conseguiu emprego de fiscal em lojas e circulou em algumas das impor-
tantes lojas de departamento e shopping centers da cidade. O trabalho o lançou
pelos luminosos circuitos dos serviços modernos. Porém, era um trabalho instável,
Geraldo não conseguia se fi xar em canto algum:

[...] eu circulava em vários shoppings; quando cansava de ficar em um, ia pra


outra, eu trabalhei cinco meses na Besni, trabalhei uns 4 meses na 24 de
Maio, trabalhei um longo tempo na Besni do Jabaquara, depois fui pra C&A;
fiz a C&A da 24 de maio, fiquei uns 5 meses, nesta empresa eu fiquei um ano
e cinco meses, depois eu fui pra C&A do Interlagos (Shopping).

140
A grande virada de sua vida foi o curso de segurança que fez em 1997. O
curso para vigilante é intenso: além de defesa pessoal, manuseio de armas, de-
fesa pessoal e primeiros socorros, contempla aulas de direitos humanos. É uma
profissão muito regulada e fiscalizada pela Polícia Federal: além de atestado
de antecedentes criminais, sempre reatualizado, é obrigatória a realização de
cursos de reciclagem a cada dois anos.9 Através desse curso, Geraldo mudou de
patamar: entrou no circuito nobre da segurança privada. Apesar de ser este um
emprego muito instável (em geral, está sujeito a todas as inseguranças e também
irregularidades das redes de subcontratação) e muitas vezes exaustivo (Geraldo
tem que ficar de pé o tempo todo e, além do mais, se mostrar prestativo e gentil
com os endinheirados clientes), Geraldo está encontrando aí uma chance de es-
capar da viração de todos os dias de muitos de seus vizinhos. Está no “mercado
formal”, é um emprego hiper-regulado (pela Polícia Federal) e o trabalho o lança
nos luminosos circuitos dos serviços modernos.
Como pudemos flagrar em outros lugares, o emprego de segurança era vis-
to como muito promissor. Como nos disse um jovem, também segurança, que
morava no também pauperizado e muito mal-afamado vizinho Parque Santo
Antônio, bairro conhecido por seus altíssimos índices de morte violenta, este
é “um emprego certo, tem mercado garantido”! Sivaldo, 28 anos, casado, dois
fi lhos, também fez um curso de segurança credenciado e regulado pela Policia
Federal. Já prestou serviços em agências de alguns dos mais importantes bancos
brasileiros, também em lojas dos shopping centers mais sofisticados do rico e
globalizado quadrante sudoeste da cidade. A empresa de segurança para a qual
trabalhava não teve seus contratos renovados. Ele perdeu o emprego, mas não
ficou muito tempo parado. Quando o entrevistamos (em 2002), trabalhava em
uma empresa que prestava serviços em bingos e casas noturnas. Sivaldo não
soube explicar muito bem o estatuto dessa empresa, era muito pouco claro o
modo como os serviços eram contratados e remunerados. Muito provavelmente a
empresa compunha esse universo amplo e também expansivo, senão dos serviços
clandestinos, desses que transitam nas fronteiras incertas do legal e ilegal por
conta de expedientes diversos para escapar das regulações oficiais que vigoram
nos serviços de segurança (cf. Caldeira, 2000).
Sivaldo morava em um Cingapura, conjunto habitacional construído na gestão
Maluf na prefeitura de São Paulo, no lugar onde antes existia uma imensa favela
que então ocupava parte considerável da paisagem pauperizada do Parque Santo
Antônio. Portanto, como Geraldo, Sivaldo nasceu e cresceu em uma favela. Sua
família e vizinhos foram desalojados e depois transferidos para o Cingapura, por
volta de 1996. Sivaldo começou a trabalhar muito cedo, aos 14 anos. Já havia
sido office-boy, ajudante em barraca de feira e nos mercadinhos locais, coletor
de lixo, trabalhou em lava-rápido, montara junto com amigos um bar e, depois,

9
Para uma descrição detalhada dos serviços de segurança e seus procedimentos de recru-
tamento e treinamento, ver Cubas (2005).

141
uma barraca de pastéis, e ainda havia sido cobrador em peruas clandestinas –
foi um “bico”, diz ele, que arrumou entre os amigos perueiros, seus vizinhos no
Parque Santo Antônio. Não ficou muito tempo nessa atividade. A perua em que
trabalhava foi assaltada, ele achou que o negócio era muito perigoso e queria coisa
melhor da vida. Tinha então 23 anos e vendeu o carro que possuía para pagar
as mensalidades de curso de segurança. É nesse ramo que pretendia se fixar e
progredir na vida. Perguntamos: Como foi que resolveu ser segurança?

Ah, eu tinha uma vontade de ser segurança, já uma vontade própria, e também
pelo fato de ser a área na qual você não fica desempregado, é a única. Você se
especializa nisso... é o mais viável; onde você for, tem emprego.

Como tantos outros de sua geração, falar dos amigos é fazer a contabilidade
das mortes. Dos tempos de infância e adolescência, disse ele, “só salvou dois
ou três”. Os outros foram mortos, foram executados ou, então, sumiram pelos
caminhos tortos da vida. Sivaldo conhece bem as coisas da vida e talvez seja
isso que lhe permitia um notável distanciamento crítico dessa sua “promissora”
atividade. É perigoso, dizia Sivaldo. Não apenas porque se está exposto aos riscos
próprios da profissão. Mas também porque, “do lado de cá”, a coisa não é fácil.
Os seguranças são pressionados pela bandidagem, ele nos disse: recebem ofertas
de dinheiro, de proteção e a promessas de uma porcentagem na “fita”. Um jogo
pesado de pressão para que forneçam o “mapa da mina”:

[Eles querem saber tudo] [...] todas as dicas, onde estão as falhas, em que po-
sição fica cada um, que arma cada um usa, quem é o gerente, onde ele mora,
telefone, o percurso dele, quem fica nos caixas, quantos vigilantes ficam na
portaria, como que você vai poder falsificar para facilitar a entrada.
[...] Então como é que fica? Tem vigilante que está precisando de dinheiro, que
está desesperado, daí eles vão lá, fazem uma reunião na casa do “grandão” lá,
passa tudo, eles analisam, fazem uma segunda, terceira reunião, uma quarta
e quando eles se sentem preparados, eles falam – vai ser tal dia, está tudo
certinho.

E Sivaldo ainda comenta:

Então, na verdade, os caras estão gastando uma puta grana para se proteger
e, na verdade, estão dando as dicas do caminho das pedras, do caminho na
mina. É isso, é isso porque o dinheiro é a maldição do mundo, porque o ele
sabe que pode conseguir mais, ele prefere o dinheiro mais do que a integridade
dele ali... acha que, com o dinheiro no bolso, ele é o dono do mundo e acaba
perdendo sua integridade ....

Mas, ele avaliava, o esquema de segurança nos bancos, prédios de escritório


e nos shopping centers mais ricos e prestigiosos da cidade estava muito sofisticado

142
e poderoso. A entrada nesses domínios havia ficado muito difícil. Os fluxos do
crime deslocaram-se para os lados mais próximos da periferia pobre da cidade:
caixas eletrônicos, supermercados, comércio local ou então os bingos e casas
noturnas que se espalham pelas avenidas que cortam esses pedaços periféricos
da cidade. Sivaldo sabia do que está falando:

[...] para morrer basta estar vivo, não interessa se trabalha de segurança,
seja onde for, tanto na perua quanto lá no bingo. Que nem, geralmente, quem
conhece, quem nasceu e cresceu na periferia, sabe que no final do ano são os
alvos do crime organizado, para passar um final de ano bom, né? Existe isso.
Eles se distanciaram da área bancária, que eu trabalhei na área bancária, eles
se distanciaram pelo fato da área bancária estar com uma segurança ótima...
então, eles tem que correr para outra coisa. No bingo, eu já soube de fatos... é
um alvo, rola muito dinheiro, então é um alvo. Então, nós estamos lá para... não
vou dizer para bater de frente com eles, porque eu tenho família, os outros têm
família e mesmo no aprendizado do dia a dia na academia a gente aprende que
não há necessidade da reação, nós temos que prever antes do acontecimento.
Se eles estiverem lá dentro, não há como reagir, é só pegar e pedir a Deus...

Os seguranças privados são personagens inescapáveis de “cidade dos muros”


de que fala Teresa Caldeira (2000), fazem parte dos dispositivos de privatização
dos espaços públicos (e da cidade), ao mesmo tempo em que são mobilizados em
um mercado expansivo, também globalizado, que faz da segurança uma merca-
doria vendida sob formas cada vez mais sofisticadas e variadas. Em torno deles,
todos os fios se cruzam: o mercado, as fortalezas globalizadas da cidade, os cir-
cuitos faiscantes dos modernos equipamentos de consumo, também as fronteiras
incertas entre o legal e ilegal, lícito e ilícito Também o seu transbordamento para
as periferias da cidade: o moderno-moderníssimo trabalho precário, as redes de
subcontratação e essa indiferenciação entre o formal e informal, o legal e ilegal
que vai seguindo as linhas que fazem as tramas da cidade. O que os nossos per-
sonagens aqui nos descrevem e nos fazem ver, em seus percursos, é que essas
linhas perpassam as fortalezas globalizadas da cidade, transbordam seus muros
ou vazam pelos poros desses muros e, tal como outros tantos fluxos urbanos, vão
também redesenhando os territórios e seus circuitos. Modo muito peculiar pelo
qual se estabelece a relação entre trabalho e cidade pelas vias de uma cadeia de
mediações e conexões nas quais estão cifradas todas as facetas do mundo urbano
atual. Não é preciso lançar mão de nenhum argumento miserabilista para se ter
uma medida da tragédia que se constela no mundo...

143
SEGUNDA PARTE

Deslocando o ponto da crítica


CAPÍTULO 4

Tramas da cidade:
fronteiras incertas do informal, ilegal, ilícito

Com quais parâmetros colocar em perspectiva e sob perspectiva crítica os


ordenamentos sociais urdidos nos últimos anos, na virada dos tempos? Essa é a
pergunta que pautou, em grande medida, as questões trabalhadas nos capítulos
anteriores. Agora, talvez seja o momento de relançá-la para especificar melhor
as questões em pauta, desdobrar consequências e, sobretudo, definir o crivo pelo
qual se propõe a descrição das tramas urbanas – a cidade e suas questões. Este
capítulo, na verdade, opera como ponto de passagem entre o trabalho exploratório
da primeira parte e, na sequência, na segunda parte, também uma experimenta-
ção, porém em torno de um foco mais preciso, pertinente à teia dos ilegalismos,
velhos, novos ou redefinidos, tal como vieram se conjugando no correr dos últimos
anos. Em um primeiro momento, achados de pesquisa que foram preenchendo
nossos diários de campo, conforme prosseguíamos a prospecção das tramas da
cidade, seguindo as pistas que nos eram entregues pelas trajetórias urbanas e
seus territórios, para evocar questões tratadas no capítulo 2. Agora, nas páginas
que seguem, um esforço no sentido de formular as questões teóricas e empíricas
que esses ilegalismos sugerem, questões de pesquisa que serão trabalhadas, na
última parte deste capítulo, em três cenas descritivas, micro-cenas que lançam
as pistas que serão perseguidas nos dois últimos capítulos.
Parâmetro descritivo, parâmetro crítico: afinal do que se trata? Não se está
aqui sinalizando um problema de ordem metodológica ou tão simplesmente a
exigência de rigor em uma descrição bem feita da ordem das coisas. A questão
coloca-se em outro patamar. Trata-se de uma indagação sobre o jogo de referên-
cias que permitam traçar o plano em que os problemas se colocam: o plano em
que os problemas podem ser formulados e lançados como questões orientadoras
em uma necessária prospecção do mundo social que vem se desenhando nos
últimos tempos.
É uma questão que se arma a partir das anotações de pesquisa que vieram
se acumulando ao longo de muitos anos de andanças pelas periferias da cidade.
Parte delas foi trabalhada nos capítulos anteriores. Outras serão tratadas neste e
nos próximos. Mas é também uma inquietação que acolhe a questão que Francisco
de Oliveira (2007) nos propõe quando decifra os sentidos da implosão da política
e de suas mediações sob a lógica da autonomização dos mercados e financeiriza-
ção da economia. A “política numa era de indeterminação” é a expressão forte
que traduz esse estado de coisas e o “Estado de exceção”, a categoria analítica
que acusa o esfacelamento da política agora transformada na administração das

147
urgências: um permanente estado de urgência que derroga as regras dos direitos,
implode os contratos, desestabiliza os acordos e, sobretudo, desativa o espaço da
política, já que o movimento dos atores perde qualquer previsibilidade em um
cenário em que tudo transita para além de qualquer medida que, justamente,
deixou de existir. Na formulação precisa de Laymert Garcia dos Santos (2007),
em seus comentários aos textos de Francisco de Oliveira, a noção de “exceção
permanente”, de evidentes ressonâncias benjaminianas, aparece como categoria
política para caracterizar uma situação em que a política foi implodida por todos
os lados, deslizando para a gestão das urgências combinada com formas renova-
das de coerção. Não é o caso aqui de reconstituir os argumentos de Francisco de
Oliveira. Mas, sim, de enfatizar que a potência crítica da questão lançada está no
crivo pelo qual situa o ponto de virada dos tempos que correm, colocando-se em
fina sintonia com os problemas de nossa atualidade. Isso tem consequências que
ainda será preciso aquilatar. Pois é questão que nos obriga a um deslocamento do
ponto da crítica, isto é: deslocamento do plano de referência para que a reflexão
critica possa ser exercida. Em outras palavras, a exigência de um outro jogo de
referências para descrever nossa atualidade, que permita prospectar as linhas de
força pelas quais o estado de coisas atual se configura e se transforma, os pontos
de fricção dos ordenamentos sociais que vêm se desenhando ou já se constelaram
nessa virada dos tempos.
Simplificando muitíssimo, trata-se de um deslocamento do terreno em que
nos acostumamos a tematizar as “incompletudes” da sociedade brasileira, esse
terreno no qual fazia sentido a proposição habermesiana das chamadas promessas
não realizadas da modernidade. Nesse terreno, terreno da afirmação do espaço
público democrático e dos direitos em sua vocação universalizante, é que faz (ou
fazia) sentido a discussão sobre exclusão social e a promessa de um alargamento
do espaço democrático para nele incluir os que dele foram privados.
Em outras palavras: leis e direitos, espaços públicos e democracia definiam
um espaço conceitual a partir do qual os problemas eram definidos, as questões
eram formuladas, os devires eram diagnosticados e os horizontes de possíveis eram
delineados em seus bloqueios e também em suas promessas. Nos anos 1980, como
tantos outros leitores de Hannah Arendt e Claude Lefort, estávamos investidos
das promessas democráticas que os tempos nos abriam, tratávamos de prospec-
tar a força mobilizadora da “linguagem dos direitos” e de trabalhar os sinais de
sua potência histórica percebida nos termos de uma sempre renovada “invenção
democrática”, para lembrar aqui o título do então famoso (e hoje esquecido) livro
de Lefort (1981), um livro que marcou época e deu a pauta para boa parte dos
debates que se seguiram naqueles anos. Pois bem, vinte anos depois, no lugar de
Claude Lefort é Giorgio Agamben (2001), aliás também fi lósofo, que parece dar
a pauta, acusando a virada dos tempos ao lançar um crivo que permite descrever
a modernidade – e a nossa atualidade – sob outro jogo de referência.
Estado de exceção e vida nua são noções que compõem um espaço conceitual
que circunscreve outra ordem de problemas, mobiliza outras categorias e outras

148
referências, joga com outra série de determinações do estado de coisas que con-
formam nossa atualidade. Perscrutando o mundo que veio se desenhando desde
as décadas finais do século XX, Agamben oferece um princípio de inteligibilidade
para a chamada crise dos Estados nacionais, a erosão de suas regulações e de seu
ordenamento jurídico. É nesse sentido que ele recupera as reflexões de Hannah
Arendt (1989) e desdobra suas consequências para o cenário contemporâneo,
cinquenta anos depois de ela ter lançado a discussão sobre a “crise do Estado-
nação e o fim dos direitos humanos”: a figura que dá a cifra para o entendimento
do cenário atual são justamente os refugiados e deslocados em suas múltiplas
e proliferantes versões contemporâneas, concentrados nos inúmeros campos de
confinamento em várias regiões do planeta e nas bordas das grandes cidades
dos países do dito Primeiro Mundo e de todas as outras, em torno dos quais é
acionada a lógica das urgências que combina ajuda humanitária e legislação de
exceção que, após o 11 de Setembro, ganha a força dos fatos num mundo em que
a “exceção se tornou a regra”.
É bem verdade que as relações entre vida nua e poder soberano, entre vida e
política, relações que estão no núcleo da construção teórica do fi lósofo, é matéria
sujeita a polêmica e envolve uma discussão que vai além do que se pretende aqui
fazer. Para a discussão que aqui nos interessa, o que importa é apenas demarcar
esse deslocamento do jogo de referência que nos é proposto. Entre Claude Lefort
e Giorgio Agamben há mais do que os ventos mutantes dos modismos intelectuais.
Há de se refletir sobre o que se passa entre os dois registros, pois aqui se tem
justamente um via para se pensar sobre o que acontece nas dobras desse abalo
dos andaimes do mundo sobre o qual nos acostumamos a pensar.
Pois entre um e outro, ou seja, nos vinte anos que separam os dois registros
do debate, as noções de leis, direitos, cidadania e espaço público foram esva-
ziadas de sua potência crítica. Melhor dizendo: foi esvaziado o espaço concei-
tual em que essas noções se compunham e se articulavam em diálogo com as
questões que os tempos colocavam e a brecha de futuro que os acontecimentos
permitiam vislumbrar e nomear. No correr dos anos 1980, era um debate de
múltiplas entradas, mas que construía o solo no qual circulavam as noções de
direitos, de cidadania, de espaço público e democracia. Questões inscritas no
campo de debate rapidamente inventariado nas primeiras páginas do primeiro
capítulo. Naqueles anos, as promessas de uma cidadania ampliada desenhavam
algo como uma cartografia de questões e inquietações, sempre polissêmicas e
sempre polêmicas, que conferiam sentido e inteligibilidade aos acontecimentos
de um presente vivido, e assim figurado, no tensionamento entre o legado de uma
história autoritária e excludente e os campos de possíveis que se descortinavam
na dinâmica dos conflitos sociais que então se abriam por todos os lados. Talvez
seja isso que esclareça o sentido polêmico e crítico das noções de direito e de
cidadania na medida em que compunham uma linguagem política que balizava
os critérios pelos quais as “misérias do mundo” eram problematizadas e avalia-
das nas suas exigências de equidade e justiça. Linguagem política que definia a

149
gramática do campo dos conflitos que se armava na cena pública brasileira, as
noções de direitos e cidadania também se configuravam como referência pela qual
se colocava em perspectiva a história passada e as possibilidades de superação
do que então era percebido como entraves e obstruções para a incorporação das
maiorias a uma cidadania ampliada.
Desativado o plano de consistência em que essas noções circulavam e fincavam
seus pontos de referência, elas ficam desprovidas da potência de se confrontar
com uma realidade que escapa e transborda por todos os lados. Disso temos
vários registros.
De um lado, tomando a questão sob o ponto de vista formal-político, a defesa
do Estado de direito e da democracia não mais especifica e diferencia posições.
Os dispositivos de exceção instalaram-se no interior da normalidade democrática
e, não poucas vezes, é em nome da defesa da democracia e dos direitos que esses
dispositivos são acionados no combate aos que são vistos (e assim objetivados,
também tipificados) como ameaça à sociedade, ao Estado, aos cidadãos. Retomo
e desdobro aqui uma questão já enunciada no primeiro capítulo. Como tem sido
notado por vários analistas, os dispositivos de exceção começaram a se proliferar
no interior do Estado de Direito, já no correr dos anos 1980, talvez um pouco
antes (cf. Ost, 1999). Ganharam novas e mais explícitas configurações conforme
se desenharam as figuras do “inimigo” a ser combatido, o assim chamado “Crime
Organizado” no correr dos anos 1990 (cf. Godefroy, 2007), o “terrorismo” após o
11 de Setembro de 2001,1 dando ressonância a propostas e mudanças introduzidas
no ordenamento jurídico de diversos países e que, em nome dos imperativos da
segurança, restringem direitos individuais e fazem os dispositivos de exceção se
instalarem no interior dos procedimentos formais do ordenamento jurídico dos
países. Como bem notam Marta Machado e José Rodrigues (2009: 9), hoje, não
há quem se ponha contra o Estado do direito e democracia, em abstrato todos o
defendem, sem que isso impeça que muitos estejam “prontos a admitir que o Estado
possa grampear telefones sem controle judicial, revistar cidadãos e residências em
qualquer circunstância, entre outras ações que restringem ou mesmo suprimem
direitos e liberdades”. É na “minúcia institucional” que os dispositivos de exceção
se instalam, dizem os autores. Em nome do Estado do direito e da democracia (ou
em nome de uma sua defesa abstrata) são mobilizados os imperativos de segurança
que acionam mudanças no direito penal as quais tendem a se converter em “mero
instrumento de prevenção policial”, tendo em foco não tanto um evento delituoso,
mas condutas consideradas perigosas. É um cenário que dá ressonância ao chamado
“direito penal para os inimigos”. Na prática, a exclusão de “determinados tipos
de pessoas do campo ‘normal’ de imputação de direitos e deveres”, exclusão “da-
queles indivíduos que não se portam de modo a oferecer ‘embasamento cognitivo’
suficiente de que se comportará conforme o direito” (Machado & Rodrigues, 2009:

1
Para um bom inventário e discussão das medidas de exceção nos EUA e nos países eu-
ropeus pós-11 de Setembro, ver Paye (2004).

150
6). Como será visto nos próximos capítulos, no caso brasileiro, os chamados “autos
de resistência” ou, em outra versão, “resistência seguida de morte” que, desde
há muito, tipificam os casos de violência policial, sem que isso tenha guarida no
ordenamento jurídico, podem ser vistos como modalidades avant la lettre do direito
penal do inimigo, uma prática recorrente e sistemática de execuções sumárias e
extermínio, “assassinatos em nome da lei”, como disse uma vez um promotor de
justiça, sem que isso seja considerado um crime: persistência de procedimentos
instaurados sob os regimes militares pós-1964, ecos de uma história de longue
durée, mas que, agora, estão em fina sintonia com os tempos que correm.
Por outro lado, dissociadas do espaço conceitual em que se especificava o
seu sentido político e polêmico, as noções de direito e cidadania giram no vazio.
E viram qualquer outra coisa, uma implosão semântica do léxico dos direitos de
cidadania, como disse Paulo Arantes (2000) ao rastrear os usos proliferantes
dessas noções, direitos e cidadania, em meio à virada neoliberal dos anos 1990:
do marketing social das empresas e do discurso gerencial que passa a prevalecer
nos programas sociais, passando pelas ONGs, também as organizações fi lantró-
picas tradicionais até o muito moderno “empreendedorismo social”, direitos e
cidadania são mobilizadas como noções que terminam por promover uma “visão
pacificada da vida social” pelo primado de uma regulação moral das relações so-
ciais. Por todos os lados, uma afirmação ritualística e protocolar da exigência ética
da cidadania, mas que apenas confunde política e bons sentimentos, embaralha
as diferenças entre direito e ajuda humanitária, entre cidadania e fi lantropia, e
reativa ou re-atualiza o que Topalov (1994) define como “epistemologia da fi lan-
tropia” que fragmenta a análise social na descrição cientificamente fundada de
cada grupo social alvo de políticas focalizadas.2 Se a diferença entre cidadania
e fi lantropia fica esfumaçada, é também a diferença entre política e gestão que
se esfacela quando essas noções são mobilizadas nos dispositivos gestionários
que, sob o discurso altissonante do reconhecimento das diferenças e do combate
à exclusão, vão se multiplicando por todos os lados, assinalando que entramos
de vez na era da “pós-política”, para usar os termos de Slavoj Zizek (2004), quer
dizer: dispositivos variados que mobilizam recursos institucionais, jurídicos, so-
ciais (e também a pesquisa acadêmica) para identificar os problemas específicos
de cada grupo, definir “públicos-alvo”, propor medidas para corrigir o que não
funciona direito, valorizar a “comunidade” e promover o dito “capital social”
como anteparo às derivas da exclusão e suas supostas patologias violentas. Uma
gestão do social que abre um fosso abismal em relação à “invenção democrática”,
para lembrar os termos de Lefort, e está no polo oposto do ato político, que, na
formulação aguda de Zizek, não tem nada a ver com a gestão ou administração
do que está posto na trama social, pois o que é próprio da política – e do ato
político – é justamente modificar e deslocar os parâmetros do que é considerado
possível e desejável na constelação existente.

2
Discuti essas questões em Telles (2004).

151
Em outra chave teórica, em um artigo de 1991, Nikolas Rose (2008) já discutia
o deslocamento da linguagem da cidadania para o da “comunidade”, contraface
do que ele chama de “liberalismo avançado”, a desmontagem das regulações
nacionais e a prevalência dos critérios do mercado (competição, privatização,
cálculos financeiro, produtividade) nos modos de se exercer o “governo dos ho-
mens e das coisas”. São outros os princípios de governamentalidade, termo que
Rose recupera de Foucault, “modos de conduzir as condutas” centrados, agora,
no comprometimento moral e lealdades de cada um em suas “comunidades” de
referência, no incentivo ao “empoderamento” de indivíduos impelidos a assumir
as suas responsabilidades locais, apoiados no seu “capital social”: comunidade,
capital social, empoderamento compõem uma fi leira de noções que, mais do
que mudanças no jargão profissional, assinam a gramática política pela qual as
questões são problematizadas, como são definidas estratégias, programas e tec-
nologias de ação. “Comunidade”: não se trata tão simplesmente de um campo de
intervenção, mas de um modo de governar os homens, “conduzir as condutas”.
Diferente das referências nacionais que definiam o campo semântico da cidadania,
o “governo através da comunidade” mobiliza (e faz agir) o indivíduo empreendedor
e comprometido com suas lealdades locais. É também um modo de subjetivação
diferente do “cidadão” cujas lealdades e compromissos o remetiam para a esfera
do Estado pela mediação dos direitos sociais, dos serviços públicos e das políticas
sociais (cf. Rose e Miller, 2008). Temos aqui, diz Rose, os registros da sociedade
pós-disciplinar, a “sociedade do controle” (Deleuze) que opera pela modulação
das condutas, não mais a fixação de lugares e posições nos espaços confinados
da disciplina. Mas isso também significa, diz Rose, o estabelecimento de outras
clivagens que fazem proliferar dispositivos disciplinares, frequentemente coer-
citivos, também penais, voltados aos indivíduos ou zonas sociais vistos (e assim
objetivados) como fora das “comunidades de inclusão”, fora do “controle social”,
incapazes de assumir suas responsabilidades em relação às suas vidas ou em rela-
ção às suas “comunidades”, seja por conta de uma recusa dos padrões esperados
de comportamento, seja por falhas, carências, deficiências a serem tratadas por
especialistas na gestão desses microssetores: a gestão da miséria e dos infortúnios,
diz Rose, também se tornou uma atividade proliferante, mobilizando recursos,
financiamentos, especialistas, pesquisas conforme os indicadores das situações
ditas (e assim definidas pelas expertises) de risco e vulnerabilidade. Rose desdobra
uma questão que Robert Castel já havia lançado em 1983 ao discutir as inflexões
nos modos de se conceber (e objetivar) o problema social sob a noção de risco (e
seus indicadores) que já começava a pautar os programas de ação sob a égide da
governamentalidade liberal nos Estados Unidos, também na França.
Uma outra “microfísica do poder” (Foucault), poderíamos dizer, que se reconfi-
gurava em sintonia com a virada neoliberal dos anos 1980 e que já não correspondia
aos dispositivos disciplinares em vigor até meados do século XX. Novas tecnologias
sociais, diz Castel (1983: 119), que terminam por dissolver a noção de sujeito ou
de indivíduo concreto, “colocando em seu lugar uma combinatória de fatores, fa-

152
tores de risco”. Não se trata mais do feixe de causalidades sociais implicadas nas
disfunções de um indivíduo a ser tratado, cuidado, recuperado pelos dispositivos
do serviço social (ou penal, quando se tratava de crime e delinquência). Trata-se,
agora, da “construção de fluxos de população a partir de um conjunto de fatores
abstratos suscetíveis de produzir um risco em geral”. Deslocamento de fundo: do
tratamento do “indivíduo perigoso” (ou com predisposições perigosas) à gestão
eficaz das situações de risco. Diferente do perigo, o risco não está incorporado
em um indivíduo ou grupo social determinado. É o efeito de uma combinação de
fatores que tornam mais ou menos provável a ocorrência de um evento indesejável,
doença, anomalias, comportamentos desviantes a serem minimizados ou evitados.
É um cálculo de probabilidades. O foco são as “populações de risco” – ou, como
se diz atualmente, “populações em situações de risco” – definidas a partir de um
feixe abstrato de fatores acessíveis à análise dos especialistas. Em operação, novas
formas de controle e vigilância, que não passam mais pela repressão e pelo interven-
cionismo assistencial prevalecentes até meados dos anos 1960. Agora, “constata-se
o desenvolvimento de modos diferenciais de tratamento das populações, que visam
rentabilizar ao máximo o que é rentabilizável e a marginalizar o que não o é”.
Duas consequências, enfatiza Castel. Primeiro: este espaço generalizado dos
fatores de risco, por contraposição aos espaços concretos do “perigo” com suas
supostas determinações sociais, acarreta uma multiplicação potencialmente infi-
nita das possibilidades de intervenção, tanto quanto se prolifera o que pode ser
tipificado como risco, construído como tal pelo trabalho dos especialistas. É o
caso de se perguntar, diz Castel (1983: 126), se “essas orientações não inauguram
novas estratégias de gestão de populações próprias às sociedades ditas neolibe-
rais”. Segundo: a gestão dos riscos desdobra-se em uma suspeita generalizada,
uma suspeita, diz Castel, agora elevada à dignidade científica de um cálculo de
probabilidades. Para ser suspeito, diz Castel, não é mais necessário o indivíduo
manifestar sintomas de anomalia, basta que apresente alguma das características
que os especialistas construíram como fatores de risco.
Mais recentemente, Frederic Gros (2006), em outro contexto de discussão,
chama a atenção para o fato de que essa é uma configuração na qual o indivíduo
não comparece como sujeito de direitos, mas como um indivíduo atravessado por
situações de “vulnerabilidade” associadas a “riscos” (pobreza, doença, crime,
violência...) que exigem “uma vigilância contínua de sistemas e de homens”
e aciona a lógica da “intervenção”. Diferente da política (e seus protocolos de
discussão, deliberação, negociação), a intervenção é regida pelos critérios ditos
técnicos de competência dos especialistas e é acionada para restaurar uma ordem
ameaçada, restabelecer harmonias rompidas, reparar disfunções, encontrar solu-
ções. Intervenção social, intervenção cultural, intervenção sanitária, intervenção
humanitária, também intervenção policial e intervenção militar: nas peculiarida-
des de cada campo de atuação, é uma mesma lógica, gestão dos riscos, sempre
pontual, territorialmente definida, porém sempre deslocante, conforme se rede-
finem os alvos, os focos, os problemas. Modos de gestão das populações, de seus

153
fluxos, de seus movimentos, diz Gros. Concretamente: a lógica da intervenção e
da segurança, a gestão dos riscos em suas várias modulações, busca assegurar
a fluidez dos circuitos, o funcionamento dinâmico dos fluxos de populações, de
riquezas, de bens, de mercadorias, de informações, enfim, dessa mobilidade am-
pliada própria dos mercados globalizados, agora liberados dos constrangimentos
dos Estados e nações. É isso também que produz uma clivagem transversal ao
espaço social, entre esses núcleos de segurança e ordem (as “comunidades”) e
uma expansiva zona cinzenta habitada por esses aqueles escapam, se recusam
ou estão à margem desses agenciamentos. A gestão dos riscos, intervenção e
segurança, cria o seu fora, suas margens, onde imperam “estados de violência”
de que os controles mafiosos dos mercados ilícitos são um exemplo, entre outros
que se poderia inventariar (cf. Gros, 2006, 2009).
Esses são tópicos que valeriam uma discussão à parte, pertinente às configu-
rações próprias da sociedade pós-disciplinar ou pós-social, como propõem vários
autores, para evocar aqui uma ordem de questões que remetem diretamente ao
terreno da sociologia ou, para usar os termos de Bruno Latour (2006), às ciências
do social (cf. Foucault, 2004, Rabinow, 1999; Latour, 2006; Strathern, 1996).
Isso nos levaria muito longe. Por ora, vale dizer que essa discussão poderia ser
declinada em torno de três ordens de questões que dizem diretamente respeito
ao que nos interessa aqui discutir:
Primeiro: para lembrar uma questão sempre enfatizada desde o início e ao
longo destas páginas, dissolve-se o aparente paradoxo ou descompasso entre
a ênfase predominante nos micro-pontos de vulnerabilidade, “populações em
situação de risco”, que pautam os programas sociais e, de outro lado, um mundo
urbano atravessado por lógicas e circuitos de mobilidade urbana que transbor-
dam amplamente o perímetro estreito das “comunidades”. Em termos gerais, é
o ângulo pelo qual se pode trabalhar as questões propostas por Frederic Gros.
A rigor, estamos aqui no cerne do que Foucault (2004a, 2004b) define como
biopolítica, em sua dupla face, a gestão das vidas, governamentalização das
condutas e a gestão das populações, de seus fluxos, de seus deslocamentos,
de seus movimentos. É uma questão que Gros redefine e atualiza, tendo em
mira os tempos atuais. Para trazer a discussão para o terreno dos estudos do
urbano, Jacques Donzelot levanta questões interessantes em um artigo que leva
o sugestivo título de “Le social de compétition” (2006): diferente do “social de
compensação” (direitos sociais, previdência), trata-se agora não mais de fixar
lugares e identidades, mas colocar os indivíduos em movimento, promover a sua
capacidade empreendedora, seja em relação aos problemas do emprego, seja os
relativos à segurança, seja ainda a moradia – as três políticas analisadas nesse
artigo. Modos de governo pelo local apoiado em indicadores, em medidas as mais
finas e as mais localizadas possíveis, “fabricação de índices que permitem com-
parar a situação dos bairros uns em relação aos outros, uma cidade em relação
a outras”, para definir o “estado dos problemas” em cada lugar. Uma verdadeira
“inspectologia da sociedade”, termo que Donzelot retira de Patrick Le Galès, uma

154
“arte de governar por instrumentos” de modo a ser possível aos agentes políticos
e gestores urbanos uma avaliação de resultados a mais precisa possível, mas que
se desdobra em uma espécie de “ativismo febril” nesse empenho de mobilizar a
sociedade, colocar indivíduos em movimento. Não se trata mais de “compensar”
os malefícios do mercado, mas um modo de “conduzir as condutas” (Foucault)
que promove uma recomposição do social em sua proximidade com o econômico
sob o signo da competitividade: tornar os indivíduos competitivos, diz Donzelot,
ou, para colocar a questão nos termos de Foucault (2004), tornar os indivíduos
governáveis sob a égide da racionalidade do mercado.
Segundo: o plano em que o principio gestionário – o governo mediante a “co-
munidade” – se compõe com a vida nua, vida matável, nessa reconfiguração do
social de que tratam os autores aqui comentados. Leitores atentos de Foucault,3
não eram indiferentes às relações entre a biopolítica e o “fazer viver, deixar
morrer” que, depois, final dos anos 1990, seriam retrabalhadas por Agamben
ao propor as relações entre soberania e vida nua. De alguma forma, essa a
questão que está posta na clivagem transversal ao espaço social introduzida pelo
princípio gestionário – governamentalidade neoliberal (cf. Foucault, 2004b) que
os autores identificam na sociedade pós-disciplinar. Talvez melhor seria dizer: é
a questão que essa clivagem nos faz pensar. Formas de gestão do social regidas
pelo primado da gestão dos riscos, administração das urgências: clivagens entre
indivíduos governáveis, governamentalizados, de um lado e, de outro, os que não
se ajustam, se recusam ou são incapazes de se integrarem às “comunidades”.
Para esses, como diz Garland (1999, 2001), também em ressonância com essa
discussão (e em diálogo com esses autores), restam os rigores da punição, “ini-
migos da sociedade” que precisam ser isolados, incapacitados ou segregados e,
também, na versão brasileira disso tudo, exterminados. Em nome da urgência e
da emergência, o espaço da política é subtraído, tanto quanto é erodido o campo
da crítica e o exercício da inteligência crítica (cf. Calhoun, 2004) sob a figuração
de uma cidade, toda ela, pensada e figurada sob a lógica de uma gestão dos riscos,
pautando programas sociais e também os hoje celebrados projetos de revalorização
de espaços urbanos, populares ou centrais.4 Versões atualizadas do “Vigiar e

3
Vale notar: Frederic Gros é um dos responsáveis pela edição dos últimos cursos de Fou-
cault recentemente publicados, Le gouvernement de soi et des autres, 1982-1983 (Gallimard,
2008) e Le courage de la verité, 1984 (Gallimard, 2009). Robert Castel, por sua vez, fez
parte do grupo, também composto por Jacques Donzelot e François Ewald, que seguia os
seminários que Foucault desenvolvia em paralelo ao curso de 1979-1989 (Naissance de la
Biopolitique), versando sobre temas relacionados à governamentalidade liberal e neoliberal.
Não por acaso, portanto, a questão do liberalismo e, no caso de Castel e Donzelot, também
a sociedade pós-disciplinar estiveram no centro dos livros que esses autores publicaram
no início dos anos 1980. Cf. Castel, (1983), Ewald (1986), Donzelot (1984).
4
Nisso, ao que parece, estamos também em fina sintonia com a modernidade neoliberal
em tempos de exceção, a se considerar o que Vincenzo Ruggiero (2007) descreve acerca
do que anda acontecendo na cidade de Londres.

155
Punir”, talvez se possa dizer, que nos fazem pensar já estar em operação novas
formas de controle que, como diz Garland (1999), combinam a lógica punitiva e
a governamentalização das populações em “situação de risco”.
Terceiro. Agora, no registro das questões de pesquisa que nos interessam: ao
mesmo tempo em que se faz, hoje, a celebração das virtudes empreendedoras
das “comunidades”, ao mesmo tempo em que a assim chamada sociedade civil
organizada é conclamada a se mobilizar na solução solidária e cooperativa dos
problemas sociais, é o caso de se perguntar sobre um campo social que parece
escapar a essa interpelação política, um campo social que vaza ou transborda os
dispositivos gestionários que vem se multiplicando por todos os lados. Um campo
social que escapa aos princípios gestionários, mas que nem por isso corresponde
às imagens correntes de anomia e desorganização social, pois sugere diagramas
variados de relações e formas sociais que passam por essas mediações, diga-
mos, formais, porém que transbordam suas regulações e colocam uma ordem de
questões que implodem a gramática política conhecida. É nesse registro que se
pretende dar sequência à discussão.
Volto aqui às minhas anotações de pesquisa, minhas e de toda uma equipe
que nesses últimos anos vem prospectando as sinuosas veredas que compõem as
tramas da cidade. Esse mundo social redefinido sobre o qual se falou nos primeiros
capítulos, ponto de partida de nossa pesquisa, é atravessado por uma expansiva
trama de ilegalismos que se entrelaçam nas práticas urbanas e redes sociais. Como
bem sabemos, a produção da chamada “cidade ilegal” não é novidade; já desde
bastante tempo é item obrigatório da agenda de estudos urbanos, quanto mais não
seja pelas características predatórias da urbanização de nossas cidades, via de
regra pela expansão da ocupação irregular do solo urbano, de que o crescimento
exponencial do favelamento e das zonas de ocupação no correr dos anos 1990 é
evidência gritante. No entanto, o que merece uma interrogação mais detida são
as novas mediações e conexões pelas quais esses ilegalismos vêm sendo urdidos
no cenário urbano. Na verdade, esse jogo entre o legal e ilegal é hoje feito em
termos diferentes do tão debatido descompasso entre a cidade legal e a cidade
real. E coloca uma outra ordem de questões, diferente da “legalidade truncada”
ou “modernidade incompleta”, termos que pautaram, em grande medida, os
debates dos anos 1980. Trata-se, sobretudo, de uma crescente e ampliada zona
de indiferenciação entre o legal e ilegal, lícito e o ilícito, entre o direito e o não-
direito, entre a norma e a exceção. Zona de indiferenciação que cria situações,
cada vez mais frequentes, que desfazem formas de vida e transformam todos e
cada um em “vida matável” (Agamben).
É aqui também que o leitor haverá de perceber as razões que me levaram a
arriscar as reflexões um tanto apressadas de linhas atrás para situar o interesse
das questões propostas por Agamben. Pois, então, é daqui que parto para retomar
o fio da meada e fazer o ponto em torno do que, assim me parece, sugere uma
ordem de coisas que transborda as referências estabelecidas.

156
***

As relações entre o formal e o informal, o legal e o ilegal têm sido tema reiterado
da reflexão crítica brasileira, e isso de longa data. Em suas várias modulações
e formulações teóricas, a tensão ou descompasso entre “Brasil legal” e “Brasil
real” nunca deixou de estar na pauta dos debates e ganhou especial densidade
teórica nos anos que se seguiram à restauração democrática na década de 1980,
quando os debates puseram em foco as ambivalências e os limites da legalidade
então recém-construída (cf. O’Donnel, 1993; Santos, 1993). Mas também vale
lembrar que esse debate foi em grande medida pautado pela “questão nacional” (o
problema da “formação nacional” incompleta) e em seu foco estavam os dilemas
nunca superados para a universalização de leis e direitos. Porém, é justamente
esse foco de questões que foi deslocado ou sobreposto por outras tantas que
precisam ainda ser mais bem qualificadas. Se, hoje, há uma re-atualização de
uma história de longa duração, há também um deslocamento considerável na
ordem das coisas. Não mais essa espécie de buraco negro a indicar os avatares,
bloqueios e impasses de uma modernidade incompleta. Adiantando uma questão
a ser discutida no próximo capítulo, isso que sempre foi considerado evidência
de nossas incompletudes, a “exceção do subdesenvolvimento”, para lembrar aqui
as proposições de Francisco de Oliveira, é que passa a estar inteiramente em
fase com os rumos de um mundo globalizado que fez generalizar, por todos os
lados, os fluxos das chamadas economias subterrâneas nas fronteiras cada vez
mais indefinidas entre o legal e o ilegal, o formal e o informal (cf. Tarrius, 2003,
2007; Peraldi, 2002). Ou, então, o que Roger Botte (2002, 2004) define como
“economias traficantes”, que se espalham também por todos os lados nas sendas
abertas pela liberalização financeira, pela abertura dos mercados e pelo encolhi-
mento dos controles estatais num tal intrincamento entre o oficial e o paralelo, o
legal e o ilegal, o lícito e o ilícito que essas polaridades perdem qualquer sentido
e tornam obsoletas as controvérsias em torno do formal e do informal. Além do
mais, é nesses termos – e esse é o ponto – que as economias vêm se estruturando,
esse é um dado também estruturante das hoje redefinidas relações entre Estado,
economia e sociedade em tempos de globalização. A rigor, essa indistinção entre
o legal e ilegal, o lícito e o ilícito, o oficial e o paralelo já compõe o estado de
coisas, na justaposição de redes (políticas, econômicas, nacionais e transnacio-
nais) e as atividades ilícitas, de tal forma, diz Botte (2002), que se pode afirmar
a existência de uma “generalização macroeconômica do fenômeno do ilícito e do
delituoso”. Essa é uma mutação econômica considerável a ser bem entendida, pois
abre – esta é sua hipótese – novas sequências históricas a serem prospectadas
nos países e nas sociedades.
Jean-François Bayart (2004), por sua vez, seguindo a mesma senda investiga-
tiva, dá mais um lance: se é assim (e as circunstâncias e situações que investiga
e descreve assim mostram, e espantam o mais avisado dos leitores), então isso

157
quer dizer que essa figura demonizada – “O Crime Organizado Transnacional”
– que vem acionando a obsessão securitária (e os dispositivos de exceção) nos
diversos países não existe, quer dizer, sociologicamente esse “objeto” não se sus-
tenta. Se quisermos, de verdade, entender alguma coisa, será preciso deslocar
o parâmetro e decifrar o jogo dessas relações, conexões, articulações que se
fazem nessa indistinção do legal e ilegal, do lícito e ilícito, e fazer aparecer, como
forças atuantes e estruturantes, os vários atores e coletivos envolvidos, desde o
Estado e suas agências nacionais até as grandes corporações econômicas e suas
ramificações globalizadas, passando pelo sistema financeiro e pelos fluxos digi-
tais/virtuais de circulação da riqueza, pelas agências transnacionais das quais
não escapam as organizações humanitárias que se alimentam das desgraças
do mundo e mobilizam os “mercadores do bem”, tudo muito bem sintonizado,
aliás, com os fluxos de circulação de riqueza. Tudo isso, no final das contas,
compõe muito concretamente a tal globalização, que, longe de ser uma entidade
abstrata, só consegue se efetivar porque tudo isso se ancora nos processos situ-
ados em cada lugar, em simbiose com as idiossincrasias de cada país, com sua
própria história e com as circunstâncias do jogo político e de suas economias.
Concretamente, isso significa que todos os dispositivos (de cunho abertamente
repressivo), as medidas legislativas e policiais, hoje proliferantes por todos os
lados, para combater “o” crime organizado e “a” insegurança que atemorizam os
cidadãos e governos são rigorosamente risíveis (e, aliás, todos sabem disso), pois
o ponto em mira mal se configura (“não existe”, nesse sentido) em meio a uma
nebulosa de relações e comprometimentos que, estes sim, precisariam ser bem
compreendidos e debatidos – debatidos publicamente. Mas, então, diz Bayart, a
obsessão securitária contra o tal “crime organizado transnacional”, juntamente
com a equação habitual, nos países do Norte, entre imigração e insegurança
(no Sul, entre pobreza e insegurança), apenas serve para justificar o reforço dos
poderes de polícia e os dispositivos repressivos em detrimento das liberdades; ou
seja, “é uma manifestação entre outras dessa banalização do estado de exceção
denunciada pelo fi lósofo Giorgio Agamben” (2004: 103).
Essa certamente é uma discussão de fôlego e vai além do que é possível aqui
fazer. No entanto, é importante reter essa discussão como referência, pois é nesse
horizonte que nossas inquietações precisam ser situadas. Algumas dessas ques-
tões (apenas algumas) serão tratadas no próximo capítulo. Por ora, dois pontos
a serem marcados:
Primeiro, retomando a questão lançada nas páginas iniciais deste capítulo: o
parâmetro descritivo para colocar em perspectiva (e sob perspectiva crítica) as
realidades (no caso, as “nossas” realidades) em mutação. Não se trata de descrever
“direitinho” as coisas tal como são ou vêm se modificando. A questão é outra,
mais de fundo, e diz respeito ao modo como construímos nossos “objetos” de in-
vestigação, como definimos nossas questões, como formulamos as perguntas que
nos orientam numa experiência do conhecimento capaz de deslocar o campo do
já-dito e prospectar as potências pelas quais a ordem das coisas se configura. E é

158
isso que está em jogo na tarefa descritiva. É nisso que reside a tarefa da crítica.
A questão proposta por Bayart é interessante justamente por isso. Para além do
enorme interesse que suas pesquisas suscitam, é o modo como a ordem das coisas
é configurada, construída e descrita num plano de referência que desloca os ter-
mos do que está aí posto como “verdade” e “fato incontestável”. E é nesse mesmo
deslocamento que essas verdades e esses fatos incontestáveis se desfazem como
tais, na medida em que fatos, coisas, atores se reordenam em um outro diagrama
de relações, num outro tabuleiro, em que as peças são postas sob outro jogo de
relações. A força da crítica não está na retórica da denúncia da barbárie que hoje
se instala no mundo. A potência da crítica se faz num parâmetro descritivo que
desloca ou redefine a ordem das coisas e suas relações, permitindo, a partir daí,
estabelecer uma pauta de questões que não podem mais ser resolvidas nos termos
habituais e que abre, portanto, a fenda a partir da qual a imaginação crítica pode
se mostrar fecunda. Um outro jogo descritivo. Para usar um termo mais preciso:
um outro “dispositivo cognitivo”.5 É disso que depende a possibilidade de romper
esse círculo de giz traçado entre a denúncia estéril e o pragmatismo, quando não
a razão cínica, que apenas afirma o que está posto, de tal forma que parece nada
nos restar senão gerir o que nos é dado a viver no presente imediato.
Segundo: as questões discutidas por esses autores (e outros) são também
importantes para bem situar a complicação brasileira, situá-las num outro jogo
de escala e sob uma perspectiva ampliada. É aqui que ganha pertinência a per-
gunta sobre a nova ordem que vem sendo urdida nas dobras do mundo atual. É
essa a pergunta que esses (e outros) pesquisadores se fazem quando se propõem
a prospectar – e descrever – os feixes dessas conexões e suas redes em escalas
variadas, que se fazem nas fronteiras indiscerníveis do legal e do ilegal, do lícito
e do ilícito, do formal e do informal, do oficial e do paralelo, para apreender o
modo como Estado, economia e sociedade vão se redesenhando entre a implosão
de suas formas canônicas e a configuração de novos diagramas de relações de
poder e de domínio, mas também de formas sociais e de conflito entre grupos
sociais e atores (outros jogos de atores), que também dão os sinais de uma expe-
rimentação histórica a ser seguida de perto.

***

Com ressonâncias desse debate, nossos objetivos são bem mais modestos e
nossa questão remete, sobretudo, ao exercício de uma “etnografia experimental”

5
Essa foi a expressão lançada por Laymert Garcia dos Santos numa reunião do Cenedic
em que essas questões foram discutidas. Agradeço-lhe, e dela me aproprio. Devo ainda
dizer que estas linhas devem muitíssimo a essa mesma discussão, com a ressalva de que o
jeito desconjuntado e certamente tateante como foram traçadas, como é de praxe dizer, é
de minha inteira responsabilidade.

159
para tentar flagrar as novas mediações e conexões pelas quais esses desloca-
mentos das fronteiras do legal e do ilegal vêm se processando. Trata-se de partir
de situações a serem tomadas como “cenas descritivas” que permitam seguir o
traçado dessa constelação de processos e práticas, suas mediações e conexões. E,
no contraponto entre cenas descritivas diferentes, a transversalidade das questões
que se colocam. É um experimento de pesquisa que pode nos abrir uma senda
para identificar, seguir os traços e traçados dos ordenamentos sociais que vêm
sendo tramados nos tempos que correm.
Por ora, no limite destas páginas, uma experimentação que toma como referên-
cia algumas cenas que interessam pelo fato de serem situações recorrentes, banais,
quase-normais – uma muito peculiar normalidade construída num equilíbrio
muito frágil, no fio da navalha. Situações que se armam em torno do trabalho, da
moradia e dos programas sociais que se multiplicam por todos os lados, quer dizer:
situações que se constelam em torno de dimensões estruturantes da vida social.

***

Uma primeira cena: nos pontos extremos da periferia leste da cidade de São
Paulo, o tradicional e hoje renovado trabalho a domicílio, mobilizando famílias e
suas redes sociais. A partir daí é possível desenrolar os fios dos circuitos variados
do chamado mercado informal e, em seus pontos de conexão, agenciamentos
territorializados, a atuação de coletivos diversos:6 os intermediários que fazem
a conexão com os polos globalizados da economia e também com os negócios
obscuros de procedência variada; os agentes públicos que tentam (sem sucesso)
controlar o uso irregular dos espaços urbanos e o comércio clandestino; as as-
sociações comunitárias ditas fi lantrópicas que se transformam em agenciadoras
das redes locais de subcontratação numa peculiar mistura de apelo solidário,
clientelismo e jogo de poder nas disputas locais, tudo isso redefinido na medida
em que é justamente mobilizado por redes de subcontratação que, também é
importante dizer, são acionadas sabe-se lá por quem e de modo muito obscuro,
pois nunca se sabe ao certo da onde vem a encomenda, muito menos quem paga
pelo trabalho feito e para onde vai o produto realizado. Atravessando tudo isso,
nos mesmos espaços e nos mesmos territórios, os fluxos da migração clandes-
tina trazem para os fundos da periferia leste os bolivianos, agora personagens
conhecidos da paisagem urbana que vivem e trabalham em condições mais do
que penosas, já que em boa medida são cativos dos coreanos que muito frequen-
temente agenciam a migração e estão muitíssimo bem instalados no centro da
cidade. É dali que saem as encomendas que vão circular pelas redes informais

6
Sigo aqui os achados de pesquisa de Carlos Freire em sua dissertação de mestrado
(2008).

160
de subcontratação, mobilizando bolivianos e mais boa parte do trabalho a domi-
cílio nessas regiões distantes da cidade, ativando os circuitos da produção têxtil
que, no caso da zona leste da cidade, se alimenta da história urbana da região e
re-atualiza a importância do “centro velho” da cidade (Brás, Bom Retiro), onde
estão instaladas as confecções, onde se entrelaçam todos esses fios, abertos e
subterrâneos ou clandestinos, e são igualmente urdidas as vinculações com um
mercado em aceleradíssimo processo de integração no capital globalizado.
Essas linhas se desdobram e encontram um ponto (outro ponto) de junção
nos lugares de concentração do comércio ambulante, onde todas as situações
podem ser encontradas lado a lado, num completo embaralhamento do legal e
do ilegal, do lícito e do ilícito, do formal e do informal: ali os produtos circulam
por meio de acordos nem sempre fáceis de serem mantidos entre organizações
mafiosas, gente ligada ao tráfico de drogas, comerciantes pobres, intermediários
dos coreanos (e de outros tantos), além dos técnicos das subprefeituras que tentam
fazer valer as regulações oficiais, tudo isso misturado com pressões, histórias de
morte, corrupção e acertos obscuros. Porém, é lá mesmo que circulam produtos
de procedência conhecida, desconhecida, duvidosa ou simplesmente ilícita, mas
também o “excedente”, se é que é possível falar nesses termos, das famílias que
se viram como podem para bem aproveitar o tempo que lhes sobra entre os ritmos
descontínuos e incertos da produção sob encomenda.
Todas essas linhas se entrecruzam nas famílias, na economia doméstica e nas
redes sociais, e aí o jogo da vida vai se fazendo entre outras tantas conexões com
outros tantos circuitos que embaralharam ainda mais as fronteiras do legal e do
ilegal, do formal e do informal, do lícito e do ilícito.
Assim, em torno das questões da moradia, nossa segunda cena: ocupações
de terra nas regiões mais distantes da cidade ou, então, os esforços persistentes
de seus moradores para conseguir melhorias urbanas. Situações mais do que
normais, mais do que conhecidas, que contêm todos os ingredientes que vão
preencher os itens esperados de relatórios da pesquisa social feita sob encomen-
da, quando se fala do dito capital social e das vias virtuosas de inserção social.
No entanto, é justamente aí que as coisas acontecem: essa normalidade é muito
frequentemente feita ou construída por um jogo de atores que mobiliza indivíduos
e famílias, agentes públicos e lideranças comunitárias, ONGs e associações de
fi liação diversas, inclusive a chamada fi lantropia empresarial.7 Mas também os
chefes locais do tráfico de drogas e dos negócios ilícitos que se espalham por
todos os lados. Na verdade, é com eles que é preciso negociar, fazer acordos e
chegar a algum entendimento para pôr em prática os serviços sociais, quando
não são eles mesmos que vão pesar, quando não decidir, nas disputas em torno
dos recursos a serem distribuídos entre associações diversas, sem esquecer, claro
está, os acordos para garantir proteção ou, ao menos, a tranquilidade para realizar
o trabalho social esperado. Muitas vezes, o mesmo personagem pode transitar

7
Questões trabalhadas por Eliane Alves em sua dissertação de mestrado (2007).

161
entre várias identidades: militante local, bom cidadão e representante popular em
algum dos inúmeros fóruns da chamada democracia de base, voluntário em uma
ONG, mas também intermediário nos negócios ilícitos e no comércio de produtos
de origem duvidosa, negociador com o pessoal do tráfico de drogas, quando não
é ele mesmo parte envolvida diretamente na gangue local.
Aliás, personagens como esse terminam por desempenhar um papel impor-
tante nas questões locais; justamente por transitar com facilidade entre esses
universos que se sobrepõem no mundo urbano, eles sabem lidar com seus códi-
gos, conhecem as regras do jogo, sabem dar o lance certo na hora certa e chegar
ao que interessa a cada momento. Por outro lado, os chefes locais do tráfico de
drogas ou dos negócios obscuros também podem ser moradores do local: é lá
mesmo que nasceram, cresceram, onde conhecem “todo mundo”, construíram
laços de amizade e solidariedade e também sabem jogar o jogo das reciproci-
dades da vida cotidiana. Seriam como todos os outros, indivíduos comuns como
todos os demais, não fosse sua implicação num universo que escapa ao jogo das
reciprocidades morais do mundo popular, seja por conta das lealdades mafiosas,
seja pelo critério mercantil que se impõe em suas relações com o mundo social
(afinal, estamos falando de um negócio feito de contas e dívidas que precisam ser
pagas), seja ainda pelas disputas letais por território (cf. Ferreira, 2006). Como
será visto no último capítulo, se existe uma superposição de mundos diversos,
se existe aqui um embaralhamento das fronteiras do legal e do ilegal, do formal
e do informal, do lícito e do ilícito, há também fricção, tensão, algo como um
ponto de fuga que pode, no acaso das coisas da vida, abalar ou desfazer essa
muito frágil normalidade conquistada. Como Alba Zaluar já notou mil vezes, e
mil vezes bem notado ao discutir a situação no Rio de Janeiro, os padrões de
sociabilidade e as regras de reciprocidade que organizam o universo popular
podem ser desestabilizadas, quando não erodidas, por disputas, comportamentos,
práticas e princípios mafiosos de lealdade que não se restringem ao “negócio do
crime”, porém transbordam por todos os lados, até porque tudo isso coloca em
cena esse “indivíduo-qualquer-como-todo-mundo” que vive por lá, com família,
vizinhos, amigos de infância e conhecidos do bar da esquina.
Situações similares podem ser encontradas – eis a terceira cena – em torno
dos programas sociais, mesmo quando se trata de bairros nem tão distantes e
nem tão desprovidos de equipamentos urbanos. Na verdade, seria mesmo possível
fazer uma antropologia, por exemplo, de um programa de distribuição de cestas
básicas, esse muito especial artefato (no sentido de Bruno Latour [2008]) em
torno do qual relações sociais são tecidas, conexões são urdidas e redes sociais
são acionadas (cf. Telles & Hirata, 2007). Em torno desse artefato, muitos cole-
tivos são mobilizados. Antes de mais nada, claro está, as famílias pauperizadas,
cujas vidas parecem como que dependuradas nos programas sociais, sem outros
meios de sobrevivência: problemas de saúde, de desemprego, de orfandade, de
abandono; também a prisão de provedores, pais ou fi lhos, ou, então, a morte
violenta dos que foram atingidos por um “mata-mata” desses, como se diz; epi-

162
sódios recorrentes que fazem parte da história local (não só local) e que não são
de hoje, vêm de longe, em que se misturam a violência policial (e as práticas de
extermínio), a ação de matadores e justiceiros, disputas de territórios e acertos de
conta. Mas também a liderança comunitária que se encarrega de sua distribuição
e que é movida por uma autêntica preocupação solidária e não poupa esforços
para solicitar a ajuda de tantos quantos possam mobilizar recursos, quer dizer:
doações voluntárias (e incertas) dos comerciantes locais, a prestação (além de
incerta, descontínua) de associações fi lantrópicas; também o clientelismo polí-
tico “velho de guerra” e, nesse caso, as doações seguem os rumos mutantes dos
interesses políticos e o ritmo descompassado do calendário eleitoral. Também os
chefes locais do tráfico de drogas, que, aliás, são ou podem ser amigos de longa
data, por vezes parentes e gente da família e que irão, por sua vez, mobilizar
comerciantes, perueiros clandestinos ou não, amigos e aliados, em autêntica e
verdadeira interação com a “economia solidária” que deita raízes nas práticas da
auto-ajuda e da solidariedade intrapares, tão presentes no mundo popular. Tudo
isso, como se vê, em fina sintonia com os tempos.
Como se vê, uma muito modesta e tradicional cesta básica opera aqui como
um desses pontos de entrelaçamento de redes que operam em escalas e conexões
variadas. Famílias pauperizadas, liderança comunitária, traficantes locais, comer-
ciantes e perueiros são moradores que partilham a história comum de um mesmo
bairro, conhecem as venturas e desventuras de uns e outros. Cada qual, sob
maneiras diversas, transita entre um lado e outro, nas fronteiras incertas do legal,
do informal e ilícito: famílias cujos filhos estão presos ou foram mortos em algum
desses trânsitos entre o legal e o ilegal; o traficante que já foi um trabalhador no
mercado formal de trabalho, um outro que intercala expedientes vários no mercado
informal e o negócio da droga ou daquele que tenta consolidar uma pequena loja
nas imediações com a expectativa (ou o sonho) de, um dia, sair da vida do crime;
o perueiro que já traficou drogas em outro momento e resolveu dar um novo rumo
para sua vida (ou o contrário); o comerciante cujo filho é perueiro e sabe das com-
plicações que acompanham seus trajetos na cidade; a liderança comunitária, que
já foi uma aguerrida militante dos outrora ativos movimentos de moradia, que nos
períodos de eleição se converte em um muito eficaz cabo eleitoral de vereadores
locais, que tem um filho perueiro e uma filha viúva de um rapaz executado pela
polícia por razões obscuras, que ganhou respeito e admiração não apenas pelo
seu empenho solidário, mas também pela ousadia com que, ao longo dos anos e
por vezes seguidas, se interpôs, fisicamente e com ameaças de denúncia pública,
entre a polícia e aquele que, qualquer que fosse a razão, estava ali sendo alvo de
violência, espancamento, ameaça de extermínio ou prisão arbitrária.8
O traficante local, por sua vez, é também um morador do bairro, um homem
como todos os outros, pai de família atento aos assuntos domésticos, solidário
com os vizinhos, que joga futebol no time local e leva a vida de “todo mundo”. Em

8
Esse personagem e essas situações voltarão no último capítulo.

163
seu envolvimento nos serviços sociais, há uma especial mistura de preocupação
solidária, cálculo refletido para garantir a proteção da população local contra as
investidas da polícia e, também, estratégia para o controle de um território sempre
em disputa por grupos rivais, além do jogo nem sempre muito sutil de pressão,
chantagem e manifestação de poder junto aos aliados e “protegidos” chamados
a participar do círculo da solidariedade popular. E tudo funciona muito bem, ou
pode funcionar, até o momento em que a roda da fortuna dá mais um giro e os
desacertos da vida podem jogar tudo pelos ares, seja os desacertos com a polícia
que está sempre presente em um jogo perverso de proteção e extorsão, seja por
conta das disputas de território, seja enfim pelos desafetos entre uns e outros,
que terminam por acionar soluções de morte.
Aqui, como também na cena anterior, estão presentes todos os ingredientes
que compõem a agenda das pesquisas e propostas de “boas práticas” para uma
boa e virtuosa gestão da vida local: solidariedade intrapares, capital social e rede
social. Está tudo aí, não falta nada. Tudo certo, tudo errado ou tudo falsificado,
quando essas noções são mobilizadas para construir a ficção comunitária e acionar
as formas modernas de gestão do social, a rigor o biopoder de que fala Foucault
(2004) e é por ele identificado no centro mesmo da governamentalidade liberal:
gestão das populações, gestão das vidas, administração de suas urgências. Mas
acontece que o mundo social não cabe nos dispositivos gestionários, escapa por
todos os lados dessas formas de governamentalidade que, para usar os termos
de Foucault, tratam de atuar no “meio social” e acionar o dito “capital social”
para tornar os indivíduos governáveis sob a égide da racionalidade mercantil.
Na verdade, seria mesmo possível dizer que as tensões do mundo se fazem nessa
fricção entre os “indivíduos governáveis” e o que escapa dos dispositivos gestio-
nários, quer dizer, entre a governamentalidade gestionária e a vida matável. Entre
o lado oficial-legal da vida social e as crispações da vida nua, vai se tecendo um
socius nessa conjugação entre circunstâncias, fatos, coisas e pessoas. É nesses
agenciamentos da vida que se torna perceptível a pulsação do mundo urbano.
É dessas dobraduras que fazem a trama da cidade que se podem apreender os
sentidos da indiferenciação entre o legal e o ilegal, o formal e o informal, o lícito
e o ilícito. É daí que se projeta a linha de sombra que perpassa toda a cidade. Os
campos de força e toda a complicação dos tempos que correm estão exatamente
nos pontos de conexão dessas tramas que fazem a tapeçaria do mundo social.
Vistos pelo ângulo das práticas cotidianas, todos esses fios se misturam e se
entrelaçam nos agenciamentos práticos para lidar com a vida, e com as urgências
da vida. Num cenário de incertezas, quando não de aleatoriedade dos lances do
destino, essas microcenas podem ser vistas como evidências de práticas e ar-
ranjos sociais que, nesse jogo de luz e sombra entre o lícito e o ilícito, são feitos
e refeitos numa sempre reaberta negociação da vida e das formas de vida. Por
certo, é desse entrelaçado social que o tráfico de drogas também se alimenta e
é por essa via que se podem apreender suas capilaridades nas redes sociais, ao
mesmo tempo em que nesses fios entrecruzados da vida social se configuram

164
situações de violência intrapares nas quais os acertos e os desacertos da vida
cotidiana se misturam com lealdades mafiosas e as circunstâncias de disputa de
territórios. Por isso mesmo (mas não só) esses arranjos sociais ainda precisam
ser mais bem compreendidos.
Indivíduos e suas famílias transitam nessas tênues fronteiras do legal e do legal,
sabem muito bem lidar com os códigos de ambos os lados e sabem também, ou
sobretudo, lidar com as regras que são construídas para “sobreviver na adver-
sidade”. Como mostra Daniel Hirata (2006, 2010), a expressão “sobreviver na
adversidade” nada tem a ver com as estratégias de sobrevivência de que tratam os
estudos sobre pobreza. É uma expressão que circula no “mundo bandido”. Porém,
ao que parece, todos os moradores das periferias da cidade sabem muito bem o
que isso quer dizer: saber transitar entre fronteiras diversas, deter-se quando é
preciso, avançar quando é possível, fazer o bom uso da palavra certa no momento
certo, calar-se quando é o caso. E, sobretudo, saber jogar com as diversas iden-
tidades que remetem a esses diversos universos superpostos e embaralhados nas
coisas da vida. Em outros termos, como passadores que são entre as fronteiras do
mundo social, saber transformar esses diversos territórios em recursos de vida,
vias incertas de construção de outros possíveis que lhes permitam escapar seja
da morte matada, seja da pobreza extrema.
No entanto, “sobreviver na adversidade” não é coisa fácil. Não é para qualquer
um. Nem todos são portadores dessa versão muito peculiar do “saber circula-
tório” de que fala Alain Tarrius (2002) ao discutir os percursos dos imigrantes
nas fronteiras dos países europeus. Seria possível dizer que essa espécie de
ardil popular renovado ganha todo o seu sentido quando se considera a questão
nele inscrita. Não se trata simplesmente de sobreviver e levar a vida. Trata-se,
sobretudo, de contornar – é uma espécie de arte de contornamento9 – as duas
ameaças muito concretas que se colocam em suas vidas, a cada momento, a cada
dia. De um lado, o risco da morte violenta. Esse é um dado de seus mundos de
vida. Sobretudo entre os mais jovens, fazer a narração de suas vidas é também
uma espécie de contabilidade dos mortos, pessoas próximas, amigos de infância,
vizinhos de rua, colegas de escola: “Meus amigos? Só sobrou eu mesmo, os outros
estão todos mortos”. De outro lado, o risco de cair na situação de dependência
da caridade de uns e outros, ou então da assistência social. Quer dizer, saber
“sobreviver na adversidade” supõe uma certa habilidade em transitar entre fron-
teiras. É isso que pode decidir a vida e os sentidos da vida, escapando dessa dura
partida entre a morte matada e a desfiguração da vida para aqueles que viram
“pobres de tudo” e se transfiguram em público-alvo dos programas sociais ditos
de inserção, que, nas palavras de Francisco de Oliveira (2007), não são mais do
que a administração da exceção.

9
Tomo a expressão de Marion Fresia (2004), que, em seu estudo sobre os inusitados per-
cursos de jovens refugiados nas fronteiras do Senegal e Mauritânia, levanta questões que
têm paralelos interessantíssimos com o que está sendo proposto aqui.

165
As cenas descritivas nos permitem flagrar o traçado de práticas, mediações e
mediadores. Porém, são seus personagens que oferecem os fios que precisamos
seguir. É nas linhas traçadas por esses personagens que é possível apreender as
nervuras desse socius, sua pulsação, o traçado desse mundo que vem se orde-
nando e que ganha forma ou se condensa em torno das figuras do “bandido”, do
“pobre coitado” e desse outro que poderíamos chamar de “passador”, que sabe
transitar pelas fronteiras e “sobreviver na adversidade”. Esses três só ganham
sentido como ponto e contraponto. E é esse ponto e contraponto que permite
ver como potências o que no mundo social justamente aparece muitas vezes
“embaçado”, para usar aqui uma expressão corrente entre os jovens – “está tudo
embaçado”, dizem eles, e com isso sugerem que nem tudo pode ser dito. É nesse
ponto e contraponto que esse mundo urbano pode ser descrito. Tempos atrás, o
jogo de referências era outro. Perguntávamos, e era a pergunta que eu própria
fazia quando lidava com essas realidades: quais as potências que permitem
transformar o “pobre” (personagem) em “cidadão” (o outro personagem)? Ou,
então: quais as mediações que permitem traduzir as circunstâncias da vida na
medida pública dos direitos e de um mundo comum? Pois, agora, a pergunta é
outra. A pergunta que esses personagens estão nos sugerindo é: como escapar
da morte matada ou da infelicidade do pobre coitado? É esse o deslocamento
que o primado da “vida nua” parece operar. Mas a vida nua não é o vazio, pois
é justamente aí que o jogo da vida está sendo jogado e as tramas do mundo
estão sendo tecidas.
Mas, então, isso significa dizer que, entre a pobreza cativa dos expedientes
gestionários e a violência letal, não há esse vazio social ou esse social escrito em
negativo sugerido pelas noções correntes de exclusão social. Entre um e outro, é
todo um mundo social que se constrói. Melhor dizendo: entre um e outro as tramas
da vida social vão sendo tecidas. No fio da navalha, é preciso dizer. Mas por isso
mesmo é aí que se pode apreender a pulsação do mundo urbano. Não se trata, é
bom desde logo evitar a confusão, de algo que acontece às margens, em algum
lado de fora, do “lado de lá”. Muitíssimo diferente disso: é um mundo que não
está fora, porém no centro mesmo da vida urbana, que vem sendo tecido em torno
das dimensões estruturantes da vida social e que ganha forma nos acontecimentos
prosaicos do dia a dia. Não é paralelo e não é à parte; o próprio dessa “arte do
contornamento” é justamente saber transitar entre fronteiras sociais, lidar com
os códigos, jogar com as identidades, passando de um lado (o mundo “oficial”
dos programas sociais e mediações públicas) e do outro (o “mundo bandido”), e
mais por entre todas as outras mediações sociais (a família, o trabalho, a igreja,
as associações comunitárias...), um “saber circulatório” que se transforma em
recurso para inventar possibilidades de vida e de formas de vida. Também não
se trata aqui de reeditar qualquer visão ingênua ou romântica sobre as supostas
virtudes do mundo popular. Esse não é um mundo em si virtuoso, não é um mundo
povoado por santos e almas angelicais, e a catástrofe, além do mais, instaura-se
nessas mesmas constelações sociais. Não é disso que se trata.

166
A questão é outra e diz respeito aos fios que estão tecendo um socius que ainda
precisa ser mais bem conhecido. E é isso que nos faz pensar que, em torno dos
diversos vetores (e suas zonas de turbulência) das mudanças recentes, vão se
formando linhas de força que transbordam as formas estabelecidas de regulação
política e escapam às formas conhecidas de interpelação e representação política.
Mas são linhas de força que passam por um campo social no qual se constelam
formas sociais e se conjugam as tramas da cidade, nos tempos e espaços da expe-
riência urbana. Será preciso interrogar esse campo social que vem se constituindo
nessas zonas de indiferenciação entre o lícito e o ilícito, entre a norma e a exceção,
entre o direito e a força. É aí que se joga a partida entre a vida nua, quer dizer:
vida matável; e as formas de vida, quer dizer: possibilidades e potências de vida.
É isso o que pulsa, em filigrana, nos agenciamentos práticos da vida cotidiana. São
nesses pontos de fricção que homens e mulheres negociam a vida e os sentidos da
vida. No fio da navalha. Acolhendo a sugestão de Agamben (2002), é isso o que
ainda precisa ser bem entendido se quisermos pensar uma política que esteja à
altura desses tempos em que a exceção se transformou em regra.
Essas, as questões que nos orientam nessa prospecção da cidade e das tramas
da cidade. São essas questões, algumas delas, que se tentará trabalhar nos dois
próximos capítulos.

167
CAPÍTULO 5

Nas dobras do legal e ilegal:


ilegalismos e jogos de poder

Doralice, 40 anos (em 2001), mora em um bairro da periferia paulista com


o marido, o fi lho e mais a mãe, um irmão e um sobrinho. Doralice é diarista.
Ganhos parcos e irregulares, não mais do que três casas para cuidar da faxina.
Provida de dotes culinários amplamente celebrados pela família, houve um tempo
em que resolveu vender pães e broas que ela preparava durante o dia. Vendia à
noite, nas proximidades de um hospital, em uma barraca improvisada na perua
Kombi do marido. O empreendimento não deu muito certo e, depois de alguns
meses, foi desativado.
Mas Doralice é uma mulher batalhadora e não deixa escapar oportunidades
para um ganho a mais para sua família. Assim, por exemplo, não hesita quando
surge a oportunidade de montar uma banca de CDs piratas em um bairro próximo
à sua casa. Um ponto de venda bastante modesto, mas que aciona redes de escalas
variadas, a começar pelos garotos de uma favela ao lado, chamados para garantir a
venda durante o dia, enquanto ela sai para o seu trabalho de diarista; também as
relações de cumplicidade e confiança na vizinhança e das quais depende a guarda
dos produtos contra algum incauto que queria deles se apropriar indevidamente,
em algum momento de descuido. Por outro lado, uma cascata confusa de interme-
diários que passa pela sociabilidade vicinal, mas que transborda amplamente o
perímetro local: um parente próximo fez o contato com o agenciador dos CDs, um
tipo obscuro que mantém relações obscuras com um “laboratório” obscuro em que
os CDs são copiados e, mais, os agentes que empresariam esse negócio, hoje ampla-
mente expansivo e presente em qualquer ponto da cidade. Doralice não consegue
reconstruir os percursos que os CDs percorrem até chegar a seu modesto ponto de
venda – a partir de certo ponto o circuito fica, como se diz nos meios populares,
“embaçado”. Afinal, seguir os traços desse artefato não é tarefa fácil. A rigor, isso
definiria toda uma agenda de pesquisa que haveria de nos conduzir pelos fios da
várias redes superpostas de que é feito o hoje redefinido mercado informal. Por
ora, basta dizer que são redes que passam pelo lado oficial, formal e cintilante da
indústria cultural, que transbordam para os dispositivos sociotécnicos acionados
nas fronteiras incertas do informal e ilegal, para se enredar nos múltiplos circuitos
do comércio ambulante por onde circulam produtos de procedência conhecida,
desconhecida, duvidosa ou ilícita, para, então, se condensar nas miríades de pontos
de venda espalhados pela cidade. E aqui voltamos à Doralice.
Ela conhece muito bem as coisas da vida e sabe que não teria condições de bancar
o seu negócio em algum lugar mais disputado e mais rendoso. Perguntamos a ela

169
por que não um lugar mais rendoso, já que ela teria acesso ao “fornecedor”, acesso
ademais garantido por relações de confiança, vínculos de proximidade e família.
A resposta foi precisa: ela não teria “capital” para pagar a “proteção” (quer dizer:
extorsão) dos fiscais ou, então, da polícia e muito menos para compensar as perdas
na eventualidade de um “rapa”. Enfim, Doralice tem capital social, para usar aqui
o jargão corrente na linguagem acadêmica, mas não tem capital econômico, menos
ainda capital político para lidar com as forças da ordem que parasitam os negócios
infomais/ilegais pelo poder de chantagem e da extorsão, definindo, em grande me-
dida, os modos como esses mercados se organizam e se distribuem nos espaços
urbanos (Misse, 2006). Doralice situa com precisão o lugar dos agentes públicos no
jogo de circunstâncias inscritas no campo de suas possibilidades. Os traços dessa
presença estão lá fincados nos agenciamentos que ela mobiliza em seu ponto de
venda, outros tantos circuitos que aí se condensam pelas vias das “ligações perigo-
sas”, para usar os termos de Michel Misse, por onde a mercadoria política circula
(chantagem, extorsão, compra de proteção) em um jogo de relações de poder e de
força. Sem cacife político, Doralice teve que se contentar com os ganhos irrisórios
de uma banca pobre, instalada em um lugar pobríssimo. Ganhos irrisórios e, além
do mais, incertos, pois vez e outra (e muito frequentemente) seus fornecedores ou
intermediários desaparecem porque foram presos ou ficaram eles próprios devedores
no perverso (e violento) mercado da proteção, ou, então, porque as relações de con-
fiança foram, em algum momento e por razões as mais variadas (traições, disputas,
deslealdades), rompidas em algum ponto dessa rede por onde se fazem as conexões
entre as pontas mais pobres da cidade e os circuitos de uma riqueza cada vez mais
globalizada. Aliás, foi por isso mesmo que ela desistiu do negócio.
Decididamente, Doralice está longe de ser uma empreendedora. O que fazia
não era mais do que um “bico”. Mais um entre tantos outros expedientes de que
lança mão para lidar com as urgências da vida. Assim, por exemplo, ela não titu-
beia, nas horas de aperto, em mobilizar uma espantosa rede que opera o mercado
de receitas médicas fraudadas para conseguir o remédio de que depende a vida do
marido, e que passa por dentro das farmácias de maior porte da região; expediente,
aliás, rendoso para os que inventam (balconistas e farmacêuticos de plantão, com
a conivência de fiscais e outros) os artifícios para fazer da compra-e-venda dessas
receitas um recurso a mais para complementar os baixíssimos salários pagos no
mercado formal de trabalho. Doralice passou a ter tal familiaridade com esse
mercado negro de receitas que ela própria, vez e outra, se transforma em uma
sua operadora (quer dizer: intermediária), o que lhe rende uns trocados a mais
cada vez que uma vizinha aflita (quase sempre mulheres, raramente homens) vem
solicitar seus “conhecimentos” e “boas relações” para resolver um problema de
urgência doméstica. Em outro momento qualquer e conforme as circunstâncias,
Doralice não encontra nenhuma razão moral para recusar o “serviço” que lhe é
proposto por um conhecido próximo e de confiança, e colocar a encomenda de
“farinha” em sua bolsa, entrar em um ônibus, atravessar a cidade e tranquilamente
levar a mercadoria a seu destino, trazendo de volta um ganho modesto, mas que

170
fará toda a diferença em um orçamento doméstico garantido no dia a dia, sem
que por isso ela se considere comprometida com o “mundo do crime”. Como ela
diz, “não estou fazendo nada de errado, não roubo, não mato” – ela apenas está
se virando como pode, como em tantas outras circunstâncias de sua vida.
Haveria mais a dizer sobre os percursos desta não muito pacata dona de casa.
A rigor, há toda uma agenda de pesquisa que poderíamos definir a partir de uma
situação como essa: seja seguir os produtos, os CDs pirata ou as receitas médicas
fraudadas, ou então a droga, para reconstituir, na medida do possível, a cadeia
de conexões que define os circuitos por onde trafegam; seja fazer a etnografia dos
agenciamentos práticos acionados nesses pontos de condensação de relações e
mediações, tal como essa “história minúscula” permite entrever. Duas vias dife-
rentes e complementares que certamente nos permitiriam prospectar os circuitos
superpostos de um mundo urbano atravessado por expansiva trama de ilegalismos,
novos e velhos, entrelaçados nas práticas urbanas, seus circuitos e redes sociais.
Esse o ponto que interessa, por ora, reter. É nesse ponto que a história de Do-
ralice interessa. É um jogo situado de escalas que se superpõem e se entrelaçam
nas “mobilidades laterais”, para avançar uma discussão a ser feita nas páginas
seguintes, desse personagem urbano, cada vez mais comum em nossas cidades,
que transita nas fronteiras borradas entre o informal e o ilegal ao longo de per-
cursos descontínuos entre o trabalho incerto e os expedientes de sobrevivência
mobilizados conforme o momento e as circunstâncias.
É sempre possível dizer que nada disso é novidade, que apenas repõe o que
sempre esteve presente em nossas cidades. No entanto, pouco entenderemos do
que vem acontecendo se nos mantivermos presos a um marco descritivo-analítico
pautado pelas mazelas de uma modernidade incompleta. Tampouco entenderemos o
que se passa se tomarmos situações como essas aqui descritas apenas e tão-somente
como caso exemplar da “viração” própria das desde sempre conhecidas situações
de pobreza. Na verdade, poderíamos multiplicar os exemplos (voltaremos a eles ao
final) e, a partir de cada situação, tal como “postos de observação”, apreender os
perfis de um mundo urbano alterado e redefinido pelas formas contemporâneas
de produção e circulação de riquezas, que ativam os diversos circuitos da dita
economia informal, que mobilizam o “trabalho sem forma”, para usar a expressão
de Francisco de Oliveira (2003), e se processam nas fronteiras incertas do informal,
do ilegal e também do ilícito.1 É esse o plano de atualidade, no qual se inscrevem
os percursos incertos de personagens urbanos, como o aqui descrito. E cifra de
contemporaneidade, pois entra em ressonância com o que vem acontecendo em
outros lugares, também nas cidades dos chamados países do Norte.

1
A redefinição das relações entre o formal e o informal no capitalismo contemporâneo
e, mais particularmente, o lugar redefinido do informal sob a lógica de um processo de
acumulação que exige, mobiliza e aciona a sua reprodução ampliada está hoje no centro
de um debate que já conta com uma importante literatura de referência. Para efeito deste
capítulo, cf. Portes et al. (1989).

171
O fato é que as relações incertas entre o lícito, o ilegal e o ilícito constituem
um fenômeno transversal na experiência contemporânea. São vários os autores
que vem chamando a atenção para essa transitividade entre o informal, o ilegal
e o ilícito, com uma preocupação, mais ou menos explicitada, em distinguir a
natureza da transgressão que se opera no âmbito da economia informal ou, então,
a que define as atividades ilícitas ou criminosas, como o tráfico de drogas, armas
e seres humanos.2
Bem sabemos que essa transitividade acompanha a história de nossas cida-
des, já foi cantada em prosa e verso e tematizada por uma já longa e prestigiosa
literatura, para não falar das circunstâncias históricas que presidiram o desde
sempre expansivo mercado informal. Mas também é verdade que nos vemos hoje
em face do desafio de construir um espaço conceitual distinto do que vigorava
até recentemente e pelo qual a discussão se processava sob o ângulo das chama-
das incompletudes da modernidade brasileira. Será preciso colocar a situação
brasileira sob um outro jogo de referências. Essa é a preocupação que comanda
a primeira parte deste capítulo. Não se trata de fazer um balanço bibliográfico,
tampouco rastrear teorias e questões polêmicas, muito menos oferecer explicações
ou marcos conceituais alternativos. Arriscaria dizer que se trata não mais do
que um exercício, talvez uma experimentação, a partir das pistas que os autores
comentados nos fornecem em suas pesquisas, e são essas que interessam, na
medida em que oferecem um repertório ampliado de referências pertinentes ao
cenário contemporâneo. Na segunda parte, são essas as referências mobilizadas
para situar e descrever a situação brasileira, a partir de dois outros “postos de
observação”, com ressonâncias desse primeiro, que nos é oferecido por um mo-
desto ponto de venda de CDs pirata: os centros do comércio popular na cidade
de São Paulo e, depois, o entramado de ilegalismos difusos e a circulação de
bens ilegais e ilícitos que gravitam em torno de um ponto de droga instalado em
um bairro da periferia paulista.

Nas fronteiras incertas do informal, ilegal e ilícito3

Em um artigo de 1997, Ruggiero e South lançaram mão da metáfora do ba-


zar – “a cidade como bazar” – para descrever as intersecções entre os mercados
formais e os mercados informais, ilegais ou ilícitos, tal como se configuraram, a

2
Este capítulo beneficia-se em larga medida de um programa de cooperação franco-brasileira
com pesquisadores da Universidade de Toulouse Le Mirail (Acordo Capes-Cofecub, 2007-
2011). É, sobretudo, devedor da interlocução com Angelina Peralva, com quem partilho
a coordenação desse projeto. Textos e documentos de referência estão disponíveis no site
www.fflch.usp.br/sociologia/pos-graduacao/sites/trajetorias/index.htm.
3
Retomo aqui e desdobro em outras direções questões tratadas em um artigo escrito em
co-autoria com Daniel Hirata (Cf. Telles & Hirata, 2007).

172
partir dos anos de 1980, nas metrópoles dos países centrais do capitalismo con-
temporâneo. Com evidente intenção polêmica, a metáfora evoca a alteridade nos
traços de “orientalismo” associados ao bazar, para chamar a atenção para o fato
de que ele, agora, se encontra incrustado no núcleo das modernas (e ocidentais)
economias urbanas. Na mira dos autores está um cenário urbano no qual se ex-
pande uma ampla zona cinzenta que torna incertas e indeterminadas as diferenças
entre trabalho precário, emprego temporário, expedientes de sobrevivência e
atividades ilegais ou delituosas. Nas fronteiras porosas entre o legal e o ilegal, o
formal e informal, transitam as figuras contemporâneas do trabalhador urbano,
lançando mão, de forma descontínua e intermitente, das oportunidades legais e
ilegais que coexistem e se superpõem nos mercados de trabalho. “Mobilidades
laterais”, definem os autores, de trabalhadores que oscilam entre empregos mal
pagos e atividades ilícitas, entre o desemprego e o pequeno tráfico de rua, nego-
ciando, a cada situação e em cada contexto, os critérios de aceitabilidade moral
de suas escolhas. É isso propriamente que caracteriza o bazar metropolitano: a
intersecção entre os mercados irregulares e os mercados ilegais, esse embaralha-
mento do legal e do ilegal, e o permanente deslocamento de suas fronteiras.
O “bazar metropolitano”, dizem os autores, começou a ganhar forma em mea-
dos da década de 1980. No caso da Inglaterra e dos Estados Unidos, o momento
da virada conservadora de governos que fizeram por desmanchar direitos e garan-
tias sociais foi o ponto de arranque da precarização do trabalho e a redefinição
dos mercados urbanos de trabalho. Em termos gerais, anos de reestruturação
produtiva e da chamada flexibilização das relações de trabalho que terminou
por esfumaçar as diferenças entre trabalho, desemprego e expedientes de so-
brevivência, na própria medida em que o assim chamado informal instala-se no
núcleo dinâmico dos processos produtivos e, no mesmo passo, se expande pelas
vias de redes de subcontratação e formas diversas de mobilização do trabalho
precário, sempre nos limites incertos entre o legal, o ilegal, também entre o ilícito
e o delituoso, quando isso envolve o tráfico de seres humanos direcionado para
as miríades de oficinas clandestinas que se espalham nesses circuitos produtivos
(Ruggiero, 2000).
Esses foram também anos em que as atividades ilícitas mudaram de escala, se
internacionalizaram e se reorganizaram sob formas polarizadas entre, de um lado,
os empresários do ilícito, em particular do tráfico de drogas e que, a cada local,
irão se conectar com a criminalidade urbana comum, e, de outro, os pequenos
vendedores de rua, que operam nas margens da economia da droga e transitam
o tempo todo entre a rua e a prisão. Esses são os “trabalhadores precários” da
droga, que se multiplicam na medida em que o varejo se expande e se enreda nas
dinâmicas urbanas: modulação criminosa do capitalismo pós-fordista, criminalidade
just-in-time, define Ruggiero (2000), que responde à variabilidade, às oscilações e
às diferentes territorialidades dos mercados. É nesse ponto que as atividades ilícitas,
não apenas o tráfico de drogas, passam a compor as economias urbanas nos pontos
de intersecção com os expansivos mercados irregulares, esse terreno incerto em

173
que operam as “mobilidades laterais” de trabalhadores que transitam nas fronteiras
borradas entre o trabalho, expedientes de sobrevivência e o ilícito.
A questão que comanda esse modo de descrever as cidades contemporâneas
tem, na argumentação dos autores, um evidente sentido polêmico. De partida,
trata-se de deslocar o tratamento do problema da droga do campo da criminolo-
gia, isto é, do primado da “lei e da ordem”, com a reiterada (e exclusiva) ênfase
na repressão ao crime. Nesse passo, questionam, ao mesmo tempo, o suposto de
patologias criminogênicas associadas a certas regiões da cidade (e segmentos da
população urbana) vistas como áreas subtraídas ao mundo da lei e ordem, tal como
proposto por certas linhagens da pesquisa social. Com isso, os autores buscam
desativar a imagem da droga como o grande desafio e ameaça à vida urbana e
paz social, mostrando justamente as intersecções, convergências e conivências
entre as economias legais e ilegais. Ao colocar a ênfase no fato de a economia da
droga se organizar como mercado, os autores buscam mostrar a transitividade
entre uma e outra, as similaridades em seus modos de organização, também em
suas clivagens e discriminações internas, bem como no potencial de violência
que pode estar inscrito em seus modos de regulação. É esse o ponto crítico que
confere interesse à metáfora do bazar. Como dizem os autores, ao ser aplicada às
cidades modernas, o termo faz referência a essa superposição do legal e ilegal,
também o ilícito, que atravessa os espaços urbanos, sem delimitações territoriais
definidas, multiplicando as oportunidades para a circulação de bens e produtos
de origem duvidosa, e que são transacionados no jogo multiforme das interações
sociais independentemente de serem legais ou ilegais, ou de origem ilícita.
Por certo, as questões propostas pelos autores estão longe de dar conta de
uma problemática hoje tratada por uma vastíssima literatura sobre a economia da
droga em suas várias dimensões, escalas e formas de territorialização. Mas não
é bem esse o ponto que interessa aqui discutir. O que importa, isso sim, é reter o
plano em que os autores apresentam suas questões, colocando a cidade – o bazar
metropolitano – como plano de referência para situar os mercados ilegais em suas
interações com as dinâmicas urbanas. É justamente isso que, assim parece, fez
a fortuna desse texto nos debates recentes.

Formas contemporâneas de produção e circulação de riquezas

A noção hoje revisitada4 de “economia de bazar” circula entre pesquisadores


às voltas com processos próximos às situações descritas por Ruggiero e South. É
isso justamente que sugere o interesse da metáfora do bazar para a descrição das
cidades contemporâneas, oferecendo um prisma que coloca a cidade como plano

4
A referência a Clifford Geertz (1979) é passagem quase obrigatória pelos autores que
lançam mão, atualmente, da noção de “economia de bazar”.

174
de referência para a descrição dos processos em curso. E é isso o que permite
colocar em perspectiva (e em diálogo) pesquisas que tratam dos vários circuitos
e redes de extensão variada que conformam o que se convencionou chamar de
economias subterrâneas nas periferias francesas, na superposição das atividades
informais e nos mercados de rua, nos quais os fluxos de dinheiro, mercadorias,
bens de origem ilícita e também drogas se entrecruzam em um complexo sistema de
trocas, se inscrevem no jogo das relações sociais e passam a compor as dinâmicas
urbanas que transbordam amplamente o perímetro estreito dos chamados quartiers
sensibles (cf. Kokoreff, 2004, 2000; Duprez & Kokoreff, 2000; Godefroy, 1999).
Ou então, a “segunda grande transformação”, para usar os termos de Palidda
(2002), que atinge, por exemplo, os núcleos industriais italianos, transfigurando
a moderna e desenvolvida cidade de Milão, agora atravessada por toda sorte de
ilegalismos em que se articulam a migração clandestina, a ampla circulação de
produtos da contravenção, do contrabando e da pirataria, vindos sobretudo do
sudeste asiático (mas não só) e a nebulosa de relações entre o ilegal, o informal
e o ilícito, que acompanham os processos de terceirização produtiva ou deslocal-
ização das plantas industriais.
Por outro lado, as pesquisas que tratam do que vem sendo chamado de novas
formas migratórias lançam luz sobre um outro vetor de constituição da “economia
de bazar”, nas trilhas de outras dimensões das reconfigurações do capitalismo
contemporâneo. No contexto francês, Michel Peraldi (1999, 2002), faz uso dessa
noção, com referência ao texto de Ruggiero e South, para tratar das dinâmicas
urbanas hoje redefinidas sob o impacto de formas de circulação de bens e riquezas
que seguem os amplos circuitos da migração, por onde se estruturam redes
transnacionais de um proliferante comércio ambulante. São redes que atravessam
fronteiras, articulam centros comerciais espalhados em vários pontos do planeta
e se territorializam sob as diversas modulações do chamado mercado informal
em expansão nos centros urbanos do primeiro mundo, em particular nas cidades
de fronteira, situadas nos pontos de conexão entre esses vários circuitos – muitas
delas ponto de chegada de vagas migratórias anteriores e que agora se redefinem
nessa cartografia mutante do mundo contemporâneo.
Os circuitos por onde circulam os produtos até chegar aos mercados popu-
lares nos centros urbanos fazem o traçado de verdadeiras redes transnacionais
de trocas informais nas fronteiras porosas do legal e ilegal, sempre tangenciando
os mercados ilícitos (drogas, armas, seres humanos). Ao lado do que se poderia
chamar de migração da miséria (a tragédia dos clandestinos sobre os quais tanto
se fala), observam-se novas formas migratórias que não visam à instalação nos
países de destino, colocando em movimento homens e mulheres que circulam
entre países e regiões conforme as circunstâncias e oportunidades de trocas
e comércio: as “formigas da mundialização” ou “novos nômades da economia
subterrânea”, diz Tarrius (2002); pequenos comerciantes que praticam o que
Peraldi (2007) chama de commerce à la valise (quer dizer: os nossos conhecidos
“sacoleiros”), envolvidos em dispositivos comerciais transnacionais que articulam

175
produtores do Norte e consumidores do Sul. Alguns, ou melhor, multidões deles
são independentes, outros operam sob a encomenda de comerciantes bem esta-
belecidos nos entrepostos comerciais, algo como atacadistas que mobilizam as
“formigas” para o abastecimento dos produtos que serão, depois, negociados em
outros tantos locais.5 Populações itinerantes que operam em redes mais ou menos
extensas, seguindo “os territórios circulatórios”6 tecidos por laços familiares e de
proximidade (núcleos sedentarizados das vagas migratórias anteriores), ancoradas
nas várias cidades e localidades por onde passam pessoas e produtos.7
São esses circuitos transnacionais de migração que permitem a circulação de
bens e mercadorias que, sem esses novos migrantes, não chegariam aos mercados
populares do Norte ou do Sul. Esta é a tese defendida por Alain Tarrius: os grandes
atores econômicos da mundialização mobilizam os pobres como consumidores,
como clientes e também como passadores, fora das regras oficiais e ao largo
das convenções comerciais, fazendo os produtos chegarem aos países pobres e
às populações pobres dos países ricos. Assim, produtos eletrônicos (fi lmadoras,
computadores portáteis, aparelhos de mp3, aparelhos de DVDs, etc.), despejados
aos milhares em Dubai, espalham-se pelo Leste europeu e chegam até as peri-
ferias alemãs ou francesas graças às coortes de afegãos, iranianos, georgianos
e mais todos os “derrotados das guerras” que dizimaram os países caucasianos
nos últimos tempos. Esses “novos nômades”, populações “em excesso”, seguem as
redes sociais construídas nas trilhas das diásporas anteriores ou recentes8 e são
portadores de competências circulatórias (ou seja, saber passar pelas fronteiras,
contornar as restrições, os controles e as fiscalizações), transformando-se em
atores de amplas transferências internacionais de mercadorias. Essa competência
circulatória, sugere Tarrius, ajusta-se ao “projeto de uma mundialização selva-
gem, porque ultra-liberal”, isto é, “fazer chegar aos mínimos recantos solváveis
do planeta, mercadorias de que esses lugares seriam privados em função das
oscilações aleatórias das políticas nacionais”:

5
Por exemplo, sírios búlgaros que passam encomendas para afegãos, deixando a estes
todos os riscos das passagens pelas fronteiras nos circuitos que articulam Dubai e o Leste
europeu, passando por Istambul. Cf. Tarrius (2007).
6
“Território circulatório” é termo cunhado por Alain Tarrius (2007) para se referir às
tramas relacionais engendradas pelos e nos circuitos transnacionais dessas populações
itinerantes.
7
Essas novas formas migratórias é matéria de uma já vasta bibliografia fundada em pes-
quisas que seguem os circuitos dessa itinerância globalizada. Além dos textos já citados,
ver Cesari (2002), Dimenescu (2001), Portes (1999).
8
Há algo como uma geopolítica plasmada na cartografia dessas itinerâncias que remete
às turbulências que devastaram essas regiões ao longo das últimas décadas, ao lado das
restrições cada vez mais ferozes nas fronteiras europeias.

176
[...] eis, a titulo de exemplo, as peregrinações de uma câmara de vídeo, de concep-
ção nova – grava diretamente no DVD – dotada de boas lentes, e que apareceu
no mercado mundial em 2005. Em dezembro desse ano, eram vendidas por 420
euros em Dubai e no Kowait, onde chegavam massivamente, como ‘destino final’,
enquanto os distribuidores franceses, alemães e espanhóis as comercializavam
por um preço em torno de 1400 euros. Depois de uma passagem furtiva pelas
fronteiras dos emirados, graças às coortes de migrantes afegãos, iranianos,
caucasianos etc., esses aparelhos eram revendidos por volta de 440 euros em
Beirute e em Istambul, e 430 euros em Sofia [...]. Iremos reencontrar essa mesma
câmara, por 460 euros, nas periferias francesas, tendo lá aparecido, como se diz,
“caídas do caminhão” [tombé du camion], mas que passaram pela Alemanha por
intermédio dos turcos que, por sua vez, as receberam dos afegãos e dos azeris,
que seguiram os itinerários que passam por Dubai. Quanto aos fabricantes, eles
respeitaram estritamente os acordos do comércio internacional, entregando, como
‘destino final’, centenas de milhares de aparelhos em um Estado que conta com
apenas alguns milhares de cidadãos. (Tarrius, 2007: 10)

É de se notar, ainda comenta o autor, o aparente paradoxo de formas de


contrabando (é disso que se trata) próprias do mundo pré-capitalista e que são
agora mobilizadas a serviço da forma contemporânea do capitalismo. São for-
mas variadas de contrabando, mobilizando as “formigas da mundialização”, e
a elas se deve ainda acrescentar práticas da falsificação e da pirataria que se
generalizam por todos os lados, muitas vezes com a conivência ou o incentivo das
próprias empresas interessadas em colocar em circulação o “nome da marca”,
ampliando ainda mais seus mercados nessa espécie de fronteira de expansão do
capital que são os “pobres” e seus hoje proliferantes mercados de consumo, no
Norte e no Sul, a Leste e a Oeste do planeta. Sob esta lógica, diz ainda Tarrius,
em uma observação carregada de consequências, os migrantes passam da ante-
rior submissão ao lugar-cidade à submissão às lógicas comerciais apátridas das
grandes empresas mundiais. Por certo, “a exploração não é menos sórdida, mas
as modalidades de autonomização do migrante são outras”.

[...] a mobilização dos pobres para passar, para contornar normas e regras,
produz novas formas de migração, povoadas por esses pequenos atores transna-
cionais. Esses migrantes generalizam mobilidades de formigas que se amplifi-
cam, em vez de se esgotar na sempiterna concentração de populações em torno
das diversas zonas de atividade industrial, agrícola ou de serviços, campos da
miséria. Eles são, ademais, excedentes em relação aos limites das nações por
onde atravessam, estão fora do raio de ação das políticas ditas de integração e
de igualdade de oportunidades para os recém-chegados, generosas mas pouco
eficientes já há várias décadas para inúmeros estrangeiros. Minoritários, certa-
mente, mas notáveis atores das circulações transnacionais, mantendo os vínculos
com seus locais e meios de origem, se organizando em redes já mundializadas,
eles produzem uma nova forma migratória carregada de sentido para o conjunto
das populações e dos Estados. (Tarrius, 2007: 180)

177
Se, como sugere Ruggiero (2000), o “bazar metropolitano” se constituiu nas
trilhas das mutações do trabalho e da implosão das formas reguladas do emprego,
vemos aqui o outro lado, em sintonia com o primeiro, modulações de um mesmo
processo de reconfigurações do capitalismo contemporâneo: modos de circulação
de bens e riqueza que ganham forma nessa espécie de comércio globalizado de
“sacoleiros” nos territórios circulatórios pelos quais os novos migrantes fazem
sua itinerância entre fronteiras e países e que se territorializam nos mercados
populares e no comércio de rua, hoje em expansão nos centros urbanos dos
países do Norte e do Sul.
Essa é questão também tratada por Michel Peraldi (2002) ao estudar os
mercados populares que se constituíram no mediterrâneo francês (Marseille,
sobretudo). Atento aos circuitos de bens e pessoas (entre países do Magreb e da
Europa) que lá deságuam e, em suas pesquisas mais recentes, seguindo outros
percursos e outros mercados que ganharam forma na própria medida do endu-
recimento das restrições nas fronteiras francesas,9 Peraldi reforça a hipótese
de uma circulação ampla de mercadorias que se viabiliza em função dessas
populações circulantes. Versões contemporâneas de uma espécie de capitalismo
mercantil, talvez, diz ele, um “capitalismo de párias” (Weber), agora conectado
aos movimentos superacelerados de valorização do chamado capitalismo flexível
(e as cascatas transnacionais de subcontratações) sob a égide do capital financeiro
e que coloca em circulação volumes inimagináveis de modelos, marcas, tipos e
variações de estilo; tudo em rapidíssima rotação e ciclos cada vez mais curtos de
obsolescência de produtos mal saídos dos espaços produtivos, que vão se substi-
tuindo uns aos outros conforme mudam as preferências, os públicos-alvos, o jogo
feroz das concorrências e as disputas de mercados. É esse capitalismo perdulário
e predatório que ativa tal comércio circulante. É desse formidável desperdício
que esse comércio circulante se alimenta. Na análise de Peraldi, são três as fun-
ções desses mercados, entre a itinerância desses comerciantes circulantes e seus
modos de territorialização nos centros urbanos: capturar produtos destinados a
outros mercados, dando-lhes outras destinações improváveis pelas vias oficiais
dos mercados; relançar todos os “invendidos” (estoques de falência, produtos com
defeito, erros de programação, etc.), drenando esses produtos conforme lógicas de

9
Nos últimos anos, também Istambul ou Dubai e, de lá, outras rotas em direção ao Leste, da
Ásia Central ao Sudeste asiático. Em todas essas rotas, perfi la-se um tramado de mercados
populares, acompanhados de um proliferante comércio de rua, fazendo circular produtos
quase sempre de origem duvidosa (contrabando, falsificações, fraude, pirataria). Esses
mercados pontilham os centros urbanos nos chamados países do Sul, inclusive nos pobres e
combalidos Estados africanos, passando pelos também pobres e também combalidos países
do Leste europeu ou da região do Cáucaso. A propósito, vejam-se os vários artigos que
compõem a coletânea organizada por Adelkhah e Bayart (2007). Quanto à nossa também
combalida América Latina, ainda será preciso ir à busca de pesquisas parecidas, mas há
evidências de que processos semelhantes vêm ocorrendo, sob as circunstâncias de tempo
e espaço próprias a este lado do Atlântico.

178
preferência e de usos locais, que o mercado mundial ignora ou não pode atingir;
por fim, reativar o ciclo interrompido de mercadorias postas fora de circulação
nas condições modais do mercado mundial, as chamadas “pontas de estoque”
que são relançadas, transformadas e adaptadas aos mercados nos quais passarão
a circular (cf. Peraldi, 2007).
Essas redes transnacionais por onde circulam produtos e pessoas criam con-
dições para a circulação de produtos que, em outras situações, não chegariam a
esses mercados: embargos, interditos, controles que marcam as fronteiras, dife-
renciais de renda e riquezas que tornam difícil, quando não impossível, o acesso
a esses bens e mercadorias. Em outros termos: tais mercados alimentam-se de
obstáculos, interditos e proibições que vigoram para a circulação de mercadorias
entre países, além das normas e das legislações que codificam os regimes de circu-
lação em cada país. Porém, é justamente aí que não só se qualifica a competência
desses pequenos comerciantes, mas também se especifica o sentido do “bazar
contemporâneo”, tal como proposto por Peraldi: não tanto a oralidade (acordos
informais, regras de confiança, força da palavra dada) e as tramas relacionais que
os caracterizam, mas a capacidade de ultrapassar e contornar as fronteiras e as
diferenças que demarcam (e obstam) a circulação entre países. Toda uma trama
relacional é acionada e toda uma competência circulatória é ativada justamente
nas dobras do legal e do ilegal, nas dobras das fronteiras políticas e desses ter-
ritórios circulatórios que as transpassam o tempo todo: suborno nas alfândegas,
documentos falsos, negócios escusos com fiscais e policiais, trocas de influência,
compra de proteção, acertos com condutores de caminhões, etc. É nesse sentido
que Peraldi faz uso da noção de “economia de bazar”: um dispositivo comer-
cial que coloca em cena comerciantes estabelecidos em seus postos, vendedores
ambulantes, “sacoleiros”, consumidores e mais a trama de relações que passam
por essa teia de intermediários e mediações, pelas quais os agenciamentos são
feitos nas dobras do legal e ilegal, do formal e informal. A cada ponto dessa
trama que viabiliza a circulação de mercadorias, esses atores estão em situações
relacionais, convocados a negociar constantemente a “aceitabilidade moral de
seus comportamentos” em uma situação “que torna possível a coexistência da
legalidade e da ilegalidade, e a mudança permanente dos seus limites” nos termos
de “negociações, sempre situadas, nas cenas públicas ou privadas condicionadas
pelas trocas mercantis” (Peraldi, 1999: 56).10

***

10
Como diz Peraldi, e também Tarrius, não haveria mercado nem relações mercantis sem
um dispositivo de cafés, bares, restaurantes, casas noturnas ou de jogos, oficiais ou clandes-
tinos, por onde as informações circulam, por onde são tecidos os engajamentos recíprocos,
os acordos informais, redes de confiança e jogos de reciprocidades.

179
Vale dizer que na mira desses autores está, na verdade, um ponto crítico que
pauta em grande medida as questões postas em discussão. Eles propõem um
campo de discussão que desativa essa espécie de amálgama confuso (e nada
inocente) que associa migração, miséria, terrorismo islâmico, fundamentalismo
religioso, tráfico ilícito e “crime organizado”, acionando as obsessões securitárias,
as políticas repressivas e a legislação de exceção que vêm se multiplicando no
cenário europeu. Ao seguir as pistas dessas itinerâncias de bens e pessoas, eles
colocam em evidência os mundos sociais que se desenham nos “territórios cir-
culatórios” por onde transitam essas populações com base em uma densa trama
relacional, contraponto empírico e crítico aos cenários de miséria e degradação
associados ao tráfico de seres humanos e de legiões de clandestinos mobilizados
pelas redes de subcontratação e trabalho precário. Essas pesquisas terminam
por traçar uma outra cartografia do mundo e da mundialização, e oferecem, por
isso mesmo, um outro jogo de referências para propor as questões pertinentes ao
cenário contemporâneo.11
Muito mais poderia ser dito a respeito dessas pesquisas. Por ora, vale reter
algumas questões que ajudam a requalificar o “bazar contemporâneo” que foi
nosso ponto de partida.
Primeiro: se há porosidade nas fronteiras do legal-ilegal, do formal-informal,
também é verdade que a passagem não é simples. Como parece evidente nos
comentários acima, é justamente nessas dobras que se dão os agenciamentos
políticos próprios aos mercados de proteção e às práticas de extorsão (fiscais,
polícia, agentes políticos, agentes locais dos poderes públicos, etc.) em suas várias
modulações, conforme circunstâncias de tempo e espaço, que também variam
conforme se alteram as condições políticas, os rigores repressivos e os critérios de
incriminação de bens e produtos em circulação (Tarrius, 2002). Esse fato permite
situar em escala ampliada uma questão que Michel Misse já propôs há bastante
tempo e sempre volta a insistir como central para o entendimento das dinâmicas
urbanas próprias aos mercados informais e ilegais nas cidades brasileiras. Em
outros termos: nessa espécie de economia política dos ilegalismos urbanos, os
mercados de proteção (e práticas de extorsão) compõem a face política do “bazar
contemporâneo”. Como afirma Misse (2006), o mercado de proteção (com suas
conhecidas sequelas violentas) é constitutivo das formas de regulação dos mercados
informais e ilegais. Pois, então, fica a sugestão de que, hoje, essa é uma ques-
tão central nos modos de funcionamento do capitalismo contemporâneo. Peraldi
propõe a ousada (e interessante) hipótese de que é justamente nesse ponto que se
vem dando a apropriação privada dessa riqueza circulante em escala transnacio-
nal, envolvendo esses “representantes da ordem”, responsáveis pelo controle das
fronteiras e suas passagens. Embora seja longa, vale a pena a citação:

11
Essa operação crítica é questão discutida em Tarrius (2000).

180
O contrabando e as circulações transnacionais de mercadorias não podem
se efetuar sem o envolvimento e o apoio diretos dos funcionários do Estado,
sobretudo os aduaneiros, que permitem “comprar as rotas” [acheter la route]
conforme uma expressão usual em Tanger. O signo mais tangível da regularidade
dos lucros do commerce à la valise e de outras formas de contrabando pode
ser averiguado diretamente no luxo ostensivo das “vilas” que os aduaneiros
argelinos construíram nos bairros ricos de Oran, Tanger ou La Marsa. [...]
Esses beneficiários do comércio transnacional podem ser encontrados, agora,
ao lado das classes médias dos países emergentes, nos mesmos bairros em
que moram, nas portas das escolas privadas em que seus fi lhos estudam, nas
mesmas estações balneárias onde passam as férias, com a particularidade de
terem sido formados na dobras do capitalismo mercantil e também das econo-
mias rentistas. [...] essas categorias sociais são economicamente estéreis, na
medida em que seus modos de enriquecimento, por mais espetaculares que
sejam, raramente constituem um princípio de acumulação primitiva capitalista
convertida em alguma forma de investimento produtivo [...]. Porém, em geral,
suas despesas suntuárias ou estatutárias notadamente sob lógicas patrimoniais
(filhos, casa, aquisições imobiliárias) abrem espaço para as lógicas especulativas
das quais são mais vitimas do que beneficiárias, deixando o campo livre para
a constituição de um capitalismo deslocalizado em campos que eles próprios
abriram. A emergência de um capitalismo chinês transnacional nesses terrenos
é, hoje, a manifestação mais visível e mais unificada da qual será necessário
ainda fazer a história e o inventário. (Peraldi, 2007: 109)

Expedientes crapulosos, diz Peraldi, que se alimentam de todos os contro-


les e interdições que pesam sobre essas populações circulantes. Mas são esses
mesmos interditos, é importante também dizer, que ativam a agenda securitária
e as políticas de exceção no cenário europeu, desdobrando-se na redefinição
contínua das formas de controle e suas modalidades operatórias (cf. Adelkhah
& Bayart, 2007; Cuttita, 2008). Em outros termos, se as migrações, como bem
nota Sassen (1998), é constitutiva da história do capitalismo e é hoje um vetor
poderosíssimo dos modos de circulação de riquezas, não é possível deixar de
considerar os expedientes que se fazem justamente nas fronteiras-passagens, bem
como os deslocamentos e as redefinições que se processam em função desses
agenciamentos político-repressivos, com impactos consideráveis nas regiões de
passagem: conflitos, turbulências, violências, controles mafiosos e, sobretudo, o
que um autor chamou de “arquipélagos da exceção” que redesenham a cartografia
do mundo contemporâneo (cf. Ramoneda, 2008).
Se há porosidade nos âmbitos formal-informal, legal-ilegal, lícito-ilícito, isso
não quer dizer indiferenciação entre uns e outros, pois é justamente nas suas
dobras que se dão os agenciamentos políticos (corrupção, extorsão, repressão,
violência e as várias modulações dos mercados de proteção, entre outros) que
condicionam essa ampla circulação de bens, mercadorias, pessoas e populações
itinerantes. Em outros termos, ao contrário do que muitas vezes sugere a metá-

181
fora dos fluxos e dos circuitos, os espaços não são lisos, e são justamente suas
asperezas, digamos assim, que interessa averiguar; é justamente aí que se vai
constelando a face política do “bazar contemporâneo”. Por outro lado e ao mesmo
tempo, as pesquisas aqui comentadas sugerem que é também nessas dobras que
se circunscrevem campos de gravitação, para lembrar outra metáfora, dessa vez
vinda de Thompson, o historiador, de experiências regidas por uma espécie de
“arte do contornamento” que a competência circulatória descrita pelos autores
de alguma forma expressa, mas que também poderíamos (e podemos) identificar
como um traço transversal da experiência contemporânea, bastante evidente,
aliás, no âmbito de nossas cidades.
Segundo: o tráfico de drogas está presente e também compõe este amplo cir-
cuito transnacional de circulação de bens, mercadorias e pessoas. Não é o caso,
nos limites deste capítulo, de se deter nas circunstâncias que, sobretudo no correr
dos anos de 1990, fizeram desses tráficos uma proliferante e muitíssima rendosa
atividade com impactos consideráveis nas dinâmicas (e economias) urbanas nas
cidades e regiões por onde passam e se enraízam. Por enquanto, basta dizer que
as redes transnacionais da economia da droga mudaram de escala e amplitude no
correr desses anos. São outras modulações dos mesmos processos que ativaram
as migrações transnacionais das últimas décadas (cf. Tarrius, 2007), ganhando
configurações particulares conforme as circunstâncias geopolíticas (mutantes e
turbulentas) das regiões produtoras e de passagem (Chouvy & Aureano, 2001).
Estruturam-se como verdadeiras economias que se beneficiam das mutações
recentes do capitalismo contemporâneo (produção flexível, financeirização da
economia, tecnologias digitais) nas condições de ultraliberalismo e enfraque-
cimento das regulações estatais (Naim, 2006). Vale notar: se é verdade que os
circuitos e as redes do comércio circulante transnacional tangenciam e por vezes,
sob circunstâncias locais, se articulam com os tráficos ilícitos, essas redes não
se confundem. Tarrius mostra, sobretudo em suas pesquisas mais recentes (nas
rotas do Leste europeu), que não se trata das mesmas redes nem dos mesmos
agenciamentos locais. As conexões, os comprometimentos e os modos de regulação
(controles mafiosos e violentos no caso das drogas) são outros, as rotas (com seus
pontos/locais de passagem) também não são as mesmas, apesar de sua proximi-
dade nas vastas regiões, ao Sul e ao Leste, por onde passam.
No entanto, a questão se coloca de outro modo quando vista sob o ângulo
das dinâmicas e economias urbanas das regiões em que a economia da droga
se instala e se ramifica: seja seus impactos nos mercados urbanos de trabalho e
a questão das “mobilidades laterais” de que falam Ruggiero e South; seja suas
ramificações nas economias urbanas em uma nebulosa de relações pelas quais o
dinheiro da droga circula e impulsiona os mercados e os empreendimentos legais
com impactos consideráveis na economia local, para além do que se poderia de-
signar genericamente como operações de lavagem do dinheiro “sujo” (cf. Peraldi,
2008; Guez, 2007); seja, no plano de seus modos de territorialização nas periferias
urbanas, seu imbricamento no jogo das relações sociais e na lógica da “viração”

182
de todos os dias, que se faz justamente nas fronteiras embaralhadas do legal e
ilegal, lícito e ilícito (Kokoreff, 2004); seja, ainda, a redefinição dos jogos locais
de poder e seus modos de regulação na disputa pela apropriação dessa forma
nebulosa de riqueza (entre corrupção, formas de clientelismo, acordos mafiosos,
violência aberta ou camuflada) em situações de encolhimento das prerrogativas
estatais ou, então, de perda do monopólio da violência legítima, para lembrar
aqui a fórmula famosa de Weber (Rivelois, 1996; Chassagne, 2004).
Retomando o ponto de partida: se a noção de “bazar metropolitano” interes-
sa, é sobretudo porque oferece um plano de referência que permite situar (mas
sem confundi-los em um amálgama confuso) os vetores que hoje atravessam e
estruturam as dinâmicas urbanas atuais. São eles as mutações do trabalho (e
as redes nebulosas de subcontratação) que tornam incertas as diferenças entre
trabalho precário, emprego temporário, expedientes de sobrevivência e ativi-
dades ilegais – a zona cinzenta em que operam as “mobilidades laterais” dos
trabalhadores urbanos nos principais centros metropolitanos da atualidade. São
também as formas de circulação de riqueza que se territorializam nas várias
modulações do dito mercado informal e do comércio popular proliferante nos
centros urbanos por onde circulam bens e produtos de origem duvidosa entre
pirataria, contrabando, falsificações ou simplesmente desvio dos circuitos pro-
dutivos oficiais. Trata-se ainda do mercado dos bens ilícitos (drogas, sobretudo)
também conectados em redes transnacionais, com capilaridades nas dinâmicas
urbana e que dependem, assim como outros mercados ilegais, em seus modos
de territorialização, dos mercados (também ilegais) de proteção – esses também
compõem o “bazar metropolitano” na sua face política ou então crapulosa, para
lembrar aqui a discussão proposta por Peraldi.

Dinâmicas urbanas redefinidas

Bem sabemos que, entre nós, o “bazar metropolitano” não é exatamente uma
novidade. Esse trânsito entre o informal e o ilegal, quiçá o ilícito, sempre ocorreu
em cidades marcadas desde longa data por um expansivo mercado informal, sempre
próximo e tangente aos mercados ilícitos que também têm uma história importante
de ser, em outro momento, reconstruída (cf. Misse, 2006; Zaluar, 2004). Porém,
se há, hoje, a reatualização de uma história de longa duração, há também um des-
locamento considerável na ordem das coisas. É também nesse ponto que o “bazar
metropolitano” descrito por Ruggiero interessa como referência que permite situar
a contemporaneidade e as ressonâncias do que acontece aqui e lá.
Por outro lado, se a situação brasileira tem que ser vista sob o ângulo dos
processos transversais que a atravessam, também é importante averiguar os
modos de sua territorialização, em interação com contingências locais, história
e tradições herdadas, assimetrias e desigualdades que lhes são próprias. Nesse

183
plano, a referência ao “bazar contemporâneo” também interessa, na medida em
que propõe a escala urbana para a descrição de recomposições, redefinições e
deslocamentos nas relações entre o informal, o ilegal e o ilícito, em suas intera-
ções com os circuitos urbanos de circulação de riqueza e as relações de poder
inscritas em seus pontos de intersecção.12
Será importante verificar o modo como as dinâmicas urbanas são redefinidas
por essas novas formas de produção e circulação de riquezas que caracterizam
a experiência contemporânea. Trata-se do engendramento de formas urbanas
atravessadas por circuitos econômicos em escalas variadas que se superpõem
e se entrecruzam nos mercados informais, também eles redefinidos, pois agora
conectados a economias transnacionais que mobilizam os trabalhadores e ati-
vam agenciamentos locais informais, também ilegais, para fazer circular bens e
mercadorias.
Basta seguir os produtos que circulam nos centros de comércio popular, com
a legião de ambulantes que fazem circular mercadorias de origem variada, quase
sempre duvidosa, pondo em ação verdadeiros dispositivos comerciais que fazem
a articulação entre o informal e os circuitos ilegais de economias transnacionais
(contrabando, pirataria, falsificações). Com uma densidade notável no centro
da cidade, esses mercados de consumo popular se expandem igualmente nas
regiões periféricas, desenhando outros tantos pontos de gravitação do comércio
informal que se estruturam em uma trama variada de relações tecidas na junção
das circunstâncias da chamada economia popular, controles mafiosos de pontos
de venda e a circulação de bens lícitos ou ilícitos de procedência variada. São
pontos de ancoramento de um capitalismo que, como diz Alain Tarrius, mobiliza
os “pobres” como clientes, consumidores e operadores ou passadores, garantindo a
circulação e a distribuição de mercadorias que, sem esses circuitos nas fronteiras
porosas do legal e ilegal, quando não do ilícito, não chegariam aos recantos mais
pobres das várias regiões do planeta.
Um parêntesis, para uma observação, a ser desenvolvida em outro momento:
se essa hipótese se sustenta, então é preciso reconhecer que isso torna inoperante
e desativa o campo de discussão pautado pela questão da exclusão-inclusão, como
categorias descritivo-analíticas. Na verdade, essas multidões de “descartáveis” ou
“descartados” dos mercados de trabalho são, elas mesmas, as que estão na mira
– são o ponto de mira – do capitalismo contemporâneo. A rigor, arriscando uma
formulação ainda imprecisa, há indicações de que a pobreza (no Norte e do Sul)
passou a se constituir em uma fronteira de expansão do capital. Nas pesquisas
aqui comentadas, temos talvez o registro do lado informal-ilegal do capitalismo
contemporâneo. Longe de ser uma “face oculta”, está no centro mesmo das dinâ-
micas atuais e se entrelaçam (sob modos a serem prospectados) com o seu lado
“oficial-legal”, de que é evidência a hoje acirrada disputa pelos mercados populares,

12
Essa é a aposta inscrita nos vários artigos que compõem a coletânea organizada por
Kokoreff, Peraldi e Weinberger (2007).

184
ditos C e D (no Brasil e em todos os lugares) pelas vias da expansão dos cartões
de crédito e formas variadas de endividamento financeiro. Esse é o outro lado dos
hoje proliferantes e celebrados mercados populares de consumo, em expansão nos
centros urbanos em várias regiões do planeta. Como mostra a pesquisa desenvol-
vida por Claudia Sciré (2009), algo como uma financeirização da pobreza, agora
também conectada aos fluxos acelerados de valorização do capital.
Voltando ao ponto que aqui interessa discutir: se bem, é verdade, que o
comércio informal existe desde muito tempo em nossas cidades, a mudança de
escala e essas redefinições se deram nos últimos 15 anos, mais intensamente na
passagem dos anos 2000, acompanhando os ritmos e as evoluções aceleradíssimas
da abertura dos mercados e circuitos transnacionais por onde circulam bens e
mercadorias, transpassando fronteiras, regulamentações, restrições nacionais, de
que o fenômeno maciço do contrabando e das falsificações é o registro visível nos
centros urbanos dos países a norte e a sul, leste e oeste do planeta (cf. Peraldi,
2007; Tarrius, 2007; Pinheiro-Machado, 2008).
São reconfigurações que vem se processando, esse o segundo ponto a ser nota-
do, em um cenário urbano muito alterado em relação às décadas passadas. Sinais
evidentes de “modernização urbana”, ou o nome que se queira para designar as
evoluções recentes da cidade (não só São Paulo, diga-se) e que vêm se processando
desde os anos 1990: universalização das redes de saneamento e luz elétrica, atin-
gindo mesmo as regiões mais distantes, em que pesem vazios e descontinuidades
na produção desses espaços (Marques & Bichir, 2001). O mesmo se pode dizer
dos serviços de educação e saúde. De uma maneira geral e ao menos sob esse
ponto de vista, há uma melhora, relativa, mas notável, dos indicadores sociais.13
Ainda: multiplicação, nos bairros populares, de programas sociais de escopo
variado e, ao lado ou em torno deles, a proliferação de associações ditas comuni-
tárias em relações de parceria (ou não) com os poderes públicos, com fundações
privadas, com agências multilaterais, tudo isso em interação com miríades de
práticas associativas, além da quase onipresença de ONGs vinculadas a circuitos
e redes de natureza diversa e extensão variada. Ou seja: um feixe de mediações
que desenham um mundo social anos-luz de distância das imagens de desolação
das periferias urbanas de 30 anos atrás. E o mais importante: a consolidação da
cidade como centro econômico e financeiro de primeira grandeza, com seus es-
paços, serviços de ponta e equipamentos conectados nos circuitos globalizados da
economia (Marques e Torres, 2000), desdobrando-se na multiplicação de grandes
equipamentos de consumo que se distribuem em um grande arco que atinge as
regiões as mais distantes das periferias urbanas. A recente articulação desses
equipamentos e redes comerciais com o sistema financeiro fez generalizar o uso
dos cartões de crédito, compondo o lado formal (e amplamente celebrado) de um
consumo popular que se faz sob a lógica do endividamento, também generalizado

13
Remeto o leitor às várias pesquisas, cartografias e documentos produzidos no âmbito do
Centro de Estudos da Metrópole (CEM), São Paulo: www.centrodametropole.org.br.

185
(Sciré, 2009), expandindo-se ao lado dos circuitos do comércio informal que, ao
mesmo tempo e no mesmo passo, se espalham por todos os lados.
É nesse cenário que o mercado varejista das drogas ilícitas se estrutura de
uma forma mais ampla e mais articulada do que ocorria nas décadas passadas,
multiplicando os pontos de venda por toda a extensão das periferias urbanas.
Mas isso também significa dizer que a expansão da economia da droga e suas
capilaridades nas tramas sociais acompanham a aceleração dos fluxos de circu-
lação de riquezas em um mundo urbano que está longe de validar as imagens
correntes que associam drogas e vazio institucional, pobreza extrema, anomia e
desorganização social. A entrada das drogas no cenário paulista não é recente.
A cocaína, vinda principalmente da Colômbia, entrou maciçamente na cidade
nos anos 1990. Porém, diferentemente do que acontecia no Rio de Janeiro nessa
mesma época, o varejo e a multiplicação dos pontos de venda se fez de forma
gradual, difusa, sem o comando de grupos organizados, sob modos diferenciados
e descompassados, conforme circunstâncias locais de cada região da cidade. O
ponto de virada deu-se, ao que parece, no início dos anos 2000,14 portanto em
um momento em que a potência econômica da cidade se firma e se confirma,
acompanhada de uma festiva celebração de sua modernidade globalizada. Há um
conjunto de fatos e circunstâncias impossível de reconstituir nos limites destas
páginas, uma história interna da economia da droga, os circuitos transnacionais
por onde transita, seus modos de territorialização no cenário paulista e suas re-
lações com a criminalidade organizada.15 Mas não é esse o ponto que interessa
aqui discutir. Mais fecundo para a compreensão dos mundos urbanos que vêm
se desenhando nesses anos é um esforço no sentido de colocar em perspectiva a
expansão do varejo da droga nas periferias da cidade e essa reconfiguração dos
ilegalismos urbanos que acompanham as evoluções recentes da cidade. Pois é
nesse plano que o varejo da droga se enreda nas tramas urbanas em que fluxos de
dinheiro, de mercadorias, bens e produtos legais, ilegais ou ilícitos se superpõem
e se entrelaçam nas práticas sociais e nos circuitos da sociabilidade popular.
O fato é que essa teia variada de ilegalismos vem se processando no interior
e nos meandros de um cenário urbano que, em muitos sentidos, desativa todo

14
É uma história muito recente e que ainda terá que ser mais bem compreendida em seus
fatos e circunstâncias. Em linhas gerais, corresponde ao momento em que o chamado
Primeiro Comando da Capital (PCC) consolida sua hegemonia no universo carcerário e
transborda sua presença para além das prisões, passando a controlar o varejo da droga em
São Paulo. A esse respeito, ver Adorno e Salla (2007).
15
Essas questões vêm sendo tratadas por uma pesquisa em curso, desenvolvida por An-
gelina Peralva (Universidade de Toulouse Le Mirail), Jacqueline Sinhoreto (Universidade
Federal de São Carlos) e Fernanda Almeida (doutoranda, Unicamp). Centrada na análise
do Relatório da CPI do Narcotráfico da Câmara dos Deputados, publicado em 2000, essa
pesquisa foi lançada no âmbito de um Convênio Capes-Cofecub (cf. nota 5) e está atualmente
sendo desenvolvida nos quadros do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) sobre
Violência, Democracia e Segurança Cidadã, coordenado por Sergio Adorno (NEV/USP).

186
um jogo de associações pelos quais se convencionou tratar desses temas, em suas
relações com a pobreza, privações sociais, carências urbanas, ausência do Estado,
quer dizer: no registro do que falta, do que falha, do que não se completa. Aqui,
retomamos o ponto de partida deste capítulo. É aqui que se situa, mais precisa-
mente, a exigência de mudança de registro e deslocamento do jogo de referência
para descrever essas situações e situar o plano de atualidade em que se inscrevem.
É nesse plano que importa averiguar o modo como esses processos redesenham
os mundos urbanos e redefinem ordenamentos sociais.16 Mais concretamente: o
modo como esses ilegalismos redefinem as tramas urbanas, as relações sociais
e relações de poder em situações variadas.
Essa é uma discussão de fôlego, que vai muito além do que se tem condições
de fazer neste capítulo. Por ora, o que se pretende é apenas colocar em discussão
algumas questões que definem, a rigor, todo um programa de investigação em-
pírica e teórica,17 mas que, por isso mesmo, talvez sejam importantes de serem
aqui lançadas, algo como marcadores do que pode estar em jogo nesses mundos
urbanos redefinidos.

A gestão diferencial dos ilegalismos

A primeira questão diz respeito ao lugar desse feixe variado de ilegalismos no


tecido urbano. De partida, será importante se deter sobre essa transitividade entre
o legal e ilegal que parece, hoje, estar no centro das dinâmicas urbanas de nossas
cidades. Se há porosidade entre o formal e informal, legal e ilegal, isso não quer
dizer indiferenciação entre uns e outros. Leis, codificações e regras formais têm
efeitos de poder, circunscrevem campos de força, e é em relação a elas que essa
transitividade de pessoas, bens e mercadorias precisa ser situada.18 E, a rigor,
descrita. Não se trata de universos paralelos, muito menos de oposição entre o
formal e informal, legal e ilegal. Na verdade, é nas suas dobras que se circuns-
crevem jogos de poder, relações de força e campos de disputa. São campos de
força que se deslocam, se redefinem e se refazem conforme a vigência de formas

16
Esse é um campo de pesquisa e uma perspectiva de análise que podem ser encontrados,
com variações importantes entre eles, em Ruggiero e Nigel (1997); Peraldi (2002, 2007);
Kokoreff et al. (2007); Tarrius (2007). Entre nós, ver Zaluar (2004) e Misse (2006).
17
Trata-se de um coletivo de pesquisa sob minha coordenação e que se beneficia do programa
de cooperação franco-brasileiro referido na nota 5. Em particular, no que diz respeito ao
comércio informal, a pesquisa em curso também conta com o apoio de um Convenio USP-
Aird assinado nos quadros de um programa mais amplo (ANR-Aird, França), envolvendo
quatro cidades latino-americanas (México, Caracas, Buenos Aires, São Paulo).
18
Para um discussão bem próxima ao que se está aqui propondo, ver Rabossi (2005) e
Cunha (2006).

187
variadas de controle e também, ou sobretudo, os critérios, procedimentos e dispo-
sitivos de incriminação dessas práticas e atividades, oscilando entre a tolerância,
a transgressão consentida e a repressão conforme contextos, microconjunturas
políticas e as relações de poder que se configuram em cada qual.19
Nesse ponto será importante recuperar a noção de “gestão diferencial dos
ilegalismos” proposta por Foucault. Lembremos: ao cunhar essa noção em Vigiar
e Punir (1975), Foucault desloca a discussão da tautológica e estéril binaridade
legal-ilegal, para colocar no centro da investigação os modos como as leis operam,
não para coibir ou suprimir os ilegalismos, mas para diferenciá-los internamente,
“riscar os limites de tolerância, dar terreno para alguns, fazer pressão sobre
outros, excluir uma parte, tornar útil outra, neutralizar estes, tirar proveito da-
queles” (Foucault, 2006: 227). Na passagem do século XVIII para o século XIX,
tratava-se de lidar com uma “nova economia política dos ilegalismos populares”,
uma outra distribuição dos ilegalismos que acompanhava as novas formas de
produção e circulação de riquezas (a economia urbano-industrial), seus modos
de apropriação (o instituto jurídico da propriedade privada) e as polarizações
conflituosas (e explosivas) de classes que desfaziam as cumplicidades anteriores
e se desdobravam nas “multidões confusas” que era preciso, então, desfazer e
ordenar sob a lógica dos dispositivos disciplinares então em formação.
Ilegalismo:20 não se trata de um certo tipo de transgressão, mas de um conjunto
de atividades de diferenciação, categorização, hierarquização postas em ação por
dispositivos que fixam e isolam suas formas e “tendem a organizar a transgressão
das leis em uma tática geral de sujeições” (Foucault, 2006). A noção é estratégica
na operação crítica realizada por Foucault nesse livro: um deslocamento de pers-
pectiva que desmonta, como bem diz Lascoume (1996), categorias de evidência
e grades de leitura pré-construídas (nesse caso, as categorias jurídicas penais e a
criminologia do século XIX) e, no mesmo passo, faz ver seus efeitos de poder no
quadro geral de transgressões múltiplas que acompanhavam as evoluções da socie-
dade da época, introduzindo clivagens que permitiriam classificar as infrações de
uma nova forma. Na mira crítica de Foucault estava a produção da delinquência,
forma objetivada pelos dispositivos de poder inscritos no sistema carcerário e
pela qual a gestão diferencial dos ilegalismos se realizava como parte dos meca-
nismos de poder. Se a oposição jurídica ocorre entre legalidade e prática ilegal,
diz Foucault, “a oposição estratégica ocorre entre ilegalismos e delinquência”. É
nesse deslocamento que Foucault faz ver toda uma redistribuição de práticas, de
saberes e relações de poder. E mostra como o corte entre delinquência e outros

19
Questão especialmente trabalhada por Kokoreff (2004) em suas pesquisas sobre os
“mundos da droga” no contexto francês. Entre nós, cf. Misse (2007).
20
Agradeço a Jorge Villela por ter-me chamado a atenção para a diferença entre ilegalismos
e ilegalidade, termo este que consta da tradução brasileira de Vigiar e Punir. Como Acosta
(2004) esclarece, o termo “ilegalismo” não foi acolhido pelos dicionários da língua portu-
guesa e, em sua forma original, tampouco foi aceito pelos dicionários franceses.

188
ilegalismos desloca-se e recompõe-se sob outras modalidades, circunscrevendo,
no cenário do século XIX, todo um campo político de lutas, resistências, reações,
também inversões e disputas de sentido em um mundo popular crivado pelos
dispositivos disciplinares em ação (Foucault, 2006: 237-242).
Não é o caso aqui de refazer todo o argumento de Foucault e seus desdo-
bramentos. Por ora, interessa reter essa diferença entre ilegalismos e modos de
objetivação, os pontos de incidência das clivagens produzidas e seus efeitos na
distribuição das suas multiplicidades, tal como campos de gravitação de práticas,
de disputas, de conflitos e jogos de poder. É o que permite colocar em pers-
pectiva, em um mesmo plano de referência, essas transgressões múltiplas, sem
dissolvê-las sob um nome comum ou em um amálgama confuso e indiferenciado.
Ilegalismos: um “instrumento de análise”, como diz Lascoume (1996), que aqui,
no uso que se está fazendo da noção, permite rastrear essa transitividade entre
o ilegal, o informal, e o ilícito, que foi aqui nosso ponto de partida. Ainda: um
plano de referência que permite um trabalho de prospecção do social, sem se
deixar cativo, vamos dizer assim, dos objetos ou campos de objetivação postos,
no que diz respeito aos temas aqui tratados, pela economia, pela sociologia do
trabalho, também pela sociologia urbana (o problema do formal-informal) ou pela
criminologia (crime e delinquência).
Os ilegalismos, diz Foucault em outro texto, não são imperfeições ou lacunas nas
aplicações das leis. Antes, contêm uma positividade que faz parte do funcionamen-
to do social, compõem os jogos de poder e se distribuem conforme se diferenciam
“os espaços protegidos e aproveitáveis em que a lei pode ser violada, outros em
que ela pode ser ignorada, outros, enfim, em que as infrações são sancionadas”.
As leis, diz Foucault, “não são feitas para impedir tal ou qual comportamento,
mas para diferenciar as maneiras de contornar a própria lei” (Foucault, 1994:
716). Porém, é justamente nesses torneios da lei que as questões se configuram.
É isso o que está sendo aqui visado ao se chamar a atenção para o que acontece
nas dobras do legal-ilegal. Não se trata de reter ou se ater a essa binaridade como
chave explicativa, mas de seguir, prospectar seus efeitos, o modo como os jogos
de poder se configuram nesses espaços, a distribuição diferenciada dos controles
e, em torno deles, os agenciamentos práticos que se curvam ou que escapam aos
dispositivos de poder implicados nessas categorias e codificações.
É isso o que se pode seguir no registro dos ilegalismos difusos inscritos nas
mobilidades laterais das figuras contemporâneas do trabalhador urbano, a cena
descritiva que abre esse capítulo. É o que também se pode flagrar em duas outras
cenas descritivas que se pretende, na sequência, discutir. Não são apenas casos
ou exemplos interessantes. Mas situações nas quais feixes variados de relações e
conexões estão constelados. É por isso que, colocadas lado a lado, elas se comu-
nicam pela transversalidade das questões postas em cada uma. Em cada qual,
jogos situados de escalas. Configurações diferentes dos campos de força nos quais
e através do quais os ilegalismos fazem o traçado da vida urbana. Primeiro: os
circuitos entrelaçados no comércio informal e que fazem ver os ilegalismos pul-

189
sando no centro nervoso da economia urbana da cidade. Segundo: o cenário é a
periferia paulista, onde todos esses fios se enredam, também no varejo da droga,
um plano crivado pela clivagem entre ilegalismos e crime.

Comércio informal e mercadorias políticas21

Ruas 25 de Março e Santa Ifigênia, centro da cidade de São Paulo: outro re-
gistro, outra escala, mas é por aqui mesmo que passam os fios que vão se enredar
no ponto de venda de Doralice. Nesses tradicionais centros do comércio popular,
há uma espantosa concentração de ambulantes, pequenos comerciantes de produ-
tos diversos, lojas de galeria, além de toda uma heterogênea gama de pequenos
negócios e serviços que compõem a economia urbana da região. Uma verdadeira
multidão ocupa essas ruas, uma massa compacta de homens e mulheres de perfis
variados: consumidores comuns vindos de várias regiões da cidade, também dos
bairros periféricos, mesmo os mais distantes; pequenos comerciantes em busca
de produtos para abastecer seus negócios, também espalhados por toda a cida-
de, também nas periferias urbanas; sacoleiros vindos do interior da cidade e de
outros estados e países do Cone Sul, também angolanos que mobilizam, por sua
vez, toda uma gama de serviços e expedientes para a travessia do Atlântico e a
viabilização das operações de compra e transporte de mercadorias. Na “feira da
madrugada”, que acontece na Rua 25 de Março, todos os dias, entre as 3 horas
e as 6 horas da manhã, e outras duas no Brás, feiras de ambulantes, de 5 a 7
mil barracas, formam verdadeiros labirintos de corredores estreitos, entulhados
de mercadorias de todos os tipos e por onde homens e mulheres circulam e se
atropelam com seus enormes sacos de plástico abarrotados de compras. Aqui,
a venda é por atacado. A estimativa é de 15 a 20 mil pessoas, diariamente. No
entorno próximo, centenas de ônibus estacionados, por volta de 200 por dia, boa
parte deles fretada, vindos do interior de São Paulo, do Paraná, Santa Catarina,
Minas Gerais, alguns de estados do Nordeste, outros de países vizinhos, sobretudo
Argentina (Freire, 2008). Como se vê, os fluxos desses diversos tipos de consumi-
dores passam por circuitos de uma dinâmica urbana que transborda amplamente
o perímetro local. O mesmo se pode dizer das mercadorias em circulação. Enfim,
estamos aqui longe das tradicionais economias de sobrevivência. Mas no núcleo
de uma pulsante economia urbana, instalada no centro dinâmico da cidade,
inteiramente conectada aos circuitos modernos e globalizados da economia.
Aqui, sigo de perto a pesquisa desenvolvida por Carlos Freire (2008, 2009). Os
percursos que os produtos transcorrem até chegar a esses lugares fazem o traçado
de circuitos de extensão variada que se estruturam nas fronteiras porosas, por vezes
indiscerníveis, de formal e informal, legal e ilegal. São fábricas estabelecidas que

21
Neste tópico, os créditos devem ser partilhados com Carlos Freire, que vem conduzindo
a pesquisa sobre a qual me apoio; o tratamento teórico e empírico de Freire foi (e é) central
para formulação das questões aqui postas em discussão.

190
lançam mão dos ambulantes como estratégia de distribuição fora dos controles e
regulações oficiais. Podem ser sobras, produtos fora de linha e com defeito ou, então,
estratégia para disputar mercado quando não é possível entrar no circuito formal
dominado por marcas famosas e altos custos de comercialização. São pequenas
oficinas, autônomas ou subcontratadas, que pipocam no entorno e nas pontas das
periferias em que também se multiplica o trabalho a domicílio sob encomenda e
que encontram, uns e outros, nos ambulantes o conduto para o escoamento dos
produtos, em alguns casos uma estratégia informal, mas não propriamente ilegal,
de distribuição; em outros casos, os produtos seguem percursos mais obscuros
(desvio, falsificação), junto com um verdadeiro mercado negro de etiquetas de
marcas conhecidas.22 Também os sacoleiros que praticam o pequeno contrabando
de formiga no trajeto Paraguai-São Paulo (Rabossi, 2005), abastecendo as miríades
de pontos de venda distribuídos entre ambulantes e pequenos comerciantes locais
que operam, também eles, nas fronteiras incertas do formal e informal. Claro, lá
estão os chineses, comerciantes cada vez mais presentes e cada vez mais impor-
tantes nesse comércio (Pinheiro-Machado, 2008). Eles dominam amplamente as
lojas de galeria, comandando uma ampla distribuição de produtos eletrônicos e
mais uma variedade infinita de produtos, sobretudo peças de vestuário, além de
quinquilharias de todos os tipos imagináveis. Dos contêineres desembarcados no
porto Santos às lojas de galeria, os produtos passam pelas vias de redes mais longas
e mais intrincadas por onde o empreendimento pesado do contrabando se efetiva
entre exigências de infraestrutura (transporte e armazenagem), manipulações fis-
cais (fraudes, suborno, corrupção) e dispositivos comerciais locais que acionam o
comércio de rua e sua legião de ambulantes para viabilizar a ampla distribuição
dessa quantidade incontável de produtos de qualidade mais do que duvidosa, co-
pias baratas, falsificações mal feitas, ou desses falsos-verdadeiros, como diz Alain
Tarrius (2007), ao descrever esse tipo de comércio no Leste Europeu. Ao lado
disso tudo, a quase onipresença dos pontos de venda de CDs piratas, nos quais se
condensam redes superpostas de escalas variadas que passam pelo contrabando
de CDs virgens que chegam aos milhares ao Paraguai, vindos do Sudeste Asiático;
laboratórios clandestinos de gravação capitaneados por verdadeiros empresários do
negócio ilegal (ao que parece, em sua maioria sob controle de grupos chineses);23
também pequenas produtoras piratas que se abastecem nas lojas estabelecidas
formalmente no interior das galerias e que oferecem um verdadeiro kit de gravação
(aparelhos, matrizes, fontes, senhas) para quem dispuser de recursos para tanto e
tiver a esperteza necessária para o trato do negócio (Freire, 2009).
Aqui, fica tudo embaralhado, intrincado, porém é indiferenciado talvez apenas
para o consumidor para quem pouco importa a procedência legal ou ilegal do produto
transacionado. Voltamos aqui às dobras do legal-ilegal. É justamente nesse ponto

22
Como mostra Carlos Freire (2008), esse é um expediente especialmente presente no hoje
muito dinâmico e globalizado circuito das confecções.
23
Conforme informações contidas no relatório da CPI da Pirataria, publicado em 2004.

191
que os negócios são feitos, as oportunidades aparecem e a riqueza circula. Afinal, é
um mercado que, a rigor, se alimenta dos controles e interditos legais-formais e que
gera uma riqueza que depende justamente dos artifícios inventados e agenciados
para contornar restrições, controles, fiscalizações (cf. Tarrius, 2007; Peraldi, 2002,
2007). Como diz Fernando Rabossi em seu estudo sobre os sacoleiros que transi-
tam na fronteira com o Paraguai (Ciudad del Este), há uma “articulação particular
entre regras e práticas” que precisa ser bem entendida, uma “dinâmica em torno
das regras” que é fundamental para se compreender os modos de territorialização
desse comércio, a espacialização das trocas e a distribuição das possibilidades
e oportunidades desses que fazem da venda de rua uma forma “ganhar a vida”
(Rabossi, 2004: 169). Mais concretamente, e esse é o foco da pesquisa de Carlos
Freire, nessas dobras do legal-ilegal, são colocados em ação agenciamentos prá-
ticos, que operam como pontos de ancoramento de circuitos econômicos variados
e sobrepostos, fazem as passagens entre os legal e legal, formal e informal e se
desdobram em verdadeiros dispositivos comerciais dos quais depende essa ampla
circulação de bens, de mercadorias, de produtos, de pessoas.
Porém, nada disso poderia funcionar sem sua articulação com um outro mer-
cado, também ilegal, por onde se transacionam mercadorias políticas, nos termos,
como já dissemos, propostos por Michel Misse (2006). Aqui, entram em operação
outras tantas redes e atores na interface dos poderes públicos (fiscais, gestores
urbanos, vereadores, forças policiais), oscilando entre acordos na partilha dos
ganhos, a “compra de facilidades” (suborno, corrupção), troca de favores e clien-
telismo, compra de proteção e práticas de extorsão que são mais ou menos ferozes
e violentas conforme contextos, conforme micro-conjunturas políticas, conforme o
jogo das alianças e, também ou sobretudo, conforme o grau de incriminação que
pesa sobre essas atividades (cf. Misse, 2007). Os modos como as mercadorias
políticas circulam são constitutivos da regulação desses mercados, compõem,
fazem parte e condicionam os agenciamentos práticos que canalizam os fluxos de
mercadorias, e isso é central para o entendimento das dinâmicas políticas inscritas
nessas formas de economia urbana que pulsam, hoje, nos centros dinâmicos de
nossas cidades, e alhures (Freire, 2008).
Essa a dinâmica política inscrita nos modos de funcionamento desses mer-
cados. Mas o mercado não é uma entidade abstrata. É feito de um sistema de
trocas, de interações, intercâmbios sociais, relações de poder. Três pontos a
serem notados.
Primeiro: os modos pelos quais se transacionam as mercadorias políticas tam-
bém circunscrevem as redes por onde a riqueza circula, algo como um excedente
derivado das práticas de corrupção e extorsão, apropriado (e expropriado) pelas
vidas de expedientes crapulosos e que acionam outros tantos atores e operadores
desses mercados.24

24
Essa é questão discutida por Peraldi (2007) no contexto desses comércios nas fronteiras
europeias.

192
Segundo: é nesse terreno que se armam os jogos políticos que oscilam entre
acordos e transações mafiosas, tolerância e repressão, acertos obscuros e conflitos
abertos e muito frequentemente estampados nas verdadeiras batalhas campais
envolvendo ambulantes, comerciantes, fiscais da prefeitura, gestores urbanos,
a polícia. Aqui, no cerne da gestão diferencial dos ilegalismos, para retomar a
discussão de páginas atrás, configura-se um campo de conflitos e disputas que
se deslocam e se diferenciam conforme os modos de territorialização desses
mercados e a procedência dos produtos, os interesses envolvidos, conveniências
políticas, o cacife político dos atores em cena (cf. Freire, 2008).
Terceiro: no jogo oscilante entre tolerância, transgressão consentida e repressão
estabelece-se, na verdade, uma outra clivagem, transversal às territorialidades
desses mercados, mas que marca a diferença entre os empresários do ilegal e
os vendedores de rua dos quais depende essa ampla e vastíssima circulação de
produtos de procedência duvidosa. Gestão diferencial dos riscos, diz Carlos Freire:
os empresários dos negócios ilegais, sobretudo do contrabando e da pirataria,
acobertados nas fachadas legais de seus empreendimentos incrustados nas lojas
estabelecidas nas galerias, acionam dispositivos variados para neutralizar as
possibilidades de responsabilização criminal desse comércio ilegal. Para eles,
na pior das hipóteses, recaem, para lembrar os termos de Foucault, os delitos de
direito (fraude fiscal, sonegação, trapaças variadas).25 Os riscos do contrabando e
outras ilicitudes no percurso dessas mercadorias são todos eles transferidos para
os vendedores de rua distribuídos nas miríades de pontos de venda espalhados
pela cidade e sobre os quais incidem as formas mais ostensivas de controle e
repressão (Freire, 2009).
Retomando o fio da meada: aqui, nesse registro, os torneios da lei, as dobras
do legal e ilegal nos quais se alojam relações de poder e jogos de força inscritos
na transação das mercadorias políticas e que operam, como Misse bem enfatiza,
como uma forma, aliás, mercantilizada de expropriação da soberania do Estado
em suas prerrogativas de lei e ordem. É por isso que uma etnografia desses mer-
cados, tal como esta que vem sendo realizada por Carlos Freire, desdobra-se em
uma etnografia política que coloca em mira o Estado visto a partir dessas suas
pontas que estão no centro nervoso dessas economias. São os vários agentes,
procedimentos, práticas que se movem entre as instâncias formais de regulação
política, de regulação econômica, de regulação urbana (tudo isso implicado nesse
comércio informal, que passa pelas lojas, que se espalha pelas ruas e se enreda
nas dinâmicas urbanas de produção dos espaços) e os procedimentos extrale-

25
De acordo com o relatório da CPI da Pirataria, Law Kin Chong, tido como o maior
contrabandista do país, é dono do Shopping 25 de março, tem negócios na Galeria Pagé
e no Shopping Oriental, além de outros depósitos de mercadorias que se estendem desta
região até o Brás, passando por lojas da Avenida Paulista e Rua Augusta. Foi preso não por
contrabando (“não comprovado”), mas por “indícios de corrupção ativa”. A análise desse
documento é matéria de pesquisa de Carlos Freire.

193
gais, deslizando para o arbítrio, a expropriação, a violência aberta. A rigor, isso
também toma parte e é constitutivo desse deslocamento das fronteiras entre legal
e ilegal – incerteza, indeterminação, dessas fronteiras – que acompanha essas
formas de produção e circulação de riquezas. Mas é aqui também que se constitui
um acirrado campo de disputas, envolvendo lojistas, ambulantes, associações,
sindicatos, fiscais da prefeitura, forças policiais, gestores urbanos, vereadores e
suas bases locais. Negociações difíceis, sempre instáveis e sempre refeitas em
torno da gestão desses espaços e a distribuição de seus territórios. No centro
dessas disputas, os jogos de força do clientelismo, dos mercados de proteção e
práticas de extorsão. E também a negociação em torno dos patamares toleráveis
de extorsão.26 São nesses limiares, diz Freire, que se processa a disputa pela
apropriação dos excedentes gerados pelo comércio de rua.
É assim no centro da cidade, é assim também nos vários pontos de concentração
do comércio popular nas regiões periféricas. Aqui, os produtos circulam por meio
de acordos nem sempre fáceis de serem mantidos entre organizações mafiosas,
gente ligada ao tráfico de drogas, comerciantes pobres, intermediários de empresas
duvidosas, fiscais de prefeitura, vereadores e suas maquinas partidárias, tudo isso
misturado com pressões, corrupção, acertos obscuros e histórias de morte. Aqui
e lá, em todos os lugares, uma zona cinzenta feita de alianças, disputas e acertos
escusos, tudo isso regido por relações de força que liberam uma violência sempre
presente, sob formas latentes, mas potencialmente devastadoras.

A periferia é o lugar onde há “ou o acerto ou a morte, mas não a prisão”27

O cenário é conhecido: redes superpostas e embaralhadas de pessoas, trocas,


produtos, bens que circulam nas fronteiras incertas do informal e ilegal, entre
expedientes de sobrevivência, o trabalho irregular, pequenos empreendimentos
locais e os “negócios do crime” a gravitar em torno dos pontos de venda de dro-
gas ilícitas: as tradicionalíssimas oficinas de carro, que se multiplicam por toda
a periferia, em que se misturam o trabalho informal e a transação de peças de
origem duvidosa, em conexão (ou não) com os vários pontos de desmanche de
carros roubados, tudo isso alimentando um espantoso mercado popular de peças,

26
Vale a citação completa: “segundo informações dos próprios ambulantes, seriam quatro
sindicatos apenas em São Paulo que tem diferentes áreas de predominância na cidade e mais
160 associações de ambulantes, cada qual com uma maneira especifica de atuação e suas
próprias alianças e bases de apoio. Esses sindicatos e associações negociam diretamente com
a prefeitura nas situações de confl ito, organizando manifestações nos casos de confrontos.
Eles acabam atuando na gestão dos espaços urbanos que concentram muitos ambulantes,
quando não controlam diretamente a ocupação dos pontos. Negociam também os limites
tolerados desse mercado de proteção ao promover denuncias contra agentes da autoridade
publica quando a extorsão atinge patamares muito elevados” (Freire, 2008: 126).
27
Devo a Alessandra Teixeira a recuperação dessa expressão, que compõe o repertório
popular que circula nas periferias urbanas.

194
motos e automóveis de “segunda mão”; os muito modernos mercados de CDs
piratas, produtos falsificados ou, então, contrabandeados (dos cigarros vindos do
Paraguai, passando por isqueiros vindos sabe-se lá de onde, até os eletrônicos
que chegam dos contêineres chineses desembarcados no porto de Santos), fontes
de renda para os que agenciam os pontos de venda e alegria sobretudo para os
mais jovens (mas não só eles) com seus aparelhos de mp3, celulares modernos,
aparelhos de som e DVD; ou, então, o atualíssimo e muito rendoso negócio com
caça-níqueis que vem ocupando o lugar do tradicional jogo do bicho, além de,
como este, também operar no jogo de luz e sombra entre intermediários obscuros,
a compra de proteção policial e os rendimentos generosos para os que alojam e
operam essa versão moderna do jogo de azar hoje comum em qualquer birosca
de um bairro de periferia.28
É nesse plano que o varejo da droga se enreda nas tramas urbanas em que
fluxos de dinheiro, de mercadorias, de produtos ilegais e ilícitos se superpõem e
se entrelaçam nas práticas sociais e nos circuitos da sociabilidade popular (Telles
& Hirata, 2007). É nesse plano que as pessoas transitam pelos meandros desses
circuitos embaralhados, assim como a prosaica Doralice, que foi aqui o nosso
primeiro posto de observação. É nesse plano que os produtos também circulam
e as famílias podem exibir, orgulhosas, seus modernos aparelhos de som transa-
cionados pelas vias das redes familiares e de vizinhança. Isso para não falar dos
celulares, que trocam de mãos o tempo todo, aliás uma rotatividade espantosa
(também dos chips), cujo circuito passa pelo comércio informal, pelos “mundos
bandidos” e por outros tantos meandros da sociabilidade popular. E é nesse plano
também que, digamos assim, os “excedentes” dos negócios da droga também
circulam, por exemplo, nas melhorias dos campos de várzea, nos programas
sociais, nas festas juninas, nos presentes de final de ano. O jogo aí, como bem
sabemos, é mais complicado do que essas aparentes trivialidades do cotidiano
de um bairro de periferia. Mas o ponto que interessa aqui enfatizar é que tudo
isso vai montando os jogos de vida feitos, afinal, também dessas trivialidades.
Assim, por exemplo, no bairro no qual fazemos os nosso registros de campo, uma
certa dona Justina solta vitupérios contra a “biqueira” instalada nas proximidades
de sua casa, porém fica felicíssima com os ganhos obtidos na barraca de doces
que ela montou na festa junina patrocinada pelos “meninos”, revolta-se com a
chegada da polícia (“eles não querem deixar a gente trabalhar”) e torce para que
o acerto chegue a bom termo (“eles estão fazendo a coisa certa”). Ou, então, as
famílias que ficam satisfeitas com o fato de seus fi lhos passarem horas seguidas,
do final do dia às horas tardias da noite, em uma lan house instalada nas proxi-
midades (“assim eles não ficam por aí fazendo besteira”), mas que todos sabem

28
A imprensa já noticiou o lugar do comércio de máquinas de caça-níqueis nas operações
de lavagem de dinheiro capitaneadas por redes transnacionais, das quais, como se pode
supor, os modestos donos de birosca nas periferias não suspeitam nem poderiam imaginá-
las. Cf. Maierovich (24/03/2007).

195
que é empreendimento do “patrão” do pedaço. Aliás, é interessantíssimo: aqui,
na contramaré dos tempos que correm, é tudo mais-do-que-legal: computadores,
programas, equipamentos, nada é pirateado, muito menos de procedência incerta;
tudo é comprado nas Casas Bahia, fazendo uso dos programas de financiamento
em nome de alguém com “ficha limpa” na família. Afinal, eles sabem muito bem
que ali teriam (e têm) que lidar com a chantagem e extorsão dos fiscais da prefei-
tura e não gostariam de ser pegos por esses “delitos de direitos”. E, sendo assim,
lançam também mão dos muitos modernos e financeirizados circuitos formais do
comércio popular sobre os quais se falou no início deste capítulo.
Trivialidades. Tudo isso pode, ademais, parecer risível face à truculência de
episódios recentes e não tão recentes (e no presente imediato em que estas linhas
estão sendo escritas), que tomam a cena do Rio de Janeiro e que também ocorrem,
com outras modulações, em São Paulo. Mas essas trivialidades persistem e com-
põem uma espécie de quase-normalidade. E é por isso mesmo que elas podem ser
tomadas como referência para situar as questões postas nessas transversalidades
de que são feitos os ordenamentos sociais e as formas de vida. Pois aqui, nesse
plano, as mercadorias políticas também circulam e também compõem os jogos
da vida. E isso muda o modo de entender (e descrever) essas quase-banalidades.
De um lado, do ponto de vista das práticas sociais e das sociabilidades locais, as
clivagens entre ilegalismos difusos e o crime estão longe de serem evidentes. Os
sujeitos transitam nesses territórios porosos, seguindo as comunicações laterais e
transversais próprias do mundo social e por onde circulam bens, pessoas, também
histórias, códigos, repertórios. Porém, e esse é o segundo ponto, a clivagem se im-
põe e é posta nos modos como a mercadoria política circula, em um jogo oscilante
entre tolerância – ou “vista grossa”, como se diz –, acertos negociados e extorsão,
tudo se fazendo também nesse lusco-fusco do legal-ilegal. No caso do varejo da
droga, o jogo é mais pesado, como bem sabemos. Aqui, a versão mais truculenta
e violenta, e, muito frequentemente, extrema (execuções, extermínios).
As práticas corriqueiras, mas não banais, dos mercados de proteção, com suas
rotinas, seus tempos, seus procedimentos, seus lugares, protocolos, a cenografia
como as coisas acontecem, traçam territórios, marcam as fronteiras, introduzem a
clivagem, mesmo que tudo isso esteja, no plano dessas trivialidades, esfumaçado.
Porém, dona Justina sabe muito bem do que se trata quando os policiais chegam
para atrapalhar o negócio de sua barraca na festa junina, às vezes à paisana, às
vezes de modo ostensivo, com suas viaturas. Todos sabem do que se trata quando
eles rondam o negócio da lan house. Ou a birosca onde “tudo” acontece. Isso para
não falar, é claro, dos episódios recorrentes em torno da “biqueira”, mas aqui,
diferentemente dos outros casos, não há ambivalência nenhuma a ser desfeita
com a presença das “forças da ordem”; faz parte da rotina do próprio negócio.
É, entretanto, essa presença rotineira (e os riscos também rotineiros) que finca
as marcas de que ali é o território do crime.
Quando essas práticas assumem as formas mais violentas, chantagem, ex-
torsão, invasão, mortes e extermínios nos momentos em que as coisas saem dos

196
eixos (acertos desestabilizados pelas razões as mais variadas), o epicentro é a
“biqueira”, mas a zona de arbítrio se expande. Relações de força que trans-
bordam para todo o entorno. Conhecemos a cena: sob o pretexto de “caça aos
bandidos”, sucedem-se as batidas policiais, invasão de domicílios, espancamento,
chantagem, extorsão, expropriação, mortes e extermínios. Na prática, um total
embaralhamento e inversão dos critérios que definem a ordem e seu avesso
ou, então, para usar a expressão corrente no universo popular, “o lado certo”
e o “lado errado” das coisas da vida. Não se está falando aqui nada de novo.
Porém, há aí algumas questões sobre as quais vale se deter. Se a clivagem entre
ilegalismos e crime é posta pelos processos de incriminação, essa clivagem é
marcada pelos modos como os mercados de proteção e práticas de extorsão se
processam. Quer dizer: essa clivagem é sobreposta pela própria ilegalidade (e
arbítrio) da mercadoria política (Misse, 2006). Nas suas formas mais violentas,
explicita-se o que está inscrito nas suas modalidades mais corriqueiras e bran-
das, se é que se pode dizer assim. Aqui, nesse registro, nas suas formas mais
violentas, não se trata propriamente de uma porosidade do legal-ilegal, não se
trata de fronteiras incertas entre o informal, o ilegal, o ilícito. Mas da suspensão
dessas fronteiras na própria medida em que fica anulada a diferença entre a lei
e a transgressão da lei. A lei é como que desativada. E isso significa dizer que
é a própria diferença entre a lei e o crime que se embaralha e, no limite, é ela
própria anulada.
Aqui, se está no cerne do que Agamben define como “estado de exceção”.
Em suas configurações contemporâneas, práticas e situações instauradas no
centro da vida política (e de sua normalidade democrática), fazendo estender
uma zona de indeterminação entre a lei e não-lei, terrenos de fronteiras incertas
e sempre em deslocamento nos quais todos e cada um se transformam em vida
matável, homo sacer (Agamben, 2007).29 É o que permite acionar uma espécie
de direito de matar, sem que isso seja considerado um crime. É isso o que está
posto nessas situações que se repetem nas periferias urbanas. É o que está posto
e exposto nessa expressão que acompanha os registros policiais – “resistência
seguida de morte”: uma categoria que não tem existência legal, mas que é aceita
no processamento judicial, que opera como uma espécie de autorização para

29
Além das situações de desarranjo nos “acertos”, há ainda os episódios recorrentes de
intervenção policial-militar, em relação (ou não) com os mercados de proteção. Note-se:
os 493 mortos em uma semana como revide da Policia Militar aos ataques do PCC, em
maio de 2006. Ainda: o arbítrio e a violência que acompanham a denominada “Operação
Saturação”, apresentada como modalidade “moderna” e “inovadora” de uma política de
segurança hoje regida pela lógica da intervenção pontual e de “emergência” (imperativos da
“urgência”) nos territórios ditos “problemáticos”. “Emergência” e “urgência”, essas noções
inefáveis cuja definição faz parte do poder discricionário das “forças da lei”, compõem a
gramática dos estados/situações de exceção (Agamben, 2007). A propósito, é de interesse as
questões propostas por Frederic Gros (2006, 2008), e também por Graig Calhoun (2004).
Tratar dessas questões exigiria muito mais espaço do que é possível fazer nestas páginas.

197
matar, avalizada pelas próprias instancias estatais, também judiciais, inverten-
do tudo e suspendendo todas as diferenças, de tal modo que toda e qualquer
execução vira outra coisa, o crime é atribuído à vitima em supostas “guerras de
quadrilha”, “troca de tiros”, “resistência à prisão” (Soares, Moura & Afonso,
2009). Mais no Rio de Janeiro do que em São Paulo, essas situações já foram
pesquisadas, estudadas e etnografadas. Michel Misse mostrou em seus vários
trabalhos, já não de hoje, que são práticas enraizadas em uma história de longue
durée que ele tratou de reconstituir e discutir (Misse, 2006). Em termos político-
conceituais, trata-se de uma expropriação ou apropriação privada da soberania
do Estado, diz Misse. Um Estado que nunca chegou a garantir o monopólio da
violência legitima, diz ainda o autor. Em outra chave teórica, talvez se possa
reformular a questão, pois se trata do modo como a soberania do Estado se efe-
tiva pelo poder de suspender a própria lei (Agamben, 2007). É algo que pode
ser visto, flagrado e, como propõem Das e Poole (2004), etnografado, seguindo
os modos de operação das forças do Estado em suas pontas, seus movimentos,
seus procedimentos e os tempos pelos quais vai se repondo essa indiferenciação.
Produção das margens, dizem as autoras, que não se confundem com um lugar
definido, periferia ou territórios de pobreza, mas que se deslocam, se fazem e
refazem conforme mudam os alvos, as conveniências, o foco das atenções dos
representantes dos poderes estatais nessas pontas em que o Estado afeta formas
de vida. E circunscreve a própria experiência que os sujeitos fazem (e elaboram)
da lei, do Estado, da autoridade, da ordem e seu inverso. De alguma maneira,
isso está inscrito no repertório popular que circula nos meandros da vida urbana:
“Eles são bandidos piores que bandido assumido”, é o que se diz. Todos dizem
e todos têm, ademais, alguma evidência para mostrar e por onde estruturar uma
narrativa que fala do embaralhamento desses lugares, da inversão dos sentidos,
do lado certo e o lado errado.
Mas é também por isso que esses lugares produzidos como “margem” são es-
tratégicos para o entendimento dos ordenamentos sociais urdidos nessas fronteiras
porosas do informal, ilegal e ilícito e que, retomando o argumento de partida,
está no centro da experiência contemporânea, aqui e alhures. Na sua radicali-
dade, explicita-se o que está contido na gestão diferencial dos ilegalismos que
se processam nos meandros do comércio popular, que foi aqui o nosso segundo
posto de observação. Também nos ilegalismos difusos que se pode apreender
no mundo social e que estão crivados nas mobilidades laterais das figuras con-
temporâneas do trabalhador urbano, nosso primeiro posto de observação. Em
termos gerais: as dimensões políticas dos ilegalismos urbanos que circunscrevem
também campos de experiência. E que ganham configurações diversas e próprias
aos seus diversos modos de territorialização.
Mas, então, vale perscrutar a lógica de verdade contida no dito popular que
abre este tópico: “ou o acordo ou a morte, não a prisão”, é assim na periferia. No
jogo oscilante entre tolerâncias, acertos (ou morte) e prisão, definem-se as dimen-
sões territorializadas da gestão diferencial dos ilegalismos: o dispositivo penal

198
(isto é, legal) recai sobretudo sobre uma criminalidade urbana difusa, avulsa,
desterritorializada, porém concentrada em regiões não periféricas da cidade.30
É sobretudo essa pequena criminalidade que vem alimentando e abarrotando
os dispositivos carcerários, resultado do endurecimento penal dos últimos anos
(Teixeira, 2009; Salla, 2007). No Brasil, o aumento da população carcerária
mais do que dobrou entre 2000 e 2006. No estado de São Paulo, a situação é
ainda mais acentuada: a população carcerária triplicou entre 1994 e 2004, de
31.842 para 108.480 pessoas. Em 1989 eram 28 estabelecimentos prisionais;
144, em 2006 (Salla, 2007).
O chamado encarceramento em massa é um fenômeno geral, também trans-
versal aos países a norte e sul do Equador. Aqui, como bem sabemos, isso ganha
contornos próprios às versões brasileiras do “vigiar e punir”. É uma discussão
que foge ao escopo deste capítulo. Mas esses dados interessam para situar o fato
de que indivíduos com passagens pelos dispositivos judiciais-carcerários estão
cada vez mais presentes no cenário urbano atual, aqui e alhures.31 A questão
está na pauta dos debates atuais (Cf. Wacquant, 2008; Garland, 1999, 2001).
É impossível enfrentá-la nos limites deste capítulo. Porém, reatando o fio da
meada, seria possível dizer que as atuais redefinições das formas de controle
afetam esses trabalhadores urbanos que transitam nas fronteiras porosas do legal
e ilegal. Quer dizer: afetam os percursos das “mobilidades laterais” que, agora,
passam, com uma frequência cada vez maior, também entre a rua e a prisão. É
isso o que está posto no campo das possibilidades da prosaica Doralice, mesmo
que ela não seja pega pelos dispositivos penais. Mas não deixa de ser espantoso
como a teia de suas relações é também feita de gente que foi presa, parentela,
conhecidos próximos e vizinhos, aliás também os “contatos” e fornecedores dos
quais dependia o seu precário e muito inofensivo negocio de CDs piratas. São
histórias que circulam e que compõem o repertório popular, situações que se
repetem e que também tecem as tramas dos mundos urbanos em que essas his-
tórias minúsculas acontecem.
Isso tudo é matéria de pesquisa. No entanto, se se corre aqui o risco de se
passar tão rapidamente, de modo tão ligeiro, por uma questão dessa enverga-
dura, é porque não é possível evitá-la. Menos por conta da lógica interna de um

30
Devo a Alessandra Teixeira a formulação dessa questão. Dados e informações sobre esse
perfi l da população encarcerada podem ser encontrados em Boiteux (2009).
31
Vale a citação: “[Nos Estados Unidos] o encarceramento tornou-se uma instituição social
que estrutura as experiências de grupos sociais inteiros. Tornou-se parte do processo de
socialização. Cada família, cada domicílio, cada indivíduo em sua vizinhança tem uma
experiência pessoal e direta com a prisão – através da esposa, de um fi lho, de um parente,
de um vizinho, de um amigo. Encarceramento que deixou de ser o destino de um punhado
de indivíduos criminosos, e torna-se uma instituição que ganha forma para amplos setores
da população. [...] Temos, hoje, verdadeiras bibliotecas de pesquisas em criminologia sobre
o impacto da prisão sobre os indivíduos encarcerados, mas quase nada sobre o seu impacto
social nas comunidades e suas vizinhanças” (Garland , 2001: 2).

199
argumento e mais, muito mais, por uma imposição de evidências de que não
se pode contornar. Faz parte do diário de campo de qualquer pesquisador que
circule pelas periferias da cidade a constatação de que é, hoje, quase impossível
encontrar uma família que não tenha contato e familiaridade, direta ou indireta
(conhecidos, vizinhos, parentes) com a experiência do encarceramento. Isso le-
vanta a pergunta sobre o modo como essa experiência afeta práticas cotidianas e
os modos de organização da vida familiar: o “jumbo”, apoios, visitas, advogados,
busca de recursos e solidariedades. E, junto com isso, a ativação de redes sociais
que passam, também elas, por essas fronteiras porosas de legal-ilegal, lícito-ilícito,
para mobilizar recursos, suportes, bens, informações de que depende a vida dos
parentes aprisionados.
Como Rafael Godoi mostra em sua pesquisa, esses são alguns dos “vasos co-
municantes” (existem outros) que constroem os circuitos que conectam bairros e
prisões. São práticas que afetam a vida dos presos, tanto quanto as pessoas direta
ou indiretamente envolvidas com a prisão. São condutos pelos quais a experiência
prisional se difunde no meio urbano (Godoi, 2009), passa a compor o repertório
popular, as histórias, os casos, os acontecimentos e suas truculências, também
a linguagem e os protocolos que regem o “proceder” no interior das prisões, no
“mundo bandido” e nos mundos urbanos onde tudo isso circula (Hirata, 2006).
Como diz Fernando Salla (2009:9), as “tramas e os dramas da vida prisional
chegam a esses bairros; os códigos, as condutas, também”. De um lado e de outro
circulam percepções, comportamentos, experiências de coerções dentro e fora das
prisões (Salla, 2009: 9). Temos aí pistas a serem seguidas se quisermos entender
o solo em que se ancoram os grupos criminosos, em particular o PCC, sua impor-
tância e suas capilaridades no mundo urbano, para além de suas características
internas e a natureza dos negócios que eles dominam (Salla, 2009).
Esse, o ponto a ser destacado: o dispositivo carcerário compõe hoje uma refe-
rência urbana e redesenha os circuitos da cidade. Em torno dele, nas fronteiras
também porosas do fora e dentro de seus muros, há toda uma trama de relações
que vai sendo tecida, em um jogo social variado que termina por desativar a
binaridade ordem-desordem pela qual os dispositivos disciplinares (aqui, no-
vamente Foucault) recortaram e formalizaram as transgressões.32 O fato é que
o ex-presidiário (ou o foragido) é hoje um personagem urbano presente (e cada
vez mais presente) nas tramas da cidade: seja como operador dos vários ilega-
lismos da economia urbanas; seja como componente importante nessa espécie
de reprodução ampliada dos mercados ilícitos (e da criminalidade urbana) na
própria medida em que se encontra cativo de formas de controle que o mantêm no
circuito fechado da “delinquência” – como diz Foucault, uma forma subordinada
dos ilegalismos populares; seja ainda porque está presente, o tempo todo, nos
agenciamentos da vida cotidiana e nas redes sociais que passam pela família,

32
A questões discutidas por Manuela Cunha (2002) no contexto português têm paralelos
notáveis com as situações encontradas nas periferias paulistas.

200
pelas relações de vizinhança e por todas as cumplicidades tecidas no jogo das
reciprocidades populares.
Personagem presente nesses territórios produzidos como “margem” e, no in-
trincamento das relações e circuitos que aí se superpõem, ele é também parte
ativa dos ordenamentos sociais que aí também vão se fazendo, nos modos sempre
situados, relacionais, contextuais pelo quais os critérios de ordem e seu inverso
são negociados, “o lado certo da coisa errada”, como se diz no “mundo bandido”
(Hirata, 2006), ou o seu inverso, quando é a própria experiência da lei que faz
embaralhar, inverter e reverter os sentidos e direções do “certo” e “errado”.
Voltaremos a isso no próximo e último capítulo.

201
CAPÍTULO 6

Ilegalismos e a gestão (em disputa) da ordem

Em 2001, quando iniciamos nosso trabalho de campo, ao falar de suas tra-


jetórias, homens e mulheres (mais os homens do que as mulheres) faziam uma
verdadeira contabilidade dos mortos. Sobretudo os jovens, homens: “os meus
amigos? Morreram todos”, amigos de infância, vizinhos, colegas de escola. Leia-se:
foram mortos por conta de disputa de gangues de bairro e desacertos em assuntos
do crime. Ou foram executados pela Polícia Militar. Quatro ou cinco anos depois,
a resposta era outra: “mortes? Isso não tem mais”, “agora, não pode matar”. Esta
expressão, “não pode matar”, circulava por todo o bairro (e não apenas ali, como
iríamos saber logo mais), era dita e repetida por qualquer morador, com convicção.1
O bairro no qual tomamos nossos registros de campo já foi considerado um dos
mais violentos da cidade, compondo com o Jardim Ângela e o Capão Redondo
(zona sul) o que foi chamado, nos anos 1990, de triângulo da morte. Nesse bairro
que fora, nos anos anteriores, atravessado por verdadeiras guerras entre gangues
rivais (falarei delas mais à frente) e muitas mortes, os moradores agora diziam que
estava tudo em paz, que não havia mais mortes, não mais o medo, de outrora, de
ser atingido por alguma bala perdida, tampouco a insegurança, sobretudo para
as mulheres, de transitar pelas ruas escuras durante a noite. No início dos anos
2000, quando o assunto vinha à baila, diferente do que aconteceria alguns anos
depois, falava-se do PCC, Primeiro Comando da Capital, sempre à meia-voz ou
com alusões vagas, algo como um segredo de polichinelo, mas era disso que se
tratava quando falavam da “pacificação” da região.
O “patrão” do ponto de venda de drogas instalado no bairro nesses anos,
início dos 2000, nos explicava: não podia mais acontecer, como antes, a morte
como desfecho de desafetos, desavenças e disputas entre grupos rivais. Agora,
ele nos dizia: a morte, apenas para os assuntos muito graves. E, assim mesmo,
depois de passar pelo “debate” – uma espécie de tribunal em que as partes en-
volvidas são chamadas a dar sua palavra e apresentar suas razões, sempre com
a presença dos patrões da “biqueira”, com a intermediação dos homens do PCC,
responsáveis pelos negócios na região e, nos casos mais graves, outros “irmãos”
do “Partido”, expressão também usada para se referir ao PCC. O debate pode
se prolongar por vários dias, com data e hora marcadas e, conforme os casos e a
extensão do problema, outras pessoas das relações próximas dos envolvidos são
igualmente chamadas a dar sua palavra, também patrões de “biqueiras” vizinhas
e, sempre, outras figuras do PCC, dentro e fora das prisões, em comunicação

1
Gabriel Feltran (2009) também nota e discute a contraposição destas duas expressões:
“morreu tudo” e “não pode matar”.

203
através de seus celulares. O resultado pode ser um acordo entre as partes en-
volvidas, a definição de uma forma de restituição nos casos de um “vacilo” de
umas das partes nos negócios do crime; pode também resultar em uma forma
de punição, um “corretivo”, expulsão do bairro, proibição de vender drogas na
região. Ou, então, morte.
“Debate”: expressão e referência que, em curtíssimo tempo, coisa de poucos
anos, passou a fazer parte do repertório popular. No início, mecanismo posto
em prática na resolução das desavenças internas aos “negócios do crime” e às
organizações criminosas. Surge, primeiro, no universo carcerário e transborda,
depois, para os bairros das periferias da cidade e, em pouco tempo, passa a ser
acionado para a regulação de microconflitos cotidianos: de brigas de vizinhos a
disputas em torno da distribuição de lotes em áreas de ocupação de terra, pas-
sando por problemas com adolescentes abusados, pequenos delitos locais, brigas
de marido e mulher e miríades de situações próprias da vida nesses bairros. Não
poucas vezes, são os moradores mesmos que procuram o “patrão” da “biquei-
ra” local para arbitrar litígios e desavenças cotidianas, o que ele pode fazer ou
não, a depender das circunstâncias e das implicações envolvidas cada caso é
um caso, como se diz. E cada caso é interessante pelo jogo de relações envolvi-
das. Às vezes, nesses assuntos menores, basta a presença do “patrão da firma”,
que intervém para “trocar uma ideia”, outra expressão que também circula no
“mundo bandido” e fora dele, por todo o bairro, modulação mais informal e de
circunstância do “debate” para a regulação e arbitragem dos conflitos locais. O
resultado pode ser apenas um conselho ou um “aviso” para que o problema não
se repita, ou, às vezes, um “corretivo” (uma boa surra); em casos mais graves, a
expulsão do bairro. Ao comentar situações como essas na região de Sapopemba
(zona leste), em que faz seu trabalho de campo, Gabriel Feltran (2009) nota que,
para os moradores, os mecanismos postos em ação pelos “homens do crime” não
significam negação da relevância da instância da lei e dos direitos para resolver
outras ordens de problemas que afetam suas vidas. Para colocar em outros termos,
os indivíduos transitam (ou podem transitar) com desenvoltura entre instâncias
legais, fóruns de participação social, acionam os mecanismos instrucionais pre-
sentes nos bairros da periferia, sem se furtar a esses agenciamentos locais postos
em ação pela “lei do crime”. Voltarei a isso mais à frente.
Por ora, não é sem interesse dizer que nossos primeiros registros de campo
foram feitos antes que a informação ganhasse o noticiário da grande imprensa:
em 2006, foram divulgados dados oficiais que registravam uma impressionante
queda nos índices de homicídios na capital e Região Metropolitana de São Paulo,
depois de duas décadas de uma curva ascendente, com picos altíssimos ao final
dos anos 1990. A informação foi acolhida com destaque pela grande imprensa,
escrita e televisiva. E, de imediato, celebrada pelo governo do Estado (gestão
Geraldo Alckmin, PSDB) como prova do sucesso de sua política de segurança
pública e, sobretudo, prova da eficiência da polícia no combate ao crime. Do outro
lado, como se pode imaginar, o noticiário foi recebido com comentários irônicos

204
e sarcásticos, como quem diz: eles falam que foi a polícia, mas nós sabemos que
foi a “lei do crime” que conseguiu acabar com a matança dos anos anteriores.
O fato é que a queda dos homicídios na cidade de São Paulo intriga e é motivo
de discussão. Renato Lima (2009) mostra dados e gráficos que são efetivamente
impressionantes. Tomando como referência registros da área de saúde, a taxa de
mortalidade por agressão diminuiu de 43,2 casos por 100.000 habitantes em
1999, para 22,0 em 2005. Com isso, “o indicador paulista passou a ser menor
do que o nacional (26,2), invertendo a tendência histórica, observada nas séries
anuais, desde 1980” (2009: 2). Mais notável ainda é a queda pela metade de
homicídios entre homens jovens, de 15 a 24 anos, justamente o grupo etário
mais afetado pelos índices altíssimos de mortes violentas nas décadas anteriores.
Se os dados são evidentes, o mesmo não se pode dizer dos fatores que explica-
riam a queda na taxa dos homicídios. As hipóteses em debate são várias, cada
qual indicando dimensões efetivas das evoluções recentes da economia (desem-
penho positivo dos mercados de trabalho), da sociedade (mudanças no perfi l
sociodemográfico da população), das instituições (mecanismos de participação
social, ONGs, fóruns públicos), da política (papel mais ativo dos municípios) e,
também, nas políticas de segurança pública (modernização, reforma gerencial,
recursos). Renato Lima faz uma competente exposição de cada uma dessas hipó-
teses, chamando a atenção para os seus respectivos defensores (pesquisadores,
gestores políticos, agentes policiais), cada qual com suas motivações, razões e
ênfases próprias ao seu lugar nesse debate. A “hipótese PCC” também circula
nesse debate, apoiada, nas palavras de Lima, em uma percepção difusa nessas
áreas de que a hegemonia de uma facção criminosa (o PCC) teria contribuído
para regressão das taxas de homicídios ao atuar na mediação de conflitos e na
manutenção da ordem, no sentido de “pacificar” territórios antes dominados por
várias quadrilhas ligadas ao tráfico de drogas. Não deixa de ser curioso notar
que Renato Lima associa essa hipótese aos etnógrafos urbanos atentos às formas
de sociabilidade da população em áreas de periferias, mas também a “segmen-
tos policiais” que, podemos nós acrescentar, estão igualmente atentos ao que
acontece nessas regiões, por razões muito diferentes das nossas, pesquisadores
do urbano. Segundo relatos de policiais, diz Lima, isso “decorreria do fato de o
PCC ter assumido o comércio atacado de drogas ilícitas em São Paulo e imposto
aos grupos locais a compra de cotas fixas de entorpecentes, o que teria refreado
a disputa por territórios” (2009: 7).
Não é objetivo deste capítulo discutir a pertinência de cada uma das hipóteses
em debate. Deixo isso para os especialistas nessa sempre polêmica e controvertida
análise de dados e informações sobre crimes e eventos policiais. Quanto à “hi-
pótese PCC” à qual, em princípio, me alinho, apoiada em notas de campo como
essas com as quais este capítulo foi aberto, seria possível dizer, no mínimo por
prudência metodológica, que isso não explica tudo, que há outros fatores em jogo
nas curvas descendentes de mortes violentas, que o confronto dos dados paulistas
com os de outros estados e cidades mostra tendências que não poderiam ser ex-

205
plicadas pela ação do PCC. Que seja. Mas resta deslindar esse ancoramento do
PCC nas tramas sociais das periferias paulistas. Desde que não se deixe tomar
pela fantasmagoria (que também circula nesse debate) de um monstro tentacular
que impõe o seu domínio pelo terror, fica a pergunta acerca das circunstâncias
que criam suas condições de possibilidade e, ainda mais: o que está em jogo
nessa espécie de gestão da ordem que parece passar por mediações, protocolos
e códigos distantes (mas não à margem) da normatividade oficial, que se faz em
interação com os dispositivos políticos presentes nas periferias urbanas e, também,
na vizinhança com os instrumentos de participação social que se multiplicaram
nesses últimos anos. Aqui, é importante reter o cenário urbano, anos 2000,
descrito no capítulo anterior, para descartar a hipótese fácil e cômoda de tudo
explicar pelo atraso, anomia, desorganização social derivada de uma suposta
ausência do Estado nessas regiões da cidade.
Por outro lado, a polêmica está aberta entre fatos e hipóteses, sem que, no
entanto, se tenha ainda bem compreendido as circunstâncias que presidiram a
curva ascendente dos homicídios nas décadas anteriores. Afinal, o que estava
acontecendo nas periferias da cidade nessas décadas, que fatos e processos fo-
ram registrados pelas curvas ascendentes (e assustadoras) de mortes violentas?
Os crimes violentos da Região Metropolitana de São Paulo cresceram de forma
contínua a partir dos anos 1980, atingindo o seu ponto mais alto em 1999 (cf.
Lima, 2009). No período, o homicídio foi o delito com as mais altas taxas de cres-
cimento médio, com maior incidência nos bairros mais pobres da cidade (Jardim
Ângela, Parelheiros, Grajaú, Jardim São Luiz, Capão Redondo).2 Em que pesem
as ressalvas dos analistas no uso (e crítica) das fontes (sobretudo quando são
registros policiais), as relações entre homicídios e o tráfico de drogas estão longe
de ser evidentes: se existem, estão mescladas e entrelaçadas, e isso é apenas uma
suposição, em situações que foram tipificadas como “motivos fúteis”, “conflitos
interpessoais” ou, então, transgressões menores próprias de uma criminalidade
urbana comum e difusa.3 Por certo, nas curvas de homicídio, deve haver, agora
como antes, uma combinação intrincada de fatores e circunstâncias igualmente
diferenciadas. Mas, por isso mesmo, é de interesse recuperar algo da história

2
Teresa Caldeira faz uma análise detalhada das estatísticas e dados disponíveis sobre o
aumento dos crimes violentos nos anos 1980 e 1990. Vale notar: “o crescimento das mortes
violentas não é algo exclusivo de São Paulo. As taxas de homicídio cresceram na maioria
das regiões metropolitanas durante os anos 1980. Como consequência, no final dos anos
1980, as taxas de homicídio para o Brasil que eram semelhantes às dos Estados Unidos
no começo da década, atingiram mais do que o dobro das taxas americanas. A taxa de
homicídio nos Estados Unidos é historicamente alta se comparada àquelas da Europa e do
Japão” (Caldeira, 2000: x).
3
Conforme os dados disponíveis para esse período, as mortes violentas concentram-se
no que foi tipificado seja como “motivos fúteis”, seja como “confl itos interpessoais”. Isso
se confi rma na interessante comparação que Bruno Paes Manso (2005) faz dos dados e
categorias utilizadas em três pesquisas diferentes sobre o tema.

206
urbana recente, visando ao que parece ter acontecido nessas décadas, ao menos
em alguns (ou muitos dos) bairros da periferia paulista. É questão de pesquisa,
pistas que tratamos de rastrear em nosso trabalho de campo: há indicações
de uma correspondência, sobretudo a partir de meados dos anos 1990, entre
os picos na curva dos homicídios e a presença de uma criminalidade comum,
difusa, articulada (ou não) a gangues locais, de bairro, efêmeras e flutuantes,
que se articulam (e desarticulam) conforme as circunstâncias, o jogo dos acasos,
mas que desencadeiam ciclos devastadores de uma violência acionada por uma
mistura intrincada de histórias de vingança, desafetos, desentendimentos, des-
lealdades, nem sempre por conta de desacertos nos negócios do crime, porém
invariavelmente mesclados com “histórias infames” que atravessam o cotidiano
desses (e de quaisquer outros) bairros. Se isso for pertinente, então talvez se
tenha aí uma pista para situar a guinada que parece suscitada pela estruturação
do mercado de drogas na virada dos anos 2000. É o que se tentará fazer nas
páginas que seguem.
De partida, é importante dizer: crime e violência urbana não são meus temas
de pesquisa, tampouco tráfico de drogas, nunca foram. Porém, são questões que
se impuseram de maneira incontornável ao longo de meu trabalho de campo, meu
e de todo um coletivo de pesquisa que se lançou em uma prospecção das vidas
e trajetórias percorridas nas tramas da cidade. É, portanto, pelas transversali-
dades que as atravessam que encontramos as pistas para entender algo de uma
experiência urbana que é também (não só) uma experiência da violência. Mais
concretamente: uma experiência que se faz nos limiares da vida e da morte, entre
os riscos de despencar na condição do “pobre de tudo” e da “morte-matada”. É
matéria discutida ao final do quarto capítulo. Uma “arte do contornamento”, foi dito
nesse capítulo, algo que se exercita nas fronteiras incertas do informal, do ilegal
e do ilícito, nos meandros do bazar metropolitano, para retomar a discussão do
capítulo anterior – os artifícios e ardis de uma razão prática, como propõe Daniel
Hirata (2010), para lidar com os jogos de poder e relações de força constelados
nas dobras do legal-ilegal. São essas as questões que se pretende recuperar e
desdobrar ao longo deste capítulo: a experiência que se faz nesses limiares incertos
da vida urbana passa por algo como uma negociação dos sentidos de ordem e
o seu inverso. É nisso que a vida e as formas de vida estão em jogo. Formas de
gestão da ordem, que são também uma negociação da vida, dos limiares da vida
e da morte: essa a hipótese com que estamos trabalhando. Formas de gestão da
ordem sempre refeitas sob configurações variadas conforme tempos e espaços, e
nas quais é possível apreender as evoluções recentes da cidade.
Nas páginas que seguem, trata-se de seguir as pistas que nos foram entregues
pelas “histórias bandidas” e seus personagens, que também compõem as tramas
locais de um bairro de periferia, as quais fazem parte da história urbana e têm
seu lugar na tessitura das “vidas-de-todos-os-dias”. Recuperando questões do
capítulo anterior: histórias e trajetórias que transcorrem nas fronteiras incertas
entre ilegalismos difusos e o crime, experiências crivadas pelos feixes de relações

207
de poder que se constelam conforme se processa a gestão diferencial dos ilega-
lismos nos seus modos situados no tempo e no espaço. E isso muda a maneira de
propor as perguntas e descrever as situações. Nesses espaços produzidos como
“margem” (noção a ser discutida mais à frente), as formas de operação das forças
da ordem circunscrevem a própria experiência que os sujeitos fazem da lei, dos
sentidos da ordem e seu inverso. Enunciada no capítulo anterior, essa é a questão
que se tentará agora trabalhar.
Devo dizer que não foi sem hesitação que este texto foi elaborado, ainda mais
para incluí-lo como capítulo final deste livro. É uma pesquisa em andamento,
longe de estar concluída, e que, ademais, exige um esforço de refinamento teórico
ainda a ser feito. Um empreendimento arriscado, portanto. Que o leitor tome o
que vai ser lido como um roteiro de um trabalho que deverá ser desenvolvido e
desdobrado posteriormente. Porém, se assumo o risco é porque achei que valia
pena. Talvez seja melhor dizer: foi algo que se impôs quase como um imperativo
que me conduziu, uma exigência de avançar, um pouco que seja, no que foi su-
gerido, talvez de um modo muito (ou apenas) alusivo, nas linhas finais do capítulo
anterior. Uma exigência, portanto, posta pelo andamento mesmo da escritura deste
livro. Não estou segura de que, ao final destas páginas, essas questões tenham sido
respondidas. Mas são pistas a seguir, também uma experimentação, uma tentativa
de construir uma trama descritiva que forneça um critério de inteligibilidade a
fatos, circunstâncias e histórias que compõem o mundo urbano, ao revés dos
termos como essas questões vêm sendo pautadas no debate atual. Aqui, outras
ordens de razões que me induziram a enfrentar uma empreitada tão arriscada.
Primeiro: definir um plano de referência que permita deslocar o terreno a
partir do qual descrever a ordem das coisas e problematizar as questões em pauta.
Quer dizer: uma estratégia descritiva que escape aos termos correntes do debate
atual, em grande medida polarizado entre o assim chamado Crime Organizado, de
um lado, e, de outro, a discussão das chamadas populações em situação de risco,
expostas à violência e supostamente cativas das ramificações locais do tráfico de
drogas. Um campo de debate que está longe de ser desprovido de pressupostos
e consequências. O tráfico de drogas e o dito Crime Organizado aparecem como
entidades fantasmáticas às quais são atribuídas todas e quaisquer mazelas de
nossas cidades ou, como sugere Misse (2006: 269), os vários apelidos de um
sujeito onipresente e onipotente que responde pelo nome de Violência Urbana
(assim mesmo, em maiúsculo) e que unifica conflitos, crimes, delitos cotidianos,
comportamentos, fatos e eventos os mais disparatados. É nessa figuração que se
constroem os mitos e ficções de um poder paralelo, versão nativa do “império do
mal”, inimigo contra o qual só resta a estratégia da guerra (e extermínio). É o que
está posto e exposto em episódios recorrentes e recentes de intervenção policial
em territórios ditos problemáticos em nossas cidades. Do outro lado, a ficção de
populações encapsuladas nas ditas “comunidades”, subjugadas ou aterrorizadas,
no mínimo ameaçadas, mas destinadas à remissão pela intervenção salvadora
de programas sociais que, no entanto, circunscrevem relações de poder regidas

208
pela lógica da governamentalização das populações (Foucault, 2004): o governo
das populações através das chamadas “comunidades” de referência, diz Nicolas
Rose (2008), um modo de “conduzir as condutas” pelas vias de dispositivos
gestionários voltados ao que é percebido (e tipificado) como “risco” (em suas
várias manifestações).
Vimos isso no quarto capítulo. Mas poderíamos, agora, reformular a questão:
outras configurações da gestão diferencial dos ilegalismos e que, agora como
antes, no século XIX discutido por Foucault, também produz saberes (e seus
credenciais de objetividade e cientificidade), objetos, fatos, medidas e indicadores
que pautam debates, definem agendas de pesquisa e circunscrevem os campos de
intervenção nos territórios ditos problemáticos, construídos como tais (cf. Rose,
2005; Castel, 1983). Acontece que o mundo social não se reduz às configurações
que podem se constelar em torno desses dispositivos de poder, nas suas duas
pontas. É justamente aqui onde se aloja o desafio de se compreender o modo
como as linhas de força transversais aos mundos urbanos, que se conjugam em
torno desses dispositivos (não são ficções, também compõem a ordem das coisas),
escapam e se entrelaçam nas tramas sociais e nos agenciamentos práticos da
vida social. É também nisso que se explicita, retomando questões discutidas no
segundo capítulo, a pertinência de se reter a cidade como perspectiva e plano de
referência para situar as questões em pauta. Essa preocupação esteve presente
na etnografia que fizemos, Daniel Hirata e eu, de um ponto de droga instalado
no miolo de um bairro da periferia sul da cidade, seguindo os percursos de um
pequeno traficante de bairro (cf. Telles & Hirata, 2007).
Segundo ponto: é desse material de pesquisa que o texto que segue se ali-
menta, acrescido de outras tantas histórias bandidas cujos percursos nos oferecem
algo como um roteiro para a recuperação da história urbana local, desde os anos
1980. Aqui, justiceiros, matadores e traficantes comparecem como personagens
e são seus itinerários, cruzados e entrelaçados nas circunstâncias da vida co-
mum, que oferecem o prisma pelo qual se tentará recompor o feixe de relações
e conexões que compõem a história local. Porém, com isso, entra-se em outro
campo polêmico, no mínimo problemático, pautado pela mais do que espinhosa
questão das relações entre pobreza, crime e violência. Questão que não é de hoje,
como bem sabemos. E não é de hoje que Michel Misse, já em seus textos dos
anos 1990, chama a atenção para o ponto cego dessa discussão, ou melhor: dos
termos pelos quais essa discussão se processa. Vale reter os aspectos principais
da argumentação de Misse, pois eles são importantes para explicitar algumas das
ênfases do texto que segue, que é, ademais, muito devedor de seus escritos.
Em termos gerais, nota Misse,4 em que pesem as diferenças de matrizes
teóricas, ênfases e lógicas argumentativas, a crítica à criminalização da pobreza
sempre esteve no centro desses debates (sobretudo, anos 1980-1990). As baterias

4
Refi ro-me aqui ao conjunto de textos agrupados na primeira parte do seu livro Crime e
violência no Brasil contemporâneo (2006).

209
críticas sempre tiveram e têm em mira as desigualdades sociais, as mazelas da
justiça brasileira, o legado autoritário, o déficit de direitos. Críticas justas, neces-
sárias, corretas, politicamente importantes. Porém, diz Misse, são nulas do ponto
de vista da compreensão sociológica do problema: não conseguem desmontar e
desfazer-se do fantasma da associação entre pobreza e crime, de tal modo que ela
sempre volta na figura de operadores dessa relação, seja o crime organizado, seja
em outras matrizes explicativas, a “revolta” ou alguma outra categoria mediadora
para “explicar” uma associação que justamente se tenta negar. Descompasso entre
a lógica da denúncia e a lógica da compreensão sociológica, diz Misse.
Mais fundamentalmente, o problema está no jogo de referências mobilizadas
nesse debate. Problema teórico-conceitual: a presunção de que todos os conflitos
possam ser resolvidos por um operador único, o Estado detentor do monopólio
da violência legítima, locus da racionalidade, da legalidade e da universalidade
dos princípios. Mas esse é um pressuposto que apenas repõe a questão e faz o
fantasma retornar no temor de uma violência potencialmente acionada pelos que
estão fora do contrato por conta das desigualdades e exclusões que caracterizam
o capitalismo brasileiro. Problema político-normativo: um debate em boa medida
regido por uma visão normativa e idealizada da cidadania, da modernidade, da
democracia (importante na lógica da denúncia), sem que se considerem as formas
concretas pelas quais o poder opera nas situações de classe, “formas de domi-
nação que têm sua positividade e não podem ser recalcadas sob a acusação de
patologias do atraso” (2006: 50). Mais concretamente: toma-se como referência
uma “polícia e um judiciário ideais em uma sociedade que não é ideal (segundo
os mesmos parâmetros normativos)”. Nesse caso, “o erro mais comum é supor que
a dinâmica da criminalidade depende dos dispositivos de controle social e não
de matrizes sociais de contextos causais que incluem esses mesmos dispositivos”
(2006: 80). Problema empírico-cognitivo: “crime” é uma categoria jurídica que,
tomada como referência analítica, termina por reificá-lo (também à violência ur-
bana), abstraindo as redes sociais e relações de poder que constituem o espaço
urbano, os modos como o poder opera em situações variadas, atravessando as
miríades de situações ilegais, do trabalho informal, passando pelas feiras de
produtos roubados, os flanelinhas, a prostituição, os ferros-velhos, os vendedores
de ouro, etc. Ao se abstraírem as múltiplas redes sociais da violência cotidiana,
próprias do nosso tipo de capitalismo, o agente criminal é singularizado na sua
contraposição à ordem, aos valores dominantes e também ao mundo do trabalho,
como se este não fosse constituído por contradições internas e atravessado por
ilegalidades variadas, desde a “transgressão consentida” dos direitos (cf. Lautier,
1991) até as miríades de situações do assim chamado mercado informal. Nesse
registro, diz Misse, o risco é o da patologização do homem violento.
No movimento cuidadoso dos argumentos, Misse opera um deslocamento im-
portante do campo da discussão. Com ressonâncias evidentes de Foucault, saímos
do terreno da Soberania, do Contrato, do Direito, para perscrutar as relações de
poder tal como elas se processam nos contextos situados no tempo e no espaço.

210
É nesse terreno que Misse pode tomar a sério a criminalização da pobreza, que
é efetiva e contém uma positividade que é preciso averiguar para deslindar esse
que é o ponto cego dos debates correntes, ou seja, a relação entre pobreza e crime,
sem tomar, porém, essas noções, pobreza e crime, como categorias analíticas, o
que não são, nem uma nem outra, assim como violência tampouco é um conceito
ou categoria analítica, enfatiza Misse. São os modos como essa criminalização
se processa que acionam os fantasmas, constroem o crime como problema e pro-
duzem as demandas de segurança pública, repondo e amplificando as práticas
do que ele define como incriminação preventiva dos tipos sociais vistos e tidos
como potencialmente criminosos. Não é o caso de reproduzir todo o argumento,
mas de salientar o ponto que nos interessa mais de perto, em vista das questões
que serão tratadas mais adiante. O conceito importante aqui é o de “sujeição
criminal”, pelo qual Misse põe em relevo a prevalência extralegal dos processos
de acusação e incriminação pelos quais o autor é nomeado antes que o evento
criminal ocorra e possa ser tipificado legalmente como tal: busca-se o sujeito de
um crime que ainda não aconteceu. Na tradição inquisitorial discutida por Kant
de Lima (1989), essa prática de julgamento antecipado, apropriada pelos poderes
de polícia, confere aos agentes policiais um lugar central, “excessos de poder” que
se desdobram no uso indiscriminado de procedimentos extralegais, sobretudo a
violência extralegal, que não são “desvios” de conduta de gente mal preparada,
mas algo que faz parte da lógica que preside as práticas de segurança e está no
cerne do que Misse chama de “acumulação social da violência”.
Isso significa dizer que nessas pontas do processo de incriminação abre-se
um feixe de relações de poder transversais às miríades de situações ilegais que
pontilham os mundos urbanos, do trabalho informal aos mercados de bens ilegais
e ilícitos e mais toda a nebulosa de situações nas fronteiras incertas do informal
e ilegal, que compõem o bazar metropolitano, para retomar a discussão do ca-
pítulo anterior. Concretamente, relações de poder em que o uso indiscriminado
da violência é acompanhado pela transação de “mercadorias políticas” que varia
entre os “acertos” na partilha dos ganhos, propinas, corrupção, chantagem e
extorsão, quer dizer: mercados de proteção, também ilegais, que se sobrepõem
às outras ilegalidades e parasitam os mercados informais e ilegais. A transação
de mercadorias políticas e os mercados de proteção são tanto mais agressivos
quanto maior é a demanda de segurança ativada justamente pelas políticas de
criminalização que demarcam essas atividades e que seguem a lógica não da
violência legítima e legal do Estado, mas a “lógica do excesso de poder de suas
bases sociais de implementação”. Mais do que na “relação estereotipada entre
drogas e crimes”, é aí que se aloja o problema da violência, as “ligações perigosas”
entre dois mercados ilegais que se sobrepõem.
Este o núcleo nervoso da “acumulação social da violência” que, no caso do
Rio de Janeiro estudado por Misse, tem seu ponto de arranque já nos anos 1950,
quando aparecem os primeiros sinais do que será chamado de “esquadrão da
morte”: a prática sistemática de uma violência extralegal que se desenrola sob

211
uma amplíssima margem de tolerância política e apoio explícito de segmentos da
população, com modulações próprias aos tempos e conjunturas políticas, da vio-
lenta Escuderia Le Cocq, passando pelo carismático justiceiro Tenório Cavalcanti,
deputado mais votado nos anos 1960, depois, sob o regime militar, os grupos de
extermínio, chegando mais recentemente ao que é genericamente designado como
milícias. São grupos de policiais militares que, replicando as táticas do tráfico
de drogas, ocupam e controlam o “território”, impondo, sob ameaça e extorsão,
a oferta de segurança em troca de pagamento regular de mensalidades, além
da oferta de serviços, todos extralegais – ligações clandestinas de TV, venda de
botijões de gás, cobrança de taxas das cooperativas de transporte alternativo,
pedágios e tarifas para a proteção (Misse, 2009). Zaluar e Conceição (2007)
fazem uma esclarecedora análise das linhas de continuidade, e também das
diferenças, das atuais “milícias” em relação a outras modalidades da violência
extralegal praticada no Rio de Janeiro ao longo das décadas, o que inclui as prá-
ticas de segurança privada, bem como a associação de moradores armados para
garantir a proteção local. Diferente destes, está a cobrança do “serviço prestado”.
E diferente, ainda, dos grupos de extermínio, a territorialização das milícias e o
controle militarizado das áreas ocupadas. Surgem de forma expressiva a partir
dos anos 2000 e se desdobram, com variações importantes em cada lugar, a
experiência “bem sucedida” da favela Rio das Pedras, que ficou famosa pela
“segurança local” nos anos 1990, mas carregava uma turbulenta experiência de
“serviços de proteção” iniciada já nos anos 1970, tempos que fizeram a fama da
chamada “polícia mineira”, o grupo que mantinha o controle estrito, violento e
arbitrário da área (cf. Zaluar e Conceição, 2007).
Em 2007, eram 86 favelas sob o controle das milícias formadas por policiais
civis, militares, bombeiros, além de guardas penitenciários, ativos ou aposenta-
dos. As milícias parecem estar ocupando espaços antes dominados pelo tráfico
de drogas. Na descrição precisa (e impressionante) de Michel Misse (2009: 11):
“eles seguem métodos e táticas semelhantes aos dos traficantes, organizam, por
exemplo, ‘bondes’ (vários carros em comitiva, lotados de homens fortemente
armados), invadem a área com 80 ou 100 homens e, depois, a controlam dei-
xando 10 ou 15 de seu pessoal lá, partindo para ocupar outras áreas”. Na sua
avaliação, esse fenômeno é desdobramento do processo de “acumulação social
da violência” no Rio de Janeiro, “o aperfeiçoamento, a transição para formas
organizadas desses antigos grupos de extermínio, desses grupos de policiais que
transacionavam ‘mercadorias políticas’ com os traficantes, participantes dessa
economia subterrânea, desse capitalismo subterrâneo, desse ‘capitalismo político’
para usar a expressão de Max Weber” (Misse, 2010: 11).
Terceiro ponto: violência extralegal, privatização da segurança, justiça priva-
da, criminalidade violenta, são elementos que compõem a história (e experiência)
urbana, já bastante estudada no Rio de Janeiro, a ser ainda muito pesquisada no
caso de São Paulo. Lá, como aqui (e outras cidades brasileiras), ela oferece todos
os ingredientes que parecem validar a hipótese da “modernidade incompleta”

212
em uma sociedade em que o primado da lei, dos direitos, da cidadania não se
efetiva no plano da sociedade. Michel Misse oferece uma cunha crítica rigorosa
dessa formulação e mostra o des-conhecimento que se produz quando se insiste
nas “patologias do atraso”, deixando fora de mira o modo como o poder opera
concretamente nesses contextos sociais, as relações de força que se processam
pelas vias de uma apropriação privada ou mesmo a expropriação do monopólio
da violência legítima que o Estado brasileiro nunca chegou a garantir.
Em outra chave teórica, seria possível se perguntar pela relação entre práticas
extralegais e os modos de funcionamento do próprio Estado, algo que se instala
no interior das suas funções de ordenamento, algo que nos entregaria o segredo
– não o segredo oculto, mas público, exposto, visível – da produção da ordem, da
lei, do próprio Estado, e que poderia se constituir como objeto do conhecimento,
passível de ser etnografado em contextos situados no tempo e no espaço. Essa é
a hipótese ousada de um grupo de antropólogo(a)s reunido(a)s em um seminário
que resultou em um livro que leva o sugestivo título de Anthropology in the margins
of the State (Das & Poole, 2004). Conjunto de pesquisas desenvolvidas em áreas
que poderiam ser tomadas como exemplos paradigmáticos de estados fracassa-
dos, fracos, incompletos. Na Colômbia, Peru, Serra Leoa, Chade, África do Sul,
Sri Lanka, Índia, as pesquisas foram desenvolvidas em regiões devastadas por
guerras, guerrilhas, convulsões internas e crivadas internamente por territórios
sob o domínio de autoridades locais que exercitam o poder da justiça privada. Ao
invés de supor que sejam formas incompletas ou frustradas de estado, pergunta-se:
“acaso não são as formas de ilegalidade, pertencimento parcial e desordem que
parecem habitar as margens do estado, o que constitui as condições necessárias
para o estado enquanto objeto teórico e político?”

Nossa estratégia analítica e descritiva foi nos distanciarmos da imagem consoli-


dada do estado como forma administrativa de organização política racionalizada
que tende a debilitar-se ou desarticular-se ao largo de suas margens territoriais
e sociais. Ao contrário disso, propusemos aos participantes do seminário que
refletissem acerca de como as práticas e políticas de vida nessas áreas modelam
as práticas políticas de regulação e disciplinamento que constituem aquilo que
chamamos de “o estado”. (Das & Poole, 2004: 3)

Há uma dupla provocação nessa empreitada. Primeiro: ao propor a antropolo-


gia do Estado visto a partir das suas “margens”, desativa-se a partilha moderna,
para usar os termos de Bruno Latour (1994), entre as “lógicas sistêmicas”, de
um lado, cujo estudo é considerado prerrogativa dos sociólogos e cientistas polí-
ticos e, de outro, os “mundos da vida”, cujos códigos culturais seria missão dos
antropólogos deslindar, esses pesquisadores que, afinal, se especializaram em
estudar “sociedades sem Estado”, para evocar aqui um campo polêmico interno
à antropologia e que as coordenadoras desse livro tratam de bem situar e discutir
na introdução. Para nós, etnógrafos do urbano, a questão é importante, pois afeta

213
diretamente o modo como são construídos os nossos objetos de pesquisa, o critério
de pertinência etnográfica, a definição daquilo que interessa e é pertinente ao
estudo etnográfico ou, então, para falar como Paul Veyne (1998), o modo como
se arma a trama descritiva, cruzamento de linhas múltiplas e itinerários possíveis
para colocar em cena a interação entre os homens, as coisas, as circunstâncias,
os acasos, feixes de relações que produzem os acontecimentos narrados.
Segundo: é um empreendimento de conhecimento que se desvencilha do
mito de fundação do Estado (o Contrato, a Lei) e, nesse caso, é um deslocamento
importante do espaço conceitual para lidar com questões pertinentes às relações
entre lei, violência e ordem. Como Das e Poole dizem na introdução desse livro,
é apenas em referência aos pressupostos da teoria política moderna, que tomam
o Estado como lugar da transcendência e monopólio da violência legitima, que se
pode falar de incompletude associada às suas “margens”, regiões caracterizadas
e tidas como espaço da ausência da lei, selvageria, estado de natureza. A rigor,
dizem as autoras, ao tomar como referência esses pressupostos e esse modelo, a
formação do estado sempre estará incompleta:

Nesta visão da vida política, o estado é concebido como um projeto sempre


incompleto que deve ser constantemente enunciado e imaginado, invocando o
selvagem, o vazio, o caos que não apenas se cava por fora dos limites de sua
jurisdição, como, ademais, é uma ameaça desde seu interior. Quisemos enfati-
zar que, para [os teóricos] fundacionais do estado moderno europeu, o estado
sempre está em perigo de perder o domínio sobre a organização racional do
governo pela força natural vinda de seu próprio interior. Assim, as demandas
de justiça popular sempre foram interpretadas como uma expressão das facetas
da natureza humana que não foram domesticadas pela racionalidade. (Das &
Poole, 2004: 7)

Esta a provocação e este o deslocamento: ver o estado a partir das “margens”,


não como o seu espelho invertido, mas como lugares onde o estado está sendo
constantemente refundado nos seus modos de produção de ordem e de lei:

[...] situados sempre nas margens do que se aceita como inquestionável controle
do estado, as margens que exploramos neste livro são simultaneamente lugares
onde a natureza pode ser imaginada como selvagem e descontrolada e onde o
estado está constantemente redefinindo seus modos de governar e legislar. Esses
lugares não são meramente territoriais: são também (e talvez isso seja o seu
aspecto mais importante), lugares de práticas nos quais a lei e outras práticas
são colonizadas mediante outras formas de regulação que emanam das neces-
sidades prementes das populações, com o fim de assegurar sua sobrevivência
política e econômica. (Das & Poole, 2004: 8)

Margens: não são definições territoriais, com contornos previamente estabe-


lecidos, não são lugares geográficos, tampouco uma periferia. São espaços de

214
práticas e relações que se deslocam e se redefinem não à margem do estado, mas
justamente conforme as forças deste operam nesses lugares: contextos situados a
partir dos quais é possível seguir e etnografar seus modos, seus tempos, procedi-
mentos, técnicas e tecnologias de ação. No conjunto das pesquisas apresentadas,
comparecem caudilhos e autoridades locais que fazem uso do poder que o estado
lhes confere para a prática da justiça privada; o uso da violência extralegal do
oficial militar que termina por esfumaçar a diferença entre a lei e o terrorista
justiciado em nome da ordem; as barreiras policiais que instauram a ambivalên-
cia entre proteção e ameaça à vida; os controles arbitrários de documentos em
regiões de fronteira que tornam ilegível, indecifrável, a relação entre a regra e a
lei. Alguns exemplos aqui pinçados entre outros, retirados da teia fina de rela-
ções e circunstâncias descritas em cada um dos contextos estudados, porém que
interessam não apenas porque neles ressoam situações que nos são familiares,
mas porque nesses modos de encenar e descrever as situações explicitam-se as
questões em pauta nesse livro: “margens”, produção de espaços de incerteza, de
indeterminação das fronteiras do legal e do extralegal, o dentro da lei e o fora da
lei. Ao invés de se fixar em espaços-territórios (o Estado e suas periferias), trata-
se de seguir os movimentos que produzem essas áreas como margem, espaços
que se deslocam e são tangíveis nesses pontos (que também se deslocam como
as barreiras policiais) em que os modos de operação das forças estatais repõem
essas indeterminações e essas incertezas.
Mas é aqui também, nessas microssituações, que se explicita o espaço concei-
tual em que essas questões são lançadas. “Estado de exceção e vida nua”, par de
conceitos lançados por Agamben (2002), em sua releitura de Carl Schmitt, através
dos quais recupera em outra chave a noção de biopoder proposta por Foucault
(1988,1997): essa, a referência que conduz as questões teóricas e empíricas pro-
postas pelas autoras. Diferente da meditação filosófica de Agamben, a questão (ou
o problema) da soberania é tratada de um ponto de vista antropológico, isto é, sob
o prisma de suas condições de operação cotidiana. As autoras fazem, a rigor, uma
etnografia dos modos como os poderes de soberania são exercitados em contextos
situados, recompondo as situações e o feixe de relações que se estabelecem em
torno de seus modos, procedimentos, técnicas de ação. São nessas circunstâncias
e nesses contextos práticos que se torna possível entender as conexões internas
entre lei e exceção. São práticas que articulam simultaneamente o dentro e o
fora da lei. Práticas que não poderiam ser entendidas nos termos de lei e trans-
gressão da lei, pois é justamente essa diferença que é suspensa e desativada nos
seus modos concretos de operação, em nome do que é posto e definido como
urgência e emergência, definições estas que dependem de um poder discricio-
nário, definidor justamente da soberania. Poderes de soberania multiplicados e
desdobrados nessas pontas que afetam as vidas e formas de vida. São práticas
que produzem as figuras do homo sacer, vida matável, em situações entrelaçadas
nas circunstâncias de vida e trabalho dos que habitam esses lugares. É por isso,
dizem as autoras, que os poderes de soberania são também experimentados no

215
modo de potencialidade: “sente-se pânico e tem-se o senso do perigo de algo que
pode acontecer mesmo quando nada acontece” (2004: 15).
As “margens”, portanto, não são o exterior do Estado, elas se deslocam e
estão tanto no interior como fora do Estado. São espaços de exceção, porém
“as margens não são inertes”: são espaços de criatividade, dizem as autoras,
que poderíamos traduzir como espaços de experimentação nos quais homens e
mulheres, indivíduos e coletivos reinventam seus recursos, lançam mão de ele-
mentos do próprio Estado, transitam também entre o fora e o dentro do Estado,
maquinam artifícios também nas fronteiras incertas do legal e ilegal, negociam
regras, limites, protocolos, agenciam contra-condutas, de tal modo que as próprias
fronteiras do Estado se estendem ou são refeitas na busca de segurança ou de
justiça em suas vidas cotidianas. Esse movimento é o que torna as margens tão
centrais para entender o estado, dizem as autoras. As etnografias dessas práticas
são um convite “para repensar os limites entre centro e periferia, o público e o
privado, o legal e o ilegal, que também atravessam o coração dos mais frutuosos
estados liberais europeus”.
[Uma antropologia das margens] oferece uma perspectiva única para compre-
ender o estado, não porque capture práticas exóticas, mas porque sugere que
ditas margens são supostos necessários do estado, da mesma forma como a
exceção o é para a regra. (Das & Poole, 2004: 4)

***

Questões pesadas, de envergadura, além do que será possível tratar com base
no material de pesquisa disponível. Não se tem a pretensão de responder ou
corresponder a nenhuma delas. Que sejam aqui tomadas como notas de leitura,
o equivalente aos nossos diários de campo e tão importantes quanto esses, desde
que sejam tomados, uns e outros, e na diferença entre um e outro, cada qual em
sua própria lógica, como experiências de conhecimento que desestabiliza o já-
dito, já-sabido, que suscita a imaginação e provoca nossa capacidade de pensar
para além do que está posto e previamente codificado nos termos correntes do
debate. O trabalho de campo não entrega a “prova” ou demonstração do que quer
que seja, é uma experiência que nos afeta e modifica nosso próprio estoque de
referências e parâmetros estabelecidos. Como diz Favret-Saada,

[...] aceitar ser afetado supõe ...que se assuma o risco de ver seu projeto de
conhecimento se desfazer. Pois se o projeto de conhecimento for onipresente,
não acontece nada. Mas se acontece alguma coisa e se o projeto de conheci-
mento não se perde em meio a uma aventura, então uma etnografia é possível.
(Favret-Saada, 2005: 160)

216
Isso significa dizer que, na montagem da trama descritiva (e narrativa) que
será apresentada nas páginas que seguem, tratou-se de seguir o modo como
essa experiência de campo nos afetou. Justiceiros, matadores, traficantes são
personagens que povoavam os relatos que nos foram entregues, como também a
observação que fizemos, Daniel Hirata e eu, ao longo dos oito anos de trabalho
de campo. Cada qual comparecia em meio a histórias, circunstâncias, casos
e acasos que pontilhavam os percursos urbanos de nossos entrevistados. Nos
meandros das “histórias minúsculas” que fomos anotando, nos impressionava o
exercício de uma gestão da ordem local: agenciamentos práticos nos pontos em
que se entrelaçam as forças da lei, os ilegalismos e as microrregulações da vida
cotidiana. Uma gestão da ordem que se desdobra em uma gestão dos limiares
da vida e da morte: concretamente, os riscos da “morte-matada”. É por esse
ângulo que, talvez, se possa entender algo dessa “pacificação” (termo enganoso,
diga-se) que parece estar se produzindo mediante expedientes como os “deba-
tes”, comentados no início deste capítulo. Se há uma novidade no acontecimento
PCC, será preciso situá-la nesse plano, nos pontos em que esse acontecimento
se comunica com uma experiência que vem de antes e que faz parte da história
urbana dessa cidade, quiçá de outras. Essas questões estão no cerne da tese de
doutorado de Daniel Hirata (2010). Por circunstâncias de momento, este capí-
tulo não pôde ser escrito a quatro mãos. Deveria. Mas, então, mais uma razão
para tomá-lo também como um roteiro de um trabalho ainda a ser concluído,
em parceria, o que certamente haverá de suprir muitas das lacunas do que é
agora apresentado.
A noção de “margem” e a fi leira de questões e conceitos mobilizados em torno
dela definem aqui, para nós, um plano em que os problemas podem se colocar
ou uma encruzilhada deles e que exigem um trabalho de elaboração teórica, por
nossa própria conta e risco, em diálogo com a experiência mesma do trabalho de
campo. Como diz Foucault, os conceitos funcionam como “caixa de ferramentas”,
um seu uso pragmático, não categorial; eles importam na medida em que ajudam
a formular nossas próprias questões a partir de um certo crivo, perspectiva, pela
qual essas questões podem ser postas como algo no qual ressoam os problemas
de nossa atualidade.
As “margens” de que este capítulo trata se produzem no interior de nossas cida-
des. Periferias urbanas. Os pontos e linhas aqui seguidos para descrever as tramas
da cidade, lembrando aspectos explorados no segundo capítulo, são as pistas e os
traços deixados por histórias bandidas: justiceiros, matadores, traficantes. No caso
do Rio de Janeiro, as relações entre história urbana e formas de criminalidade (e
seus “tipos sociais”) já foram vasculhadas por uma vasta e importante literatura.
Michel Misse e Alba Zaluar são referências obrigatórias nessas discussões. Para
São Paulo, essa é uma pesquisa ainda a ser feita. O que se pretende, a seguir,
é lançar alguns elementos para essa discussão, tomando como fio condutor os
personagens urbanos que, em cada contexto, em três tempos distintos, parecem
sintetizar as teias de relações que conformam os mundos urbanos.

217
Sem que deem conta das múltiplas formas e situações da assim chamada
criminalidade urbana, as figuras dos justiceiros (anos 1980), dos matadores
(anos 1990) e dos traficantes (anos 2000) aqui interessam como “personagens
urbanos” que, em seus percursos e modos de ação, fazem ver uma teia de rela-
ções que molda a tessitura do mundo social. À distância dos tipos que ganharam
fama e notoriedade no noticiário policial, esses personagens estão encarnados
em “homens minúsculos” (Foucault) que interessam justamente pela “miudeza”
das circunstâncias, contextos, casos e acasos que envolvem sua ação: é isso
justamente que faz desses personagens prismas valiosos pelo qual apreender os
mundos urbanos. Daí o interesse em seguir os traços dessas histórias bandidas,
desses personagens urbanos que, ao longo deste capítulo, serão colocados em
cena. Histórias minúsculas de “homens infames”, diria Foucault, essas “exis-
tências destinadas a passar sem deixar rastro” (Foucault, 2003: 207), mas que
interessam justamente porque são portadoras de um feixe variado de relações e
conexões com o mundo social. Por isso mesmo são formidáveis guias para nos
conduzir nessa incerta prospecção do mundo urbano atual.
São percursos que se fazem nas dobras do legal e ilegal, para retomar os
termos do capítulo anterior, e é justamente por isso que deixam entrever a teia
de relações e jogos de poder que se configuram nesses pontos nervosos da vida
urbana. Mais concretamente: essas histórias bandidas se fazem nas fronteiras
incertas entre a lei e o crime. Por isso mesmo, dizem algo dos ordenamentos
sociais que se fazem nesses terrenos incertos entre o fora e o dentro da lei, entre
a lei e a exceção, indeterminação que se produz justamente no encontro e nas
fricções com a lei e seus modos de operação nas situações que afetam as vidas
e formas de vida.
Justiceiros, matadores, traficantes: cada um deles faz a marcação de tempo-
ralidades distintas e, sendo assim, talvez nos ajudem a melhor compreender as
inflexões e deslocamentos da história urbana recente, em compasso com evolu-
ções da economia, sociedade e cidade. Não se trata de postular uma evolução
linear de uma figura a outra. Cada qual resulta de arranjos urbanos e contextos
de criminalidade, cuja singularidade interessa entender. Em torno desses per-
sonagens, configuram-se determinadas relações com as forças da ordem e com
os moradores e as microrregulações. Esse o aspecto importante a destacar, e
que se tentará trabalhar nas páginas seguintes: agenciamentos distintos que, em
suas diferenças, informam algo sobre uma gestão local da ordem que se faz nos
pontos de intersecção da lei, dos ilegalismos e das formas de vida. É isso que
interessa perscrutar nas diferenças que singularizam cada um, em seus contextos
de referência.

218
Primeiro momento, anos 1980: o mundo do trabalho e os justiceiros

O cenário urbano é conhecido: expansão desordenada das periferias da ci-


dade em uma mistura intrincada das várias ilegalidades que acompanhavam as
ocupações de terra e abertura de loteamentos populares, no mais das vezes na
forma de um mercado imobiliário fraudulento e camadas sucessivas de grilagem
de terras. Em que pesem os sinais do que, anos depois, na virada dos anos 1990,
haveria de ganhar a forma da chamada reestruturação produtiva, essa foi uma
década em grande medida regida pela ainda vigente centralidade do trabalho,
para evocar um tema que esteve no cerne dos debates de então, mas que por aqui
soava algo deslocado. Lembremos: esses foram os anos das grandes mobilizações
operárias, do surgimento dos então chamados sindicatos autênticos, formação
da CUT e fundação do Partido dos Trabalhadores. Em sua contraparte urbana:
os movimentos sociais e as reivindicações associadas aos problemas da moradia
popular. Pelo ângulo societário: as expectativas de “progresso” e melhoria de vida
projetadas nas possibilidades (incertas) de acesso ao trabalho regular e no “sonho
da casa própria” em grande medida viabilizado pelas vias da autoconstrução da
moradia nas então muito distantes e muito precárias periferias urbanas.
É nesse cenário que surge a figura do justiceiro. E surge nos meandros e cir-
cunstâncias da vida nessas regiões situadas nas periferias urbanas. No bairro em
que fazemos nossa pesquisa, tentamos saber algo sobre o surgimento e os modos
de atuação dos justiceiros. O Bairro X está situado no miolo do Distrito do Jardim
São Luis (zona sul) que, nesses anos e na década seguinte, sempre compareceu
entre os primeiros lugares no ranking das regiões mais violentas da cidade. São
histórias que se confundem com a própria história urbana local. No início dos
anos 1980, era um bairro ainda em formação, muitas famílias recém-chegadas,
instaladas em moradias precárias, em uma região marcada por assentamentos
irregulares, ocupações de terra e duas grandes favelas.
Dona Leonora,5 40 anos (em 2006), evangélica, dois filhos adolescentes (16
e 15 anos) chegou ao bairro com a família quando ainda era criança. Tinha 17
anos quando conheceu, enamorou-se e foi morar com Chico. Ele foi um dos três
justiceiros que atuavam no bairro. No momento em que a conhecemos, Chico estava
cumprindo pena de 20 anos de cadeia. Naquela época, ela diz, eram histórias de
molecada do bairro que roubava botijão de gás, roupa estendida no varal, coisas as-
sim. Às vezes, se juntavam com garotos do bairro vizinho. Eles roubavam sobretudo
(mas não apenas) pessoal novo no bairro, gente que mal tinha se instalado no local.
As histórias eram muitas. Gente que era assaltada, sempre, no dia do pagamento,
quando voltava para casa com o salário do mês. Um desses, que via o salário ser
surrupiado todo mês, “foi se revoltando” e tratou de resolver o problema de uma
vez por todas. Arrumou uma arma e, na volta do serviço, deu fim no rapaz que

5
Esse e todos os demais nomes são fictícios.

219
o esperava de tocaia em uma esquina. Não retornou mais ao trabalho. Sabia que
dali para frente estaria na mira da polícia. Tornou-se justiceiro, o mais afamado e
o mais temido da região. Vamos chamá-lo de Joel. A ele, depois, juntou-se outro
também procurado pela polícia: era peão na construção civil, revoltou-se com
uma desfeita do encarregado e a briga deu em morte. Chico, por sua vez, chegou
à região no início dos anos 1980 para escapar de uma ordem de prisão no inte-
rior de São Paulo. Acusação: estelionato. Na verdade, um enredado de “histórias
infames” e desavenças familiares. Ao que parece, esvaziou a conta bancária do
próprio pai como revide ao desgosto familiar que ele vinha provocando por conta
de uma amante, aliás, comadre da mãe e amiga íntima da família. Uma história
rocambolesca, que não é o caso aqui de reconstituir.
Chico morava no bairro com um cunhado, que o ajudou a arrumar seu primeiro
emprego em São Paulo: segurança em uma casa particular na região nobre de
Moema, uma mansão, diz Leonora; aliás, um ofício frequente entre esses homens
que transitam nas fronteiras incertas do legal e ilegal. Depois, passou a trabalhar
como pintor e eletricista. Ele nunca deixou de trabalhar. Porém, a partir de certo
momento, começou a andar com os dois outros, principalmente o Justiceiro Joel,
que o chamava sempre para acompanhá-lo em suas empreitadas. Por quê? Pergunta
inevitável. A resposta não deixa de ser surpreendente: “às vezes, eu ficava pen-
sando assim, essa vida que ele levou, ele se envolveu assim por medo... na época
que ele chegou, os caras matavam ladrão, né? [...] acho que ele ficou com medo
de alguém falar alguma coisa, que ele tinha problema com a polícia”. Ele tinha
medo que alguém o denunciasse, desconfiava de gente da própria família ou de
desafetos que havia deixado em sua cidade de origem. O problema, diz Leonora,
é que naquela época tinha disso, “bandido que vinha de fora, morria”.
Não fica claro de quem Chico tinha medo: ou da polícia ou dos justiceiros
ou dos dois. Muito provavelmente, essas diferenças não eram mesmo muito cla-
ras, nem poderiam ser. Até onde foi possível rastrear as “histórias minúsculas”
desses pequenos justiceiros de bairro, não é evidente que agissem sempre e
necessariamente por encomenda da polícia. Mas isso, a rigor, nem mesmo era
preciso. Na ação dos justiceiros, mais do que a prática da justiça privada, havia
algo como uma “violência do Estado por procuração” (Das & Poole, 2004), na
qual ressoam os esquadrões da morte dos anos 1970 e, depois, nos anos 1980 e
1990, os grupos de extermínio formados no meio policial, com a participação de
policiais ativos, ex-policiais, seguranças privados, também comerciantes locais
(cf. Cruz-Neto & Minayo, 1994). Inclusive e sobretudo: as rotinas da “polícia que
mata”, para lembrar aqui o título do livro-reportagem de Caco Barcelos (1992).
Na região (e em todas as outras) as investidas da muito temida e muito violenta
Rota6 compõem a memória dos moradores e deixaram vários rastros nos casos

6
“A Rota – Rondas Ostensivas Tobias Aguiar – é uma divisão especial da polícia militar
famosa por ser responsável pela maioria das mortes de civis na região metropolitana de São
Paulo [...]. Ela foi organizada em 1969, durante o regime militar, para lutar contra ataques

220
sabidos de execuções sumárias, outros tantos de abusos, “esculachos”, como
se diz, que acompanhavam as batidas policiais tendo em mira jovens, negros e
qualquer um que pudesse parecer suspeito e não apresentasse as provas de sua
inocência, quer dizer: naquela época, a sempre exigida carteira de trabalho, esse
ambivalente instrumento que, nos termos da “cidadania regulada” discutida por
Wanderley Guilherme dos Santos (1979) e ainda vigente naqueles anos, mais do
que uma evidência trabalhista, operava como “certidão de nascimento cívico”.
Esses também foram os anos que viram surgir as figuras emblemáticas do policial
justiceiro, como o famoso Cabo Bruno, ou então o policial matador, um tipo que
agia nos quadros da corporação para levar à frente a caça aos bandidos, “matar
para não morrer” como pregava o muito violento, o muito famoso, celebrado e
condecorado Conte Lopes, ex-capitão da Rota e depois deputado estadual, com
vários mandatos e bastante ativo na Assembleia Legislativa de São Paulo.7
Chacinas e execuções sumárias foram mais do que frequentes nesses anos.
Compõem o quadro das mortes violentas na cidade de São Paulo: no período de
1980 a 1996, a ação dos grupos de extermínio resultou em 2000 casos de homi-
cídio; entre 1990 e 1996, as vítimas fatais somam 1.595 pessoas (cf. Pinheiro,
1999). Esses são os números de casos conhecidos. Mas podemos supor que haja
miríades de outros que não ganharam registro policial, tampouco chegaram às
sessões de reportagem e noticiário criminal da grande imprensa. E sob a categoria
“chacina” ou, na linguagem mais neutra e insípida dos relatórios policiais, “mortes
múltiplas”, aparece tudo misturado (execuções policiais, grupos de extermínio,
justiceiros, brigas de gangues locais), pouco se sabendo sobre o que acontece
sob a abstração dos números.
Mas é por isso mesmo que essas micro-histórias interessam. Todas elas são
perpassadas pelas relações mais do que ambivalentes com as forças policiais.
Cumplicidades e tolerâncias com o extermínio dos indesejados, com certeza. Mas
também acertos nem sempre fáceis em troca de proteção, muitas vezes uma cota
periódica paga em dinheiro, armas ou qualquer coisa que o policial em ação no
momento pudesse achar vantajoso. Leonora conta um desses episódios: num dia
de semana, a cunhada, o marido e um parceiro estavam em casa, era hora do
almoço. Chegam duas viaturas. Traziam um rapaz que havia sido preso horas antes
e que dissera ter escondido as armas na casa de Chico. Os policiais entraram com

terroristas, em especial assaltos a bancos. Seus mais de 700 policiais são organizados em
grupos de quatro homens munidos com armas de alto poder de fogo, mobilidade e comu-
nicação. Depois do fim da repressão aos opositores políticos do regime militar, a Rota foi
direcionada para combater a criminalidade comum (Caldeira, 2000: 168-169).
7
Atualmente deputado estadual, Conte Lopes esclarece, em seu site na Internet, que, em
1994, “escreveu o livro Matar ou Morrer, relatando as principais ocorrências de sua vida
como policial em resposta ao livro Rota 66 de Caco Barcelos”. Cf. http://contelopes.com.
br/biografia. Sobre Conte Lopes, Cabo Bruno e outros matadores, policiais e justiceiros,
ver Silva (2004).

221
a brutalidade de sempre, armas em punho, ameaçando todos, inclusive Leonora:
“eu quase morri de medo, achei que iam levar todo mundo preso”. Estavam atrás
das armas. Vasculharam tudo, reviraram a casa de cima a baixo, pressionaram
o marido e o parceiro, ameaçaram levar Leonora presa. As armas do rapaz não
estavam lá. Porém, eles acharam dois revólveres. Chico e o parceiro conheciam
o homem que estava no comando da operação. E não era a primeira vez que esse
tipo de coisa acontecia. Leonora lembra o comentário do marido depois que os
policiais foram embora: “esses caras não vão levar ninguém, esses caras querem
mesmo é o dinheiro; eles são mais pilantras do que bandido, são mais bandido
do que essa molecada aí”.
Um episódio quase banal, mas corriqueiro e recorrente nesses lugares. Um epi-
sódio que pode parecer menor quando posto ao lado da espantosa truculência dos
casos relatados por Caco Barcelos (1992). No entanto, há duas ordens de questões
que histórias como essas nos sugerem. Primeiro: a violência policial não é apenas
mais um fator a ser agregado a todos os outros para compor os índices de mortes
violentas nessa década e nas seguintes. Ela envolve relações de poder e jogos de
força ativados nos seus procedimentos, nos seus movimentos, nos seus modos de
operação, que passam a compor as situações em que os acontecimentos se dão.
Michel Misse chama a atenção para esse ponto, as “ligações perigosas” incrustadas
nos mercados de proteção e práticas de extorsão, a violência aí embutida e que
é ativada, por vezes e muito frequentemente, sob formas devastadoras quando os
acertos são desestabilizados ou desfeitos por razões as mais variadas.
Mas vale perscrutar a lógica de verdade embutida nessa frase tão comum no
repertório popular e que o justiceiro Chico repetiu nesse microacontecimento pró-
prio da rotina das vidas bandidas. “Eles são mais bandidos do que a molecada do
bairro”, diz o justiceiro Chico, na sua inequívoca posição de um fora da lei. “Eles
são bandidos piores do que bandido assumido”, diz uma certa Dona Celeste, 50
anos, mãe de família, que teve sua casa invadida pela polícia: “nunca bandido
nenhum invadiu minha casa e a polícia invadiu, quando dei fé eles estavam aqui
no meu quintal, derrubando a porta para entrar”. Eles perguntavam: “cadê o
dono da casa ao lado?”. Na casa vizinha havia uma turma que tocava pagode, na
região. Lá estava cheio de coisas que seriam usadas à noite: bebidas, tira-gosto,
doces. Dona Celeste lembra: “eles invadiram, roubaram tudo, comeram tudo, que-
braram tudo o que não puderam levar, arrebentaram com tudo, mesas, cadeiras,
as portas”. É como eu digo, diz dona Celeste, “eles são bandidos piores do que
bandido assumido e sabe por quê?”. Ela mesma lança a pergunta e responde: “O
bandido assumido não esconde quem ele é, o policial, sim, esconde a bandidagem
dentro dele, embaixo da farda, naquela carteirinha que eles mostram”. É muita
covardia, diz ela: “cismam com um cara, jogam dentro da viatura, espancam,
espancam e espancam, matam e dizem que foi troca de tiro”.
Não se está aqui falando nada de novo. São situações já mil vezes denunciadas,
divulgadas em reportagens de imprensa e diagnosticadas por pesquisadores e
especialistas na área. No entanto, vale se deter neste termo – bandido – que opera

222
a associação entre o homem da lei e o homem fora da lei, uma associação que
mostra não propriamente que são iguais (o policial não é igual ao bandido), mas
uma diferença que se desfaz (e se refaz em um outro sentido) em uma situação
– e em um espaço – na qual se esfumaça a diferença entre a lei e a transgressão
da lei (cf. Das & Poole, 2004).
É por isso que cobra importância a precisa comparação feita pelos dois per-
sonagens aqui postos em cena: a polícia não é igual ao bandido, é pior que o
bandido: “usa a farda e aquela carteirinha que eles mostram” para acionar
procedimentos extralegais. Ao mesmo tempo, dentro e fora da lei. Nesses modos
de operação das forças do Estado, ali nas suas pontas, fica suspensa a diferen-
ça entre o “homem da lei” e o “homem fora da lei”, o cumprimento da lei e a
transgressão da lei. Quer dizer: as diferenças entre a lei e o crime são como que
anuladas, desativadas na sua efetividade. “O policial é pior que o bandido”: uma
associação que não é abstrata, não é metafórica, tampouco algo que se produz no
plano das “representações”: é concreto, é prático, é situacional, é pragmático, é
performativo, algo que se produz como acontecimento que afeta corpos, vidas e
pessoas, e desencadeia efeitos.
É o outro lado da nossa conhecida criminalização da pobreza que, nesses
anos e em todos os que seguiram, ganhou formas especialmente truculentas
sob a “lógica em uso” (Paixão, 1988) da ação policial que, antes de qualificar o
criminoso e o crime, qualifica a pobreza e o crime nas evidências que suscitam
a suspeita e fornecem a ordem das razões para a intervenção violenta e, muito
frequentemente, letal. Práticas de incriminação antecipada: sujeição criminal,
nos termos de Michel Misse (2006). Isso está fartamente documentado no livro
de Caco Barcelos. No entanto, o que talvez mereça atenção mais cuidadosa é a
contrapartida dessas formas de operação policial. Pois, se as fronteiras entre o
trabalhador e o criminoso são tênues sob o prisma da ação policial, isso opera em
relações de poder e força que terminam por borrar as diferenças entre o homem
da lei e o fora da lei, isto é: entre a lei e o crime. E é justamente isso que faz com
que seja colocada em ação uma “licença irrestrita para matar”, sem que isso seja
considerado propriamente um crime. “Assassinatos em nome da lei”, diz o desem-
bargador Sergio Vernai,8 da 5ª Câmara Criminal de Justiça no Rio de Janeiro,
autor do livro que leva esse título, no qual são analisados dezenas de “autos de
resistência”9 entre as décadas de 1970 e 1980. Em sua versão paulista, “resis-
tência seguida de morte”, como Alessandra Teixeira esclarece, é uma categoria

8
Cf. a entrevista à Revista Caros Amigos, nº 171, outubro 2009.
9
A origem da ferramenta jurídica “auto de resistência” está na ordem de serviço N, nº 803,
de 2/10/1969, da superintendência da polícia judiciária do antigo estado da Guanabara. O
dispositivo reza que, “em caso de resistência [os policiais] poderão usar dos meios necessários
para defender-se e/ou vencê-la” e dispensa a lavratura do auto de prisão em flagrante ou a
instauração de inquérito policial nesses casos (Cf. Marcelo Salles, (“Máquina Mortífera”,
Revista Caros Amigos, nº 171, outubro 2009, pp. 28-31).

223
estranha ao mundo do direito, que, não obstante, aciona a estrutura judicial que
acata seu processamento, convertendo a vítima em réu, “conferindo aos agentes
repressores do Estado uma espécie de licença irrestrita para matar”, o que evoca
o “estado de exceção permanente” de que fala Agamben (Teixeira, 2009).
É o caso de se perguntar até que ponto e sob quais modalidades essa licença
para matar se replica e duplica no outro lado, na ação dos justiceiros. Replica-se,
duplica-se e multiplica-se, porém o que se passa nesse outro lado não pode ser
visto como decalque da violência do Estado. Pois essa multiplicação se faz sob
outras lógicas e sob outros imperativos que não a verticalidade do Estado e seus
dispositivos de controle e sujeição. Ancora-se nas horizontalidades das formas
de vida e nas microrregulações locais. Devo dizer, logo de partida, que isso é
matéria de pesquisa, e que está muito além do que tenho condições de fazer
neste momento, pois envolve uma prospecção mais fina dos mundos sociais (em
curso, longe de estar concluída) em que tudo isso ocorre. E exige igualmente um
trabalho de refinamento teórico também além do que tenho condições de fazer
por ora. Mas arrisco, assim mesmo. Uma hipótese de trabalho que, assim me
parece, é importante de ser aqui lançada, por duas razões.
De partida, descarta as explicações correntes de que essa violência que per-
passa os mundos populares possa ser creditada a concepções de justiça privada
enraizadas no fundo de nossa história, uma condição pré-social, estado de natu-
reza, signo do atraso, contraface de uma modernidade incompleta. Persistência
da “lei do sertão”, em uma população que, naqueles anos, ainda era, em grande
medida, de origem migrante recente, que se expressaria justamente na ação dos
justiceiros.10 As descrições que os moradores fazem do Justiceiro Joel poderiam
validar essas hipóteses: com seu grande chapéu de couro, o sotaque nordestino
carregado, olhar enviesado de quem sabe colocar medo nos outros, homem de
poucas palavras e pontaria certeira no uso rápido da arma que sempre levava na
cinta, além de algo como, assim corre a lenda, lenda negra, um poder de ubi-
quidade de alguém que está em lugar nenhum e em todos os lugares ao mesmo
tempo, espalhando o terror entre a pequena criminalidade local.
Porém, ao revés de uma suposta situação de anomia e desordem derivada
da pobreza em condições de ausência ou precariedade da presença do Estado,
é o caso de perguntar – este é o segundo ponto – por ordenamentos sociais que
se fazem não às margens do Estado, porém no próprio modo como se realiza
a experiência do Estado, justamente nessas pontas em que essa presença afeta
formas de vida. E circunscreve um terreno no qual a experiência com a lei e as
forças da ordem se constitui na sua intersecção com outros modos de regulação
que surgem das circunstâncias de vida dessas populações, também em seus
sentidos de justiça, de ordem, inclusive de necessidade de segurança (cf. Das &
Poole, 2004). E é isso que permite re-situar a figura dos justiceiros. Não se trata

10
Em outro contexto de discussão, essa questão é debatida por Alba Zaluar (2004), ao
tratar da violência associada ao tráfico de drogas no Rio de Janeiro.

224
da persistência de concepções tradicionais de ordem e justiça. Se estas existem,
são refundadas e ativadas no seu encontro com as forças da lei.
Colocando-se como paladinos da ordem, em defesa do trabalhador e sua
família, os justiceiros investiam contra a criminalidade local e contra todos os
que eram percebidos como perturbadores da ordem, provocando desassossego
entre os moradores. Alguns ficaram conhecidos, ganharam fama e, como foi o
caso do Justiceiro Joel, viraram lenda na região, ainda viva, vinte anos depois do
início de suas atividades no Bairro X. Porém, ao que parece, esses bairros foram
pontilhados pela ação de pequenos justiceiros locais com efeitos que não foram
muito além do perímetro mais estreito de suas áreas de moradia, no máximo,
nas regiões contíguas.11
Basta ler com atenção os inúmeros casos relatados por Inês Ferreira (2006) em
seu estudo a partir de processos judiciais de crimes dolosos ocorridos na periferia
sul da cidade de São Paulo. São processos da primeira metade dos anos 1990 nos
quais, podemos supor, as histórias que deram em desfechos de sangue deitam
raízes na década anterior. A pesquisadora debruçou-se sobre os depoimentos dos
réus, das vítimas sobreviventes, das testemunhas de acusação e defesa registra-
dos nos autos. Foi isso que lhe permitiu descortinar algo das lógicas sociais que
presidem a ação desses homens que, a partir de um fato detonador, passam a
atuar como justiceiros locais. São micro-histórias. Um vigilante noturno de um
armazém que reúne um grupo de homens para dar fim aos garotos que estavam
“arrepiando” os moradores (assaltos, furtos, estupros). Um marido ultrajado que
“pede ajuda” para vingar o estupro de sua mulher por um seu vizinho. O dono
do bar revoltado com os garotos que cobravam pedágio para evitar os assaltos
que se repetiam ao longo do tempo. E outras tantas histórias parecidas com a
do Justiceiro Joel: a reação, “revolta” para usar o termo corrente no repertório
popular, contra uma criminalidade local que perturbava e assustava moradores,
famílias, pequenos comerciantes. Pequenos casos e acasos que detonam uma
história de sangue e marcam o ponto de arranque da carreira do justiceiro.
Alguns agiam sozinhos, outros em associação com parceiros. Às vezes, eram
ações esporádicas, episódicas, de homens que mantinham suas atividades normais
entre trabalho e família. Outros, como Joel e seus comparsas, converteram-se
à condição justiceira. No verso e reverso desses, há também os policiais que se
utilizavam de sua autoridade como representantes da lei, quer dizer, das prer-
rogativas que lhes foram conferidas pelo poder público para “limpar a área” e
oferecer segurança nos seus locais de moradia. As relações com a polícia, assim
parece, eram variadas, indo do misto de cumplicidade e tolerância à encomenda
(sob pressão e chantagem, podemos supor) de eliminação dos indesejados, o que
podia ganhar a forma de ações sistemáticas ou de circunstância, também sob

11
Sobre justiceiros e, depois, matadores, o livro do jornalista Bruno Paes Manso (2005),
bem como várias de suas reportagens no jornal Estado de São Paulo, oferece um material
importante para a discussão.

225
pressão e chantagem. Mas existiam ainda os casos de “convênio com a polícia”,
como declara um depoente de um dos processos analisados por Inês Ferreira
(2006), policiais que acionavam os justiceiros para eliminar pessoas que haviam
sido presas e encaminhadas ao Distrito Policial da área.
Espécie de xerife local, transitando entre a ordem do trabalho e seu avesso, o
justiceiro contava com a cumplicidade, quando não o apoio, dos moradores, em
um misto de temor, respeito e reconhecimento pelos “serviços prestados”. Além
da proteção contra os pequenos bandidos de bairro, também havia a ajuda a
uns e outros mais necessitados, arbitragem de litígios entre vizinhos e brigas de
família. Inês Ferreira conta o interessantíssimo caso de um justiceiro que arbitrou
a separação de um casal e decidiu a partilha dos poucos bens. Há também os
relatos de justiceiros que garantem a ligação clandestina de luz ou, então, como
em outro caso narrado por Inês Ferreira, que fizeram a intermediação entre os
moradores e a Sabesp ou a Eletropaulo para conseguir a ligação da rede, resolver
situações pendentes, negociar dívidas acumuladas. Circunstâncias como essas
são, na verdade, frequentes e recorrentes nas periferias da cidade. Deparamos
com várias delas ao longo de nosso trabalho de campo, situações que põem em
cena figuras ambivalentes que transitam o tempo todo entre o legal e o extralegal.
Depois dos anos 1980, no lugar dos justiceiros, bandidos que “tomavam conta”
da área (falaremos disso mais à frente) ou, então, como vimos no capítulo três, as
figuras incertas que transitam entre o trabalho e a família “como todo mundo”,
mas que também se envolvem com assuntos “duvidosos”. Mais recentemente, os
pequenos traficantes de bairro. Trabalhamos isso, Daniel Hirata e eu (2007), em
um artigo recente, e a questão será retomada mais à frente. Cada qual, em seus
contextos de referência, arbitra, faz a mediação, negocia, agencia as condições
da ordem local: arbitragem de desavenças em torno da ocupação de terras, liga-
ções clandestinas de luz, mediação com os representantes da ordem em torno de
assuntos locais. A presença do Estado se desdobra nesses lugares, seguindo os
vetores a partir dos quais os vários ilegalismos urbanos vão se constelando e se
multiplicando nessas regiões. Assim como acontece com as gambiarras: onipre-
sentes em toda a extensão das periferias urbanas, são puxadas a partir da rede
oficial instalada nas ruas principais e esses personagens, muito frequentemente,
são os seus operadores, agenciam, arbitram, negociam o serviço. Constroem seu
poder e prestígio local justamente pela habilidade com que transitam nessas dobras
do legal-ilegal. Mais concretamente: pela habilidade com que transitam entre o
legal e ilegal, acionando os dispositivos, poderes e artefatos de um lado, que se
desdobram, de outro, nos agenciamentos locais por onde os jogos de poder se
refazem sob outras modalidades. Essas situações foram comentadas no capítulo
quatro. Uma antropologia das gambiarras, para ficar em um só exemplo, pode
fornecer um bom roteiro desses percursos sinuosos (cf. Telles & Hirata, 2007).
No caso dos justiceiros, no entanto, esses agenciamentos locais, quando exis-
tiam, eram periféricos ou subordinados aos poderes soberanos de que se investiam
em sua missão de defesa da ordem em nome do trabalho e da família.

226
Do ponto de vista dos moradores, os atos cometidos pelos justiceiros não eram
considerados crime, a rigor nem mesmo como violência. Diferente dos “matado-
res”, o justiceiro é aquele que não apenas garante a ordem, mas restaura a ordem
perturbada pela criminalidade local ou, então, por atos que afetam os sentidos
de honra e decência na vida familiar (Ferreira, 2006). Assim também acontecia
com o muito violento justiceiro Joel. Ele transitava pelas moradias locais. Era
frequentador assíduo da casa de uma aguerrida liderança comunitária que, na
época, estava envolvida nos movimentos de moradia que agitavam toda a região:
ela participava das comunidades eclesiais de base, estivera à frente de algumas
das grandes ocupações organizadas de terra, participava de manifestações e era
presença constante na Paróquia que, naqueles anos, acolhia militantes de esquerda
e lideranças dos movimentos sociais que fizeram a fama (a boa fama) da região sul
da cidade. Ao mesmo tempo em que a região era agitada pelas grandes mobiliza-
ções sociais, os justiceiros faziam seus percursos nos meandros dessas mesmas
regiões: um contraponto à épica dos movimentos sociais cantada em prosa e verso
por uma prestigiosa literatura que também marcou os anos 1980. Um contraponto
não para lançar dúvida sobre os movimentos sociais ou desfazer dessa épica que,
também ela, faz ou fazia parte do repertório popular, inclusive da memória dos
moradores que se envolveram nessas movimentações. Mas é um contraponto que
nos serve de guia para ampliar, digamos assim, a cartografia do social, seguindo
as transversalidades que perpassam os percursos desses personagens urbanos,
bandidos e não bandidos, multiplicidades internas a uma vida social que não cabe
em categorias fixas, que transpassam os campos objetivados pelos estudos urbanos
– os “movimentos sociais”, “trabalho”, “crime”, que seguem os pontos de conexão
de redes que também elas se desdobram em direções várias.
Perguntamos à Leonora: como era a vida de Joel, como ele vivia? Era assim
mesmo, diz ela, com o apoio do pessoal do bairro. Almoçava na casa de um,
jantava na casa de outro. Não trabalhava, diz Leonora, porém não se envolvia
com coisas do crime. Recebia alguma ajuda dos comerciantes, mas não matava
por encomenda. É o que ela diz. Podemos supor que as coisas não se passavam
bem assim. Mas há uma razão e uma lógica de verdade nisso que Leonora diz e
outros confirmam: é um modo de tipificação popular, que faz a diferença entre
o justiceiro e o matador, o pistoleiro que mata por encomenda ou, então, que
age em nome de seus próprios interesses e não, como os justiceiros, em defesa
do trabalhador e sua família. Para ela, é importante insistir nessa diferença,
por mais que as diferenças entre um e outro sejam bastante tênues. Joel não era
matador, diz Leonora. O marido Chico também não era matador, nunca foi, ela
enfatiza. Quando chegavam a um bar, recebiam comida, bebida, não precisavam
pagar nada e, quando pediam, ainda recebiam algum dinheiro; se precisassem, o
pessoal do bar dava. “Era igual à polícia”, que fazia a mesma coisa, ela comenta
quase por acaso, numa frase que é, para nós, importante reter. Como também é
importante reter a marcação da diferença entre o justiceiro e o matador. Volta-
remos a isso mais à frente.

227
As façanhas letais do justiceiro Joel fazem parte da história do bairro. Assim
dizem os moradores: qualquer coisa podia ser motivo para ficar na mira: molecada
que fazia algazarra na rua, um garoto que voltasse tarde da noite para casa ou
que se vestisse de um modo mais extravagante. Quando era algum bandido que
estava na mira, não importava quem estivesse no lugar. Podia ser um indivíduo
isolado ou vários ao mesmo tempo. Podia acontecer em um bar, em uma casa, em
qualquer lugar: chegavam em dois ou três, armados, assustavam e ameaçavam
todos os que estivessem no lugar e, depois, eliminavam um a um, no próprio local
ou na rua da frente. A lista dos que foram mortos por Joel chega a uma centena,
ou mais. Ele pode ser colocado ao lado dos justiceiros mais violentos da cidade
de São Paulo, que ganharam fama e o noticiário policial pelas dezenas, em alguns
casos centenas, de mortes a eles atribuídas (cf. Manso, 2000, 2005).
Manoel tinha 15 anos naquela época, trabalhava em um lava-rápido e, à noite,
ainda fazia “bico” como entregador de pizza.12 Ele lembra:

[...] quem roubava, eles matavam e não tinha hora para matar, podia ser 8
horas da manha, 3 horas da tarde, à noite – e nós convivendo com isso no dia
a dia.
[...] vixi, inacreditável as coisas que a gente via... tinha manhã da gente acordar e
ter de passar por um, por dois, por três defuntos para ir comprar pão, um corpo
aqui, outro corpo ali, outro lá pro outro lado... o negócio era feio demais.

Na mira estavam, sobretudo, os que vinham de fora. Quando era gente do


bairro, Joel abria a chance para algum acerto de momento. Manoel viveu um
desses episódios: estava na rua com um amigo, quando chegam quatro garotos do
bairro, armados, ameaçando barbarizar, roubar e matar. Mas, como diz Manoel,
“dizem que Deus, às vezes, põe as coisas no lugar e na hora certa”. O justiceiro
Joel estava por perto. Diz Manoel: ele nem precisou puxar a arma, apenas disse
“abaixa as armas, vocês não estão vendo que são dois moleques trabalhadores?”.
Voltando-se para Manoel, perguntou: “o que você quer que eu faça com eles?”.
Resposta: “eu não posso falar nada, se você achar que deve, quem sou eu para
dizer que não?”. O justiceiro Joel chamou o pai – “ele tinha afinidade com o meu
velho”. Perguntou ao pai: “o que eu faço com eles, mato todos ou o quê?”. Resposta:
“não, deixa viver, só que diz para eles nem olhar feio para o lado do meu fi lho,
senão quem vai entrar no meio sou eu, pego um por um”. “Deixa viver”, diz o
pai do rapaz. Aprendemos com Foucault que “deixar viver” é o complemento do
“poder matar”, próprio do poder soberano: “poder matar e deixar viver”. Porém,
à diferença das forças policiais que exercitam, nessas situações e nesses espaços,
poderes soberanos como exercício do arbítrio e poder bruto que ameaçam a todos
na indistinção das diferenças entre o homem de bem e o homem do crime, a
soberania do Justiceiro é exercida em um jogo mais do que ambivalente de ne-

12
Entrevista concedida a Daniel Hirata, em 2004.

228
gociação e arbitragem dos limiares da vida e da morte. É nesse aspecto também
que ele se põe como contraponto e diferença em relação à polícia.
Vale se deter nesse contraponto e nessa diferença. De um lado, podem ser vistos
como inversão e reversão dos sentidos de lei e de ordem. Polícia, representante
do Estado, agente da ordem: nos seus modos de operação, abre-se e explicita-se
a ambivalência entre proteção e ameaça. Também entre a ordem e o seu inverso:
a previsibilidade (suposta ou imaginada ou idealizada) da ação racional própria
da burocracia estatal e a mais radical imprevisibilidade e imponderabilidade do
que pode acontecer com a presença policial. Isso se põe muito concretamente
no temor e na insegurança face às batidas policiais por parte dos indivíduos que
habitam esses lugares. Nos seus modos de operação, essa ambivalência também
se desfaz: a proteção se transfigura em ameaça, a ordem em seu inverso.
Porém, o contraponto e a diferença com a polícia é algo que aparece sob o
prisma dos moradores e dos agenciamentos práticos de uma gestão da ordem e de
suas microrregulações, e que tem na figura dos justiceiros um de seus operadores.
Um operador, no entanto, que termina por introduzir, no interior mesmo desses
ordenamentos, uma violência que escapa ou transpassa e vaza dessas micror-
regulações. Essas microrregulações não são suficientes para conter a lógica da
vingança que desencadeia ciclos devastadores de revides e mortes sucessivas.
Mas isso só é possível saber quando se muda o registro e se altera o ângulo
de visão pelo qual descrever o diagrama das relações entre polícia, justiceiros,
matadores e moradores. Rodney, 32 anos, “bandido formado”, como se diz, oito
anos de pena cumprida no Carandiru, patrão de um ponto de droga no momento
em que o entrevistamos (2005), meteu-se em histórias de crime quando era um
garoto de 10 anos (assaltos, arrombamento de casas, roubo de motos). Morava no
Bairro X com a família, porém nem ousava ficar muito tempo naquele pedaço, pois
o Justiceiro Joel era mesmo motivo de terror para ele e todos os seus parceiros-
mirins. Cresceu ouvindo as histórias dos justiceiros da região. Ele deve saber o
que diz quando afirma que essas mortes não ficavam sem resposta. Podia passar
anos, diz ele, mas o parente ou o parceiro vinha atrás. Às vezes, o próprio fi lho,
ainda criança quando as coisas aconteceram, “cresce com isso na mente” “eu
vou te falar, eles nunca são esquecidos, entendeu? O fi lho do cara que ele matou
está grande, está nessa vida, vai lá e mata ele, com certeza”. Ele conta de um
rapaz cujo pai foi morto por Joel: mantém entre seus pertences pessoais uma foto
do justiceiro, que ele mostra para quem quiser ver e diz para quem quiser ouvir
que está à espera do momento de dar o revide, assim que Joel sair da prisão.
Rodney fala dessa e outras histórias parecidas, de gente que morreu por
conta de revides e pactos de vingança. Ele e seu parceiro, que estava presente
no momento da entrevista, também patrão do mesmo ponto de droga. A partir de
certo momento, não é possível saber ao certo de quem ambos estão falando, de
justiceiros ou de matadores. Do lugar a partir do qual falam, são todos igualmente
matadores: “matam por maldade”, qualquer coisa pode ser motivo de morte: “eles
eram covardes, os caras matavam o outro na rua, parado assim, conversando, ele

229
chegava e se ele cismava ...”. O justiceiro-matador é como a polícia, diz Rodney:
se alguém mexe com ele, a resposta é essa, vem à bala.
Quanto aos justiceiros, o parceiro Toninho comenta: “aqui no bairro, tem uns
velhinhos que ainda lembram deles, que gostavam deles [...] mas eles não sabem
de nada, nós sabemos”. E Rodney completa:

Nós que estamos nessa vida do crime, nós sabemos o que está certo e o que está
errado. Dentro da lei do crime, porque existe uma lei no crime, o cara pode ser
ladrão, pode ser traficante, pode ser um 155 [furto], mas tem que ter firmeza,
tem que ser respeitado e dar respeito, tem que andar pelo certo [...].
[...] se o moleque pisou no meu pé, eu vou lá matar? Não é assim não, tem que
ir lá na quebrada, de mente aberta, vamos trocar uma ideia para não aconte-
cer o pior, se você mata ele e não era para o cara morrer, aí você também vai
morrer, é a guerra.

Rodney e Toninho falam de um outro lugar – eles são “do crime”. É por isso
também que eles falam do justiceiro sem interditos e podem dizer, sem hesitar,
que a polícia passava, sim, a encomenda de mortes – “os polícias corriam com
ele [o Joel], dava aquele bilhetinho – ‘mata fulano’ e daí o cara já era”. Quanto
aos comerciantes, eram os justiceiros que os obrigavam a pagar pela “proteção”,
os comerciantes tinham medo e pagavam – “se ele tivesse uma padaria, pagava,
bancava ele, se não pagasse, ele [o justiceiro] chegava, tirava tudo, matava o
dono”.
Eles falam de um outro lugar e de outro tempo, os anos 2000. São trafican-
tes. Cada qual com uma trajetória diferente na “vida do crime”. Um, a pequena
criminalidade local. Outro, histórias de vingança familiar, sobrevivente de uma
guerra entre gangues rivais, com muitas mortes. Ambos, muitos anos de cadeia.
Os dois carregam um currículo com muitas mortes. Não são exatamente sujeitos
angelicais. Mas por isso mesmo é interessante perceber o modo como os dois falam
e marcam a sua diferença, a diferença dos traficantes em relação aos matadores,
o que inclui os justiceiros.
Voltaremos a isso mais à frente. Por ora, importa reter a lógica que comanda
essa marcação da diferença em relação aos matadores, a lógica da vingança e
a certeza da morte que ela carrega, e é isso que comanda, podemos dizer, os
sentidos do “certo” e do “errado” que estruturam o modo como ambos falam de
justiceiros e matadores. “Andar pelo certo”, “estar no erro”. É importante reter
essa questão, pois ela será decisiva para compreender algumas das lógicas em
ação no correr dos anos 2000. Porém, antes, será preciso seguir os rastros dos
matadores.

***

230
No início dos anos 1990, os justiceiros praticamente desaparecem. Muitos
foram mortos, outros foram presos. Ou, então, se transfiguraram no matador.
Essa é uma expressão corrente no universo popular e designa um tipo social que
mata não mais em defesa da ordem associada ao mundo do trabalho e da família,
mas por conta de acertos pessoais associados aos negócios do crime, às vezes
mortes encomendadas nas disputas entre quadrilhas rivais, também histórias de
vingança, desafetos e “defesa da honra”, misturadas com disputas de território,
desencadeando ciclos de uma violência devastadora, os “mata-mata” , como é
dito na linguagem popular.
A versão que Leonora constrói para a prisão de seu marido Chico é, nesse
sentido, bastante reveladora, tanto do que sugere sobre as tênues fronteiras que
separam o justiceiro do matador, quanto pela importância da marcação dessa dife-
rença que compõe o repertório popular. O marido-justiceiro, diz ela, foi preso por
“trairagem” de um outro, um tipo que atuava como justiceiro, mas que desandou
a matar “quem não devia”. Chico “não mexia com trabalhador, esse outro, sim, foi
ele que sujou o lugar aqui, andou fazendo coisas que os outros não faziam”. Matou
um segurança de uma loja “só para pegar a arma, mas o rapaz era trabalhador”.
Foi assim que as coisas começaram, diz ela. Juntou-se com um irmão e acharam
que podiam fazer qualquer coisa. Depois que o Justiceiro Joel foi preso (início
dos anos 1990), esses dois quiseram ficar donos do “pedaço”. Achavam que os
comerciantes tinham que pagar para eles, ameaçavam quem não quisesse pagar,
“mexiam com gente que não tinha nada a ver”, exigiam pagamento.
Nessa espécie de tipificação popular, o justiceiro se põe contra o crime, não
sendo ele mesmo visto como criminoso. O matador parece, ao contrário, sinalizar
o outro lado da fronteira. Porém, no jogo das relações e das microssituações, essas
diferenças são tênues, a ambivalência impera, os personagens transitam entre
uma situação e outra. O justiceiro pode ganhar fama e prestígio nos lugares em
que atua, chama a atenção e passa a ser procurado por uns e outros para resol-
ver, à bala, desafetos pessoais ou desacertos nos assuntos do crime (cf. Manso,
2005). Aquele que é visto como matador é também alguém que lida com o jogo
das reciprocidades populares, garante a “ordem” aqui (contra os furtos, roubos,
estupros), promove a “desordem” acolá (cf. Ferreira, 2006). Inês Ferreira comenta
a situação em uma favela na zona sul da cidade, na qual um grupo envolvido
com tráfico de drogas, roubo de carga e assalto a bancos tratava de garantir a
ordem local, ameaçando com expulsão ou morte os que ousassem praticar alguma
forma de delito no local, furtos, roubos, estupros, qualquer sorte de violência ou
intimidação aos moradores. Há miríades de histórias como essas, e várias delas
também compõem os nossos diários de campo.
São microrregulações. Mas é nesse ponto que a diferença entre justiceiros e
matadores também interessa. Os primeiros agem sob a lógica da polaridade entre
o mundo da ordem e o mundo do crime, por mais que eles próprios façam por
esfumaçar essa diferença. O trabalho (e seus indexadores: a família organizada,
o chefe provedor, o bom pai, o bom marido, o bom fi lho) é o operador que faz a

231
diferença entre a ordem e seu inverso. Heloisa Fernandes (1992), em seu estudo
sobre a trajetória de três justiceiros, quadros subalternos da Polícia Militar, de
origem proletária e famílias de migração recente, presos à época em que as en-
trevistas foram feitas (1986), mostra que, para eles, o trabalho e a condição de
chefe provedor é o operador que introduz a cisão do espaço social entre trabalha-
dores e marginais.13 Uma cisão “produtora de uma cena onde os trabalhadores
aparecem como ‘zé-povinho’: são os ‘marmiteiros’, os ‘injustiçados’, os ‘coitados’,
os que ‘não têm ninguém por eles’, necessitados da defesa autoritária e violenta
dos seus ‘justiceiros’” (1986: 50).
No caso dos bandidos, esses que já estão do outro lado, as marcações das
fronteiras entre os mundos do crime e os mundos trabalho se fazem sob outros
jogos de relações, outros códigos e outros critérios que definem as diferenças,
mas também convivências possíveis em um espaço social comum, onde trabalha-
dores e bandidos transitam e constroem os critérios e procedimentos que regem
as relações de proximidade e distanciamento. Nesse ponto, são de especial im-
portância as observações de Alba Zaluar (1985) sobre os modos de convivência
de trabalhadores e bandidos na Cidade de Deus (Rio de Janeiro), na primeira
metade dos anos 1980, quando a antropóloga fez sua pesquisa. Do ponto de
vista dos moradores, a construção social da imagem do bandido é permeada por
ambivalências. De um lado, a diferença entre a “vida dura do trabalhador” e “a
vida curta do bandido”: o mundo bandido é o negativo do mundo do trabalho,
é habitado por aqueles que optaram pelo “ganho fácil”, o bandido é aquele que
está cativo do “condomínio do diabo” (a lógica inevitável da dívida, da vingança,
da morte), está marcado, “tem crime nas costas”, infringiu as leis do país, o nome
está na lista da polícia e pode ser preso. Mas o bandido também partilha de uma
condição comum de pobreza, privação, humilhação: o revólver na cinta é sinal
da “revolta”, termo que circula amplamente no universo popular. As categorias
crime e criminoso, diz Zaluar, não são empregadas quando os trabalhadores se
referem a esse mundo e às pessoas que o ocupam. A ação de roubar ou de matar
“não é julgada abstratamente como ruim, negativa, criminosa”. O bandido “é
julgado moralmente segundo as regras locais de reciprocidade e justiça”. E não

13
“Significante vazio, o trabalho vai adquirindo inúmeros significados que vão dando sentido
à vida, ao mesmo tempo em que a idealização maciça modela imaginariamente um mundo
absolutamente cindido: do lado dos que se sacrificam e trabalham, alinham-se não só os
trabalhadores, mas os bons pais, bons maridos, bons fi lhos, bons parentes, bons vizinhos
e, especialmente, as boas mulheres. Daí o confronto com aqueles que estariam do outro
lado, com os que, presumivelmente, não trabalham porque não querem pois são os que ‘não
querem saber quem inventou o trabalho’, justificando a canalização de uma agressividade
maciça a um outro digno de uma suspeita que já não se restringe ao papel de trabalhador,
pois deslocam-se em cadeia ao de pai, de marido, de fi lho, de vizinho, de mulher de família,
como também, ao de cristão e cidadão. Herdeiro do discurso familiar, é o fi lho preso que
sentencia: ‘quando vinha um novato trabalhar comigo, eu ensinava mesmo, ensinava a dis-
tinguir o cidadão do marginal, que é o que a PM não ensina” (Fernandes, 1992: 48-49)

232
é a ação em si de roubar ou matar que é julgada moralmente má, e sim quem e
como ela se exerceu: “se o bandido se meteu ou não com trabalhador no local,
ou não envolveu ‘quem não tem nada com essa guerra’, isto é, quem não está
nessa trama de vinganças pessoais ou dívidas ressarcidas com trocas de tiros,
seus atos não serão julgados como maus, perversos ou covardes” (1985: 163-
164). Enfim, se ele tem “proceder” ou não, para evocar os termos hoje correntes
no “mundo bandido” e fora dele e que, podemos supor, não tão recentes como
muitas vezes se supõe.
No material de pesquisa colhido por Inês Ferreira, as situações são pareci-
das. Trabalhadores e bandidos partilham do mesmo universo social, podem ser
parentes, vizinhos, parceiros em jogo de futebol, cresceram juntos, frequentam
o mesmo bar. Entre eles, diz Ferreira, vigora um pacto implícito de convivência,
um jogo refletido de distanciamento quando isso envolve os negócios do crime.
Os trabalhadores “não querem saber” o que bandidos fazem e como o fazem, e
estes procuram não se envolver e, sim, preservar os moradores quando estão às
voltas com rixas violentas e desacertos com grupos rivais.
Importante reter esses achados etnográficos: as linhas transversais que per-
passam os “mundos da ordem” e “os mundos bandidos” é algo que acompanha
a história urbana, não são de hoje, nem de ontem, tampouco uma peculiaridade
brasileira – fazem parte da história das grandes cidades, aqui e alhures. A rigor,
“mundos da ordem”, “mundos bandidos” são termos enganosos, podem sugerir
ordens normativas diferentes e separadas, com intersecções eventuais e episódicas.
Acontece que não são “mundos” diferentes. Mas um mesmo mundo social, um
mesmo ordenamento crivado internamente pelas suas diferenças, atravessado pela
multiplicidade de situações que não são fixas, que se deslocam e se reconfiguram
conforme tempos e espaços.14 Ordenamentos que se deslocam e se reconfiguram
também conforme as modulações da “gestão diferencial dos ilegalismos”, para
evocar aqui as questões discutidas no capítulo anterior. No registro das questões
que aqui estão sendo trabalhadas, a clivagem entre ilegalismos e crime.
É isso também que permite re-situar a relação entre “trabalhadores e ban-
didos”. A diferença é marcada e demarcada pelo “estigma” do crime, como diz
Alba Zaluar, da infração da lei, do nome marcado de alguém procurado pela

14
A história social é fonte valiosa de consulta para discutir essas questões. Ao comentar os
trabalhos de Boris Fausto, Sergio Adorno (2008) faz uma ótima resenha dessas discussões
e sua importância para o entendimento das relações entre cidade e crime. A pensar: os
historiadores, com sua inesgotável atenção aos detalhes, conseguem justamente encontrar
conexões, transversalidades, movimentos que, muitas vezes, escapam aos sociólogos regidos
por outras obsessões, como a do enquadramento conceitual, que produz uma noção de
ordem e normatividade que só pode mesmo existir pelas vias da “purificação”, como diria
Bruno Latour (1994), abstração ou corte desse amálgama de acasos, casos, ações, lutas,
coisas e circunstâncias ativados nas disputas, embates, jogos de força, tal como nos ensina
a verve nietzschiana de Foucault, e que, em algum momento, se sedimenta como estratos,
estratificações, norma e ordem.

233
polícia, que pode ser preso. Ou morto. Se há uma outra relação com a população,
há também uma outra relação com a polícia, diferente dessa muito peculiar cum-
plicidade (travejada de acertos letais) entre as forças da ordem e os justiceiros:
um jogo pesadíssimo de chantagem, extorsão e extermínio, que transborda para
todo bairro em que essas histórias acontecem.
Entre o “condomínio do diabo” e a “caça aos bandidos”, desencadeia-se
uma lógica de violência que transborda amplamente – ou pode transbordar – os
agenciamentos locais e as microrregulações nas relações entre trabalhadores e
bandidos. Ainda mais quando os assuntos do crime começam a envolver o rendoso
negócio das drogas, as disputas de territórios e um pesado pacto das dívidas e
cobranças que ultrapassam largamente o perímetro local. É o cenário das balas
perdidas, das mortes por engano, do toque de recolher nas áreas em disputa, dos
acertos de contas envolvendo assuntos e litígios que estão além desse jogo miúdo
das reciprocidades locais. Alba Zaluar (2004) descreveu essas situações no caso
do Rio de Janeiro. Do ponto de vista das questões que aqui estão em foco, vale
dizer que essas situações fazem com que a experiência da e com a violência mude
de patamar. Mas aqui já entramos em um outro momento.

Segundo momento, anos 1990: a erosão do mundo


do trabalho e os “matadores”

Cenário urbano: a chamada reconversão produtiva já é evidente na paisagem


urbana com o fechamento das grandes plantas industriais que pontilhavam a
zona sul cidade (e outras). Efeitos sociais: desemprego de longa duração, trabalho
precário, pauperização. Pelo lado urbano: amplos deslocamentos intraurbanos em
direção às pontas das periferias urbanas, tendo como resultado uma verdadeira
explosão demográfica nessas regiões da cidade, na forma de ocupações de terra
e o crescimento espantoso do favelamento, uma novidade na história urbana
paulista. Também: o recuo dos amplos movimentos sociais da década anterior e
das antes combativas Comunidades Eclesiais de Base, sem que por isso se tenha
arrefecido a conflituosidade urbana (conflitos de terra em regiões de ocupação,
desapropriação violenta de populações faveladas em regiões de valorização imo-
biliária, etc.). Ainda: o “malufismo” encarnado em duas gestões municipais (oito
anos), com efeitos deletérios nas periferias urbanas: mistura de truculência na
relação com os movimentos e organizações sociais, clientelismo, tutelagem, rela-
ções mafiosas com lideranças locais, além de corrupção sob modulações diversas,
acionando diversas ilegalidades e irregularidades nos agenciamentos urbanos
locais. O episódio narrado por uma líder comunitária em um bairro contíguo ao
Bairro X oferece um retrato contundente da época. Na gestão de Luiza Erundina
na Prefeitura de São Paulo (PT, 1988-1992) foi criado um Centro Comunitário
na região. Com a vitória de Maluf, isso foi destruído. No dia seguinte à vitória,

234
“eles” chegaram durante uma festa que acontecia no Centro: “vieram em bando,
ameaçaram de morte”, com indivíduos apontando armas de fogo para o pessoal
que estava lá, a começar da própria entrevistada. Do Centro, só sobrou a carcaça
– “eles levaram as portas, janelas, piso, telhas, tudo...”.
Os anos 1990 foram também inaugurados com a “polícia mais dura”, colo-
cada na rua pelo governador Orestes Quércia (1988-1991) e fortalecida pelo seu
sucessor e ex-secretário de Segurança Publica, Luiz Antonio Fleury (1991-1995).
Foi “aberta a temporada de caça aos bandidos”, como disse o novo comandante
da Polícia Militar no dia de sua posse, em 1989. Teresa Caldeira (2000: 173
e 180) nota: “na semana que se seguiu a essa declaração, a PM matou quatro
pessoas que não tinham antecedentes criminais”. Em 1991, já sob o governo
Fleury, a Rota, que havia sido desmobilizada pelo governo Montoro, recebeu novos
equipamentos, novos veículos. Teresa Caldeira também nota: “após a cerimônia
para incorporar novos veículos e antigos integrantes à corporação no começo
de dezembro de 1991, a Rota matou 20 pessoas em uma semana”. Em 1992, o
massacre do Carandiru, Casa de Detenção, então a maior prisão de São Paulo,
111 homens executados pela polícia militar.15 Em 1994, o comandante da PM
durante o massacre, coronel Ubiratan Guimarães, lançou-se como deputado es-
tadual. Junto com outros, compunha a “bancada da segurança”. Ele e Afanásio
Jazadi, de partidos diferentes, cuidaram, ambos, de ser identificados pelo número
111, o número de mortos no Carandiru. Teresa Caldeira (2000:180) comenta:
com isso, “deixaram claro não apenas o tipo de polícia que apoiam, mas quanto
espaço existe para endossar pública e diretamente a prática da violência”.
Nesses anos, a violência policial atingiu patamares altíssimos. Reafirmam-se e
acirram-se as questões dos anos 1980. A diferença em relação à década anterior
está em um contexto urbano atravessado pela precarização e desestabilização das
referências e coordenadas do mundo do trabalho. Situações próximas às descri-
tas em A Miséria do Mundo (Bourdieu, 1997): carreiras desfeitas, perspectivas
bloqueadas, incerteza quanto ao futuro, ainda mais quando este se refere aos
fi lhos. Um metalúrgico desempregado, 38 anos de idade, 15 anos passados em
uma das grandes indústrias da região, entrevistado em 1998, assim dizia: “a
gente espera o melhor (para os fi lhos), mas, do jeito como vão as coisas, eu não
sei, é jogar com a sorte...”. Nos vários depoimentos colhidos na época em que
este trabalho de campo foi realizado, impressionava algo como uma proximidade
discursiva entre a incerteza do desemprego, a imprevisibilidade da bala perdida
(“a gente sai e não sabe se vai voltar vivo”) e imponderabilidade do futuro dos
fi lhos (“é jogar com a sorte”).
Para os mais jovens, a questão já se colocava sob outros prismas. Vimos isso
no capítulo três. Não é o caso de refazer aqui essa discussão, mas de chamar
a atenção para dois pontos. De um lado, reafirma-se aqui, porém sob outras

15
Teresa Caldeira faz uma cuidadosa reconstituição dos fatos, bem como da cobertura da
imprensa, nos dez dias seguintes ao massacre.

235
configurações, uma questão que Alba Zaluar trabalhou com acuidade no início
dos anos 1980: o ponto crítico da passagem para a vida adulta, a recusa de
reproduzir o fracasso associado à vida dos pais, as incertezas quanto ao futuro
e a percepção das poucas ou nulas recompensas da “vida dura do trabalho”.
Nos anos 1990, a prevalência do trabalho precário sem remissão possível, vidas
declinadas no presente imediato (cf. Sennet, 2000), de tal maneira que a opção
pelo “ganho fácil” se colocava muito concretamente no horizonte desses jovens
que se lançaram na vida adulta, nessa década. Aqui, um segundo ponto: esses
também foram os anos em que o “bazar metropolitano”, para lembrar a discussão
do capítulo anterior, já tomava o centro das dinâmicas urbanas da cidade. E é o
caso de se perguntar também pelas relações entre o trabalho precário e a “lógica
do ganho” que rege a viração nos mercados informais e que opera, poderíamos
dizer, como senha para esse trânsito constante entre legal e ilegal, lícito e ilícito,
as mobilidades laterais de que se falou no capítulo anterior.
Isso é matéria de pesquisa. Na verdade, ainda se sabe pouco sobre as cir-
cunstâncias que desencadearam um ciclo espantoso de mortes violentas. Diria
mesmo que temos aqui uma caixa preta que ainda precisa ser aberta e investigada.
Mesmo supondo que, nesses anos, a erosão do mundo do trabalho desdobrou-se
nas mobilidades laterais da economia de bazar, que a lógica do ganho própria dos
mercados informais opera como senha nesse trânsito entre o informal, o ilegal e
o ilícito, isso está longe de oferecer uma explicação para as mortes violentas.
Estive em campo nessa mesma região, em 1995 e em 1998. Em três anos,
uma mudança notável no modo como homens e mulheres falavam da violência.
Em 1995, víamos confirmado o que os bons trabalhos de antropologia flagravam
nessas regiões: a violência sempre estava “do lado de lá”, na outra rua, outro
bairro, outro pedaço da cidade. Eram discursos lacunares, que projetavam a
violência para um outro lado, para “a favela ali do outro lado” ou, então, para um
lugar qualquer (“a violência existe em todos os lugares”). Era preciso um cuidadoso
esforço de indagação para saber algo da vivência com a violência cotidiana. Em
1998, a violência estruturava a narrativa que as pessoas faziam de suas vidas
e circunstâncias de vida, a referência surgia direta, sem que se perguntasse; o
registro de seus cotidianos estava inteiramente marcado pela violência de todos
os dias: gente morta por bala perdida, gente que morreu não, se sabe por que, no
bar ao lado, a contabilidade dos “defuntos” na esquina da casa logo cedo, quando
eles saíam para o trabalho. Além do temor de ver seus fi lhos optarem pelo “ganho
fácil”, o que introduzia uma sombra em projetos de vida organizados em torno da
família organizada (o modelo do chefe provedor, de que fala Alba Zaluar) e das
expectativas de progresso projetadas no futuro, agora incerto e imponderável,
dos fi lhos (agora, “é jogar com a sorte”).
O fato é que essa década foi acompanhada pelo aumento espantoso das mortes
violentas. Entre 1996 e 1999, a taxa de homicídios em São Paulo passou de 48,4
por 100.000 habitantes para 57,2. Um aumento de 18% em apenas três anos. Em
algumas regiões da periferia paulista, esses indicadores eram ainda mais altos,

236
assustadores: em 1999, no Jardim Ângela, eram 93,6 homicídios por 100.000
habitantes. M’Boi Mirim: 91,5. Jardim São Luiz: 89,3. Brasilândia: 88,1. Cidade
Tiradentes: 84,6. Grajaú: 87,2. Guaianazes: 78,7. Capão Redondo: 67,2.16 Em
termos absolutos, algumas centenas de mortes violentas por ano em cada distrito.
Alguns milhares, no conjunto da cidade de São Paulo. Em sua maioria, jovens
adultos, de 16 e 24 anos.
Esses índices são impressionantes, porém pouco dizem das dinâmicas que
presidiram o aumento das mortes violentas. Não se tem aqui a menor pretensão de
dar conta disso, muito menos de oferecer explicações. Mas não hesitaria em dizer
que, nesse terreno, boas etnografias haveriam de nos ajudar a entender um pouco
mais do que se passou nesses anos. No que segue, apenas algumas pistas.
Antes de mais nada, seria possível dizer que essa violência registrada em
seus vários indicadores (taxas, gráficos e evoluções, classificações, tipologias
e categorias) se decompõe em situações variadas, diferentes constelações de
forças (e relações de força) que carregam, cada qual, dimensões diversas que se
comunicam, que entram em ressonância umas com as outras e nas quais pulsam
as circunstâncias de nossa história recente.
Há histórias de litígios e conflitos cotidianos que terminam em soluções de
sangue. Desenlaces fatais do que é tipificado juridicamente como “motivos fú-
teis”, mas que, na verdade, colocam em cena pequenos-grandes dramas da vida
cotidiana, envolvendo parentes, vizinhos, conhecidos, moradores do entorno ime-
diato. Redes intrincadas de relações em que se misturam afetos, proximidades,
cumplicidades, acertos entre uns e outros em situações nas quais os acasos e as
urgências da vida parecem desestabilizar as regras das reciprocidades esperadas
na vida social (cf. Ferreira, 2006).
Acertos de conta e disputa de territórios por pequenos traficantes locais:
esses foram os anos em que a droga (cocaína) entra massivamente nas periferias
da cidade. Porém, diferente do que acontecia no Rio de Janeiro nessa mesma
época, a multiplicação de pontos de venda se fez de forma gradual, difusa, sem
o comando de grupos organizados que estruturassem o mercado varejista. Os
atacadistas vendiam a pequenos traficantes de bairro e as “biqueiras” eram
montadas aqui e ali, conforme as vontades, oportunidades e as possibilidades
de garantir o controle de uma “quebrada” ou outra. O varejo se multiplicou sob
modos diferenciados e descompassados conforme circunstâncias locais de cada
região da cidade, por vezes de cada bairro (Manso, 2005).
Histórias de gangues e quadrilhas locais: agrupamentos efêmeros e flutuantes
de jovens moradores de uma mesma “quebrada”, que se articulam (e desarticu-
lam) conforme circunstâncias, os casos e acasos, mas que podem desencadear
ciclos devastadores de uma violência acionada por uma mistura intrincada de
histórias de vingança, desafetos, desentendimentos, deslealdades, nem sempre

16
Fonte: PRO-AIM, SIM – Sistema de Informação sobre Mortalidade, Município de São
Paulo.

237
por conta de acertos do crime, porém sempre mescladas com “histórias infames”
(Foucault) que atravessam o cotidiano desses (e de quaisquer outros) bairros. Ao
que parece, parte do que, nesses anos, foi tipificado como chacina tem a ver com
essas histórias (cf. Manso, 2000): histórias de gangues de bairro, que se formam
nesse jogo ambivalente e mutante das lealdades e desafetos, entre negócios de
crime, desacertos pessoais, códigos de honra e a lógica da vingança.
Os especialistas se empenharam em construir tipologias, categorias e classi-
ficações para definir as várias modalidades de crime e medir o peso relativo de
cada qual no total das mortes violentas e suas evoluções na sequência dos anos.
No entanto, vistas sob outro ângulo, essas categorizações ficam todas esfumadas.
Nas histórias em que esses crimes acontecem, as situações se superpõem, se
desdobram umas nas outras, seus personagens transitam entre umas e outras,
as pontas de uma história se conectam com outra, os fios se enroscam em algum
outro ponto que dá lugar a mais um outro acontecimento e as clivagens seguem
outros critérios que não se encaixam nas categorias estatísticas e tipificações
jurídico-policiais que definem as modalidades de crime e criminosos.
Em seu estudo dos processos de homicídio, Inês Ferreira (2006) nota jus-
tamente que essas histórias implodem as tipificações. Um auto que poderia ter
sido classificado como “morte em família” apresenta situações que caberiam em
outras tipologias, de “justiceiros” ou “disputas entre criminosos”. Ou, então, o
contrário: processos de justiceiros nos quais os fatos estavam, todos eles, mistu-
rados com histórias de família e brigas de vizinhos. Depois de algum tempo, diz
Ferreira (2006: 28), “tínhamos a sensação de que todas as cópias arquivadas
no armário montavam uma cidade e que as testemunhas, réus e vítimas sobrevi-
ventes passeavam entre os diversos autos, entravam nas casas uns dos outros, se
encontravam nas festas, nas excursões para o litoral, embarcavam nos mesmos
ônibus, namoravam-se, casavam-se e matavam-se”.
Em 1995, Toninho, 25 anos, casado e com uma filha pequena, era um trabalha-
dor com futuro promissor. Carteira de trabalho assinada, promoções à vista, bom
salário e benefícios sociais em uma empresa imobiliária na qual exercia a função
de plantonista, em plantões de venda espalhados pela cidade de São Paulo. Uma
situação decididamente rara em uma época na qual o desemprego assolava a vida
dos trabalhadores e suas famílias. Nasceu e cresceu no Bairro X. Mudou-se depois
do casamento. No entanto, a família ainda permanecia no local; os pais e a irmã,
na época casada com um indivíduo obscuro sobre quem não conseguimos saber
muito, apenas que tinha saído da prisão havia pouco tempo, que estava envolvido
com uma gangue de bairro e que era um tanto violento. Assim nos foi contada a
história: após uma briga de família, a irmã queria se separar e o moço passou a
ameaçar a todos, dizendo que voltaria para matar a esposa, pai e mãe, irmãos e
mais quem estivesse pela frente. Esse foi o estopim para uma guerra de gangues
que se prolongou por mais de cinco meses. Frente à ameaça, Toninho procurou
a “rapaziada” do bairro. E o assunto foi resolvido à bala. O que, no início, era
uma história de “defesa da família” virou uma guerra entre duas gangues rivais.

238
Tentamos reconstituir essa história em seus detalhes. Uma história especialmente
interessante, pois com ela pudemos flagrar as dinâmicas que parecem ter presidido
a ação de gangues de bairro que se formavam em torno de episódios como este.
Por ora, por economia de texto, interessa apenas marcar alguns pontos que aqui
importam para chamar a atenção para a transitividade de seus personagens e a
superposição de situações que torna impossível enquadrá-las em uma tipologia
pré-definida de crimes e criminosos.
Para Toninho, familiares e moradores que acompanharam a história, a “defesa
da família” era uma regra de ouro que não podia ser transgredida. Ele não tinha
outra saída, diz uma moradora. Era isso ou era a morte de todos, diz Toninho.
Foi o argumento que levou a “rapaziada” a sair em sua defesa. Quanto aos “ra-
pazes”, eles “tomavam conta” da área. Uma jovem dona-de-casa, na época ainda
adolescente, quase criança, lembra de um deles: “ele tinha consideração pelas
pessoas, ajudava os moradores, comprava remédio quando alguém ficava doente”.
Ele mantinha um armazém bastante frequentado pelo pessoal do bairro. Nos
dias de maior movimento, uma ou outra das garotas do bairro ajudava no balcão,
principalmente nos fins de semana, quando, então, o balcão se transformava em
bar e o programa ia noite adentro, animado por um grupo de pagode formado
por gente da região. Um outro mantinha um lava-rápido, ponto de encontro para
muitos da mesma idade. Eram todos muito jovens, conhecidos dos moradores,
namoravam as garotas do pedaço, frequentavam as famílias. E ajudavam, quando
era o caso. Foi assim com Aline, uma garota ainda quase adolescente, não mais
que 16 anos, com um fi lho pequeno. Aliás, o pai da criança tinha sumido do
pedaço. Ainda antes do nascimento, o rapaz cismou com um outro, achava que
estava dando em cima da namorada, foi lá tirar satisfações e o desfecho foi fatal,
o outro morreu e ele teve que sair, fugido, do bairro. Se ficasse lá, os “meninos”
não iam deixar isso passar, diz Aline, quase por acaso, quando perguntamos
pelo pai de seu fi lho, no meio de uma longa entrevista em que ela contava suas
próprias histórias e as histórias do Bairro X. A mãe e as irmãs ajudavam a cuidar
da criança. Os “meninos” também. Um deles, ela lembra, adorava o molequinho,
levava presentes, ajudava com as despesas do dia a dia (fraldas, leite, medicamen-
tos). Ninguém perguntava de onde vinha o dinheiro, mas isso não tinha lá muita
importância. E, quando surgia uma oportunidade, Aline ainda ganhava algum
dinheiro, trabalhando no balcão do armazém nos fins de semana.
Cada qual carregava uma história particular, um desses acidentes de percurso
que os levaram a tomar rumo nos caminhos tortos da vida: uma briga de bar que
deu em história de sangue, a defesa de um parente próximo metido em alguma
encrenca, a revolta e o revide contra os que mataram um irmão, família de tra-
balhador, pai cobrador de ônibus, tudo certo e, de repente, vai tudo para os ares.
Cada um, uma história. Cada história, um ponto de não-retorno. E, conforme
os casos e acasos da vida, se juntavam em uma parada comum. Ou, então, para
resolver algum assunto mais sério. Era assim que os bandos se formavam. Foi
isso o que aconteceu nesse episódio.

239
Depois de cinco meses, muitas mortes e a gangue inimiga vencida, Toninho já
estava inteiramente envolvido com seus novos parceiros. A guerra havia provocado
muitas mortes, ganhou o noticiário policial da época e ele, Toninho, estava com
o nome marcado: era procurado pela polícia. Além do mais, fora capturado pela
lógica da vingança, cativo do “condomínio do diabo”.
A essas alturas a gangue estava se transformando efetivamente em uma qua-
drilha. O que era um bando que se formava conforme casos e acasos das cir-
cunstâncias, por entre o jogo de lealdades e cumplicidades de bairro, estava se
convertendo aos negócios do crime: coisas de armas e drogas, diz Toninho. O
negócio não foi muito longe. Logo depois, Toninho foi preso por conta de uma
episódio rocambolesco, impossível de ser reconstituído nos limites destas páginas.
Foi um assunto de morte encomendada por um outro grupo bandido. A recom-
pensa era generosa: dinheiro, um carro, talvez um apartamento novo. Enfim, esse
trabalhador que virou justiceiro (defesa da família), que virou bandido, também
virou um pistoleiro, matador. Foi preso, julgado, condenado, passou seis anos na
prisão e fugiu. Tornou-se um foragido. E foi nessa condição que ele retornou ao
Bairro X. Era o ano de 2001. Ainda tentou montar um negócio por conta própria.
Uma barraca de pastéis, que ele montou junto com a sua jovem e recente esposa,
antiga namorada dos tempos da “guerra dos cinco meses”. Levantou, digamos
assim, “capital” pelos expedientes bandidos: assalto a caminhões de carga nas
avenidas de São Paulo, roubo de caixas eletrônicos. Não conseguiu ir em frente
em seu firme propósito de levar uma vida certa, mesmo que por vias tortas. A
polícia não deixava: o jogo de pressão, chantagem e extorsão foi pesado. Como ele
mesmo diz, a polícia conhece muito bem “a mente” de um ex-presidiário, ainda
mais um foragido: ele faz qualquer coisa para evitar a volta à prisão. Fechou o
negócio, perdeu dinheiro e ainda teve que usar o carro de um cunhado no acerto
com a polícia. Depois de um tempo de destino incerto, Toninho transformou-se
no patrão de um ponto de droga, uma “biqueira”, instalada no Bairro X nesses
anos. Na virada dos tempos, Toninho tornou-se traficante.
Os seis anos em que esteve preso o preservaram da sucessão de mortes que
devastaram o Bairro X, finda a guerra das duas gangues inimigas. Histórias de
vingança e desafetos em torno de assuntos menores, misturados com os negócios
do crime. É nesse cenário que a figura negativa do matador ganha seus contornos
mais claros, dilui-se a ambivalência que pode haver nas “histórias minúsculas”
dessas vidas bandidas. São assim nomeados esses tipos que estão inteiramente
cativos em um ciclo fechado entre, de um lado, histórias de sangue e a lógica
da vingança e, de outro, a truculência da ação policial: chantagem, extorsão,
extermínio.
Zélio era assaltante de bancos. Especializou-se em assalto a caixas eletrôni-
cos. Naqueles anos, havia uma verdadeira onda de caixas eletrônicos não apenas
arrombados, mas simplesmente levados embora. Uma operação nada simples,
diga-se, que conferira grande prestígio a seus autores. Pois, então, Zélio era um
bandido de conceito, conceito elevado na hierarquia de prestígio e fama entre os

240
homens do crime. No Bairro X havia uma partilha entre os bandidos de conceito
e os matadores. Partilha um tanto quanto embaçada pelas relações de proximi-
dade, vizinhança, laços de lealdade e cumplicidade, além do fato de uns e outros
transitarem entre um lado e outro, proximidades e afetos de um lado e de outro.
Assim nos foi contado: Zélio e seus parceiros tentavam manter distância em relação
aos outros, vistos como gente muito violenta. Não foi possível saber quais eram
os negócios criminosos desses outros, provavelmente uma mistura de assaltos,
furtos, droga, talvez armas. Eram matadores, assim nos foi dito, exatamente nesses
termos. Em contraposição, o retrato que nos fizeram do rapaz era algo próximo
ao “bom bandido”: não gostava de usar armas, recusava soluções violentas, era
generoso com os seus ganhos (ajuda a uns e outros mais necessitados, presentes,
manutenção das despesas de sua família), além de ser “muito educado”.
Zélio foi executado pela polícia. Dois tiros na nuca quando estava em operação,
em um assalto a um caixa eletrônico. Dizem: foi “trairagem” e desentendimentos
com a polícia em torno do acerto na partilha dos ganhos. Nós estávamos em cam-
po quando isso aconteceu. Soubemos do fato através de uma certa Dona Cida,
sogra do bandido morto. Na época, era o início do nosso trabalho de campo e
foi aos poucos, no andamento de nossa convivência no local, que pudemos saber
um pouco mais sobre o que se passava no Bairro X, naquele momento. Dona
Cida era quem nos acolhia em nosso trabalho de campo, nos apresentava aos
moradores, nos acompanhava em muitas das entrevistas. Era dela que falávamos
quando comentamos a convivência dos justiceiros com os moradores. Nos anos
1980, sua casa (assim como outras) era frequentada pelo Justiceiro Joel. Nos anos
1990, assim como ela fazia no caso dos justiceiros, não poucas vezes se metia
no meio das desavenças locais para evitar o pior. Micro-histórias muito confusas,
impossíveis de serem reconstituídas: histórias de rumores nem sempre fundados,
“tudo besteira”, um diz-que-diz em que os negócios do crime misturavam-se com
desafetos, desentendimentos pessoais, disputas amorosas, histórias de vingança
pessoal ou, então, valentia dos que queriam impor respeito por conta de um assunto
qualquer. Eram histórias que se misturavam com as histórias do bairro, com os
parentes, com os vizinhos, com os amigos mais próximos, com a própria família.
Assim ela conta e outros confirmam: não poucas vezes, ela interferia, conversava,
às vezes se punha na frente, fazia de tudo para proteger um e outro sob ameaça
ou jurado de morte, tentava convencer de que as coisas tinham que “andar pelo
certo”. Dona Cida se metia no meio das histórias bandidas. Mas também enfrentava
a polícia: ali, como em todos os outros lugares, episódios recorrentes de batidas
policiais, uso da violência armada, ameaças, espancamento, execução. Quando
via alguém sendo pego, levando um “esculacho”, ela se metia na frente, de dedo
em riste, falava alto, dizia que iria denunciar. Outras vezes, entrava na viatura
na marra, dizendo que iria acompanhar o detido até a delegacia. Ou, então, até
o hospital, quando alguém era baleado, às vezes entre a vida e a morte.
Naqueles anos, início dos 2000, Dona Cida já estava distante dos movimentos
sociais e articulações políticas da década de 1980. No entanto, continuava a atuar

241
como uma liderança comunitária muito ativa na região. Capitaneava programas
de distribuição de leite e cestas básicas, organizava as atividades de uma asso-
ciação comunitária da qual era uma das fundadoras (ainda nos anos 1980); e era
ela quem fazia as articulações dos moradores com vereadores de base local em
época de eleição, negociando a agenda de melhorias para o Bairro X (postes de
luz, canalização de esgoto a céu aberto, campo de futebol, programas sociais).
Dona Cida era um muito eficiente cabo eleitoral, transitando com desenvoltura
pelos corredores e salas da Câmara dos Vereadores.
Dona Cida também participava do Conseg, Conselho Comunitário de Segu-
rança, vinculado à Secretaria de Segurança Pública do Governo do Estado.17 Era
um jeito, assim ela nos explicou, de contribuir para diminuir a violência policial
na região. Depois da execução do Zélio, ela não mais voltou às reuniões. “Fiquei
muito decepcionada”, diz ela, “não adiantava para nada”. Dona Cida ficou muito
abalada com a morte do rapaz: ele frequentava a sua casa, era marido de sua
filha, pai de um bebê de poucos meses e ela tinha-lhe “muito apreço”. Ela dizia
e repetia a cada vez que o episódio vinha à baila: “ele não estava rezando missa”,
é certo, mas, então, “deveria ter sido preso e julgado, não executado”.
Dona Cida pode ser tomada também como um personagem urbano cujos per-
cursos transitam entre o legal e ilegal, também entre as esferas da ação política
e os agenciamentos locais feitos de um intrincado de relações que embaralham
as fronteiras entre o “os mundos da ordem” e os “mundos bandidos” enredados
nas circunstâncias locais por onde também circulam afetos, lealdades, cumpli-
cidades construídos em torno dos casos, dos acasos e microacontecimentos que
fazem a tessitura da vida cotidiana. Personagens como Dona Cida são comuns
nesses lugares. Desempenham um papel importante nesses agenciamentos locais,
nos pontos em que se entrelaçam as forças da ordem, os ilegalismos difusos e a
clivagem do crime.
Formas de gestão da ordem local. Mas esses são equilíbrios frágeis e incertos
por conta de uma violência que transborda essas microrregulações. De um lado,

17
Participam dos CONSEGs (criados por decreto estadual em 1985), o Delegado de Polícia
Titular e o Comandante da Polícia Militar (membros natos), no bairro ou município onde cada
um deles funciona, além de “representantes dos poderes públicos, das entidade associativas,
dos clubes de serviços, da imprensa, de instituições religiosas ou de ensino, organizações
de indústria, comércio ou prestação de serviços, bem como outros líderes comunitários que
residem, trabalham ou estudam na área de circunscrição do respectivo Conseg”. Assim
são definidos seus objetivos: “os CONSEGs são grupos de pessoas do mesmo bairro ou
município que se reúnem para discutir e analisar, planejar e acompanhar a solução de
seus problemas comunitários de segurança, desenvolver campanhas educativas e estreitar
laços de entendimento e cooperação entre as várias lideranças locais. Cada Conselho é uma
entidade de apoio à Polícia Estadual nas relações comunitárias, e se vincula, por adesão, às
diretrizes emanadas da Secretaria de Segurança Pública, por intermédio do Coordenador
Estadual dos Conselhos Comunitários de Segurança” (www.conseg.sp.gov.br – acessado
em 09/12/2009).

242
o campo de tensão e fricção que pode existir na convivência entre trabalhadores
e bandidos, para retomar a discussão de páginas atrás, com seus ambivalentes
códigos de distância e proximidade. O fio da navalha no qual parece se estruturar
uma ardilosa gestão da ordem local desdobra-se em uma gestão dos assuntos de
vida e de morte. Os percursos de Dona Cida podem ser lidos nessa chave, seus re-
latos estão sempre permeados por um esforço (no seu caso, incansável) de agenciar
os afetos, as lealdades, as cumplicidades, e também as reciprocidades, quando
estavam envolvidos os jogos de ajuda mútua, para evitar o desfecho de sangue
de desafetos e desentendimentos locais em torno dessa nebulosa de relações nas
quais estão enredados os negócios do crime. A figura do matador, tal como ele
comparece nessa espécie de tipificação popular, linguagem nativa como diriam
os antropólogos, dá a cifra da lógica de uma violência que transborda e implode
esses agenciamentos da ordem local. Há a lógica devastadora da vingança, o
“condomínio do diabo”, é certo. Mas ainda será preciso perscrutar mais o que
aciona essa lógica, pois nos desacertos nos negócios do crime inscrevem-se jogos
pesados de poder implicados nas práticas da extorsão policial, mas também,
ao que parece, um verdadeiro mercado de execuções a mando que replicava a
violência muito além dessas microrregulações.18
De outro lado, e ao mesmo tempo, o desconcerto de dona Cida com a execução
do bandido Zélio e a “decepção” com o Conseg dizem algo dos ordenamentos
sociais que se fazem nesse terreno incerto, crivado pela violência policial, a qual
desloca os próprios sentidos de lei e de ordem. “Ele devia ter sido preso e jul-
gado, não executado”: o que está posto nesse modo de se referir à lei são pontos
de fricção que expõem não propriamente os limites da lei (uma lei que não é
aplicada), mas a sua torção em práticas de exceção.
Duplo registro de violências que se comunicam e que atravessam, por dentro,
as vidas dos homens e mulheres que habitam esses territórios. Este o solo onde
se ancoram as práticas e procedimentos pelos quais, nos anos 2000, se tentará
frear os ciclos incontroláveis da violência, já sob a dinâmica das reconfigurações
do mercado varejista da droga.

***

Na virada dos anos 2000, na cena urbana na qual já atua o traficante Toni-
nho, o matador ganhará outras designações, sob a lógica de uma outra economia
interna aos ilegalismos urbanos, agora regida pelo mercado de drogas ilícitas: o
“Coisa” ou “Verme”, aquele que não sabe respeitar “o lado certo da coisa erra-
da”, que não segue o “proceder”, cuja definição, como diz Daniel Hirata (2010),
não é categorial nem moral, é sempre contextual e situacional. São figuras que
sinalizam um limiar que está sempre prestes a ser ultrapassado, acionando ciclos

18
Devo a Fernando Salla essa informação.

243
devastadores de violência, os “mata-matas” que acompanharam toda a década
de 1990. É também por referência a essa cena que é possível qualificar o que
está inscrito em uma fala que diz: ou se respeita o lado certo da coisa errada ou
morremos todos. Gestão dos limites da vida e da morte. No contraponto entre
o matador e o traficante, talvez, se tenham pistas a seguir (algumas delas) para
entender a lógica que passa a presidir essa espécie de pacificação dos territórios
nos quais o mercado da droga, nos anos 2000, passou a se estruturar. Mas, aqui,
entramos no terceiro tempo.

Terceiro momento, anos 2000: novos ilegalismos e o traficante

É o cenário urbano descrito no capítulo anterior. Lembrando: modernização


urbana e a confirmação da cidade como centro econômico de primeira grande-
za. Ao mesmo tempo e no mesmo passo, a expansão de uma malha intrincada
de ilegalismos, acompanhando as novas formas de produção e circulação de
riquezas, que se delineia em um comércio informal redefinido, nas fronteiras
porosas do legal-ilegal, de que o contrabando, a pirataria e ilícitos variados são
exemplos conhecidos. É nesse cenário que o mercado varejista da droga se orga-
niza. Momento em que se dá o transbordamento do PCC para fora das prisões,
acompanhando a expansão e maior articulação do varejo da droga nas periferias
da cidade. Mas isso também significa dizer: a expansão da economia da droga
e suas capilaridades no mundo urbano acompanha a aceleração dos fluxos de
circulação de riqueza, para evocar uma ordem de questões que vai além do que
essa formulação um tanto vaga pode sugerir. Seria preciso, portanto, colocar a
expansão do varejo da droga em perspectiva com uma trama urbana redesenhada
pelas novas figuras dos mercados informais e ilegais, e seus modos de regulação,
quer dizer: os mercados de proteção e práticas de extorsão constitutivos desses
mercados. Essa foi a questão tratada no capítulo anterior.
Esses também foram os anos de endurecimento penal e do chamado encar-
ceramento em massa. Do lado de dentro, a superlotação explosiva da população
carcerária, acirrando ainda mais a catástrofe exposta nas condições sub-humanas
e nas opressões variadas impostas aos detentos. Do lado de fora, a experiência
carcerária que circula amplamente, que passa por dentro das famílias, pelas redes
de parentelas e vizinhanças, e se desdobra nos circuitos da sociabilidade local.
Como foi visto no capítulo anterior, a prisão tornou-se uma referência urbana e
passou a compor uma cartografia ampliada dos circuitos populares. Entre um lado
e o outro dos muros, os “vasos comunicantes’’, como diz Rafael Godoi (2009), por
onde circulam percepções e experiências de coerção dentro e fora das prisões,
junto com comportamentos, códigos e condutas (Salla, 2009).
Do lado de dentro, o surgimento das facções criminosas e do PCC é questão
mais bem conhecida. O mesmo não se pode dizer do transbordamento da he-

244
gemonia do PCC para fora das prisões, acompanhando a maior articulação do
mercado varejista da droga no conjunto da cidade, em particular, nas periferias
urbanas. Essa é questão de pesquisa e vai muito além do que se propôs aqui fazer.
De toda forma, vale dizer que é questão a ser prospectada nos pontos de junção
de histórias e cronologias cruzadas, cujos elos ou nexos seria preciso prospectar:
a história interna ao PCC e a história das prisões da qual as rebeliões nos dão
uma cronologia a ser seguida; os circuitos transnacionais da economia da droga,
seus modos de territorialização e articulação com agrupamentos criminosos; a
história urbana e suas evoluções recentes. É dessa última, a história urbana, que
este capítulo se ocupa, sob um ângulo muito peculiar, seguindo os rastros de seus
personagens bandidos.
Aqui, nesse terceiro momento, o nosso posto de observação é a “biqueira”
que se instalou, nesses anos, no Bairro X. Reatando o fio da meada: os percursos
do trabalhador que virou bandido, que virou presidiário, depois, foragido e, por
fim, um pequeno traficante de bairro.
No momento em que encontramos Toninho, a situação era ainda incerta. Lem-
brando o ponto em que o deixamos no último tópico: a extorsão da polícia. Uma
microcena que interessa reconstituir, pois ela contém elementos interessantes,
pelo que sugere das lógicas que, assim nos parece, presidiram a contenção dos
crimes violentos na região, a pacificação (relativa) desses territórios.
Toninho disse que a polícia o seguiu por semanas, uma viatura sempre presente
nas proximidades de sua casa. Ele foi pego e abriu-se a negociação para o “acerto”.
Um procedimento recorrente nessas situações: é dentro da viatura policial que
o acerto é feito, sob a ameaça (chantagem) de se levar o detido para a delegacia.
Toninho diz que os policiais mostraram que sabiam muito de sua história recente
e dos anos anteriores, ainda dos tempos da “guerra dos cinco meses”: nomes,
lugares, parceiros, além de detalhes que poucos conheciam. Toninho desconfiava
de “trairagem”. Em um primeiro momento, diz ele, tentou saber alguma coisa,
mas outras suspeitas apareceram: um emaranhado de histórias confusas em que
os negócios do crime misturam-se com desafetos pessoais, com ecos dos tempos
da “guerra dos cinco meses”. Resolveu deixar tudo por isso mesmo, no que foi
aconselhado pelos parceiros: “vou falar para vocês, se eu descobrisse, iria ter lá
[no Bairro X) tantas mortes como nunca ninguém viu ...”. Quer dizer: a guerra
haveria de recomeçar. Naquele momento, foi bloqueada a lógica da vingança que,
sempre, abre um ciclo infernal de mortes sucessivas, a guerra como se diz.
Nessa ponderação havia um jogo de circunstâncias que apenas algum tempo
depois tivemos condições de entender com mais clareza. O Bairro X era o epi-
centro de uma disputa de território que, naqueles meses, estava sendo negociada
e arbitrada; desenlaces fatais estavam sendo evitados, mas poderiam acontecer a
qualquer momento. É justamente isso, precisamente isso, que estava em jogo na
decisão de não saber (ou não confirmar) quem cometeu a traição em um assunto
que afetava os negócios do crime, mas que passava, na verdade, por outras ques-
tões. O ponto de venda estava “vago” por conta da morte de muitos (quase todos) e

245
a prisão de alguns dos que, nos anos anteriores, tinham o comando dos negócios
do crime no Bairro X. Mas havia “os de fora”, que estavam querendo ocupar o
lugar. Esse foi assunto de um “debate” que se prolongou por vários dias.
Toninho e seus novos parceiros, todos eles também moradores antigos do
bairro, assumem o comando do ponto de droga do bairro. Assim nos foi dito: ou
isso ou “o pessoal de fora” tomaria conta. E daí, seria, novamente, a guerra.
Não temos condições de saber sobre os bastidores dessa microcena e os
meandros pelos quais o mercado varejista da droga estava, naqueles anos, se
estruturando já sob forte influência do PCC. Porém, não é irrelevante notar que,
no distrito do Jardim São Luis, acompanhando uma tendência evidente no con-
junto da cidade de São Paulo, a curva até então ascendente das mortes violentas
tem uma fortíssima inflexão para baixo justamente nesses anos, entre 2002 e
2003, despencando de forma acentuada nos anos que se seguiram. Isso ocorre
de uma forma geral em quase todos os distritos da cidade de São Paulo. E é uma
tendência particularmente nítida (e, nesse sentido, impressionante) justamente
nos distritos que apresentavam as taxas mais altas de homicídios:

Taxa Geral de Homicídios (por 100 mil hab) nos Distritos da Cidade de São Paulo

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007

Parelheiros 106,6 120,8 113,0 80,8 66,7 51,3 35,3 11,2

Cidade Tiradentes 102,9 69,9 50,3 54,4 27,9 20,8 10,0 9,3

Guaianazes 102,7 96,4 117,1 90,3 58,2 27,8 21,9 11,4

São Mateus 91,7 66,4 63,7 57,8 33,3 33,9 37,1 16,0

Jardim Ângela 91,0 110,6 90,7 81,5 56,6 40,8 32,2 18,9

São Rafael 81,8 70,6 62,1 59,3 43,3 24,5 27,7 10,5

Cachoeirinha 88,2 71,2 79,8 62,0 49,0 33,0 46,4 17,3

Grajaú 86,2 107,1 92,2 88,0 69,8 39,5 29,0 15,4

Vila Curuçá 80,0 67,0 64,3 42,5 35,5 38,5 17,5 10,3

Brasilândia 87,5 84,8 60,8 59,7 58,9 44,9 34,7 18,7

Jardim São Luís 84,6 89,2 90,4 77,0 54,1 33,6 29,1 17,4

Ermelino Matarazzo 68,4 49,3 42,6 38,7 32,1 22,8 13,6 3,6

Sapopemba 73,0 61,1 53,8 52,5 27,5 18,1 15,6 8,3

Município de SP 57,3 57,1 51,5 47,3 36,0 25,9 21,4 12,1

Fonte: PRO-AIM/SMS-SP, IBGE e Fundação SEADE

246
Não seria arriscado dizer que os picos de homicídios nos primeiros anos de
2000, com variações interessantes a serem prospectadas conforme regiões e distri-
tos da cidade, correspondem a disputas violentas pelos pontos do varejo, mas que,
depois, nos anos que se seguiram, parecem ter sido desativadas ou, no mínimo,
estabilizadas sob formas não violentas ou menos violentas, tal como sugere essa
microssituação, aqui descrita. É uma história muito recente e que ainda terá que
ser mais bem compreendida. Tudo indica, no entanto, que foi justamente nesses
anos que o PCC passou a controlar o mercado varejista da droga, algo que parece
ter ocorrido entre 2002 e 2003. Isto é, após a consolidação da hegemonia do
PCC no mundo prisional, depois de sangrentas disputas entre facções crimino-
sas nas prisões (Dias, 2009). O fato é que há uma clara sintonia, nesses anos,
entre a diminuição das mortes violentas nas prisões e fora delas. Nas prisões, a
presença do PCC acarretou rearranjos internos consideráveis, acompanhados de
procedimentos postos em ação para frear as mortes entre os presos (cf. Marques,
2009; Biondi, 2010). Fora das prisões, os famosos debates e modos de gestão
das turbulências conflitivas nos pontos de intersecção dos assuntos do crime e
as circunstâncias da vida cotidiana nas periferias da cidade.
Seria possível dizer que isso tem a ver com imperativos próprios da estrutu-
ração do varejo da droga, o qual, como todo mercado, tem suas próprias formas
de regulação. Mas também se poderia arriscar e dizer – e essa é, na verdade, a
hipótese de trabalho com a qual estamos lidando – que, para além das “razões
instrumentais”, há também uma gestão da ordem que transborda os “negócios
do crime”, na própria medida em que essa pacificação afeta os mundos sociais
nos quais o varejo da droga se ancora. O mercado, também o de bens ilícitos,
não é uma entidade abstrata, regida por uma razão instrumental desencarnada:
supõe e, ao mesmo tempo, produz, engendra, uma trama complexa de relações,
interações e intercâmbios sociais.
Reatando o fio da meada: o contraponto entre o “matador” e o traficante dá a
pista para se entender o que está em jogo nessas práticas, sob uma lógica regida
pelo esforço em bloquear, frear, a lógica devastadora do “mata-mata” da década
anterior. Vale aqui retomar o ponto deixado em aberto páginas atrás, quando
Rodney, o pequeno ladrão que virou traficante, comenta a figura do matador (e
do justiceiro):
“Se você mata ele e não era para o cara morrer, aí você também vai morrer,
é a guerra”. Nessa frase, que ouvimos, com variações, muitas vezes, ao longo do
trabalho de campo, temos uma chave para compreender a lógica da vingança que
é preciso estancar de acordo com as “leis do crime”: o “andar pelo certo”, como
se ouve dizer, também de forma recorrente. “Andar pelo certo” diz respeito a um
conjunto de códigos e regras não-normativos que definem a “atitude” do “homem
de proceder” e regem os modos de lidar e se colocar nas situações. Do ângulo
de visão dos “homens de proceder”, essa a diferença em relação ao matador (e o
justiceiro), que mata por “maldade”, que é “covarde”, que mata apenas porque
cismou com um outro. Rodney diz: “não é assim não, tem que ir lá na quebrada,

247
de mente aberta, vamos trocar uma ideia para não acontecer o pior...”. Na ver-
dade, é mais do que isso, pois envolve um intrincado jogo de relações nas quais
os negócios do crime são geridos e arbitrados nos casos de desavenças, descon-
fianças, desacertos (cf. Marques, 2009). Por ora, no contexto das questões aqui
discutidas, essa marcação é suficiente para indicar a diferença entre o traficante
e o matador (e o justiceiro) que são, neste texto e no contexto da discussão que
aqui vem sendo feita, os personagens urbanos cujos rastros tentamos seguir.
Rodney diz:

[...] eu acho que o crime começou a evoluir, as pessoas começaram a entender


o que é certo e o que é errado, e viram o que é o certo... Agora, no crime,
hoje em dia, nós cuidamos da área em que nós vivemos. Vamos dizer, nós não
deixamos eles [os matadores] virem zoar, a gente tenta ir lá trocar uma ideia
com eles, para não morrer.
Nós somos assim. É lógico, até na rua, para não ter esse negócio de pilantragem,
do cara que chega e diz “eu vou matar”. Então, é o certo.

Existe uma “lei do crime”, diz Rodney, “é preciso andar pelo certo”. E com-
plementa:

[...] agora, se está errado, já sabe, ou desencosta de nós, ou ele vai morrer.

Poderes de soberania agora ativados pelos homens do crime na gestão dos


territórios e dos negócios da droga: “poder matar, deixar viver”. Porém, poderes
soberanos que passam por mediações, que ativam a teia de relações envolvidas
em cada caso. Não é aplicação tirânica de alguma regra pré-definida ou puro
arbítrio ou capricho de cada um: “vamos lá trocar uma ideia”. Essa expressão,
“trocar uma ideia”, circula no mundo bandido, dentro e fora das prisões. O “trocar
uma ideia” é sempre situacional, tem modulações variadas, conforme a gravidade
do assunto, a natureza das relações e comprometimentos implicados, envolvendo
desacertos ou litígios a serem resolvidos sob uma forma de arbitragem, também
esta variável. O “debate” é uma delas, a mais importante.
Importante notar: em todas essas ponderações sobre a “lei do crime” e o
imperativo de “se correr pelo certo” (do contrário, se morre, “é a guerra”), os
nossos entrevistados foram cuidadosos com as palavras. No momento em que as
entrevistas foram realizadas (2005), falar e nomear o PCC, ao menos naquela
região, era ainda algo que se fazia à meia voz, num tom abaixo no correr da
conversa, o cuidado de não dizer (e ser ouvido) o que, talvez, naquele momento,
ainda fosse percebido como o que não poderia ser dito. Muito diferente do que
aconteceria pouco tempo depois. Mas não é esse o ponto. Pois ambos falam em
nome próprio. Quer dizer: falam na ótica da “lei do crime”, e esta é anterior ao
PCC e muito anterior à hegemonia que este conquistou no universo carcerário e
fora dele, o controle que passou a exercer sobre o mercado varejista da droga em

248
São Paulo. Adalton Marques faz uma cuidadosa descrição dos usos desse termo
no universo carcerário – usos enquanto substantivo, “o proceder”, usos enquanto
adjetivo, “o cara de proceder” – que definem, nesse duplo registro, as “regras
do convívio”, que são anteriores ao surgimento das facções.
São práticas em grande medida pautadas (e conformadas) pela experiência da
prisão: os códigos, os procedimentos, os interditos e o famoso debate, tudo isso
aparece, primeiro, nas prisões, e isso ao longo dos anos 1990, sobretudo a partir
da segunda metade da década, mais intensamente nos anos 2000. As regras do
“proceder” compõem o repertório do “mundo do crime”, desde há muito. Iremos
encontrá-las nas situações descritas por Ricardo Ramalho no seu então inovador
Mundo do Crime (1979). Os relatos de prisão estão perpassados por elas. O es-
pantoso Memórias de um sobrevivente, de Luiz Alberto Mendes (2001), trinta anos
passados atrás das grades, contém um manancial precioso (e impressionante) de
informações para se compreender a lógica situacional e relacional (não normativa,
não categorial) do proceder, posta em ação em situações que se desenrolam no
fio da navalha, sempre, entre a vida, a morte e também a loucura.
Isso aparece igualmente nos vários relatos que nós próprios obtivemos de
experiências carcerárias. Recupero aqui questões que estamos trabalhando, Da-
niel Hirata e eu, a partir desse material. Uma trama de relações pautadas pelas
regras não escritas do “proceder”: modos de lidar com situações adversas, de
se conduzir nas incertezas, de contornar os riscos e não sucumbir face às en-
grenagens dessa verdadeira máquina de destruição que é o universo carcerário.
Em cada situação, ganham forma os limiares que não podem ser ultrapassados,
mas que estão sempre prestes a serem ultrapassados e que são ultrapassados por
aqueles que quebram, sucumbem, se deixam capturar pela “maldade” reinante
(é “tudo maldade”, eles dizem, sempre) e viraram um “Coisa” ou um “Verme”: o
cagueta, o traidor, o dissimulado, o matador de cadeia, o que pratica a covardia,
o que não cumpre a palavra empenhada. É assim que são designadas todas essas
figuras que povoam o universo carcerário e que operam como marcadores de
um limiar que pode a qualquer momento ser ultrapassado, e que é ultrapassado
por aqueles que não sabem respeitar o “lado certo da coisa errada” e que, sendo
assim, se tornam operadores das várias violências que ameaçam todos e cada
um, capturados eles próprios pelas engrenagens de destruição acionadas no uni-
verso carcerário. Como bem nota Fernando Salla (2009), a questão das “vidas
sacrificáveis”, homo sacer, é central para entender a dinâmica interna das prisões
e as mútuas ressonâncias do que acontece dentro e fora de seus muros, mortes
perpetradas por forças policiais e por agentes penitenciários, mortes entre os
próprios presos, muitas vezes sob formas fortemente ritualizadas, cujo simbolismo
e sentidos ainda é preciso entender.
O reflexivo Rodney sempre repetia ao longo de sua entrevista: “era tudo mal-
dade”, “você não sabia se ia amanhecer vivo ou morto”:

249
[...] você não sabia se ia amanhecer vivo ou morto... você briga com a morte
todo o dia, 24 horas, ela sempre quer te pegar... à noite, quando fecha a
tranca,você não sabe o que vai acontecer no dia seguinte, você acorda já pen-
sando nisso, agradece por estar vivo [...] todo dia, você tem que pensar como
você vai sobreviver...

O pragmático Toninho dizia:

Na prisão é tudo incerteza, não dá para saber o que vai acontecer no dia se-
guinte... a única certeza lá dentro é que, para sobreviver, você não pode errar...
você tem que ter a mente certa para não errar, você vai tirando isso, vai pondo
na mente, vai tentado uma solução.

Esses homens estão falando do tempo em que passaram no Carandiru, sete


anos um (1994-2001), três anos o outro (1998-2001), além do tempo que pas-
saram, um e outro, em outras unidades prisionais. Não se trata aqui de propor
explicações, muito menos dar conta das múltiplas dimensões que podem estar
contidas no “mundo do crime” e seus códigos internos de funcionamento. Nosso
material de pesquisa não é suficiente para isso e nem mesmo é esse o foco de
nossas prospecções. Mas essas marcações são importantes para situar algumas
questões que interessam ao andamento deste capítulo.
Primeiro: as regras do “proceder” não brotam do “mundo do crime”, como
se este fosse um universo fechado, mundos paralelos, subterrâneos, à parte. Não
há nada de fechado, nem de paralelo ou subterrâneo. É algo que se produz no
encontro desses homens com o poder, “homens infames”, como diria Foucault, cuja
potência de agir é ativada precisamente nesses pontos em que seus corpos e suas
vidas são afetados pelo poder, junto com as paixões, os ódios, os ressentimentos,
rancores, as revoltas surdas ou o grito de rebeldia. Quer dizer: essa espécie de
razão prática nos modos de lidar com os problemas que se constelam nos limiares
da vida e da morte é algo impossível de se compreender sem colocá-los em situação,
no modo como essas vidas são afetadas pela máquina de destruição acionada pelo
universo carcerário. E é disso que esses homens falam ao descrever as várias
situações pelas quais passaram na experiência carcerária. Que seja dito: essas
questões de vida e de morte foram eles próprios que pautaram, algo que saía dos
relatos que faziam sem que a pergunta fosse feita. E foi isto o que nos afetou,
também: o impacto do que, então, nos era relatado na sucessão de episódios tra-
vejados pela brutalidade do arbítrio e da violência reinantes nas prisões, o modo
como alguns quebravam e sucumbiam (loucura, suicídios), outros se enterravam
na droga e viravam matadores de cadeia (os “lagartos”), outros se dobravam e
passavam para o outro lado (os traidores ou os “KGB’s”, esses faziam o trabalho
de carcereiro), outros, enfim, que duplicavam a “maldade” nas disputas internas,
mortes, estupros, deslealdades, crueldades intrapares. Isso nos impressionava,
porém nos impressionava ainda mais a descrição que ambos faziam (e o tom
reflexivo com que falavam) dos modos de lidar com essas situações, contornar,

250
enfrentar e se por à prova – era nisso que se ia esclarecendo os sentidos práticos
do “proceder” e do “homem de proceder”. Ao ouvirmos esses relatos e, depois,
ao trabalharmos esse material, pressentíamos que havia nisso tudo uma chave
para compreender o que se passava nas prisões, e fora delas. E foi essa a pista
que procuramos explorar e que fornece algo como um guia para o que está aqui
sendo escrito (e descrito).
Segundo: as regras do proceder parecem cunhadas pela experiência carcerária,
porém vazam pelos poros dos muros da prisão, transbordam para fora, circulam e
são ativadas nos meandros do universo popular. Bem antes que essas entrevistas
fossem realizadas, Daniel Hirata, em seu estudo sobre o futebol de várzea nas
periferias paulistas (2006), flagrou seus modos de operação, sua linguagem em
uso, sua gramática e pragmática, sempre em situação, presente nos times e torcidas
de futebol, entre os perueiros, nos meandros do comércio informal, nos circuitos
da sociabilidade, sobretudo masculina. Modos de “sobreviver na adversidade”,
diz Hirata, recuperando uma expressão que tem sua matriz também no universo
carcerário19 e que parecia esclarecer algo dos ardis de uma inteligência prática
que se declina no presente imediato, uma espécie de arte do contornamento das
situações incertas e mutantes, feitas de limiares e riscos com os quais é preciso
lidar e perante os quais o “homem de proceder” é posto à prova e confirmado
(ou não) como homem de “atitude”.
“Sobreviver na adversidade” também ganha o nome de “Vida Loka”, termo
que circula no mundo bandido e fora dele, ressonâncias e impacto de uma lon-
guíssima letra de música dos Racionais MC’s que tem esse título, e que Daniel
Hirata (2009) tratou de esmiuçar. Em cada uma das suas passagens, Hirata pôde
decifrar os modos sempre situados, sempre contextuais, pelos quais o “homem
de proceder” se prova e se mostra na sua diferença e distância em relação ao
“Coisa”, ao “Verme”, também em relação ao “zé povinho”, aquele que recua, que
se dobra, que se deixa humilhar, que é dissimulado, desleal, que age apenas em
proveito próprio, que não merece respeito nem confiança.
“Vida Loka”: “o drama cotidiano das vidas precárias, incertas, sempre no
limiar da vida e da morte, os Racionais chamam de Vida Loka”. É a “Vida Loka”,
comenta Hirata, que exige e ativa um certo proceder nas periferias paulistas.
Nas várias passagens que compõem essa letra longuíssima, Hirata identifica os
códigos que parecem reger a arte de “sobreviver na adversidade”: saber circular
em um universo incerto no qual motivos corriqueiros podem desencadear desfe-

19
Willian da Silva Lima (2001: 95-96), um dos fundadores do Comando Vermelho, ao
comentar o seu surgimento nos anos 1970, diz: “O que eles chamavam de Comando Ver-
melho não poderia ser destruído facilmente: não era uma organização, mas, antes de tudo,
um comportamento, uma forma de sobreviver na adversidade. O que nos mantinha vivos e
unidos não era nem uma hierarquia, nem uma estrutura material, mas sim a afetividade
que desenvolvemos uns com os outros nos períodos mais duros das nossas vidas. Como
fazer nossos carcereiros (ou mesmo a sociedade) acreditarem nisso?”.

251
chos violentos, pequenas histórias que viram assuntos de vida e morte. Lidar e
transitar em um mundo feito de realidades fugazes, que mudam a cada instante,
a aleatoriedade dos casos e acasos que pontilham os meandros dos mercados
informais, nas fronteiras incertas entre o lícito e o ilícito, “espaços nos quais é
difícil construir medidas precisas, cálculos exatos e uma razão rigorosa” (Hirata,
2010: 238).20
A hipótese de Daniel Hirata é a de que, mais do que códigos e regras internas
aos negócios do crime, o “proceder” diz respeito a formas de conduta ativadas
nesses mundos incertos, tecidos na hoje expansiva malha de ilegalismos, nas
fronteiras incertas entre o legal e ilegal, lícito e ilícito. Transitar nesses terrenos
não é coisa simples: é preciso habilidades, astúcias, artifícios, senso de oportuni-
dade para fazer os acertos com a polícia, lidar com os fiscais da prefeitura, evitar
a prisão, contornar os riscos de morte, garantir os acordos dos quais dependem
esses negócios (não apenas os ilícitos), fazer alianças de circunstância, discernir
quem merece ou não merece confiança.
É isso, diz ainda Hirata, que se pode acompanhar na multiplicidade de situ-
ações e relações que se constelam em torno de um ponto de droga nas periferias
paulistas. Voltamos ao nosso posto de observação. A “biqueira” instalada no Bairro
X. Em torno de uma “biqueira”, se articulam e condensam várias das dimensões
que compõem o cenário urbano local. Como diz Hirata, “o mundo da droga não
totaliza a realidade das periferias, mas também não é separado do mundo dos
cidadãos ordinários” (Hirata, 2010: 230).
De um lado, tramas superpostas de ilegalismos novos, velhos ou redefinidos
pelas quais circulam pessoas, bens e produtos, entre expedientes de sobrevivência,
o trabalho irregular, pequenos empreendimentos locais e os negócios do crime,
que gravitam em torno do ponto de venda de drogas ilícitas. É o cenário descrito
no capítulo anterior. A isso se acrescentam os ilegalismos urbanos que atravessam,
desde sempre, as periferias da cidade. Os homens do tráfico local agenciam as
gambiarras nos lugares sem energia elétrica, não poucas vezes mobilizando, sob
pagamento, as competências técnicas dos empregados de serviços (terceirizados)
de manutenção da rede elétrica. Também: arbitragem nas áreas de ocupação
irregular de terras entre famílias já estabelecidas e recém-chegadas; melhorias no
campo de várzea, negociadas com os representantes da prefeitura com a mediação
do CDM (Conselho de Desportivo Municipal) local; promoção de festas juninas e
“acertos” com os representantes da ordem, polícia e fiscais da prefeitura. Situações
que descrevemos em um artigo recente (Telles & Hirata, 2007).
Microssituações que se multiplicam e se superpõem, entre os ilegalismos cons-
telados na produção dos espaços e as versões locais do “bazar contemporâneo”.
Transversal a essas (e outras) situações, está a mercadoria política que circula,

20
Para uma discussão sobre os sentidos dessa inteligência prática em contextos nos quais
as regras são incertas e mutantes, e as realidades são indeterminadas e ambíguas, ver
Detienne e Vernant (1974).

252
sob formas variadas, das propinas mais ou menos generosas, conforme o caso,
passando por “acertos” de circunstância até os mercados de proteção e práticas
abertas de extorsão.
É isso o que se pode flagrar nas microrregulações do varejo da droga, suas
ressonâncias e capilaridades nas redes sociais nas quais se ancoram e que entre-
cruzam com as circunstâncias da vida local. A intrincada gestão dos negócios da
“firma” conecta-se com as circunstâncias da sociabilidade local, entre o respeito
às regras da reciprocidade da vida cotidiana, o cálculo refletido para garantir a
cumplicidade dos moradores contra as investidas da polícia e, também, estratégia
para controle de território face aos grupos rivais.
Recupero aqui, de forma condensada (e com outras ênfases) o quadro descrito
e as questões discutidas em outro lugar (Telles & Hirata, 2007). As microrregu-
lações dos negócios da droga confundem-se, em muitos sentidos, com a gestão e
arbitragem de problemas, desavenças, conflitos cotidianos. Brigas de vizinhos,
conflitos de família, adolescentes desabusados, barulho excessivo tarde da noite,
quer dizer: qualquer coisa que possa chamar a atenção da polícia ou provocar
a hostilidade e a má vontade dos moradores; situação delicada e perigosa, pois
é sempre assim que surgem as temidas denúncias anônimas que acionam a
intervenção da polícia. A “biqueira” funciona ali como uma espécie de caixa
de ressonância de tudo o que acontece no bairro as informações ou rumores
circulam por ali, e o patrão e seus “gerentes” conversam, discutem, ponderam
e decidem como intervir e arbitrar conflitos corriqueiros e situações difíceis. E,
também, para garantir o “lado certo da coisa errada”, quando as situações são
provocadas por gente envolvida nos negócios do crime.
Por outro lado, a “biqueira” engendra outras tantas relações no bairro, elas
próprias se estruturando em equilíbrios instáveis e sempre passíveis de desandar
em tensões, conflitos, desafetos, desentendimentos, disputas e histórias de vin-
gança pessoal. É todo um agenciamento das relações locais, também mobilizado
para garantir a lealdade dos “funcionários” e a cumplicidade de suas famílias,
para arbitrar conflitos que muitas vezes se confundem com desentendimentos
pessoais ou desacertos de outros tempos; ou, então, para definir os limites que
não devem ser ultrapassados, sobretudo, pelos mais jovens, na verdade garotos,
quase crianças, quando passam a se sentir importantes e poderosos e criam
problemas com os moradores e vizinhança.
Equilíbrios instáveis: estruturam-se entre essa dinâmica local e os igualmente
instáveis acordos com a polícia. A rotina do pagamento regular da proteção muito
frequentemente desanda na prática aberta da chantagem e extorsão. Espancamen-
tos, chantagem sobre uns e outros, ameaças de prisão, verdadeiros sequestros com
exigência de um alto preço pelo resgate. No alvo estão os “meninos da droga”. Mas
não só: qualquer um que, nesse trânsito pelas fronteiras embaçadas do legal e ilegal,
possa oferecer algum pretexto para pressão, chantagens e ameaças de prisão.
O fato é que essa gestão das relações cotidianas tangencia um feixe variado de
ilegalismos que também interage com as redes de sociabilidade local nas fronteiras

253
incertas entre o informal, o ilegal e o ilícito. Este, um segundo vetor das microrre-
gulações dos negócios da droga e que diz respeito às modulações locais do “bazar
contemporâneo”: práticas que transitam nas fronteiras borradas entre expedientes
de sobrevivência, empreendimentos informais e negócios ilegais, vinculados ou não
(e não necessariamente) seja à pequena criminalidade local, seja às redes mobili-
zadas por esquemas mais pesados, como é o caso de roubo de carga, seja, ainda,
como o próprio varejo da droga, às pontas pobres dos hoje expansivos e rendosos
circuitos ilegais de uma economia globalizada. São práticas e redes sociais que
atravessam e compõem a vida de um bairro de periferia. E criam outras tantas
zonas de fricção que, também elas, precisam ser bem agenciadas para evitar com-
plicações com a população local e, sobretudo, evitar ocorrências indesejáveis com
a polícia: pequenos conflitos banais que, muitas vezes, se misturam com “histórias
infames” da vida privada e que podem ter um desfecho violento; desacertos em
torno de esquemas acionados pela pequena criminalidade local e que ameaçam
desestabilizar alianças e acordos entre uns e outros; disputas entre grupos que
atuam em territórios contíguos, as quais não poucas vezes passam por dentro das
relações vicinais e das redes sociais próprias de bairros periféricos, já que seus
personagens também transitam nos circuitos da sociabilidade local. Transversal a
tudo isso, o pesado jogo de extorsão da polícia, sempre no fio da navalha de uma
guerra iminente, que pode ser acionada justamente pelo curto-circuito continua-
mente prestes a explodir em algum ponto dessas redes superpostas e, por vezes,
embaralhadas nos agenciamentos do varejo local da droga.
Eis a “Vida Loka” de que fala Hirata ao comentar a letra dos Racionais MC’s. Os
acasos e o imponderável à espreita nas dobraduras do legal e ilegal, lícito e ilícito,
entre “histórias infames”, disputas e desavenças nos negócios do crime, e o jogo
pesado da polícia, oscilando entre acertos, mortes ou prisão. Mais concretamente:
são esses pontos de fricção que exigem e ativam o “proceder” para evitar as soluções
de sangue, frear a lógica da vingança e os ciclos infernais dos “mata-matas” que
acompanharam toda a década de 1990. São nesses pontos que incidem as formas
de arbitragem que oscilam entre as modalidades mais informais do “trocar uma
ideia” à cenografia regulada dos debates e seus protocolos de julgamento. Podem
ser assuntos internos aos negócios do crime (“trairagens”, deslealdades, acordos
não cumpridos), podem ser desavenças ativadas nos pontos de fricção dessas tramas
embaralhadas dos ilegalismos, podem ser desafetos que viram contendas perigo-
sas, na iminência de soluções de sangue. Das suas modalidades mais informais
às mais ritualizadas, dos assuntos menores aos mais graves, o patrão ou gerente
da “biqueira” sempre está presente. Conforme os casos, a gravidade do assunto, a
amplitude do problema em pauta, o debate pode durar vários dias, pode envolver
os patrões de “biqueiras” vizinhas, pessoas de outros bairros, com a participação,
sempre, das figuras do PCC, em contato com outros “irmãos” dentro e fora da
prisão, em comunicação através dos seus celulares (cf. Hirata, 2010).
É uma espécie de tribunal em que as partes envolvidas são chamadas a dar
sua palavra para esclarecer, justificar, apresentar suas razões e, se for o caso, se

254
desculpar. No debate estão sempre em jogo soluções de vida e de morte. O que
vale é o poder da palavra. É um jogo (mais parece duelo) de provas – provas da
palavra, da palavra empenhada, do argumento bem posto e aceito (ou não) em
suas razões. O mediador é a figura central: uma figura do PCC, quase sempre de
fora do bairro, que poucas pessoas conhecem, mas que impõe respeito porque é
ele quem conduz os trabalhos e encaminha a deliberação final. O resultado pode
ser um acordo ou alguma forma de punição: um “corretivo”, a expulsão do bairro,
proibição de vender drogas na região, outras. Ou, então, a morte – condenação
sumária e irrevogável (cf. Hirata, 2010).

***

Pacificação de territórios? O termo é enganoso. De maneira imediata, é sem-


pre possível se perguntar o que poderá acontecer se e quando o PCC perder o
monopólio do mercado de drogas em São Paulo. Todos se fazem essa pergunta,
também os traficantes e os moradores locais, todos com olhos voltados para o
Rio de Janeiro e as sangrentas disputas entre “comandos” rivais. Mas isso são
especulações, podem ser deixadas para um outro momento.
O termo é enganoso por outras razões. Foi freada a lógica da vingança que
desencadeia ciclos devastadores de mortes. Mas a violência policial persiste e
compõe o cenário desse mesmo território (e de todos os outros) “pacificado”. O
mercado de proteção segue com suas rotinas, porém é instável, oscilante, tanto
quanto os imponderáveis das microconjunturas políticas e dos rearranjos internos
às forças policiais e equipes que dividem entre si (e disputam) essa preciosa fonte
de renda e poder. Ali, em todos os lugares, continua vigorando o dito popular,
discutido no capítulo anterior, “ou o acerto ou a morte, não a prisão”, assim é a
periferia. Após as ações do PCC na cidade de São Paulo, maio de 2006, o Bairro
X foi relativamente preservado da sucessão bruta de mortes ocorridas em outros
lugares da periferia: 493 mortes em uma semana, perto de 1.000 no correr dos
meses seguintes. Talvez uma geografia dessas mortes possa esclarecer a lógica
que presidiu a escolha de lugares e vítimas, acordos desfeitos em alguns lugares,
revides, vinganças em outros. No Bairro X, os mercados locais de proteção foram
desestabilizados, a chantagem e a extorsão foram pesadas, havia algo próximo à
preparação de uma guerra.
Mas, então, será preciso colocar o que acontece nesse bairro (e outros) em
perspectiva com o que vem ocorrendo na cidade. A assim chamada “resistência
seguida de morte” persiste e tem aumentado nos últimos anos, conforme relatório
da Human Rigths Watch, publicado em dezembro de 2009.21 Ainda mais: há

21
“No estado de São Paulo, o número de casos de “resistência seguida de morte”, embora
seja menor do que no Rio, também é relativamente alto: durante os últimos cinco anos,

255
evidências de um recrudescimento de grupos de extermínio a partir de 2006. De
acordo com os casos relatados, a ação desses grupos deu-se como reação, quase
imediata, aos ataques do PCC. E a prática persistiu nos meses e anos seguintes.
Em muitas dessas mortes, há um modus operandi particular: “homens armados
encapuzados chegam em motocicletas ou em carros sem placas, com vidros es-
curos e atiram contra as vítimas” (2009: 49). Evidentes indícios de conluio com
a polícia: quando chegam ao local, os policiais militares “perturbam a cena do
crime”, removem os corpos e outras provas. Desde 2008, surgiram evidências
de atuação, em municípios da Grande São Paulo, de um grupo chamado Hi-
ghlanders: “o grupo recebeu esse apelido devido à prática horrenda de remover
as cabeças de suas vítimas (essa era a prática no fi lme de ficção com o título de
Highlander)” (2009: 51).
Por outro lado, nos últimos anos, de forma mais evidente desde 2008, têm
pipocado, em diversas regiões da periferia paulista, protestos de moradores contra
a violência policial. Alguns deles, verdadeiros confrontos que resultaram, por sua
vez, em intervenção agressiva das forças policiais, com a sequência conhecida de
violência física, invasão de domicílios, prisões arbitrárias, espancamentos. Os casos
mais conhecidos, amplamente noticiados pela grande imprensa, são o de Paraisó-
polis (fevereiro de 2009) e Heliópolis (agosto de 2009), as duas maiores favelas
da cidade de São Paulo. Nesse mesmo ano, outros oito casos. Em cada caso, em
todos eles, o estopim foi um fato de violência policial: o assassinato de um homem
durante uma abordagem policial, em Paraisópolis; uma estudante alvejada por um
tiro da Guarda Civil Metropolitana, em Heliópolis; a morte de um mecânico pela
Polícia Militar na favela Chica Luiza (zona norte), a execução de um rapaz tido
como traficante pela polícia, na favela Filhos da Terra (zona norte); a prisão de um
jovem autuado por tráfico de drogas, também a mãe, “por desacato”, na Favela
Tiquiatira (zona leste). A novidade nesses casos não é a violência policial em si
mesma, mas os sinais de um patamar de tolerância que parece estar se rompendo.
Também um padrão de protesto que não é comum no repertório popular paulista
e que evoca algo próximo às émeutes francesas, com suas barricadas, fogo em
carros e ônibus, enfrentamentos. O que isso significa, é muito cedo para saber;
porém, são sinais de uma conflituosidade que entra em ressonância com protestos
e enfrentamentos em torno de desapropriações ou remoções de moradores em
regiões de ocupação de terras e favelas, sempre atravessados por uma mistura de
procedimentos e ações das forças da ordem que oscilam entre o dentro da lei e o
fora da lei, uso dos instrumentos da lei e uso de procedimentos extralegais.
Nesse cenário, nada pacificado, vale refletir sobre um “debate” relatado por
Daniel Hirata (2010). Um caso interessantíssimo. A começar do lugar em que

por exemplo, houve mais mortes em supostos episódios de “resistência seguida de morte”
no estado de São Paulo (2.176 mortes) do que mortes cometidas pela polícia em toda a
África do Sul (1.623), um país com taxas de homicídio superiores a São Paulo”. Human
Rights Watch (2009: 6).

256
ocorre: uma grande favela paulista bastante urbanizada e sedimentada, coalhada
de ONGs, fóruns de participação popular, presença de fundações empresariais
e seus programas sociais, exemplos celebrados e premiados de “boas práticas”.
Enfim, um lugar bastante governamentalizado, para evocar as questões lançadas
na primeira parte deste capítulo.
Um jovem casal em início de namoro. A notícia chega da prisão: o ex-namorado
da garota ameaçava o rapaz de morte, teria dito a amigos que haveria de matar
o outro assim que saísse da prisão, o que aconteceria em breve. Os rumores
chegaram aos ouvidos dos patrões da “biqueira” local. Entram em contato com
o preso vingador, que confirma suas intenções: “talaricagem [traição] se resolve
matando”. O debate foi aberto, com dia e hora marcada, em um apartamento de
um conjunto habitacional nas imediações. Presentes: o casal de namorados, os
patrões da “biqueira” e o “sintonia” do PCC. Depois de esclarecido o problema,
estabelecem o contato com o rapaz preso, tendo a mediação, dentro da prisão,
de um outro “irmão” do PCC. Um debate realizado com o uso dos celulares.
Cada qual tomou a palavra e esclareceu sua própria versão da história. A garota
confirma que havia terminado o namoro com o outro, antes mesmo de ele ser
preso. Os “irmãos” do PCC, dentro e fora da prisão, ponderam e deliberam. O
problema todo era saber o que poderia acontecer quando o rapaz saísse da prisão.
Perguntam e o namorado ameaçado confirma que temia por sua vida, apesar do
acordo ter sido selado naquele momento. A decisão é ardilosa: a partir daquele
preciso momento, o rapaz preso passava a ser responsável pela vida do outro.
Qualquer coisa que ocorresse com ele, seria de sua inteira responsabilidade.
Mesmo no caso de ocorrer algo sem nenhuma relação com essa história, ele seria
condenado sumariamente à morte.
Aqui, nesse caso, todos os fios se cruzam e se entrelaçam: afetos, histórias
cotidianas e o crime; o bairro, a prisão e os vasos comunicantes entre um e outro;
a lógica da vingança na qual ecoam as matanças dos outros anos e os artifícios
inventados para detê-la. Porém, são esses artifícios ardilosos que merecem atenção:
nesse caso, algo como enroscar a morte nela mesma, ameaça de morte contra
ameaça de morte, garantia da vida pela ameaça da morte. Gestão dos problemas
da vida e de morte.
Um assunto miúdo, uma história minúscula, mas é por isso mesmo que talvez
ela nos entregue a chave para ver o que está em jogo na “pacificação” desses
territórios em um cenário urbano travejado por uma conflituosidade, aberta ou
latente, em torno de procedimentos e formas de violência extralegal. Entre a
violência extralegal acionada pela polícia, a face legal da punição e os debates
do PCC, talvez se possa arriscar e dizer que, nisso tudo, o que parece estar
ocorrendo são poderes de soberania em disputa, ali mesmo onde está em jogo a
produção da ordem, portanto, também ela em disputa.
Poderes de soberania em disputa: é uma pista possível a ser trabalhada. Se
isso for pertinente, então também será preciso qualificar melhor a questão. Pois
um não replica o outro; o PCC e seus debates não são o decalque das formas do

257
Estado.22 Não se trata, como muitas vezes se diz, da aplicação tirânica de um
corpo fechado de normas, regras, leis imperativas emanadas de um corpo central.
O PCC e seus “debates” não são uma replicação das formas verticalizadas do
Estado. Não operam como Estado paralelo: mais do que um equívoco, seria uma
forma de des-conhecimento insistir nessa tecla que muitas vezes se repete quando
o assunto vem à baila. São outras as lógicas. Mas tampouco se avançaria, insis-
tindo em encontrar a chave explicativa nos modos de funcionamento interno da
organização, até porque esta é mais porosa e mais modular (não modelar) do que
se supõe, muito distante dos modelos da máfia e congêneres com suas estruturas
piramidais, fechadas, hierarquias e lugares normativamente fixados. Será preciso
entender melhor como se dão essas transações com as forças da ordem, com o
sistema prisional e com as populações dos bairros em que se fazem presentes
(cf. Salla, 2009). Será preciso ainda entender melhor o que está em jogo nessas
conexões que parecem se fazer nas dobraduras da vida social.
Mesmo na hipótese de que essa situação não se mantenha, de que o jogo vire
na eventualidade do PCC perder o controle sobre o mercado de drogas, é preciso
reconhecer que isso já produziu efeitos, fatos e acontecimentos que compõem e se
compõem com a dinâmica urbana de São Paulo. E não é nada irrelevante lembrar
que são fatos e acontecimentos que se processam no coração de uma metrópole
hoje amplamente celebrada por sua modernidade globalizada. Ramificam-se pe-
los meandros dos ilegalismos engendrados no centro dinâmico da cidade, e do
mundo contemporâneo. Os sentidos de ordem (e seu inverso) em disputa: talvez
seja nisso que se possa apreender o que está em jogo nesses espaços produzidos
como espaços de exceção e que estão no cerne dos modos de funcionamento do
Estado, nessas pontas em que sua presença afeta as vidas e as formas de vida.

22
Essa é questão discutida por Marques (2009) e Biondi (2010).

258
Nem conclusões nem considerações finais

O mapa dos ilegalismos continua a trabalhar sob o modelo da legalidade, diz


Deleuze ao comentar o “Vigiar e Punir”. E, com isso, Foucault mostra que “a lei
não é um estado de paz nem o resultado de uma guerra ganha: ela é a própria
guerra e a estratégia dessa guerra em ato, exatamente como o poder não é uma
propriedade adquirida pela classe dominante, mas um exercício atual de sua
estratégia” (Deleuze, 1988: 39).
Talvez seja essa uma pista interessante a ser seguida. Algo como reativar o
sentido de disputa, luta e conflito contido nos modos de produção de lei e ordem,
esse amálgama de acasos, casos, ações, circunstâncias singulares e acontecimen-
tos ativados nas disputas, embates e jogos de força, tal como nos ensina a verve
nietzschiana de Foucault e que, em algum momento, se sedimenta como estrato,
estratificações, lei e ordem. Talvez nisso se possa apreender as linhas de força que
atravessam esses embates, surdos ou abertos, o ponto de emergência de aconteci-
mentos que redefinem o que está posto como presente e abrem a fenda pela qual
o embate de possíveis (incertos e indeterminados) se põe como atualidade.
Mas, por isso mesmo, é de interesse perscrutar o que acontece nesses territórios
incertos. Ao seguir o modo como pessoas, bens, produtos e riquezas circulam
nas tênues fronteiras do legal-ilegal, também as histórias, percepções, códigos
e repertórios, temos os sinais de demarcações da vida social, diagramas de
relações e formas sociais engendradas nessas dobras do legal e ilegal. Em cada
situação, em contextos situados, os sinais de uma disputa que desloca, faz e refaz
a demarcação entre a lei e o extra-legal, entre justiça e força, entre acordos pac-
tuados e violência, entre a ordem e seu avesso. Também os limiares do tolerável
e intolerável, esse ponto que estala nas formas abertas de conflito e que também
se pode ouvir nos “rumores de multidão” (Thompson, 1979).
É isso que se inscreve, em fi ligrana, nas formas de vida e nos percursos das
“histórias minúsculas” que as atravessam. É o que se explicita nas arenas de
disputas e conflitos em as próprias fronteiras da economia estão se redefinindo
nos meandros (também em disputa) dos mercados ditos informais, o bazar me-
tropolitano discutido no capítulo cinco. E essa é também uma maneira possível
de ver (e descrever) o que acontece nos territórios produzidos como “margem”,
tal como ficou sugerido no capítulo 6. Talvez seja essa a experimentação empírica
e teórica que somos levados a fazer ao seguirmos os traços dos ilegalismos nos
meandros do mundo urbano atual. Pistas, perguntas, interrogações abertas ou
reabertas nessa prospecção que vai lançando os vetores por onde o exercício do
pensamento também se faz pelas vias de uma deambulação que segue os pontos
e linhas de uma cartografia não previamente definida do social.

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Empresas de Origem Italiana no Brasil
Paola Cappellin, Vicenzo Pace, Gian Mario
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Diálogos cruzados
Religião, história e construção
Mauro Passos (org.)
1ª EDIÇÃO: Setembro, 2010
IMPRESSÃO: Del Rey Indústria Gráfica
FORMATO: 15,5 x 22,5 cm; 272 p.
TIPOLOGIA: Bodoni
PAPEL DA CAPA: Supremo 250 g/m2
PAPEL DO MIOLO: Offset 90 g/m2

REVISÃO DE TEXTOS:
Erick Ramalho
CAPA: Paulo André Ferreira de Souza | DESIGNER

DIAGRAMAÇÃO: Milton Fernandes

ARGVMENTVM
Editora

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