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Organização Rô Mierling

Contos de um
Natal sem Luz
2ª edição

2015
Copyright ©2015 by Rô Mierling e Autores
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer
meios.

EDITORA ILLUMINARE
Caixa Postal 49 – Torres – RS
95560–000
contato@editorailluminare.com.br
www.editorailluminare.com.br

Rô Mierling
Organização

Milena Moraes
Diagramação

Helena Gomes – Liv Soares


Capa

Milena Morais
Revisão

Rony Duarte – ASN Designs


Arte final

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Mierling, Rô Org.
M632c Contos de um Natal sem Luz/ Org. Rô Mierling. 2ª Edição. Torres: Editora Illuminare,
2015.
152.

978-85-68904-18-3

1. Contos 2. Natal I. Título.


CDD: 869.93.
CDU: 821.134.3-3
A primeira edição desse livro foi dedicada a todos os que “sempre”
têm um “Feliz Natal” todos os anos, porque nós, que compusemos esse
livro, nem sempre temos...
Mas dedicamos essa segunda edição a todos os moradores da cida-
de de Mariana – MG, assolados por um desastre de proporções indefiní-
veis e aos moradores de Paris, assolados pelo terrorismo nessa véspera
do Natal.
A técnica literária - construção “a muitas mãos”.

A criatividade e a construção literária, por muito tempo, foram


movidas pela liberdade de expressão e de composição do escritor, onde
surgiram trabalhos literários magníficos.
Mas com o tempo, estudos e teorias de construção e críticas literá-
rias detectaram certas resistências na composição de livros, enredos e
desenvolvimento de personagens em “ambientes limitados”. Unida a essa
descoberta, estudiosos perceberam que o trabalho literário, muitas vezes,
é solitário, onde autores não conseguem formular um trabalho em união
com outros autores ou com composição em conjunto.
Frente a essas duas descobertas, escolas e oficinas de criação literá-
ria desenvolveram a técnica literária chamada construção “a muitas
mãos”, onde o organizador do projeto constrói um enredo e um cenário
e o grupo de autores selecionados vai, vagarosamente, construindo partes
do livro dentro do que lhes foi imposto antecipadamente. Não é uma
tarefa fácil, os escritores não podem comparar histórias ou dividir ideias.
Cada escritor deve compor sua história dentro do que o organiza-
dor do projeto determinou no começo do “exercício de criação”. Isso
impõe um campo reduzido e, ao mesmo tempo, amplo para a criativida-
de onde nem todos conseguem se superar e desenvolver um bom texto
ou compor personagens sem fugir do que foi previamente proposto.
Mas os que conseguem se sobressair nessa atividade, mostram que
possuem verdadeiro talento para adentrar na estrada literária, isso porque
um bom escritor não deve se ater a escrever livros longos nem contos
curtos, não devem escrever somente acerca do amor ou somente sobre a
morte.
Um escritor pode ter sua preferência de gênero e estilo, óbvio, mas
frente ao seu talento e dom natural, pode e deve se estender além dos
seus limites passeando por gêneros e métricas diferenciadas tanto na pro-
sa quanto na poesia, mostrando que a verdadeira arte da escrita não tem
limites.
Esse livro foi composto dentro dessa técnica literária: a construção
“a muitas mãos”. A organização desse projeto – livro – determinou o
enredo, o local, o ano, cenário, estação do ano, data festiva, e até mesmo
promoveu um mapa do cenário com composição de casas, estradas,
montanhas, firmando métricas e parâmetros a serem seguidos por todos
os escritores que quisessem participar do livro.
Cada autor “morou” em média por um mês em cada uma das casas
da vila, compondo dentro dela, seu conto, sua história, através do seu
estilo de escrita. Foram mais de cem contos participantes e somente vinte
contos selecionados que se destacaram pela maestria com que consegui-
ram lidar com essa técnica de construção literária, apresentando contos
maravilhosos, que podem ser lidos em isolado ou em conjunto no livro
como um todo.
Esperamos que o leitor possa apreciar a magnificência desse traba-
lho, onde cada casa é um conto, cada conto representa um autor, cada
autor concebe uma vida, um estilo e um dom. Autores que, mesmo pre-
zando pela sua individualidade, mostraram saber trabalhar em conjunto,
em harmonia e concordância plena com a temática e parâmetros estipu-
lados onde todos os contos são um só livro, mas cada conto é uma histó-
ria e um drama. Parabenizo os autores selecionados e ao leitor que irá, a
partir de agora, conhecer uma nova forma de construir um livro: em con-
junto e harmonia sem perder a particularidade de cada autor.
Prólogo
Quando eu digo Feliz Natal, qualquer pessoa me responde com
outro “Feliz Natal para você também”, isso em meio a sorrisos e abraços.
Às vezes verdadeiros, às vezes, falsos e mais vezes ainda, indiferentes.
Isso nos mostra um cenário de um sentimento imposto a todos em uma
sociedade capitalista e muitas vezes hipócrita. Não é de bom tom pensar
em algo triste ou deprimente no Natal, afinal é Natal!!
Mas diariamente pessoas morrem, sofrem, são assassinadas, per-
dem grandes amores, filhos se vão, vidas se rompem, e no dia 25 de de-
zembro não é diferente. Também nesse dia tudo é normal e o destino
continua levando pessoas para seus destinos, sejam eles bons ou maus.
Não se trata de ver o lado negro da vida, mas sim de evidenciar que,
mesmo em dias onde nos é imposto um sorriso em meio às cores verme-
lho, verde e dourado, a vida continuar e que se é para despertar algo nes-
sa data específica, que seja desperto um sentimento de mais consciência
com relação ao sofrimento do ser humano: fome, dor, doença, depres-
são, morte.
Que nesse Natal e em todos os outros, possamos fazer ao menos
um minuto de silêncio e conscientização em prol daqueles que não estão
tendo um Feliz Natal! E que levantemos nossas preces a Deus agrade-
cendo realmente e de coração aberto, por não sermos nós os persona-
gens desses contos que serão lidos a partir de agora.
Sejam todos bem vindos a vila Garden Rose, onde a vida nem
sempre é feliz e onde a realidade é dura e crua gerando Contos de um
Natal sem Luz.

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Contos de um Natal sem Luz 8
A Vila

A vila Garden Rose, fica aos pés da montanha Old Rock, a cinco
minutos da cidade Wine Country na beira da interestadual I-70 nos
EUA. Com invernos cada vez mais rigorosos, o isolamento cresce na
pequena vila composta de vinte casas. Todas feitas de forma similar,
construídas muitos anos atrás para abrigar moradores que trabalhassem
nas vinícolas locais. Com o passar do tempo, alguns trabalhadores se fo-
ram, mas outros moradores vieram e a vila se solidificou.
As vinte casas são divididas em dois lados, sendo dez casas no lado
direito e dez casas do lado esquerdo, divididas por uma pequena rua que
começa na interestadual e termina nas montanhas, sem saída para carros.
Ambos os lados da vila são resguardados por grande parte da montanha
Old Rock. Muitos moradores da vila e da cidade cochicham mitos e se-
gredos sobre o “mal da montanha” que afeta aos moradores da pequena
vila, provocando acontecimentos inusitados, quem sabe, na realidade,
oriundos do isolamento, principalmente no inverno.
E sendo o Natal comemorado no meio do inverno todos estavam
especulando se teriam ou não um Feliz Natal na pequena vila.
Cada vila uma família, um morador, uma vida e uma história. Cada
pessoa um destino, um enredo, um drama.
Que tenhamos nossas mentes abertas para conhecer mais de cada
morador, de cada uma das casas que nos abrem suas portas nos ofere-
cendo contos maravilhosos que compõe esse livro, mas que juntos for-
mam um cenário que nos faz refletir sobre as fraquezas e as dificuldades
pelas quais passa todo ser humano não importando local ou a época do
ano.

Contos de um Natal sem Luz 9


Venha conosco! Caminhe mais uns cem metros pela estrada abai-
xo, dobre a direita e irá chegar à estradinha que dá na nossa vila. Mas
cuidado, nem sempre a vida é o que parece ser1.

1 A primeira edição desse livro foi lançada no Natal de 2014. E nesse ano de 2015,
alguns autores do livro se propuseram a “continuar” suas histórias contando como foi o
Natal seguinte de seus personagens formando a parte II do presente livro e incentivando
o lançamento dessa segunda edição. Contos que não tiveram continuidade serão assina-
lados, na segunda parte do livro, como “casa fechada”.

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Parte I
Natal de 2020

Contos de um Natal sem Luz 11


Contos de um Natal sem Luz 12
Casa 1 –

Solidão
William Wagner Westphal

Desci da minha
Torre de marfim
E não achei mundo nenhum (Jack Kerouac)

Esfregando ininterruptamente as mãos, o padre Arlindo buscava es-


pantar o frio que congelava os dedos e lacrimejava seus olhos. Por um
instante, acreditou tratar-se de lágrimas resultantes da indiferença de-
monstrada pelas pessoas daquela vila, mas na verdade, no fundo de seu
coração, ele já havia perdoado a todos da mesma maneira que Jesus o
tinha feito no passado. E esta confiança depositada nas palavras provin-
das do evangelho contribuiu para espantar o medo de seu coração, trazi-
do principalmente pelo vento e pelo uivo dos lobos.
A princípio, seus passos vacilaram. A neve chegara pouco acima dos
tornozelos, e a visão de uma chama no pico da montanha o intrigara e
imobilizara seus pés. Sem saber o real significado daquele clarão, Arlindo
continuou em frente cercado por duas fileiras de casas, tanto à sua direita
quanto à esquerda. Das janelas era possível perceber que a celebração
Natalina seria auspiciosa, graças ao retorno da energia elétrica e a certeza
de vinho em abundância. Entretanto, em nenhum momento passou pela
sua cabeça compartilhar daquela alegria com aqueles moradores, mesmo
não existindo cercas ou muros dividindo as residências.
Aquilo, como já havia percebido em outras oportunidades, parecia
uma brincadeira de mau gosto, algo como um convite a bater canelas
estrada a fora tendo no encalço algum cachorro raivoso pronto para agar-
rar a primeira perna que encontrasse.

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Com tudo isto em mente, Arlindo não se incomodou com as janelas
que eram fechadas ou com as cortinas que deslizavam bruscamente, acei-
tava tranquilamente sua fama de inconveniente e deixara para Deus julgar
suas ações. Assim, convicto e, percorrendo o olhar pelas moradias, per-
cebeu uma cujas luzes não estavam acesas. Era a de Ricardo. Um jovem
que havia deixado o Brasil após as eleições presidenciais de 2014 e bra-
dava ter feito a melhor opção, devido, principalmente, aos boatos de um
possível golpe de Estado e a volta da ditadura militar.
Ricardo morava sozinho. Aspecto comprovado no momento em que
Arlindo adentrou o recinto e vasculhou as paredes em busca de um dis-
juntor. Com o imóvel iluminado, tudo foi fazendo sentido: a árvore que-
brada, as roupas espalhadas pelo chão, o aparelho de TV fora do ar e as
garrafas de vinho esvaziadas. Sim, a solidão retira as energias e nos faz
recolhermo-nos antes da troca de presentes.
Desta maneira, vasculhou o quarto em busca de algum sinal de vida.
Nada encontrou. Somente a cama inusitadamente arrumada e uma folha
de caderno repousando sobre ela. Era algo estranho, e o silêncio era ta-
manho que seria possível ouvir as batidas de seu coração do outro lado
da rua.
Então, aproximou-se e apanhou o pequeno pedaço de papel. Desdo-
brando as três partes com cuidado, começou a leitura:

CARTA DE DESPEDIDA
Para Aldolino (meu pai)
Já faz exatamente uma hora que estou aqui sentado nesta praça. Pro-
positalmente, deixo o ônibus seguir seu caminho. Observo os rostos em
busca do seu. Na verdade, já perdi as contas de quantas vezes acreditei
ser você no meio da multidão. Mas sejamos sinceros: acabou. Minha
indiferença moldou o presente e não deve alterar o futuro. É certo que
criei uma couraça para me defender de tudo o que vinha de você e, de
certa maneira, deu certo. Ou é o que eu achava. Quando o telefone to-
cou, pensei que era você do outro lado da linha. Mas não era. Outro
telefonema seu? Não nesta vida.

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Resolvi fazer um esforço e caminhar até o local onde você está. Sabia,
desde já, que muitas lembranças iriam acompanhar-me neste trajeto.
Mesmo assim, fui até o seu encontro. Pergunto-me desde já: por que
tanta luta? Digo isso porque fiquei impressionado com a nossa ignorân-
cia. Você, deitado naquela maca, orgulhava-se por ter impedido que lhe
amputassem a perna. Eu, parado em frente à porta do hospital, travava
uma batalha sem fim contra o meu orgulho e o fato de nunca ter de-
monstrado fraqueza. Na verdade, ambos desperdiçamos a nossa chance.
Eis o fato.
Cheguei pela manhã e, infelizmente, as visitas ocorriam apenas no pe-
ríodo da tarde. Sim, naquela hora pude perceber que no fundo eu me
importava. Esperei as atendentes se distraírem e atravessei o corredor em
busca do seu quarto. Um pouco antes, percebi seu nome escrito numa
lousa. Quer saber o que estava escrito? Gravíssimo. Não que você já não
soubesse. Afinal, sua determinação em melhorar contrastava com o paco-
te repleto de remédios ao qual você se apegava com tanto afinco. Foi
difícil deixar aquele lugar, mas aquilo era uma despedida, e acredito que
a morfina era a melhor companhia a partir de então. Por mais que eu
quisesse ficar. Daí você se foi. Então, restava apenas uma coisa a fazer:
deixar o rio levar aquilo que o fogo jamais poderia extinguir. Porque,
mesmo ele, o rio, jamais conseguirá levar consigo o absurdo desta exis-
tência. E por que digo isso? Pelo simples fato de que nunca esquecerei as
palavras que me vieram à mente no momento em que fui buscar suas
cinzas no crematório e o atendente disse: “Seu pai está ali, naquela prate-
leira, dentro da ânfora”. É ridículo, eu sei, mas nada mudou desde então,
tudo permanece igual: Éramos duas pessoas que nasceram e precisavam
viver... mesmo muitas vezes não querendo.
Blumenau, 12/12/2012
O padre Arlindo percebeu que a mensagem era interrompida de for-
ma abrupta e entendia perfeitamente a razão de tudo aquilo. Nesta vida,
tudo terminava muitas vezes sem explicações. Era como suas pregações,
lembrava, as quais sempre terminavam com um sermão contra aqueles
que desvirtuavam o real sentido do sangue de Cristo e seu exemplo.

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Agitado por estas reflexões tornou a dobrá-la e recolocou-a sobre a
cama. Virou-se e estudou o ambiente à sua volta. Nas paredes, mensa-
gens coladas expunham frases e sentenças filosóficas. No teto, figuras de
planetas e astronautas decoravam-na e lembravam que além dos limites
do planeta Terra poderiam existir outras possibilidades, alguma realidade
diferente, longe de todo este silêncio forçado e opressor.
Então, já pronto para partir, Arlindo sentiu de súbito a corrente de ar
e tomou consciência das cortinas esvoaçantes. Após um espirro anunciar
a chegada de um resfriado, dirigiu-se à janela. A intensidade da nevasca
era impressionante.
Era praticamente impossível visualizar qualquer coisa que fosse naque-
la tempestade, exceto, uma grande fogueira no topo da montanha. E, de
repente, esgueirando-se pela porta entreaberta, apagou as luzes e, ao fe-
char a porta as suas costas, disse para si mesmo: Espero que você encon-
tre aquilo que procura meu filho. Que volte a encontrar os seus. Nem
que seja em outro mundo.

Contos de um Natal sem Luz 16


Casa 2

A Falta que Ela me Faz


Rô Mierling

Todos os dias eu penso nela. Não sei mais como tocar minha vida
adiante. Ela está presente em todos os momentos do meu dia, da minha
noite, nos meus sonhos. Mesmo depois de tanto tempo, ainda escuto a
voz dela. E nessa época é sempre pior.
Os meses de agosto, setembro, outubro, todos passam de forma cor-
riqueira e monótona.
Eu acordo às seis da manhã, tomo meu café na mesa em frente à jane-
la da frente. Saio para meu trabalho. O carro sempre falhando, sempre
me deixando na mão. Eu chego a vinícola as oito. Trabalho até às seis da
tarde e volto para casa. Nada demais. A noite, na maioria das vezes, está
frio. Sento-me em frente à lareira, leio, ouço música e vou dormir. Uma
vida sem graça, sem sentido. Mas isso só depois que ela se foi. Antes,
tudo era diferente. Com ela, tudo era vida, alegria, desafio e excitação.
Mas ela não está mais aqui e só deixou o vazio.
Não me deixam vê-la. Claro, eu não sou ninguém. Não sou parente,
não sou amigo, ninguém sabe que ela era minha vida, minha luz, meu
mundo. Mas mesmo assim eu vou lá uma vez por mês e fico parado den-
tro do carro, esperando que a hora do passeio no sol chegue e ela saia
para caminhar. Ela nunca me vê. Acho que ela não vê ninguém de ver-
dade, mas minha solidão se abranda ao vê-la, mesmo que seja de longe.
E quando chega a época do Natal tudo é pior. Tudo se torna ainda mais
pesado, escuro, desastrosamente sem alegria.
Foi em uma noite de Natal que a tiraram de mim. Levaram-na embo-
ra, trancando-a naquele lugar horrível. E eu não pude dizer a ela tudo

Contos de um Natal sem Luz 17


que estava guardado em meu coração. Ficou no ar só o doce perfume
dela, a saudade e principalmente o sorriso dela.
Nunca conheci uma mulher tão iluminada, tão feliz, radiante. Tudo
que ela fazia era lindo, gerava vida. Quando ela saia de casa para seus
afazeres, eu ficava aqui no canto da janela olhando. Ela passava, me
cumprimentava e ia embora pela estrada deixando para trás todo seu
encanto e eu, como um cão abandonado, aspirava para dentro do meu
peito, toda a essência da presença dela. Diariamente eu me embriagava
com ela através de um aceno na janela ou ouvindo sua voz cantando den-
tro de casa. Ela tinha filhos lindos, uma vida completa e jamais haveria
lugar para mim no seu coração ou na sua vida, mas eu não ligava. Eu me
resignava a viver das sobras que ela deixava cair na estrada de sua rotina
que me parecia tão doce e harmoniosa.
Mas em uma noite de Natal tudo se findou.
Que inferno. Eu odeio Natal. Que coisa mais idiota. Uma data infeliz
onde pessoas se endividam até o próximo ano para dar presentes que, às
vezes, nunca vão ganhar. Compram roupas, joias e bebidas. Comidas e
doces, tudo farto e abundante só para se sentirem felizes em suas casas
ridiculamente enfeitadas com bolas vermelhas e festões verdes. Grandes
imbecis ignorantes, que se enredam por uma fantasia arcaica de Papai
Noel e noites com estrelas cadentes. Dizem que Natal é a noite que sim-
boliza o nascimento de Jesus, mas será que ninguém pensa um pouco
antes de embasar todos os dias 25 de dezembro de suas vidas em uma
lenda ou um mito?
Eu fico pensando como é que podem comemorar o nascimento de
Jesus, considerado o filho de Deus - único deus – exatamente na data de
uma festa pagã? Ou será que ninguém sabe disso? A primeira vez que
comemoraram o nascimento de Jesus foi no ano de 354, exatamente na
data de uma festa pagã realizada em dezembro “cristianizando” a data.
A festa de Natalis Solis Invicti ("nascimento do sol invencível") home-
nageava o deus persa Mitra. Jesus nunca poderia ter nascido em dezem-
bro, afinal segundo a Bíblia, ele nasceu próximo a época de um recense-
amento, que obrigava as pessoas a saírem do campo rumo as cidades

Contos de um Natal sem Luz 18


para se alistar. Em dezembro, os invernos na região de Israel são rigoro-
sos, sempre foram, impedindo um grande deslocamento de pessoas, por-
tanto, impossibilitando ser nessa época, o nascimento de Jesus em uma
estrabaria, ele teria congelado, obviamente. E segundo pesquisas, Jesus
nasceu no final de outubro, basta estudar um pouco e rápido se descobre
a verdade, mas quem quer a verdade?
Portanto, para que tantos presentes, comidas e falsos sorrisos? Só me
faz ver o tamanho da hipocrisia e estupidez que carregam em suas men-
tes e vidas. Sim, sou amargo, sim, o fel escorre dos meus lábios e olhos,
mas outra forma de vida eu desconheço depois que ela se foi. Tudo esta-
va lindo naquele Natal. Eu morava aqui nessa mesma casa já há dois
anos. Eu tinha comprado um colar lindo para dar a ela de presente. Eu
ensaiei na frente do espelho minha chegada a casa dela. Comprei até
presente para os filhos dela e uma gravata para seu marido, assim nin-
guém desconfiaria. Afinal, eu era só um vizinho solitário.
Faltavam minutos para a hora em que eu bateria na porta dela quando
um abismo se abriu nos meus pés. Tudo deu errado. Os vizinhos vieram
de tudo que foi canto, todas as pequenas casas se manifestando, o marido
dela desaparecido, os filhos mortos e ela levada para longe de mim. Na-
tal maldito que tirou Anne de mim, para sempre. Agora vivo só de so-
nhos e das minhas idas furtivas para vê-la em seu passeio diário ao sol,
naquele lugar tão deplorável e sufocante.
Amanhã será dia vinte e cinco de dezembro e já posso ouvir alguns,
na nossa vila, se preparando para o Natal. E a casa 3, que antes era o
templo da minha amada, o lar doce lar da minha princesa encantada,
hoje abriga uma estranha, uma mulher que nada me diz, que não signifi-
ca nada para mim.
Um Natal funesto levou para longe a mulher que eu amava. Eu bebo
mais uns goles de um rum barato e abro a porta. Vejo muitas pessoas,
muitas casas. Todos indo e vindo com presentes comprados, coisas para
a ceia, crianças correndo na neve. Um frio de lascar os ossos e todos sor-
rindo. Infelizes e enganados.

Contos de um Natal sem Luz 19


Eu volto para meu quarto, coloco uma música em volume baixo. Uma
música “perfeita” para o momento. Só posso sorrir. Um sorriso amargo e
irônico.
“But love is not a victory march
It's a cold and it's a broken hallelujah
Hallelujah, hallelujah, hallelujah, hallelujah...”

A melodia inunda o quarto, mesmo de forma tênue. Eu sinto frio,


uma lágrima desce pelo meu rosto e me encolho. Eu a queria tanto, a
desejava tanto, a amava mais que a mim mesmo. Um amor platônico,
proibido e desconhecido, mas que me alimentava dia a dia. Anne, a úni-
ca mulher que amei na vida.
E amanhã o dia será lindo, feliz, auspicioso e cheio de luzes e cores,
menos na minha casa onde o Natal passou a ser triste e solitário, um Na-
tal sombrio, de mau agouro. Um Natal sem Anne, um Natal sem luz.

Contos de um Natal sem Luz 20


Casa 03

Entrevista com Deus


Adriana Ribeiro

Sentei-me no banco largo de minha varanda para observar o céu; dei


um leve sorriso irônico e voltei meus olhos para o negrume que se fazia
e, após a visão acostumar-se, consegui identificar muitas estrelas.
Apesar da madrugada fria que fazia, não estava nevando. Coloquei-
me reflexiva sobre o enterro de minha mãe, que ocorrera ontem, dia
vinte e quatro de dezembro, e uma ideia absurda repetia fixamente na
minha cabeça: queria conversar com Deus, nem que fossem uns míseros
minutos, mas juro, precisava muito disso! Meu ego já havia sido abando-
nado faz tempo de tanto ver a minha mãe sofrer num câncer avassalador,
que a levou embora daqui a poucos meses. Nesse período, tudo esvaiu
de mim e não foi só o ego, mas também, a vaidade, a alegria de viver e o
estimulo para continuar a vida e o trabalho simples na vinícola da pacata
cidade que vivo.
Num corpo, bem magro, de mulher nos seus vinte e três anos, minha
aparência era de doente, porque a minha alma estava doente, desta for-
ma, meu corpo refletia exatamente a vibração que eu emitia, de tristeza,
desanimo e saudades.
Enfim, ainda sentada no banco de madeira mal pintado de branco,
busquei uma posição confortável, sendo assim, apoiei uma mão a cada
lado de meu corpo, me coloquei cabisbaixa e meus cabelos castanhos e
compridos, invadiram o meu campo visual.
Balbuciei algumas palavras que saíram quase sem querer de minha
boca.
- Meu Deus! Onde está o Senhor?

Contos de um Natal sem Luz 21


Estiquei meu braço querendo alcançar a mão de um anjo qualquer,
qualquer um que pudesse me tirar daqui deste mundo tão ingrato de se
viver. Aguardei um momento com a mão assim, esticada para o céu e
nada... nada vinha de lugar algum. Apenas alguns insetos deixavam a noi-
te de Natal um pouco mais agitada com aquele cri... cri... da madrugada
interminável.
Sem me importar com o frio rigoroso que fazia, respirei ar frio e ins-
pirei o quente, meio desanimada, e voltei a balbuciar abaixando a minha
mão.
- Já escutei falar que muitas vezes o Senhor carregou no colo diversas
pessoas que passaram por muitas dificuldades, assim como eu estou ago-
ra, e também escutei que elas não estavam sozinhas.
Silêncio, reflexão e mais uma vez eu insistia nesse monólogo.
- Digo isto, porque quando olho para trás, vejo na neve acumulada de
outros dias, marcas de meu corpo sendo rastejado pelo chão, e não, uma
única pegada como há em diversos relatos fiéis.
Estava um pouco revolta e sentia que isso era o meu bloqueio, sendo
assim, aquietei o coração, respirei fundo e senti uma serenidade me atin-
gir, e um sentimento de gratidão brotou em meu peito e comecei a agra-
decer por todos os momentos que passei ao lado de minha companheira
e também, por mais doído que tivesse sido, agradecia do fundo da alma,
a oportunidade de ter estado ao lado dela e cuidado de quem um dia
cuidou de mim incondicionalmente. Com lágrimas nos olhos, totalmente
emocionada e me sentindo quente, apesar do frio cortante que fazia dis-
se:
- Obrigada!
Inesperadamente uma voz branda e tranquila, falou comigo:
- Nunca lhe pegaria no colo!
Meu coração disparou e eu congelei temporariamente. Pensei: “O
que é isso?!”
Lentamente, sem mexer a minha cabeça, passei os olhos por todos
os lados e via que ainda me encontrava sozinha, mesmo assim, a voz vol-
tou a falar comigo.

Contos de um Natal sem Luz 22


- Se houvesse lhe carregado em Meu colo, que aprendizado teria tido?
E todo esse o período de fortalecimento que lhe presenteei, teria sido em
vão.
- Mas eu quase não suportei e por pouco sucumbi! E quando achei
que tudo voltaria a ser como era, para a minha surpresa, me deparo com
a despedida eterna! Afirmo, o Senhor me abandonou – disse eu indigna-
da.
- Claro que não! Nunca faria isso, minha filha! Nesses momentos eu
estava presente intensamente e lhe enviei pessoas com palavras de apoio
e força, e você, às escutava sabiamente fazendo delas seu ponto de apoio
para continuar no caminho.
- Que caminho? – indaguei assustada e confusa.
- No caminho da fé.
Chorei... Chorei porque era verdade o que eu acabara de escutar.
Até então, até ter que me deparar com a doença fulminante de minha
mãe, eu não sabia o que era fé. Fé para mim era nos momentos felizes,
nas alegrias e quando tudo estava bem, mas quando a dificuldade me
atingia minha fé se transformava em contestação, argumentações infun-
dadas e egoísmos efêmeros. Costumava brincar, que a minha fé era tão
firme quanto a gelatina.
Totalmente envergonhada, estava ali eu, Margarett, e Deus me conce-
dendo um momento único de resignação, então, resolvi arriscar.
- Decepcionei lhe, falhei muitas vezes e o Senhor ainda veio falar co-
migo, por quê?
- Simplesmente porque “agora” você quis me escutar. Nunca, jamais,
deixo de falar com um filho. Falo com meus filhos quando envio uma
chuva, uma seca, neve, uma doença, um fracasso, um rompimento, mas
o problema, é que vocês não entendem que essa é a Minha forma de me
comunicar, sendo assim, julgam, revoltam-se e esquecem-se que basta
apenas ajoelhar, conectar e acreditar, isso é estar comigo, desta forma,
mudanças de sentimentos acontecerão e as respostas brotarão de cada
um.

Contos de um Natal sem Luz 23


Aquele momento, aquelas palavras foram o desfecho para o novo
caminho que a minha vida estava tomando, não foi a voz de Deus que
mexeu comigo, mas sim o real despertar do desapego, da vibração do
sentimento e do que realmente estamos fazendo nesse mundo.
A data, o Natal, perdeu a sua efemeridade e ganhou a totalidade de
que todos os dias podem ser Natal, porque todos os dias servem para
renascermos quando estamos dispostos a isso. A vida ganhou o sentido
de que estamos no mundo para aperfeiçoar os sentimentos, eliminando
os ruins como, inveja, raiva, rancor, e ativarmos os bons, como o perdão
e a gratidão.
“Fé de gelatina” Sempre fui uma ridícula de nomear a minha fé desta
forma! Digo agora que a minha “FÉ” é única, é minha e não há matéria
nesse mundo que “A” descreva!

Contos de um Natal sem Luz 24


Casa 4

Sozinha, não!
Adriana Araujo

Fim de expediente, mais um dia enfadonho naquele lugar. Dani sem-


pre foi tão preconceituosa a respeito das pessoas que trabalhavam no
posto de gasolina da vila, achava todas sem educação, paradas no tempo,
não havia nenhuma expectativa. Era sua opinião, antes de tudo mudar,
onde mais ela poderia trabalhar? Sua mãe deixou a vila, após a repentina
morte do pai, e Dani precisava sobreviver de alguma forma.
Jovem, bonita, mas sem nenhuma experiência na vida, nunca traba-
lhou e nem precisava, os pais lhe davam de tudo, portanto, deixou de
lado seu orgulho e aceitou o serviço, estava sendo difícil passar por tudo
aquilo.
É véspera de Natal, ela está sozinha. Esse ano nada de presentes, nada
de ceia, não tinha a menor ideia de como seria, aliás, suspeitava, iria
acontecer de novo, sempre acontecia, há meses toda a noite a mesma
coisa, não aguentava mais.
Dirigindo pela rodovia, Dani reparou no carro prata estacionado no
mesmo trecho, pouco antes da entrada da vila. Até aquele dia, não deu a
mínima para o carro ali parado, mas por algum motivo, isso hoje lhe dei-
xou intrigada.
Dani chegou à sua casa, a casa de número 4, da vila formada por vinte
modestas casas, em uma rua sem saída, estaciona seu carro e entra, um
arrepio percorre por todo seu corpo, e não é só por causa do frio que a
nevasca trouxe.
A casa na escuridão, vazia de som e cheiros. O único barulho é de su-
as botas sobre o assoalho frio, estar sozinha é um fato, mas algo faz com

Contos de um Natal sem Luz 25


que Dani não se sinta assim, existe algo que não consegue identificar, e
quase como se não estivesse completamente só, algo a observa, provoca,
isso a irrita e a enche de medo, talvez esteja enlouquecendo.
Não há muito que se fazer. Dani larga seu casaco no chão, entra em
seu quarto e procura roupa limpa e vai tomar banho, a água quente rela-
xa os músculos tensos, e ela se perdem em pensamentos.
Ao sair do banheiro ela passa pela sala, em direção à cozinha, ela pa-
ra, volta e percorre com o olhar todo o cômodo, algo está errado, tem
alguma coisa a mais, ela força a memória a reconhecer cada objeto, os
móveis, porta retratos, a mesa de centro com um vaso e uma linda rosa
amarela, os anjos de porcelana na estante. Ela desiste, é sua imaginação,
está cobrando muita de si mesma, é a tristeza acumulada em seu peito,
está cansada.
Volta à cozinha, abre a geladeira, não está com fome, apenas enche
um copo com água e senta à mesa.
Olhando pela janela da cozinha, Dani observa as pequenas luzes do
vizinho da frente, lembrando-se de como sua casa no último Natal, tão
enfeitada e bonita, quanto à do vizinho hoje.
Sua mãe adorava todo esse frenesi de final de ano, começando pelo
Dia de Ação de Graças, Natal e ano novo, adorava cuidar de cada deta-
lhe, era uma felicidade só cuidar de tudo, e no final tinha que sair tudo
perfeito. Dani, sempre pensou que nesta época a mãe ficava um tanto
quanto fora de si, mas chegava até ser engraçada toda aquela correria que
a mãe causava, mas depois do Natal do ano passado, D. Margareth, nun-
ca mais foi a mesma, a morte de seu marido, modificou algo, quebrou
um encanto a magia que havia dentro dela, nem mesmo a filha conseguiu
consolá-la, nada mais importava, nada mais brilhava aos seus olhos, até
que uma noite, ela simplesmente sumiu, nenhuma palavra, nenhum bi-
lhete foi deixado, nada explicado, Dani ficou só, com o vazio e uma rea-
lidade que nunca pensou ter que encarar aos 19 anos.
Pensar na mãe era doloroso, uma ponta de raiva e decepção brotava
em seu peito, como teria sido ela capaz de tal, como abandonar uma filha
por ter medo de como seria o futuro, covardia era o motivo.

Contos de um Natal sem Luz 26


Não era a culpada pela morte do pai, quem poderia imaginar, seu pai
era um homem, pelo menos era o que todos pensavam, forte e saudável,
mas sem aviso simplesmente veio a passar mal e morrer, um infarto ful-
minante o pegou de surpresa no sofá lendo seu jornal.
A partir dai sua vida mudara completamente, a dor de perder o pai, a
mãe lhe abandonando e estava com a certeza de que começara a enlou-
quecer.
Nunca contou a ninguém, o que acontecia, mentiu para os vizinhos,
após o sumiço da mãe, contava a todos que a mãe tirara férias para tentar
se conformar com a perda do pai, muitos questionaram, “Como pôde D.
Margareth deixa-la sozinha, é tão nova!”.
Dani, apenas respondia que estava grande o suficiente para ficar sozi-
nha, não precisavam se preocupar, mas de vez em quando alguém vinha
lhe perguntar como estava se precisava de algo e quando a mãe voltada,
ela continuava com a mesma desculpa. Dani sabia que seus vizinhos co-
meçaram a desconfiar que sua mãe não fosse voltar.
Ainda sentada à mesa, absorta em pensamentos, Dani se questionou
será que alguém não estava fazendo o que lhe assustava tanto? Algum
vizinho preocupado com seu bem estar? Será? Mesmo se o estivessem,
poderia avisá-la, aquelas coisas a perturbavam tanto.
Já passava das dez da noite, Dani decidiu que iria dormir, não aguar-
daria a chegada do Natal. Não iria suportar, as lágrimas deixavam sua
visão embaçada, correu para o quarto e embaixo das cobertas e chorou
como havia chorado na primeira noite sozinha naquela casa.
Mas um barulho rompe pelo corredor, Dani se força a silenciar seu
choro, começou mais cedo hoje?
Após uma semana do sumiço da mãe, Dani sempre despertava á noite
ao som de barulhos abafados, pequenos esbarrões pelos móveis da casa,
algumas vezes jurava ouvir gemidos a porta de seu quarto, fora a sensação
de estar sendo observada. O medo era tão sufocante que nunca teve a
coragem de tentar descobrir o que era ou quem era e o que fazia em sua
casa, porém nesta noite, onde está com os nervos tão aflorados, a dor era

Contos de um Natal sem Luz 27


lancinante em seu peite e até mesmo com raiva, sim a raiva muitas vezes
traz a coragem a quem lhe falta.
Dani atirou as cobertas no chão, pulou da cama e começou a se en-
caminhar para fora do quarto, a mente trabalhava freneticamente, o cora-
ção acelerado, raiva, medo, determinação e tanto outros sentimentos era
uma mistura incontroláveis em seu corpo. Ela se deteve na porta, olhan-
do da direção da sala para o outro lado do corredor onde fica a cozinha,
decide ir para sala primeiro, caminhando com cuidado para não fazer
barulho, Dani chega à sala, mas não há nada ali, ela detém o olhar na
rosa amarela, identificou o que tinha a mais na sala, aquela rosa não esta-
va ali de manhã quando saiu para trabalhar, tudo veio de uma só vez em
sua mente, o carro estacionado na rodovia na entrada da vila, a rosa hoje.
Detalhes, pequenos detalhes, a confundiam, sempre achava que tinha
feito tais coisas, apenas não se lembrava, mas se alguém...
Um gemido de choro reprimido lhe gela o corpo, ela se vira, “Mãe?”.
Sua mente se esvazia nada mais é importante, o corre para os braços
abertos de D. Margareth, era tudo que queria aquela noite um abraço
estar com alguém, não era isso que o Natal significava? Família unida
comemorando o amor. Tinham muito que conversar, mas amanhã, ape-
nas amanhã daria importância a isso, por enquanto só permaneceria no
calor do abraço da mãe, era tudo que precisava naquele momento.

Contos de um Natal sem Luz 28


Casa 5

Velhas Angústias Natalinas


Marcelino Taveira da Silva

Os moradores da vila já fecharam suas janelas. Hoje, numa noite mui-


to fria, quase não consigo me aquecer. Consegui os últimos finos gravetos
para a lareira. Lá fora o vento corta a alma e a humanidade nossa.
Estamos minha avó e eu aqui. Sinto tanta saudade da minha irmã...
- Dear, você está aí?
- Sim, Grandma! Estava pensando e escrevendo algumas coisas.
- Me dê um pouco de água, por favor.
Minha avó precisa muito de mim. Ela não anda nem enxerga. Tanta
coisa ruim aconteceu. Jamais vou abandoná-la.
Certo dia, ela saiu para conseguir dinheiro com suas consultas místi-
cas. Ela estava na cidade, ou melhor, nas ruas da cidade, consultando
quem passe por lá. Puxou uma última carta para um senhor que havia
requisitado os serviços dela. Lá estava, um arcano maior, a carta de nú-
mero dezoito, a lua, os inimigos ocultos. Repentinamente, dois cães
enormes surgem e atacam minha avó. Os animais estraçalharam as per-
nas dela. Ela ficou gravemente ferida. Dias depois,...
- Simone, querida, traga outra coberta.
- Sim, vovó! Aqui está! A senhora vai ficar mais quentinha agora. Ten-
ta dormir um pouco.
- Obrigada, minha neta. Temos fogo na lareira para a noite inteira?
- Temos, sim, Grandma. Não se preocupe.
- Essa é a nossa pior noite de Natal. Não é mesmo, Simone?
- Imagina vovó. Estamos juntas. E sempre vamos estar. Eu, a senhora
e a Tereza somos uma família eternamente.

Contos de um Natal sem Luz 29


- Obrigado por você existir. Vou tentar dormir um pouco. Você escre-
via no seu diário. Não é? Continue Dear.
Em poucos instantes, minha avó dormiu. Queria que ela estivesse
bem e com saúde. Queria dar as minhas pernas para ela poder andar.
Quem me dera poder presenteá-la hoje com a visão. Queria fazer o
mundo girar ao contrário e salvá-la do ataque dos cães. Seriam eles os
inimigos ocultos do tarô? Bobagem! Uma coisa não tem nada a ver com
a outra. Penso que não. Só sei que aquele foi um dia terrível pra todos
nós.
Dias depois, minha avó já não andava mais. Teve as pernas amputadas
do joelho para baixo. Pra mim, é tão torturante lembrar essas coisas dia-
riamente. Mas hoje, nessa fria noite de Natal, minha memória parece
estar sendo martelada com força. Martela!!!
Aqui na vila tudo parece tão distante da felicidade que moldura os ros-
tos das pessoas que passeiam pelo Central Park.
O frio nos castiga intensamente. A sopa rala já não aquece nossos cor-
pos. Tenho medo da morte. Ainda tenho medo da morte! Tenho medo
também de não continuar a escrever o que sinto, pois minhas mãos estão
trêmulas. Fico pensando tantas coisas. Esse é um Natal sem luz pra mim.
Minha avó não vê a luz do dia faz poucos meses. Um câncer tirou a
visão dela. Cega, mas sempre a orar, ela fica na cama aparentemente con-
formada com a sua desgraça. Ela não merecia isso. Sempre que preciso
chorar, peço aos anjos do céu que não permitam que ela ouça a minha
dor, a dor que sinto tão devastadoramente no meu coração oprimido.
Tento digerir a minha própria angústia engolindo-a a seco, empurrando
todo o meu desgosto para o fundo da minha alma esquecida por Deus.
Quando me sinto muito desesperada, fixo o meu olhar num quadro
que temos aqui na sala. É um quadro branco com uma inscrição: IX.
Alguns dizem que o número nove é o número da sabedoria e, também,
da solidão. Às vezes fico pensando, brincando com essas coincidências
da vida. 18 vira 1 + 8. E 1 + 8 é igual a 9. Minha família sempre acreditou
no poder dos números. Que sentido existe nisso? Poder? Queria tanto
poder...

Contos de um Natal sem Luz 30


- Simone, pode vir aqui?
- Claro, vovó! O que houve?
- Quando eu tinha pouco menos da sua idade, gostava tanto de ver os
fogos de Natal. Eu conheci tantos lugares, viajei tanto. Comecei a lembrar
da minha vida. Importa-se em me ouvir um pouco?
- Não, imagina. Diga o que sente. – apertei docemente a sua mão fria.
- Quando estamos aquecidos e felizes na nossa casa, não pensamos
nos outros. A neve que cai é linda, é branca, encantadora. Mas o frio
chega a queimar aqueles que não têm aquecedor nem isolamento nas
paredes. É tão bom comemorar a vida, e tão triste brindar a morte anun-
ciada. Eu vivi confortavelmente em vários lugares. Vi as pontes de aço
unindo os dois lados de um rio. Acho que acabei enterrando todos os
meus melhores sonhos às margens do Mississipi.
- Grandma, o que a aflige tanto? Tudo vai ficar bem. Não se preocu-
pe.
- Queria ver as luzes de Natal novamente. Tudo agora é escuridão e
penúria. Quando eu morrer, não quero que fique aqui, honey. Vá embo-
ra!
- Vovó, não fale dessas coisas agora.
- Minha neta querida, quando menos esperamos, a morte vem. Nos-
sos ídolos continuam sendo Lincoln e Santa Claus. Já pensou nisso? Que
engraçado! Geralmente, a morte chega quando estamos felizes. E eu es-
tou feliz!
- Feliz? Mas como? A senhora está feliz com a vida que levamos tão
miseravelmente?
Minha avó sorriu serenamente. Queria muito encontrar uma maneira
de registrar nesse caderninho o sorriso dela. Foi um momento lindo. Foi
lindo vê-la feliz depois de tanto tempo. Ela alcançou a felicidade, supo-
nho, ao perdoar seu próprio coração angustiado. E assim ela sorriu. Fe-
liz, sem culpa, luminosa e iluminada.
Queria tanto poder me perdoar! O Natal é uma data muito especial,
que nos faz pensar na vida que temos. Já chorei tanto hoje por tantos

Contos de um Natal sem Luz 31


motivos diferentes. Chorei de fome, de dor, de tristeza, angústia, sauda-
de.
A noite está ficando mais escura e mais fria. Começo a rasgar uma
Marie Claire para manter o fogo da lareira aceso.
Bem ao longe consigo ouvir lobos uivando. Sinto um frio mais inten-
so, descabido, um medo estranho. Fecho os olhos por um instante, respi-
ro profundamente. Dá para perceber que o vento lá fora anuncia mais
tristeza.
Fui verificar se minha avó estava aquecida. Peguei a mão dela e perce-
bi que estava gelada. Nossa! Infelizmente não temos mais cobertas. Dei-
tei-me sobre ela para tentar passar um pouco de calor. Estranho que faz
horas que ela está dormindo. Que frio terrível! Que Natal deprimente.
Logo percebi que a respiração dela estava bem fraquinha.
Disse a ela suavemente:
- Grandma, a senhora tem toda a razão. E agora me comprometo a
me perdoar. Nossa vida já foi muito melhor do que é agora, eu sei. Mas
nem por isso vamos nos entregar a essa angústia, a essa amargura. A se-
nhora me conduziu até aqui com muita sabedoria. Esse será o nosso úl-
timo Natal na miséria, na escuridão, eu prometo!
Minha avó continuava com aquele lindo sorriso no rosto. Mas a respi-
ração dela continuava muito fraca. Não! A respiração dela não mais está
fraca. Ela não está mais respirando. Não mais...! Não!!!
O fogo da lareira apagou-se para sempre.

Contos de um Natal sem Luz 32


Casa 06

O Anjo de Voz Estridente


Alexandre Braoios

- Mamãaaaaaaaee... – a voz aguda fez estalar a vitrine da loja de pre-


sentes.
Sarah era conhecida tanto pela beleza e doçura quanto pela voz esga-
niçada que poderia fazer desabar toda a neve acumulada nos picos gela-
dos ao redor da cidade.
- O que foi meu anjo?
- Vamos levar esse boneco para o Sr. Whitaker, acho que ele vai gos-
tar.
- Tudo bem, vamos levar sim - e a menina saiu serelepe rumo ao bal-
cão de embrulhos.
O pai, resignado, pagou as compras e os três correram para alcançar o
carro estacionado a alguns metros dali.
Na véspera do Natal de 2020 o clima estava congelante. Os termôme-
tros registravam recordes de temperaturas negativas e a pequena vila, aos
pés da grande montanha Old Rock, vivia dias apreensivos e frustrantes. A
vila tinha apenas vinte casas e abrigava funcionários e ex-funcionários da
pequena vinícola local. Eram tempos difíceis, uma grave crise econômica
atingira o país e a principal atividade econômica da cidade estava fadada a
desaparecer.
Não bastasse a catástrofe financeira, o clima severo infligia a todos o
velho temor de que ficassem isolados do resto do mundo, o que para
alguns seria um enorme alívio. As montanhas que margeavam a vila esta-
vam sobrecarregadas de neve e, se o tempo não melhorasse, as casas cor-
riam o risco de serem soterradas. Nos últimos dias, grandes estrondos
vindos das montanhas pareciam avisar do perigo iminente.

Contos de um Natal sem Luz 33


Alheia às crises, Sarah estava radiante. Passara o dia na cidade fazendo
as compras de Natal e nem o frio intenso a desanimou. Assim que o car-
ro virou na única rua da vila, Sarah insistiu para que o pai parasse na casa
do Sr. Whitaker, logo na entrada da vila, para convidá-lo para a ceia de
Natal. Mesmo sabendo que o convite não seria aceito, o pai fez a vontade
da menina. Diante da negativa, Sarah ficou aborrecida, mas a mãe a con-
solou dizendo que no dia seguinte ela poderia entregar o presente para o
homem solitário e arredio.
Os jovens pais de Sarah estavam determinados a satisfazer todos os
seus caprichos. Não que a situação financeira fosse diferente dos demais,
mas eles queriam paparicá-la ainda mais naquele último Natal juntos.
Desde a primavera, esse homem tornara-se o grande ídolo de Sarah,
quando a socorreu após uma queda de bicicleta. Passaram metade de
uma tarde juntos, chegou a adormecer no colo do homem surpreenden-
temente carinhoso, visto sua habitual frieza no trato com os vizinhos.
Depois dessa tarde o contato entre os dois restringiram-se a alguns cum-
primentos monossilábicos e acenos distantes.
A noite foi se aproximando, as pequenas luzes iluminaram toda a casa.
Não haviam poupado dinheiro para os enfeites, queriam que Sarah tives-
se um Natal especial. Jantaram e se acomodaram perto da lareira e da
árvore iluminada. Conversaram, riram, contaram histórias até que Sarah,
exausta, adormecesse feliz. O casal não conseguiu dormir, tentavam reu-
nir coragem para cumprir o que haviam planejado. Pela manhã ainda
estavam inseguros.
- Não sei se terei coragem, querido. Ela nunca vai nos perdoar, vamos
acabar com a vida dela.
- Vai ser melhor, meu amor. Precisamos dar chance para ela ter uma
vida normal e sadia. Olhe para ela... Olhe para nós. A nossa sorte é es-
tarmos no meio do nada. Não vai demorar para aqueles retratos falados
chegarem até aqui, ou começarem a divulgar na TV. Não temos escolha.
- Você não tinha nada que ter voltado para aquele lugar. Eu avisei que
iam te reconhecer.

Contos de um Natal sem Luz 34


- Agora é tarde, eu tinha que ir. Para eles estávamos mortos, perdidos
para sempre na baía, comidos pelos tubarões ou qualquer outro animal.
Vir pra cá foi a única forma de nos esquecerem, ou você queria que eles
tentassem resgatar Sarah?
- Todos os dias eu agradeço a Deus por ter nos enviado esse anjo, sem
ela já estaríamos mortos. Ela veio para arrumar a nossa vida e agora Ele
está nos castigando. Não vou conseguir ir até o fim - disse aos prantos.
- Você prefere que ela descubra que não somos os pais dela? - disse o
marido quase aos gritos. E continuou com o rosário de verdades obscu-
ras:
- Que a arrancamos, ainda bebê, de seus pais verdadeiros? Que ela
chama de papai o assassino de sua mãe?
- Por favor, pare. Nós não tivemos culpa.
- Claro que tivemos culpa meu amor. Nós vivíamos drogados, só fize-
mos bobagens pra alimentar nosso vício e agora que estamos limpos,
descobrem que estamos vivos. Maldita hora que tive que voltar a São
Francisco, mas se não fosse perderia o emprego. Como eu ia imaginar
que encontraria alguém conhecido.
- Vamos desistir. Podemos nos entregar.
- Você prefere que nosso anjo vá para um abrigo? Isso vai empurrar
ela pro mesmo tipo de vida que tivemos e que graças a Deus ela nos li-
vrou.
- Meu anjinho... Você se lembra como ela nos olhou naquele dia den-
tro do carro? Parecia que estava sugando toda a nossa imundície. En-
quanto tentava sair do carro com a água já nos cobrindo, me lembro per-
feitamente dos olhos dela. Ela nos salvou do afogamento, tenho certeza.
Devemos nossa vida a ela, uma nova vida. Todos achavam que tínhamos
morrido e por isso conseguimos chegar até aqui sem sermos descobertos.
- E será com nossas vidas que vamos pagar essa dívida. Não vai demo-
rar até que cheguem até nós e a tirem da gente, prefiro estar morto. Nós
concordamos que esse era o melhor caminho... o único. Por favor, não
desista agora.
- Tem razão.

Contos de um Natal sem Luz 35


- Você já escreveu a carta para o Sr. Whitaker?
- Já, mas e se ele não concordar em ficar com ela?
- Ele vai concordar. Você não reparou como ele olha para ela? E as-
sim como ela nos fez mudar, também amolecerá o coração dele, tenho
certeza. Ela encanta a todos.
- Tomara que sim.
Mais calmos, acordaram Sarah para dar prosseguimento ao plano.
Vestiram-na com a melhor roupa, abriram os presentes, comeram e ri-
ram como só famílias felizes são capazes de rir.
Depois do almoço, um aperto doído atingiu em cheio o peito de cada
um deles. Esse seria o primeiro dia de uma nova vida para Sarah. Ela os
perdoará algum dia?
O dia chegava ao fim, precisavam se apressar. Prepararam Sarah de-
moradamente, como se a fossem entregar em sacrifício aos deuses. A
maior dádiva de suas vidas.
- Querido, está ventando muito. Acho melhor eu levá-la até lá.
- Melhor não. Apenas garanta que ele a recebeu.
- Sarah, vamos levar o presente do Sr. Whitaker? – disse tentando es-
conder a dor que sentia.
A menina correu para pegar o presente sob a árvore e em segundos
estava pronta. O pai colocou a carta no bolso do casaco e pediu que a
menina entregasse junto com o presente. Ela assentiu enquanto o pai a
abraçava com os olhos inundados. Pela última vez encarou os olhos
grandes e profundos de sua salvadora. Assombrado com tanto amor,
entregou-a a mãe, dirigiu-se até a cozinha e abriu todas as válvulas de gás
do fogão e aquecedores. Pegou a caixa de fósforos como forma de garan-
tir que a mulher não adiasse ainda mais a saída da menina.
Na porta de casa, despediu-se sofridamente de Sarah, deu as instru-
ções e ficou observando. Quando viu o pequeno anjo estendendo os
braços para entregar o embrulho ao Sr. Whitaker, ela suspirou confor-
mada. Certa de estar fazendo o melhor para a menina. Que ela tenha
uma vida feliz na casa 19 – desejou sincera e dolorosamente.

Contos de um Natal sem Luz 36


Mal fechou a porta de casa, um enorme estrondo fez tremer todas as
decisões irredutíveis, todas as dores vívidas e todos os planos mais bem
intencionados. Tudo foi por terra...

Contos de um Natal sem Luz 37


Casa 7 –

Viúva
Rafael Valore

No fim de tarde, a única luz que havia entrava pelas janelas da casa da
senhora Widlow. A fiação dos postes havia sido desabada pelo árduo
clima, e era bem provável que não fosse reparada até a manhã do dia de
Natal. A rua estava coberta de neve, e o trator de remoção somente pas-
saria no dia seguinte. Através da neve, ela contemplava os poucos vizi-
nhos que se aventuravam em remover parte do excesso de neve de seus
jardins, das entradas das casas. Lá fora, algumas crianças riam inexistentes
para com o frio e a solidão, brincando no pouco espaço que tinham.
A torta de maçã no forno à lenha começava a cheirar, cheirar bem.
Neve acumulava-se no peitoral das janelas, trancafiando a visão solitária
da mulher – não tão idosa – na sua sala de estar. A pouca luz mal lhe
permitia divisar os contornos das antigas fotografias em preto-e-branco,
dispostas em porta-retratos sujos e fora de moda por sobre a lareira.
Como consolo de sua tristeza, teve o instinto de ligar a velha vitrola e
lhe aplica-la um disco antigo de jazz, mas lembrou-se de que não havia
mais gerador funcional. De fato, estava com frio, muito frio.
Devagar, arrastou-se até a cozinha, onde a velha empregada de confi-
ança tricotava a meia-luz, sentada numa cadeira próxima ao calor do for-
no. A viúva forçou um sorriso.
- Espero que a prefeitura chegue a tempo de permiti-la aproveitar com
seus netos, Margareth.
- Não se preocupe senhora Widlow. Eles estão trabalhando duro, eu
imagino. Afinal, hoje é véspera de Natal – e sorriu genuinamente, er-
guendo os óculos que já pendiam sobre a ponta do narigão.

Contos de um Natal sem Luz 38


O sorriso consolou à viúva. Incapaz de reciprocar o sorriso, tentando;
não triste a ponto de chorar, mas estoicamente conformada, agradecia a
Deus aquele pedacinho de companhia. Sentou-se. O calorzinho da cozi-
nha fez-lhe bem.
- Jura que seu marido não irá brigar?
A serva deu de ombros.
- Azar dele. No controlo a neve.
Riram suave e jovialmente.
- Seus netos estão ficando grandes.
- Nem me fale. O jovem Frank vai jogar futebol pela faculdade do es-
tado ano que vem. Vai fazer falta, é um bom rapaz.
- Sim, sempre pronto a ajudar.
A senhora tricoteira acena ‘sim’ com a cabeça. E suspira certa sauda-
de. Ajeita de novo os óculos.
- A torta está quase pronta, está com um cheiro ótimo.
- Sim, Maggie, me perdoe. Você poderia retirar do forno para mim?
Eu vou subir um pouco. Quero... hum, escolher minha roupa.
- Está claro que sim, Fanny. Fique à vontade.
Fanny Widlow subiu as escadas lentamente, seus cabelos brancos em
coque combinando com o mofo que cobria os papéis de parede. Desli-
zou os dedos por cada detalhe entalhado em madeira nobre do corri-
mão. Seu casaquinho de lã rosa-grená pendia suavemente aberto para os
lados. Estacou. Cada porção daquela casa tinha uma lembrança guarda-
da. Podia ver as crianças correndo, saltitando, molhadas pelo sol que
atravessava as janelas enormes. Podia vê-las ouvirem um som mínimo no
trinco da porta para correrem abraçar e sujar o uniforme militar daquele
homem sorridente e confiante que chegava.
Ela podia visualizar os bigodes quase grisalhos retorcerem ao sorriso
sincero, os cabelos cortados em estilo pompadour impecáveis que surgi-
am por de sob o quepe elegante, podia visualizar a pasta e a maleta de
couro cair, para que os braços pudessem erguer e abraçar as crianças.
Então diria com uma voz tão confiante quanto o sorriso:
- Olá, Fanny.

Contos de um Natal sem Luz 39


A lágrima, primeiro formou-se no canto do olho. Ela subia os últimos
degraus do terceiro lance da escada em quadrada espiral; estacou diante
do quarto quase vazio, empoeirado. Então lhe correu livre pela face en-
rugada. Não havia por que, não havia razão.
Noutras eras, ela sorriria, desencaixotando enfeites. Ela percorreria o
enorme closet atrás de algum vestido azul marinho de tecido quente. Ela
buscaria o pequeno caderno de canções e orações no baú. Sem luz do
poste, ela acenderia velas em lugares seguros escolhidos pela casa toda.
Ela subiria e desceria aquela escada mais de quarenta vezes para analisar
o ponto dos assados e cozidos da ceia. Ela embrulharia dezenas de pre-
sentes um a um, com o cuidado de uma mãe, e esconderia todos em
uma expectativa lancinante para ver os sorrisos das crianças na manhã do
dia vinte e cinco de dezembro. Ela umas semanas antes estaria buscando
uma pequena escadinha onde penduraria guirlandas e enfeites pelos pre-
guinhos agora enferrujados, por todos os batentes da casa.
Agora simplesmente alisava com a ponta dos dedos magros a colcha
de crochê, de um branco acinzentado, por sobre a cama. Ela quase podia
ouvir os sons do piano escada abaixo. Lembrando-se da infância, quase
podia ouvir o som da sineta na mão de seu tio Wolfe, porcamente fanta-
siado de Papai Noel, o que a faria correr e procurá-lo, sendo enganada
vorazmente pelo esperto senhor, que era capaz de dar a volta na casa na
neve mais rápido que uma criança seria.
Abriu o armário de roupas daquele quarto de dormir, sentindo o
cheiro de coisa antiga e mofada. Alisou com as pontas dos dedos velhos
ternos de lã. De costas, deu dois passos atrás e caiu sentada na cama,
ouvindo o barulho das molas rangerem. E chorou.
Não havia por que, não havia razão.
Ouviu a portinhola do forno a lenha estalar, aberta lá embaixo, a torta
estava pronta. Esforçou-se por recompor-se, retirando uma roupa qual-
quer da gaveta sem olhar, que, propelida na cama, corroborasse sua ale-
gação anterior. E desceu enxugando suas lágrimas.
Na metade da escada, ouviu baterem na porta.

Contos de um Natal sem Luz 40


Postergou a ida à cozinha e atravessando a sala, abriu a porta. Ora, era
o velho Walt. Funcionário da companhia de energia elétrica da prefeitu-
ra, que sorria, coberto de neve.
- S’nhora.
- Oh, entre, Walt, entre.
- Sumente checando. Tudo bem pur aqui?
- Sim, tudo bem, mas temo que se o trator da remoção não passar
ainda hoje, a senhora Wiltmann perderá as comemorações de Natal com
a família!
- Nada feito, s’nhora, o tratô deve passá amanhã às deiz.
- Oh.
- Se a s’nhora Wiltmann desejá, nóis pudemo levá ela até o fim da rua
cum o caminhão. Num chega a limpá a rua, mai passa! - e sorriu, ace-
nando afirmativa e entusiasticamente com a cabeça descoberta, boné
humildemente apertado entre as mãos.
Ela sorriu.
- Está tudo bem, então. Vou avisá-la. Fique à vontade, Walt, entre um
pouco. Está muito frio aí fora.
- Brigado, s’nhora.
Ele pisou dentro, encostando um pouco a porta, atritando a sola dos
pés contra o grosso tapete, enquanto ela ia à cozinha dar a notícia.
- Boas novas, Margareth. Walt irá leva-la até o fim da rua.
A senhora Margareth Wiltmann deitou seu cachecol de tricô semi-
pronto por sobre a mesa, contemplando desacorçoada aquela fumaça
cheirosa que subia da torta por sobre a mesa, coberta por uma toalha de
um quadriculado vermelho e branco, deixando escapar um pesado suspi-
ro.
- A senhora ficará bem..? – ergueu os olhos por de sobre os óculos,
incrédula.
Fingindo um sorriso franco, a senhora Widlow limitou-se a responder:
- Mas é claro, sua velha tola, vá aproveitar com sua família! - e precipi-
tou-se a abraçar a tradicional amiga ternamente.

Contos de um Natal sem Luz 41


- Hmpf. Veja lá, hein?! Qualquer coisa que precisar, telefone-me. As
linhas de telefone, ao que eu saiba, ainda estão operantes. Escute-me,
você não quer aproveitar a carona de Walt e passar o Natal conosco?
A viúva Widlow olhou em volta, para as paredes da cozinha, pensan-
do em como esquivar-se ao convite. Finalmente bufou tenuemente, e
expressou a verdade:
- Eu não seria boa companhia, querida. – sorriu um sorriso triste. –
Deixe-me com meus fantasmas...
A amiga sorriu afetuosamente.
- A senhora é quem sabe... – e levantou-se, inclinando-se para trás,
buscando sua sacola no encosto da cadeira, onde depositou seu artificio
de lã.
A empregada doméstica abraçou delicadamente sua patroa, com certa
tristeza, mas apressou o passo que a conduziria à porta, onde paciente-
mente o funcionário municipal e solícito aguardava.
- Olá, senhor Roake.
- S’nhora. – fez uma mesura de cabeça, boné sempre em mãos.
Através da janela turva a senhora Widlow viu sua última companhia
embarcar com muita dificuldade, ajudada em grande medida pelo senhor
Walter Roake, ambos parcialmente acobertados pelo branco. Antes que
fosse de abaixar a cabeça e entregar-se à tristeza, marchou à cozinha.
Ela retirou a toalhinha, tomou uma lufada do perfume de maçã assada
pelas narinas, assentiu afirmativamente quanto ao resultado, e tornou a
cobrir a torta. Depois sentou, desabando na cadeira.
Seu peito apenas não continha cheiro bom de doce caseiro. Tinha
tanto ali. Preso. Não passava. Não havia por que, não havia razão.
Olhava desconsoladamente para aquela torta coberta, sem o menor
apetite. Decidiu em sua mente guardá-la na geladeira assim que esfriasse,
para ter algo a oferecer a algum visitante. Às vezes havia algum.
Principiava a anoitecer. Buscou por velas, e pequenos pires de chá por
amparo. Acendeu apenas uma na cozinha, e outra por sobre a lareira.
Trouxe consigo também dos andares de cima aquele caderno amarelado

Contos de um Natal sem Luz 42


de orações. Deslizava os dedos por sobre cada página, mas não ousava
rezar.
Logo chorava de se babar, de embaçar os óculos, de lavar as boche-
chas.
Ansiosa por nada, roía os dedos, as cutículas e as unhas. Respirou
fundo e buscou um litro fechado de conhaque de sob um pequeno bar
de madeira. Mudou a vela acesa da lareira para mais perto de sua poltro-
na, na grande mesa de centro, e buscou uma cuba de gelo na geladeira.
Deitou o artefato por sobre a mesa de centro, e esquadrinhou pelo bar
um pequeno cálice onde cabia apenas uma única pedra de gelo embebi-
da de conhaque no interior.
Virou de uma golada. Tornou a emborcar a garrafa, tornou a sorver a
bebida.
Entregue ao encosto daquela confortável poltrona, de olhos cansados,
alisava a capa daquele caderno antigo. Suas lágrimas não obtinham con-
tenção. Pensou no vão da escada. Seria possível arremessar-se dali. Seria
terrivelmente doloroso partir uma perna e passar um ou mais dias sem
socorro, mas que benção e alívio em quebrar o pescoço e partir de uma
vez.
Sozinha, sentada na sua poltrona, não se deu ao trabalho de acender a
lareira. Que o frio a matasse. E entornou mais um cálice de conhaque.
Assim pôde dormir.

Contos de um Natal sem Luz 43


Casa 8

Meu Pequeno Anjo


Raquel Cavasini

Era uma manhã fria de véspera de Natal, Anna debruçada no parapei-


to da janela olhava os flocos de neve que caiam a sua frente, seu olhar era
vago e distante. Ela costumava gostar daquele período do ano, as pessoas
pareciam ficar mais amorosas e fraternas, era tempo de aproveitar a famí-
lia, unir amigos em volta da árvore, abrir presentes e desfrutar da ceia,
mas Anna parecia não se importar mais com as festividades do feriado.
Ela tinha apenas 12 anos, morava com os pais, dois irmãos e o avô pa-
terno, era uma garota pequena e mirrada, muito prestativa, sempre aju-
dava a mãe com tarefas de casa, mas o que gostava mesmo era de auxiliar
o pai nos finais de semana, etiquetando caixas e organizando as cartelas
de comprimidos na bancada da farmácia. Anna adorava estar cercada por
diversos frascos de remédio, ela achava fantástica a ideia de um simples
líquido dentro de uma garrafinha poder salvar a vida de um ser humano,
sonhava em sair da pequena vila onde morava e poder estudar as maravi-
lhas da medicina. Ela não queria ser médica, queria buscar a cura, seu
desejo era poder estudar e fabricar aquelas poções milagrosas que desde
muito pequena via sua família comercializar.
Apesar de ser muito voluntariosa e sempre ajudar quem precisasse,
nos últimos dias Anna andava estranha e parecia estar preocupada. O
primeiro a notar a mudança de comportamento da menina foi o avô, o
qual estava sempre a reclamar das atitudes dos outros dois netos, Thiago
e Will, os irmãos mais velhos de Anna. A garota era o orgulho do velho
senhor, ele possuía um carinho especial por ela e completamente dife-
rente do que sentia pelos netos do sexo masculino. Esse amor fraternal se
dava pela lembrança constante que o senhor tinha da esposa falecida, o

Contos de um Natal sem Luz 44


sorriso e o modo prestativo sempre ajudando as pessoas, eram caracterís-
ticas que Anna herdara da avó que morrera quando a garota tinha apenas
três anos.
O velho senhor detestava ver sua neta adorada tão deprimida pelos
cantos e perguntava constantemente a ela qual era a razão de tamanha
tristeza. Anna não queria encher a cabeça do avô com seus pensamentos
e conflitos, ele já estava com uma idade avançada, tinha problemas de
saúde e era justamente graças aos vidrinhos mágicos da farmácia, que ele
ainda estava ali diante dela.
Anna gostava muito do avô, aprendera várias coisas com ele, ela ado-
rava o conhecimento que ele possuía a respeito dos remédios e compri-
midos, afinal, ele quem iniciara os trabalhos no estabelecimento que ago-
ra era o legado de seu pai. Ela tinha um profundo respeito pelo avô, dife-
rente dos irmãos que reclamavam constantemente dizendo que ele não
passava de um incômodo na vida da família. A menina via como o avô
ficava triste e desolado com os comentários maldosos dos irmãos e sem-
pre tentava conforta-lo de alguma forma dizendo: “Não ligue para eles
avozinho, eles não sabem o quanto que o senhor tem a ensina-los, ainda
mais porque não possuem vontade nenhuma em aprender nada que seja
proveitoso”. O velho senhor amava mesmo a doçura daquela criança,
como podia ser tão diferente das pestes que ali viviam, foram todos cria-
dos do mesmo modo, mas a menina era a joia preciosa da família, ele
não conseguia entender.
Naquela mesma manhã ao ver Anna vagando acordada em seus deva-
neios, o velho senhor pediu que a garota fosse com ele até uma das lojas
da pequena vila, ele queria fazer uma surpresa e comprar alguma coisa
especial para presenteá-la na noite de Natal, queria ver o sorrido que
estava sentindo falta já há algum tempo. Anna concordou em sair com o
avô, uma vez que ela jamais recusaria um pedido dele.
Partiram então os dois pela rua coberta de neve, o avô pensando em
que presente compraria para alegrar a netinha, enquanto que Anna ca-
minhava constantemente perdida em seus pensamentos. Sempre que
possível o avó começava um assunto de modo a distrair a pequena, que

Contos de um Natal sem Luz 45


respondia em poucas palavras e logo se fechava novamente. Após alguns
minutos caminhando o velho senhor cansado as situação parou de repen-
te e a garotinha estranhando a situação voltou-se para o avô perguntando:
- Avozinho, o senhor está bem? Podemos ir mais devagar, ou darmos
uma paradinha se o senhor estivar se sentindo cansado.
- Não minha querida, eu estou bem, o problema e que estou preocu-
pado com o seu comportamento. Vivo a perguntar o que está acontecen-
do, mas você, minha pequena criança, sempre desvia o assunto. Por fa-
vor, diga ao seu velho avô o que tanto te incomoda.
Anna ficou apreensiva, sabia que não poderia mais driblar o avô com
alguma desculpa, ele podia ser velho, mas era sábio e ela não conseguiria
levar aquilo adiante, então contou apenas o necessário para que o mesmo
não ficasse aflito:
- Na semana passada, enquanto estava indo ao banheiro no meio da
noite, passei pela cozinha e escutei uma conversa dos meninos, falavam
baixo e não consegui entender direito o que estavam dizendo, mas per-
cebi que Will se irritou com algum comentário feito por Thiago, ele dizia
que o plano era uma loucura e Will mandou que calasse a boca, falou
que o prazo estava apertado e teriam que organizar tudo na véspera de
Natal, caso contrário estariam encrencados. Após escutar a estranha con-
versa comecei a vigiá-los, mas não consegui obter mais informações. Não
sei o que planejam, mas sinto que não é coisa boa senão eles não estari-
am cochichando escondidos durante a madrugada.
O avô escutou, atento a história e no final abraçou carinhosamente a
netinha, dizendo-lhe:
- Meu anjo, não se preocupe com aqueles dois, eles podem não ter ju-
ízo, mas não são estúpidos a ponto de cometer alguma atrocidade. Agora,
me dê um sorriso e vamos andando que eu quero lhe comprar um lindo
presente de Natal.
Eles seguiram com destino à loja que para a tristeza do velho senhor
encontrava-se fechada.
Vendo a decepção do avô, Anna comentou tentando conforta-lo:

Contos de um Natal sem Luz 46


- Acho que a senhora Lenna resolveu fechar mais cedo hoje, deve es-
tar preocupada com a ceia. Vamos até a livraria, o senhor pode me com-
prar um livro de ciências no lugar de algum objeto que logo estaria joga-
do no fundo do guarda-roupa. Na livraria a menina escolheu dois livros
que a atendente, muito admirada, embrulhou em um lindo papel verme-
lho com fitas douradas. Os dois iam saindo da livraria, o avô numa felici-
dade só vendo a pequena toda encantada com os presentes que havia
recebido, quando escutaram um barulho vindo da loja na qual passaram
anteriormente.
Pensavam que a dona do estabelecimento, senhora Lenna, havia desis-
tido e retornado para fazer mais algumas vendas de última hora, mas se
surpreenderam ao escutar algumas vozes familiares. Anna correu até a
porta que agora estava entre aberta, o avô tentou parar a menina segu-
rando-a pelo braço, mas não conseguiu detê-la. Foi tudo muito rápido,
em uma fração de segundos. O tiro, o grito abafado da garota chamando
os nomes dos irmãos, o barulho do corpo de Anna caindo sobre a vitrine
da loja, o vidro se estilhaçando e o grito de horror e tristeza do velho
senhor ao perceber que seu pequeno anjo havia partido para o céu.

Contos de um Natal sem Luz 47


Casa 9 –

Celebração da Morte
Marcio Muniz

Durante o Natal celebra-se o nascimento do Cristo, reflexo de espe-


rança para o futuro. As pessoas comumente se unem para compartilhar e
celebrar a vida, esperanças e possibilidades felizes. Sempre fora assim
também na casa 9 daquela vila isolada, mas dessa vez, tudo era um tanto
quanto diferente. Afinal, como celebrar logo no Natal sua própria morte?
Mary sempre fora uma pessoa alegre e feliz. Casou-se com Jeff que
conhecera ainda no colegial, cresceram juntos, desabrocharam unidos e
amadureceram em conjunto. Amaram-se desde sempre, aliás, amam-se
até hoje. Curtiram, viajaram, viram o mundo juntos sob os olhos um do
outro. Ganharam um bom dinheiro trabalhando no mercado financeiro,
tudo em prol do sonho de um dia ter seus filhos e em seguida migrarem
para uma cidadezinha do interior onde poderiam criá-los longe da luta
selvagem da cidade grande.
Custos exatos sete anos até julgarem que já tinham o suficiente para is-
to, então sem demorar muito mais, Mary engravidou. Matt nasceu e seis
meses depois do seu nascimento, eles se mudavam para a casa 9 daquela
pequena vila afastada da correria da cidade grande, totalmente de acordo
com o que sonharam e planejaram. Juntaram suas economias, venderam
o apartamento onde moravam e optaram por abrir uma loja de conveni-
ência no único posto de gasolina do local. O lugar escolhido era perfeito,
perto das montanhas onde poderiam acampar e ter contato com a natu-
reza. Havia lagos e rios onde Jeff ensinaria Matt a pescar e eles comparti-
lhariam momentos de pai e filho. As pessoas do local eram amáveis e
gentis, havia respeito e todos se tratavam com cortesia. Olhavam-se nos
olhos quando se cumprimentavam, todos se conheciam e desenvolviam

Contos de um Natal sem Luz 48


empatia uns com os outros, tratavam-se pelo primeiro nome, tudo bem
diferente da impessoalidade de uma cidade grande. No dia do primeiro
aniversário de Matt, Mary anunciou que estava grávida novamente. Al-
guns meses depois nascia Alícia. A família parecia completa, tinha uma
vida perfeita, tal qual sonharam um dia.
Todavia, menos de sete meses do nascimento de Alícia, Mary notou
um caroço em seus seios, também havia passado a sentir alguma falta de
ar e por isso, de imediato procurou um médico ginecologista na cidade
mais próxima que ficava a cerca de 100 quilômetros de onde viviam.
Desconfiado, ele a encaminhou a um oncologista da cidade grande e ela
teve que fazer o caminho de volta. Mary passou uma semana por lá reali-
zando exames, as crianças sentiam sua falta, todas as noites falavam com
ela ao telefone e choravam no fim. Mary chorava também quando desli-
gava.
Ela retornou para casa com os olhos inchados de tanto chorar, perdi-
da. Seu diagnóstico era de câncer nos seios que já havia evoluído para o
fígado, os pulmões e os ossos. Os especialistas lhe deram sobrevida de
três a seis meses. Os tratamentos seriam apenas paliativos e trariam pou-
cos resultados práticos. Por isso, ela optou por não fazê-los e após um
breve período de negação e inconformismo, Mary preferiu aproveitar ao
máximo do seu tempo junto de sua família, vivenciando seu sonho e as-
sim ela o fez. Nada de lágrimas ou lamentações durante aqueles cinco
meses que se passaram desde o fatídico diagnóstico e aquela manhã de
24 de dezembro na casa 9 da vila. Durante toda manhã, ela e seus filhos
estavam totalmente envolvidos nos preparativos para a noite especial.
Capricharam na decoração do pinheiro e cuidaram com esmero de cada
detalhe de toda a arrumação do ambiente tão familiar onde se reuniriam
a noite para comemorar o provável último Natal juntos reunidos como
uma família.
Jeff obviamente que sabia de tudo e foi durante todo esse tempo per-
feito para sua esposa... amada... amante... companheira. Naquela manhã
ele havia ficado encarregado das compras para a noite, tanto dos manti-
mentos quanto dos presentes. Ao longo daqueles meses, jamais demons-

Contos de um Natal sem Luz 49


trou desânimo ou se o viu derramar uma lágrima sequer. Muito ao con-
trário, ele a ajudava a viver ao máximo o sonho que sonharam juntos.
Detalhes práticos sobre o que aconteceria depois da partida de Mary
nunca foram sequer mencionados, coisas tais como: “De que forma ele
criaria sozinho seus filhos numa cidade pequena e sem muitos recursos”
ou “Como as crianças reagiriam a morte da mãe.” Assuntos que nunca
foram abordados entre eles, a única coisa que Mary uma vez deixou es-
capar a respeito foi: “Eu não gostaria de ver nosso sonho morrer por
minha causa!”
À noite, na casa 9 da vila, tudo estava pronto. Decoração, luzes, comi-
das, músicas e brincadeiras. Tudo especial tal qual manda o figurino nu-
ma noite daquelas. Sorriram muito, brincaram, abraçaram-se e por fim
cearam. Num dado momento Mary sentiu uma forte pontada no peito,
um mal estar e um pouco de falta de ar. Tudo mais forte do que se acos-
tumara durante os últimos meses. Ela e Jeff trocaram olhares aflitos, po-
rém tudo foi muito breve e passou tão depressa quanto veio. Não demo-
rou muito e as crianças adormeceram e foram colocadas na cama. Jeff e
Mary foram também para cama e fizeram amor.
Na manhã do dia 25, as crianças pularam da cama e forma direto
acordar os pais, pois queriam abrir os presentes. Matt ficou encantado
com seu trenzinho elétrico. Alícia logo adotou como filha a boneca que
quando apertada na barriga dizia “mamãe”. Ficou tanto com aquilo na
cabeça que naquela mesma manhã, pela primeira vez ela olhou para
Mary e pronunciou “mamã”, para em seguida soltar seu sorriso maroto e
sair correndo pela casa carregando sua boneca nova. Aquilo fez Mary
chorar e aumentou seu aperto no peito que lhe causava certo sufocamen-
to naquele dia.
Era tradicional que no dia 25, caso a neve permitisse, todos da vila se
reunissem para um almoço ao ar livre diante de uma imensa mesa colo-
cada bem no fim da vila e naquele dia, parecia que tudo sairia conforme.
Os preparativos corriam a todo vapor, as crianças brincavam juntos e
compartilhavam sorrisos e brinquedos. Todavia Mary sentia além de
felicidade, um cansaço que a incomodava. Sem ser notada, ela disfarçou

Contos de um Natal sem Luz 50


e se retirou para sua casa, dirigiu-se ao seu quarto e se deitou. Pôs as
mãos sobre a barriga, seu peito arfava, mas mantinha seu sorriso genuíno
e pronto nos lábios. Uma lágrima desgarrou de seus olhos e escorreu de
sua face, não uma lágrima triste, mas sim uma lágrima de contentamento
por ter podido viver o sonho que sonhara para si e sua família. Então
seus olhos aos poucos se fecharam sem demonstrar pressa, sem nenhu-
ma angústia neles estampada, sem nenhum arrependimento, literalmente
tomada por uma paz.
Jeff notou sua falta e veio chamá-la para almoçar, os filhos haviam fi-
cado com a moça bonita, prima de uma moradora da vila que viera pas-
sar ali as festividades de fim de ano. Ele encontrou inerte sobre a cama, já
sem vida, mas ainda com o mesmo sorriso estampando nos lábios. En-
tão, naquele quarto da casa 9, no dia de Natal, ele verteu enfim suas pri-
meiras lágrimas por Mary depois que soube da doença. Chorou por um
bom tempo um choro copioso, mas por fim libertador do peso que car-
regava nos ombros. Chorou sobre o corpo do amor de sua vida até que
então ele se lembrou do que ouvira ela dizer um dia, tempos atrás: “ A
única coisa que eu não quero ou desejo é ver nosso sonho morrer junto
comigo”. Ele então levantou-se, enxugou suas lágrimas com as costas da
mão, beijou as mãos e a testa de sua esposa e pensou:
- A vida precisa continuar!
E lá se foi ele, agora viúvo, cuidar dos tristes preparativos que precisa-
ria cumprir naquele fim de Natal.

Contos de um Natal sem Luz 51


Casa 10

O Diário de Mitchell
Juh Cortez

A família Mitchell era composta por cinco mulheres: Molly, a mãe;


Elora, a primeira filha com quinze anos; Gail de dez anos e as gêmeas
Jessie e Connie, de dois anos. Eram todas muito parecidas com a mãe.
Tinham traços delicados, cabelos ruivos escuros e leves sardas perto do
nariz. Os olhos das meninas mais novas eram azuis muito claros, já Elora
tinha os olhos do pai, Ralf Mitchell, verdes e grandes. O sorriso também
era idêntico ao do pai, largo e fácil.
Molly, muito religiosa, sempre dizia que a alma do falecido Mitchell
tinha ido para o inferno, era uma alma suicida. Após ser descoberto pela
mulher sobre a traição com uma forasteira que se encontrava pela cidade,
Ralf tomou uma grande dose de sonífero, que tomava controladamente,
dormindo na banheira e morrendo afogado. A traição foi uma vergonha
para a família, Molly chegou a fazer as malas dela e das filhas para sair da
cidade, ia para a casa dos pais, falecidos logo em seguida, mas na manhã
da viagem se depararam com a chocante cena na banheira. As gêmeas
não tinham um ano de idade ainda. Foi estarrecedor na época, ter que
lidar com a polícia e todos os procedimentos necessários. Molly largou o
emprego e não saiu mais de casa. Era duro ainda, viver na casa onde tudo
havia acontecido.
Após tomar banho e jantar, como de costume, a mais velha acompa-
nhou as irmãs para dormir. Ia saindo em silêncio do quarto, quando foi
apagar a luz parou um instante e fitou as meninas por um bom tempo.
Pareciam três anjos, delicadas, serenas… Olhou Jessie e Connie, abraça-
das com uma rena de pelúcia entre elas. Deixou escapar um sorriso de
lado, apagou a luz e foi para seu quarto.

Contos de um Natal sem Luz 52


As mulheres da família Mitchell tinham o hábito de escrever em diá-
rios. Elora e Gail o faziam com o incentivo da mãe, dizia que poderiam
escrever um livro um dia, mas a própria abandonou o hábito após a mor-
te do marido justificando que a vida não fazia mais sentido. Elora se sen-
tia mais leve ao escrever:
12.23.2020
Diário,
Hoje foi um dia normal de trabalho, mas pensei mais no papai, talvez
seja o clima do Natal. Ele adorava! Enfeitava a casa e fazia a maior ba-
gunça conosco ao mesmo tempo. Se ele estivesse aqui seria tudo tão dife-
rente.
Apesar de saber que a depressão da mamãe não é culpa dela, é inevi-
tável não sentir uma ponta de amargura por eu ter que trabalhar pelo
futuro das meninas e ter que adiar meus estudos, minha juventude. Até
quando? Quando penso no suicídio do papai, não consigo admitir, ele
era tão alegre, por mais que a traição dele tivesse sido descoberta… Está
sendo demais para mim toda essa responsabilidade, e tanta saudade…
Enfim, apesar de tudo o que me alegra durante o dia é sentir o cheiro das
uvas na vinícola, o mesmo cheiro dele quando chegava do trabalho e
beijava todas nós.
Elora.
Olhou no relógio, já passava da meia noite. Deu um pulo da poltrona
que pertencia a seu pai. Foi pegar um chá, na cozinha encontrou Molly.
- Sem sono, mãe? - indagou enquanto pegava os itens para o chá.
- Já estou indo dormir - respondeu sem olhar para Elora, prevendo a
conversa que viria.
- Mãe, pensou em ligar para aquele especialista? A senhora lembra se
do telefone que consegui? - perguntou encarando a mulher, tentando
decifrar suas reações.
- Não quero me abrir com estranhos, Elora. Sabe disso.
- Não pode ficar trancada em casa pra sempre e eu preciso voltar a es-
tudar! - falou num tom de voz acima do normal, já se arrependendo.

Contos de um Natal sem Luz 53


- Seu pai me traiu e me deixou, nem pra segurar a bobagem que fez.
Saia da vinícola, eu não te obrigo a trabalhar, a pensão do seu pai dá pra
viver - os olhos já marejados.
- Dá para comer, mas as meninas precisam de mais! Precisam de uma
garantia para o futuro - argumentou.
Molly largou a caneca e saiu, num nítido cansaço daquela conversa
muito comum entre elas. Elora ficou ali pensando em tudo, se estava
errada em cobrar a mãe. Olhava para as luzes de Natal na vila, através da
janela embaçada. Era de fato uma bela fotografia, mas a menina estava
exausta demais para perceber.
Na véspera do Natal, Elora levantou para trabalhar, Gail tinha prepa-
rado um cereal com leite para as duas.
- Bom dia, lindinha! - saudando a irmã do meio.
Gail empurrou a tigela para irmã e ficaram ali, se olhando. Ela ob-
servava demais e brincava de menos para os seus dez anos. Logo deu um
jeito de não pensar nisso mais. Era véspera de Natal, queria entrar no
clima. Foi de bicicleta para o trabalho, ia passar na cidade mais tarde e
comprar os últimos itens para a ceia e embrulhos para os presentes.
Já na cidade, entrou na igreja, sentou e falou em voz baixa, sem inti-
midade com quem falava:
- Não sei se deixei de crer, ou apenas o ignorei depois de tudo, mas
ultimamente me sinto esgotada, sozinha eu não consigo! Apenas ajude
minha mãe a sair dessa, tudo irá melhorar depois disso, eu tenho certeza.
Fez um tímido sinal-da-cruz e saiu. Pedalou admirando a paisagem,
como há muito não fazia. Sentia um sopro de esperança em sua alma.
O Natal foi alegre. As meninas levantaram muito cedo para verificar
os presentes embaixo da árvore, passaram o dia brincando na neve. Elora
e Molly prepararam toda a ceia com muito trabalho, mas tudo muito
gostoso. Após a refeição Molly adormeceu na sala, Elora a cobriu, dando
um beijo em sua testa e a olhando com pena. Levou as meninas uma por
uma para o quarto, pois haviam adormecido na sala, exaustas de tanto
correr o dia inteiro.

Contos de um Natal sem Luz 54


Foi para o quarto contar para o diário o quanto estava melhor. A ca-
neta falhou. Procurou outra pela casa, não encontrando. Lembrou que a
mãe possuía uma caixa com alguns itens desses. Deu uma leve vasculha-
da no quarto de Molly.
Em uma prateleira no criado-mudo viu a caixa e um objeto em cima,
puxou a caixa e deixou o objeto cair na própria prateleira, estranhando o
barulho, notando que era oco ali. Após virar o móvel descobriu um fun-
do falso, com uma tampa. Dentro do local achou algo que mudou sua
vida. Ficou ali, horas e horas pensando, chocada. Quase ao clarear, fez
uma ligação e foi para o quarto das meninas para se certificar que elas
não acordariam com nenhum barulho.
Molly acordou com fortes batidas na porta. Era a polícia.
- Temos uma denúncia contra a senhora Molly Mitchell- disse o poli-
cial levando a mulher.
- Mas… - nem completou, aceitando que a levassem, sem resistir. Sa-
bia que não tinha saída.
Elora apareceu na sala, entregou o diário da mãe para a polícia.
- Mãe? - disse Connie entrando na sala, meio sonolenta.
- A mamãe foi ficar com o papai, querida. Agora somos só nós - disse
Elora, protegendo a irmã da verdade.
No diário:
07.18.2019
Meu diário,
Hoje fiz o pedido de uma dose extra do sonífero de Ralf. Colocarei
os dois frascos no leite que ele toma todo dia, acho que isso não o mata-
rá, mas o fará dormir na hora do banho, antes do trabalho. Eu só o em-
purrarei para dentro d’água. Depois me deito e deixo uma das meninas
me chamarem. Será difícil submetê-las a isso, mas preciso mandar a alma
daquele traidor para o inferno. Como o imbecil toma este remédio sem-
pre, a polícia achará que foi suicídio. Ele se faz de arrependido, mas não
acredito em uma palavra. Ele precisa pagar pela vergonha que me fez
passar, toda a humilhação.
Molly.

Contos de um Natal sem Luz 55


Molly, assim, acabou com a vida de Ralf e de suas quatro filhas, agora
sozinhas. Elora virou a responsável pelas meninas, sentindo o peso do
mundo em suas costas, perdeu a juventude e todos os sonhos que tinha.
Sonhos esses que eram tantos e tão grandes, que ultrapassavam facilmen-
te as montanhas da pequena vila.

Contos de um Natal sem Luz 56


Casa 11 –

Damascos!
Lana Gomes

O perfume das ceias de Natal inundava a casa. Todas as casas da pe-


quena vila preparavam seus banquetes natalinos. Morando na última ca-
sa, com o vento soprando em direção as montanhas, todos os cheiros se
reuniam em minha sala.
Edgard dormia no quarto, em nossa cama de casal. Sono pesado após
mais uma noite de embriaguez. Quinze anos de casamento. Cinco anos
de embriaguez diária. Tudo começou quando me apaixonei por Orland,
melhor amigo de Edgard e seu companheiro de trabalho na vinícola.
Edgard descobriu e apesar de nunca termos tido nada, ele jamais me
perdoou e abandonou o trabalho na vinícola. Desde então já tinha sido
frentista, vigia em uma das escolas da cidade e agora uma espécie de aju-
dante de serviços gerais na igreja. Ironia. Trabalha na igreja, na casa de
Deus, mas não tem Deus com ele, não crê em Deus. Eu também não.
Ellen foi morar em Washington para estudar, com 16 anos concluiu a
high school e agora cursa Direito na Washington University em Seattle.
Sinto falta de minha filha, minha única filha, mas sei que é melhor ela
estar longe desta vila. Especialmente nesta noite.
Meu rosto ainda dói. O corte não é profundo, mas se quer abro o
olho esquerdo. Edgard me espanca diariamente.
“Você é uma vadia Sarah” - ele diz a cada soco. E a cada soco minha
submissão diminui. É dia de Natal, mas nada lembra Natal em nossa
casa. Não há luzes piscantes, pinheiros verdes ou cookies decorados.
Ellen não vem para casa neste final de ano, menti. Ela pensa que estamos
no Tennessee na casa de amigos. Tenho planos para esta noite.

Contos de um Natal sem Luz 57


Meio dia uma vizinha chata toca a campainha. Veio convidar para ce-
ar com a família dela. O ano inteiro sem falar comigo direito e hoje vem
me perturbar. Edgard acorda com a campainha e resmunga um palavrão.
Quase cai ao descer as escadas velhas de madeira, que range a cada pisa-
da sua. O bafo é repugnante, o cheiro que emana de seu corpo também,
por instantes o cheiro de Natal desaparece de minha sala. Ele vê meu
olho roxo, pede desculpas, mas a seguir relembra que a culpa é minha.
Que mereço cada agressão da parte dele e que tenho sorte por ele ainda
me deixar viva. Acompanho-o com o olhar até a cozinha. Escuto o som
da porta da geladeira e o copo sendo jogado posteriormente na pia.
Pronto. Meu plano teve início.
Há três anos que planejo acabar com Edgard. Já estive a um “quase”
de distância da minha liberdade. Esta noite será diferente. Edgard sem
saber bebeu tranquilizante. Misturado na água. Não vai demorar. Ele se
joga no sofá e liga a televisão.
Sigo até a adega, me sirvo de uma taça de Tannat das Serras Gaúchas
do Brasil, safra 2005, raro, mas a ocasião merece. E sigo para a cozinha.
O jantar hoje será especial. Torta de abóbora para sobremesa, rosbife e
purê de batatas para o prato principal e rabanadas. Escuto o resmungar
lento de Edgard, vou à sala e vejo o quanto ele já está entorpecido. Aju-
do-o a se levantar e me ofereço para levá-lo para descansar no andar de
cima. Subo os degraus, com ele escorado em mim e no penúltimo de-
grau, giro meu corpo rapidamente e o vejo cair. Rolando, barulhento.
Desço lentamente as escadas e vejo que ele ainda respira, com dificul-
dade, mas respira. Passo por cima daquele corpo estendido aos pés da
escada e vou para cozinha, tenho muito serviço para fazer. Apronto a
ceia, danço, bebo e entre um gole e outro ouço os gemidos de Edgard.
Ceia pronta.
Levanto Edgard e o arrasto até a cozinha. A entrada de nosso porão
fica lá, abro a porta no chão e lá vai ele, mais uma escada. Nosso porão
funciona como adega e despensa. Ao rolar a escada, em um ultimo gesto
estúpido de sua, igualmente, estúpida vida, ele bate a cabeça em uma
prateleira e o vidro de damascos cai em cima dele, o sangue espirra com

Contos de um Natal sem Luz 58


a quebra do vidro em sua testa. Shit! Sangue com damascos. Péssima
combinação! Um cheiro de sangue quente com damascos sobe até meu
nariz. Fecho a porta do porão, não sem antes maldizer o corpo inerte.
Ouço o badalar dos sinos da igrejinha, dezoito horas, melhor me
apressar. Um banho morno depois e estou nova, revigorada. Ele já vai
chegar para o jantar de Natal. De início recusou, mas insisti, disse que
Edgard não estaria em casa e depois de muito relutar aceitou. Orland,
negro que veio do Senegal para trabalhar na vinícola. Lindo. Eu o via
assim. Ele nunca me olhou além da gentileza e educação. Ao menos até
aquela noite Natalina. Às vinte horas, pontualmente, ouço a batida leve
na porta dos fundos, ele preferiu ficar longe dos olhares curiosos das
outras casas.
Bebemos, comemos e conversamos. Foi então que Orland cedeu à
curiosidade e perguntou sobre o olho roxo. Não menti, contei para ele
tudo que vinha vivendo nos últimos cinco anos. Ele baixou os olhos e
quase sem emitir som indagou: “Esse... esse homem sou eu? Sou eu Sa-
rah?”.
Apenas o olhei e disse que precisava lhe mostrar algo. O som das can-
ções Natalinas era, irritantemente, cada vez mais alto. Já passava das vinte
e três horas quando peguei as mãos firmes de Orland e o conduzi até a
cozinha, ali pedi que ele abrisse o alçapão do porão. Ele me olhou espan-
tado ao ver o corpo inerte, e naquele olhar eu vi que teria que mudar de
planos. E foi assim que, quando ele se inclinou para olhar melhor a cena
que se descortinava na penumbra do porão, eu o atingi na nuca com o
rolo de abrir massa que eu usara mais cedo para a torta de abóboras e
providencialmente estava, naquele momento, ao alcance de minhas
mãos.
Seu olhar de censura o condenara a morte. E esse cheiro? Malditos
damascos.
Ah Orland, queria você comigo agora. Quando lembro os dias que so-
fri por sua causa, das noites que chorei em silêncio pela dor dos espan-
camentos e pela dor do amor não correspondido. Enxuguei minhas lá-
grimas e liguei o carro. A vizinha que mais cedo me convidou para o jan-

Contos de um Natal sem Luz 59


tar apareceu na janela e acenou. Senti vontade de erguer a mão e esten-
der o dedo médio, mas o cheiro de sangue com damascos seria bem pior
quando fosse descoberto. Peguei a estrada e não vi quando o caminhão
cruzou a pista. Derrapei, mas segurei firme o volante. Agora as rédeas de
minha existência estavam em minhas mãos. Ouvi ao longe o badalar dos
sinos. Meia noite.
Olhei pela última vez aquela vila pelo retrovisor do carro de Orland.
Achei que ao menos esta parte do plano de fuga eu deveria manter. Eu
planejara fugir com Orland, imaginei em meus sonhos utópicos que após
saber a verdade ele ficaria ao meu lado e fugiríamos no carro dele. De
alguma forma Orland seguia comigo. Agora para sempre! E assim a noite
de Natal aconteceu na penumbra da estrada. Sozinha e feliz!

Contos de um Natal sem Luz 60


Casa 12

Ceia Inesperada
Marli S. Arruda

A neve dera uma trégua. Era Natal do ano de 2020. Dezenove horas
indicava o relógio de parede do pequeno hospital. Aguardava a enfer-
meira da UTI chamá-lo. Tantas inovações tecnológicas, científicas, sus-
tentáveis, ecológicas e, a cidade onde nascera: Bigpine, não possuía aces-
so à internet! Péssimo sinal de celular. Talvez fosse seu charme: certo
isolamento e conservadorismo. Através da janela o cenário da noite fria
de inverno americano era digno de cartão postal: neve, pinheiros, luzes,
enfeites, canções natalinas... Como tudo continuava belo diante da sua
dor? Parecia surreal. Pensou na noite anterior, quando fazia a preparação
da ceia com sua mãe, seu tio Alfred e sua tia Norma. Seu pai viria no
almoço de Natal e também Betsy, sua amada. Alguns parentes mais dis-
tantes chegariam atrasados devido às intempéries e ao trânsito intenso e
lento. Inovações tecnológicas, tempo ainda imprevisível. Como a vida.
- Hilary onde estão as cerejas? Não estou encontrando – tia Norma
procurava nos armários e balcões.
- Estão no porão. Também os vinhos e as conservas.
- Esqueço-me do precioso porão. (ri)
- Robert, você pode buscar, querido? Seu tio foi tirar um cochilo. O
trânsito acabou com ele.
- Sim tia, cerejas e vinhos?
- E pêssegos. O peru ficará divino. Capriche no vinho. Os melhores
da vinícola da adega
- Deixe comigo – pisca para as duas antes de ir.
- Fez um ótimo trabalho, Hilary. Ele é pessoa rara!
- A moça que o fisgar terá sorte. Vou conhecer Betsy...

Contos de um Natal sem Luz 61


A campainha soa. Norma dirige-se até a porta. Hilary ainda tem as
mãos meladas. Quem seria?
- Será o Papai Noel? - ri Hilary lavando as mãos
- Algum vizinho para desejar Feliz Natal?
Ouvia-se o “Noite Feliz” ao longe e a voz de John próxima, o que a
fez mover-se mais rápido.
- John! O que faz aqui agora? Combinamos que viria amanhã.
- Está esperando alguém? – entra fazendo Norma recuar.
- Não. Estão todos aqui. Exceto os que ficaram presos pela grande ne-
vasca. Combinamos que viria no almoço. O que houve?
- Vou antecipar. Precisamos conversar – seu olhar e também o odor
do álcool a fez concordar.
- Está bem. Mas seja rápido. Preciso acabar a ceia.
- Desculpe Norma. É particular.
- Está bem. Vou avisar Robert que seu pai está aqui.
Ele passa a mão nervosamente entre os cabelos. O cheiro do peru, o
calor da lareira, a casa tão bem decorada, o calor humano o fizeram lem-
brar-se dos natais que passara ali. O aperto no peito o fez respirar fundo,
antes de ir até ela.
- Sinto tanto sua falta, Hilary. De nós, da casa... Dos natais que passa-
mos juntos. Perdoe-me. Dê-me uma última chance.
- John! Nós já falamos sobre isso. Essa frase já ouvi tantas vezes. O
que houve com Samantha?
Ignorando a menção à moça, ele continua justificando motivos para
reatarem a antiga relação. Prometendo que tudo será diferente.
- Sim, será. Você terá uma nova vida e eu seguirei a minha.
Os primeiros dias de união foram maravilhosos. Porém, descobriu-se
incapaz de ser de uma mulher só. Gostava de outros prazeres. E os nu-
ances do ocultar. Hilary era seu porto seguro na volta das viagens trans-
portando uvas e vinho ou de reuniões com o chefe. Assim conheceu
Samantha, esposa do sócio da vinícola Rinaldy, que há 50 anos dava em-
prego e sustento aos cultivadores de uva e moradores da interiorana ci-

Contos de um Natal sem Luz 62


dade. Inclusive a ele. O doce sabor do pecado massageava-lhe o ego e
perturbava a razão.
Samantha nem cogitava separar-se. Usufruía de tudo que a riqueza e o
status podiam proporcionar-lhe, inclusive cirurgias plásticas e o que pu-
desse melhorar a aparência. Satisfazia-se com outros. Cautelosa, encon-
trava John em lugares nada públicos. Até serem surpreendidos...
Hilary já desculpara vários deslizes de John. Ao saber desse pela me-
lhor amiga que os surpreendera juntos, no casebre dos lenhadores, pediu
que ela e o marido guardassem segredo para não prejudicar John. Can-
sada das mentiras, desrespeito, promessas procurou um advogado. Fica-
ria com a casa em troca de uma separação calma e do seu silêncio. John
aceitou resignado, lembrando-se do poderio dos Renaldy. Dividiu um
apartamento com um colega já divorciado. O distanciamento de Saman-
tha alegando cautela e o inverno rigoroso frustrou-o. Sozinho, começou
a sentir falta do que perdera. Ao ver Hilary tão bem na celebração Nata-
lina onde o tema da renovação, renascimento e perdão fora usado na fala
do pároco, fê-lo repensar a sua vida. Ele sempre a persuadia a perdoá-lo.
Era questão de tempo. Usar bem as palavras e o momento.
Finda a celebração, foi abraçar o filho, os conhecidos e a ex-esposa,
sussurrou-lhe ao ouvido elogios e pedido de encontro. Conseguiu, com
muita insistência, a promessa de falarem-se após o almoço Natalino. Es-
perançoso, foi cear com colegas. Comentaram sobre as ex-mulheres. De
como a dele já despertava interesse de outros, inclusive de Ronald, seu
adversário nos jogos de azar.
O ciúme e o vinho tomaram conta de John. Sua cabeça fervia. Ele não
perderia Hilary para Roland. Decidiu encontrá-la, antes que fosse tarde.
Iria reconquistá-la.
Agora, frente a ela, fracassava. Ela estava irredutível. A raiva e o ciúme
tornaram suas palavras duras. Empurrou-a para o antigo quarto.
- Pai! Que está fazendo? Pare!
- Fique fora disso – afastou-o trancando a porta.
Discussões, gritos, depois dois tiros de arma de fogo. Em segundos o
Natal torna-se drama, desespero.

Contos de um Natal sem Luz 63


- Pai! Mãe! Abram! – tenta desesperadamente abrir a porta.
- Que tiros foram estes? – Alfred surge, desperto.
- Chame a polícia! John trancou-se com Hilary no quarto e agora nin-
guém responde – explica Norma.
Os minutos pareceram horas até os policiais arrombarem a porta e
encontrarem os dois caídos. A arma nas mãos de John, já sem vida. Hi-
lary, inconsciente respirava. Peritos constatam que ele alvejou-a e após
suicidou-se. Ninguém entendia porque tal atitude. Alfred e Norma toma-
ram as providências: o melhor para salvar a vida da mãe, os depoimen-
tos, o enterro do pai (o almoço em família dera lugar ao funeral). Ele
sentia-se incapaz, mas grato. Não conseguia acreditar que a alegre prepa-
ração da ceia transformara-se nessa tragédia.
- Senhor!
Trazido a realidade pela enfermeira, seca as lágrimas.
- Venha. Já pode vê-la. Leito sete. Tem quinze minutos.
- Como ela está?
- Estável. Sem alterações – informa e sai para medicar algum paciente.
Enchendo-se de coragem, anda entre os leitos, onde outros doentes
recebem visitas. Ao vê-la, entre aparelhos, tubos e máscara, treme. Suas
pernas amolecem. A luz tênue mostra a pele pálida, os lábios levemente
arroxeados que tantas vezes lhe sorriram, lhe disseram palavras de incen-
tivo, carinho ou reprovação: imóveis. O curativo a cobrir parte do peito e
da cabeça escondia sua beleza singular. Elegante, atraente, culta, solidária,
companheira, amorosa... Não entendia como o pai não lhe dera o mere-
cido valor. Via-a sofrer calada e compensava-lhe com atenção. A facul-
dade e a vida adulta os separaram. Não se surpreendeu com a separação.
Aprovou-a. Ela merecia ser feliz. Jamais imaginou que seu pai faria o que
fez. Surpreendeu a todos. Rezou pedindo misericórdia à morte. Implo-
rando vida à mãe. Não merecia ter sua vida ceifada Aperta a mão dela e
chama:
- Mãe! Mãezinha! Oh! Mãezinha! Fica boa logo, minha guerreira. Eu
te amo tanto... Quero que veja meus filhos, minha mulher. Temos muito

Contos de um Natal sem Luz 64


que viver. Você merece ser feliz. Eu... preciso de você. Todos nós Preci-
samos.
Os tios e Betsy juntam-se a ele abraçando-se. Ao comando de Alfred
formam um círculo em torno do leito orando com toda a força da fé.
Também palavras de carinho, encorajamento, esperança... Os olhos cer-
rados não veem os movimentos rápidos nas pálpebras de Hilary, nem a
enfermeira que veio avisá-los do término da visita, a olhar admirada, a
estranha luz em direção ao corpo da paciente no centro do círculo fami-
liar.
- O horário das visitas acabou. Desculpe, mas já está passando. Vocês
são os últimos.
Relutantes, mas compreensivos, um a um despedem-se, com palavras
de encorajamento e amor. Ele foi o último e reforçou tudo o que haviam
dito prometendo esperá-la com a ceia pronta.
Saem abraçados, em lágrimas. Um amparando o outro.
- Ela ficará bem não afetou o cérebro. Vamos até a vila. Faremos nova
corrente de orações junto à comunidade. Ela é muito querida por todos.
Há outros moradores em dificuldades. Vamos também ajudar a quem
precisa formando mutirões de esperança como sua mãe sempre ensinou.
Sim. Ela sempre estava pronta a ajudar a todos do vilarejo. Na grande
metrópole sentia imensa falta desse cooperar. Ao chegarem à entrada da
vila, já avistaram o movimento ao fundo. As luzes dos lampiões, o pároco
orientando as orações, muitas pessoas com lampiões nas mãos, entoando
canções e orações de esperança Que bela imagem. Juntaram-se a eles.
Todos com um ou mais pedidos, numa corrente de luz no fundo da rua.
No hospital, Hilary manifestava os primeiros sinais de alteração.

Contos de um Natal sem Luz 65


Casa 13 –

Moto-contínuo
Eliana M. Fochi

Suspeitou de que estava por vir outro dia especial quando viu o filho
esvaziando sobre a mesa uma sacola com uma ave graúda e branquicenta
e duas garrafas de bebida indecifrável. Voltou o rosto para a folhinha de
mulher quase pelada pregada na parede e leu que era dezembro, podia
até ser Natal.
Perguntou a ele que dia era.
- Vinte e quatro. Amanhã é Natal.
Depois, mais nada. Ele guardou o frangão na geladeira, de onde tirou
uma cerveja que abriu com os dentes. Sentou-se à frente da televisão,
escolheu um canal qualquer e trancou-se em si. A mãe já estava acostu-
mada àquele silencioso viver dele e aos rituais de espera em datas especi-
ais: no dia de Ação de Graças, no dia 4 de Julho, no aniversário das cri-
anças e da esposa... sempre os preparativos.
A mulher o abandonara há cinco anos e alguns meses, levando consi-
go as duas meninas pequenas, a caçula mal balbuciava o próprio nome.
Sem aviso prévio, sem explicações, sem barulho, ela simplesmente eva-
porara. Quando chegou do trabalho no posto de gasolina, ele só encon-
trou a mãe em sua posição de sempre, em sua cama de sempre, com sua
invalidez de sempre. Quando a noite chegou e a mulher não apareceu
com as filhas, ele soube que se coroara um desfecho anunciado há tem-
pos por queixas murmuradas intermitentes, descasos constantes, mutis-
mo e indiferença.
Mas não atinava com razões de fato, coisa que se pudesse entender
como causa razoável de abandonar marido e casa. Que se soubesse, ela
não tinha manifestado interesse por ninguém (o que seria uma causa

Contos de um Natal sem Luz 66


plausível); vivia sempre em casa, dando conta do serviço e das meninas,
que trazia sempre limpas e penteadas. Era um casamento em paz, de
fazer inveja, pensava-se. Então, por que o sumiço sem palavra, sem expli-
cação nenhuma?
Tinham-se casado quando a mulher engravidou da primeira menina.
O namoro fora curto, tinham-se conhecido na igreja da cidade, numa
reunião dominical em que o celebrante pregara o Sermão da Montanha,
tão lindo com aquele enredo dos lírios do campo que não tecem nem
fiam... A moça estava ao lado do pai e captara os longos olhos do rapaz
em sua direção, durante todo o tempo. Se ela levantava os olhos, encon-
trava os dele, na insistência. Depois da igreja, seguiu-a até a casa 13, onde
ela tinha vindo morar a poucas semanas, quando o pai fora contratado
para gerenciar a vinícola. Não trabalhava, apenas cuidava do pai viúvo.
Na semana seguinte, um encontro nada fortuito (ele fizera tocaia) permi-
tiu que soubessem os nomes um do outro e prometessem encontrar-se
no baile anual da vinícola. A dança, o cheiro de cada um, a vontade de
namorar... Um curto tempo e a gravidez anunciada. Ele ficou feliz com a
notícia e cuidou de tudo para que a moça não ficasse falada na cidadezi-
nha. Casaram-se nos moldes da simplicidade; a cama da mãe passou a
ocupar um canto da sala cozinha, cedendo o quarto ao novo casal e, de-
pois, às duas meninas. A moça pouco pedia, era de hábitos simples, par-
cas palavras e gestos comedidos.
Na verdade, ela era uma ótima esposa, como atestava a mãe do rapaz.
Nunca reclamava de ter de cuidar da sogra inválida, além de garantir ao
pai viúvo a comida e a roupa lavada. Quando podia, em seu pouco tem-
po livre, a moça folheava revistas velhas e lia a coleção da Reader’s Digest
desatualizada que ainda sobrevivia na casa. Nada que pudesse indicar
infelicidade ou seu oposto. Era apenas uma existência, sem adjetivos, ao
que parecia.
As crianças se manifestavam em horas de fome e em pequenas rusgas
por um brinquedinho disputado. No geral eram como a mãe, pouco per-
ceptíveis. Às vezes estendiam os braços para a avó quase defunta, exter-
nando o amor desinteressado, mas sem duração ou transbordamento.

Contos de um Natal sem Luz 67


Sempre desistiam logo, quando percebiam a imobilidade do corpo, que
talvez estranhassem. A voz fraca da avó não parecia corresponder às ex-
pectativas de jogos infantis; daí a fugacidade dos momentos compartilha-
dos. De sua cama, a velha senhora adivinhara o desfecho, mas nada dis-
sera, nem antes, nem depois. Apenas via como a vida murchava ali, em
rotinas e excesso de realidade; nenhum lugar para um assovio, uma can-
çãozinha desafinada que fosse, um riso mais agudo e ledo. Era uma vidi-
nha, vidinha, só. E agora, neste Natal, o homem fingia que em nenhum
outro dia cumprira o mesmo ritual de espera, da espera-esperança ou
certeza de que na hora exata elas iam entrar sem bater, talvez no mesmo
silêncio de sempre, mas ali, com ele, para a ceia e depois o dia inteiro.
Talvez pudessem até desaparecer de novo; todavia, teriam dado corpo
novamente àquela só ausência dos últimos anos.
Por volta das dezenove horas, desembalou o frango branquicento e
colocou-o no forno, lambuzado de manteiga, com umas cebolas. Depois
preparou um purê tirado de uma embalagem de papel e arrumou a me-
sa, com quatro pratos, de acordo com o esperado – a mãe comeria a so-
pa que a vizinha da casa 14 preparava, por algum dinheiro, uma vez por
semana, e se ia esquentando, aos poucos.
Tarde da noite, desligou o forno, arranjou a comida na mesa e ador-
meceu no sofá. A mãe viu como o sono dele se agitava em falas ininteligí-
veis e sobressaltos. Ora riso, ora murmúrios de choro. Em sua insônia de
doente, ela acompanhou grande parte da noite e da madrugada de so-
nhos indecifráveis do homem. E teve pena da dor dele, que julgou pior
do que a sua própria, de tantos anos e ossos inúteis. Viu-o acordar no dia
de Natal e guardar a comida na geladeira. Serviu café com pão para a
mãe e saiu para a rua. À noite, os sinos da igreja já haviam deixado de
soar, e o frio o trouxe de volta para casa. À mesa, os pratos ainda estavam
arranjados; à frente de dois deles, ele colocou dois pequenos pacotes
meio amassados, tirados de uma gaveta onde dormiam e de onde saíam
em ocasiões, há pelo menos cinco anos; eram das meninas – dois ursi-
nhos quase brancos de olhos e nariz de botão e pelo fofo. Elas iriam ado-
rar! E eles haveriam de rir como nunca, porque ao aperto das barrigas, os

Contos de um Natal sem Luz 68


ursinhos cantavam jingle bell, jingle bell, jingle all the way... Quantos iam
ser felizes aqueles momentos em família!!! Era só esperar um pouco mais
e tudo seria como se queria que fosse... o ali juntos, o ali alegres, o ali se
amando. Foi para a caixa de correspondência, do lado de fora; voltou
com o envelope amarelo, igualzinho aos outros, e sentou-se para ver o
conteúdo.
Vinha novamente sem remetente, como ele sabia ser, e com os cabe-
los loirinhos, em dois feixes atados com fita perfumada, ao lado do cartão
de renas e bonecos de neve com nariz de cenoura; os dizeres impressos
repetiam a mensagem de amor e fraternidade, que culminava com o in-
defectível Merry Christmas em letras de purpurina, equilibrado entre
guirlandas.
Mas aquelas figuras e aquelas palavras foram lidas por ele centenas de
vezes naquele dia, e nelas, a cada nova leitura, ele podia ler novas pro-
messas, novas palavras, ver novas faces de duas lindas meninas crescendo
cada dia mais lindas e cheias de saudade do pai. Elas renovavam suas
declarações de amor eterno por aquele pai tão bom e tão querido, sem
cuja presença a vida delas era muito, muito difícil. Prometiam estar com
ele de novo no próximo feriado (no mais próximo possível), quando se-
ria uma festa de beijos e abraços. Era o milagre do Natal que os reunia,
para apagar os rabiscos da dor naquela história. Amanhã já seria possível
ser mais feliz, talvez. E seria tudo outra vez, a esperança.

Contos de um Natal sem Luz 69


Casa 14

A Esperança não Mora ao Lado


Priscilla Ibanez

Desde meus 14 anos eu tenho por tradição começar a véspera de Na-


tal da mesma maneira, sentada em minha máquina de escrever. Escrevo
para meus pais e meu irmão, como forma de agradecer por tudo que me
proporcionam e ainda irão me proporcionar. Sempre gostei da ideia de
mandar cartinhas Natalinas a família e vizinhos tentando mostrar uma
luz, era a minha maneira de fazer o bem visto que eu não podia ser essa
luz da minha vila.
- Lúcia, acordou cedo pra escrever suas cartas?
- Sim mãe, estranho seria se eu não acordasse a casa com o barulho
destas teclas que insistem em quebrar o silêncio desta fria manhã.
- Bom dia minha pequena, já estou ansiosa para ler você por meio de
suas cartinhas... Aliás, faz tempo que seu pai saiu?
- Sim, acordei-os no susto. E ele levou Matth junto, queria começar o
dia ensinando as lidas da vinícola para um dia poder leva-lo para traba-
lhar consigo.
Minha mãe era a maior inspiração que eu poderia ter, ela me dava
forças até quando transmitia fraqueza, fraqueza esta que lutava em es-
conder. Já meu pai, era um exemplo de trabalhador, fazia tudo o que
estivesse em suas mãos para nos proporcionar uma boa vida e meu ir-
mão, bem, ele precisa de umas rédeas curtas, pois é facilmente influenci-
ável, o que não é nada bom...
Assim como a neve fina que batia em minha janela, derretendo aos
poucos, minhas palavras estavam sumindo de um modo que eu não sabia
o que escreveria neste Natal para minha família. O frio estava tornando
meus pés insensíveis e não tinha mais lenha dentro de casa, resolvi buscar

Contos de um Natal sem Luz 70


e no caminho encontrei minha mãe em chorando baixinho. Nossa vida
estava longe de ser recheada com fartura, mas éramos felizes com o pou-
co que tínhamos. Fiz o contorno pela casa pra ela não notar que eu a
tinha visto em um momento sensível, busquei a lenha na tentativa vaga de
aquecer os corações da minha família e buscar a esperança em um lugar
que eu nem sabia como chegar.
Meu pai e meu irmão chegaram na hora do almoço, trazendo uma ár-
vore para decorarmos antes da ceia, com ela veio um aroma solitário que
insistia em dizer que minhas palavras não chegariam tão cedo. Cansada
de procurar palavras resolvi almoçar antes que dona Maria reclamasse
que a comida esfriou de tanto me esperar.
- Hmmmmm, fui conduzido da vinícola até aqui pelo aroma desta
comida - disse meu pai.
- Sim pai e eu quem tive que ouvir em todo o trajeto que o senhor es-
tava faminto! – retrucou meu irmão.
- Todos nós estamos famintos, agora antes de tudo, vamos agradecer
por essa comida, nunca se sabe o dia de amanhã – falou Maria, minha
mãe.
Desde que superamos a época mais difícil de nossas vidas, que fazía-
mos uma refeição sem saber se faríamos outra no dia seguinte, minha
mãe passou a agradecer por todo o alimento que entrava em nossa casa.
Uma singela maneira de não esquecer o quão vulneráveis somos e tam-
bém que tudo na vida passa e as coisas melhoram.
Depois do almoço, meus pais ficaram na cozinha para começar os
preparativos da ceia enquanto eu e Matth fomos para a sala arrumar nos-
sa nova árvore de Natal com nossos poucos enfeites, mas enchendo de
amor e espírito Natalino. Meu irmão resolveu dormir e eu fique lá,
olhando para a janela e vendo aquela montanha ao fundo, não sei por
que, mas ela me dava calafrios.
- Filha, venha cá conosco – chamou meu pai.
- Precisam de ajuda?

Contos de um Natal sem Luz 71


- Aqui não, mas quero que pegue o vinho no meu carro e me traga,
depois pegue os presentes no nosso quarto e coloque na árvore antes do
seu irmão acordar.
- Mais alguma coisa?
- Por enquanto é isso, filha.
- Lúcia?? Poderia ir à igreja levar estes pães? Aproveite que o tempo
está colaborando, fiquei de entregar ao Rafael – disse minha mãe.
Fiz o que meu pai pediu. Agasalhei-me e fui levar os pães. A rua esta-
va vazia, o que não colaborava para o espírito de Natal. A caminhada era
difícil e o vento me cegava, o que levou praticamente o dobro do tempo
para chegar à igreja.
Chegando lá, encontrei Rafael sentado de frente para o altar. Ele era
um garoto solitário e misterioso, sempre convidávamos para passar o
Natal conosco e ele negava todas às vezes, foi ai que minha mãe começou
a ajudar de outra maneira, contribuindo com sua ceia. Eu tentava conver-
sar com ele, mas ele era de poucas palavras, nunca insisti, mas sempre
quis ajuda-lo de alguma maneira, acontece que eu ainda não a encontrei.
Demorei a voltar, resolvi caminhar ainda mais devagar, contemplando
o cenário eternamente vazio e silencioso que eu vivia. Nos meus 19 anos
eu nunca havia viajado para longe e os poucos recursos que tínhamos
dificultam algumas coisas. Quando estava chegando, já estava escurecen-
do, cheguei em casa, me encostei no sofá e dormi.
Acordei com a voz abafada de minha mãe, dizendo para meu irmão
cortar um galho da nossa árvore de Natal, o vi sair para pegar um fação,
era quase meia noite e eu nem tinha trocado de roupa.
- Filha, se arrume logo, o Natal está no ar! – disse minha mãe.
Levantei cambaleando e fui trocar de roupa, vestida em trajes verme-
lhos e brancos, voltei na hora exata que seria a pior hora da minha vida.
- NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOOO – gritei ofegante, mas já era
tarde de mais.
Meus pais correram para a sala e eu estava em estado de choque. Ao
subir em uma cadeira para cortar o galho, meu irmão caiu e o fação afia-

Contos de um Natal sem Luz 72


do atingiu seu braço esquerdo, transformando o tapete branco (presente
de meu pai) em vermelho.
Sem pestanejar minha mãe pegou uma toalha na vã tentativa de estan-
car o sangue e meu pai correu pegá-lo para levar para o pronto socorro
que estava a milhas de distância. Não me deixaram ir junto, e em meio
aos gritos e choros levaram meu pequeno Matth para ser salvo.
Foi aí que minha inspiração chegou, nas exatas 23:58 min do dia 24
de dezembro e sentada em minha máquina, com cheiro de sangue no ar,
transmiti minhas palavras, desta vez com uma caneta e um guardanapo.
“Em todo o Natal, eu busco a esperança de dias melhores, dias que eu
não sei se vão chegar amanhã ou no próximo ano. Todo Natal peço
compaixão e agradeço pela família que eu tenho, por tudo o que eu te-
nho. Sinto medo, fome, frio, mas não me abalo pelos obstáculos que a
vida me impõe, busco a força nos pequenos detalhes, busco a esperança,
na escuridão. Todos temos problemas, nossa família também. Ouço cho-
ros e brigas, mas não me desmotivo, tenho fé e paciência e creio que um
dia vamos todos chegar aonde queremos. Sinto medo de perder meu
irmão e classifiquei esse dia como o pior dos dias, mas justamente este
dia que vai ser a lição que vai marcar nossas vidas. Precisamos de um
ponto de impacto para vermos que algumas coisas devem melhorar e não
importa o que aconteça, devemos nos permanecer sempre unidos...”
Acabei ali, não queria colocar mais dor pra fora, não queria que nin-
guém soubesse o quão frustrada em me sentia por ter deixado meu ir-
mão tão vulnerável enquanto eu trocava de roupa, queria meu irmão vivo
e salvo.
Passei o dia 25 sem noticias, tendo como surpresa o pequeno Rafael,
que bateu em minha porta e entrou. Ele me disse que havia visto meus
pais saírem e por isso não veio antes, em silêncio ele fez a ceia comigo e
me ajudou a limpar a sala, me abraçando quando chorei, eu estava can-
sada e ele me deixou dormir, cuidando de tudo pra mim. Prometeu me
acordar quando chegasse minha família, o que não aconteceu.
Ouvi o barulho do carro às exatas 22:43 do dia 26 de dezembro, sem
Natal, sem felicidade, o desespero bateu quando meus pais chegaram

Contos de um Natal sem Luz 73


sozinhos em casa, foi aí que eu percebi que a esperança não existia mas
ela se acendeu quando Matth colocou um braço pra fora, com uma faixa
enorme, com ele um cup cake e uma mensagem escrita “depois da tem-
pestade sempre vem a calmaria”

Contos de um Natal sem Luz 74


Casa 15 –

Presente de Natal
P.H Bragança

A neve caía devagar lá fora, enquanto Oliver observava pela janela a


movimentação dos vizinhos em suas casas enfeitadas e decoradas para o
Natal. A impaciência tomava conta do homem de trinta anos, cabelos
negros e pele clara. Oliver nunca gostou deste clima natalino. Para ele
não passava de uma simples desculpa para as pessoas gastarem dinheiro
com presentes, enfeites e comidas que apenas se consumia naquela épo-
ca do ano. Era um clima de falsidade e hipocrisia que o enchia de nojo.
Sentado na sala, Oliver havia bebido duas garrafas de vinho tinto e já
estava terminando a terceira. Seu rosto normalmente pálido estava rubo-
rizado pelo efeito do álcool. Enquanto Oliver devaneava olhando a neve
cair, sua esposa Aurora corria para terminar de preparar a ceia de Natal.
Aurora possuía os cabelos loiros, quase brancos como a lua, os olhos
azuis e feições suaves. No forno o peru estava quase pronto e a mesa
estava quase inteiramente posta com os talheres de prata herdados da
avó, um candelabro simples para deixar o jantar mais romântico e várias
iguarias Natalinas. Ao contrário do marido, Aurora adorava o clima nata-
lino.
- Amor! Só mais um minuto, o peru está quase pronto – gritou Aurora
da cozinha.
Oliver nem se deu o trabalho de responder. Ele não aguentava mais
toda essa tagarelice da esposa. Já estava de saco cheio com ela. Desde a
mudança de NY ela não era mais a mesma, parecia ter se tornado uma
dessas caipiras, talvez fosse o choque de sair de uma megalópole para
uma vila tão pequena, mas não era desculpa. Aurora passava horas e ho-
ras ao telefone, e para Oliver, ela parecia encerrar a ligação assim que ele
chegava do trabalho. O último gole e a terceira garrafa de vinho termina-

Contos de um Natal sem Luz 75


ram. Oliver arremessou-a contra a parede da sala, enchendo o pequeno
cômodo de cacos de vidro.
- Droga mulher, essa ceia ainda vai demorar muito? – perguntou en-
louquecido de fúria.
Da cozinha a esposa ouviu o estraçalhar da garrafa. Pelo menos era
apenas uma garrafa de vidro. Uma lembrança dolorida, dos tempos de
NY voltou a lhe atormentar. Abalada, ela terminou de pôr a mesa e
chamou o marido.
- Está pronto querido. Vamos cear e comemorar a essa noite especial.
Cambaleando, Oliver foi à cozinha. Sentou-se na cabeceira da mesa.
Ele sempre dizia que era ali onde o homem da casa deveria se sentar,
com a esposa ao lado direito, submissa ao chefe da família. Ordenou a
esposa que o servisse e depois poderia se sentar e juntos aproveitariam o
saboroso jantar. Aurora obedecia ao marido sem pestanejar por medo de
represálias.
Neste meio tempo o telefone de Aurora tocou. Ela ainda estava de pé
servindo-se e foi Oliver quem atendeu. Uma voz masculina do outro lado
da linha perguntava por Aurora. Oliver possesso de raiva perguntou ao
outro homem o que ele queria com a sua esposa. O sujeito se identificou,
dizendo se chamar Júlio e que conhecia Aurora do mercado que ficava
na cidade. Oliver mentiu para Júlio dizendo que Aurora estava indisposta
e que assim que possível retornaria a ligação. Júlio se desculpou e dese-
jou um feliz Natal a ela.
- Sua vagabunda, quem é esse Júlio? Responda-me! – gritava Oliver
perdendo o controle.
Aurora assistiu toda a cena calada. Um tremor começou a tomar conta
do seu corpo que já sofrera tantos maus tratos do marido por ciúmes e
bebidas e temia que fosse acontecer de novo. Júlio era apenas o dono do
mercado e havia ficado de avisar Aurora quando as ameixas que ela usa-
ria para preparar uma torta na virada do ano chegassem. Ela tentava ex-
plicar para o marido, mas ele não parecia escutar o que ela dizia.
- É só o dono do mer...

Contos de um Natal sem Luz 76


Com um soco no rosto, Oliver interrompeu a frase de Aurora. E mais
outro e outro. Aurora caiu no chão com a boca ensanguentada. Oliver
passou a chuta-la nas costelas, na barriga, na cabeça. A mulher tentava
gritar por ajuda, mas os pontapés a deixaram sem ar e os socos em seu
rosto a deixaram tonta.
- Vadia, puta! É isso que você merece sua desgraçada! – gritava Oliver
enquanto agredia a mulher.
Aurora tentou se levantar e Oliver com uma cadeira atingiu-a nas cos-
tas. O barulho abafado de costelas e madeira quebrando fez-se ouvir.
Aurora caiu desmaiada. O rosto cortado e inchado, algumas costelas
quebradas, o braço direito estava em um ângulo anormal indicando que
também estava fraturado.
- Você não gosta do Natal, sua puta? Está aí seu presente de Natal.

Contos de um Natal sem Luz 77


Casa 16

Natal na Vila Garden Rose


Eloisa Helena Cavalcanti Barroso

O inverno de 2020 estava castigando os Estados Unidos. Na nossa ci-


dade, um pequeno povoado entre as montanhas, parecia ser pior. Junto
com a neve e o vento zumbindo em nossos ouvidos, veio também a falta
de energia nos deixando várias vezes no breu e na solidão.
Morávamos na casa 16 da vila Garden Rose, uma vila de vinte casas
numa rua sem saída, bem próxima a única estrada que nos ligava ao resto
do mundo. A rodovia servia também para a maioria dos trabalhadores
irem para a vinícola, principal fonte de renda da cidade.
Minha família havia herdado a casa da tia Mary Ann, que ainda em
vida, decidira ir morar com a irmã num subúrbio de Nova York. Meu pai
aceitara de bom grado nossa mudança, já que se encontrava desemprega-
do, por isso toda nossa vida mudou já havia uns seis meses.
Meu pai tinha conseguido emprego na vinícola e minha mãe cuidava
de nós quatro: eu, Elizabeth, com dezesseis anos, minha irmã Margareth,
com 14 anos, meu irmão Kenny Roger de 10 e minha irmã Sarah Helena
de quatro anos. O fato de fazer parte de uma família grande foi vantajoso
para que eu conseguisse me adaptar a essa mudança brusca de cidade, de
escola e de amigos. Mas se me perguntasse, nessa véspera de Natal, o que
eu desejava, eu diria que era voltar a morar na nossa antiga e grande ci-
dade, onde me sentia integrada com minha geração, podendo sonhar alto
o que gostaria de fazer ou não com a minha vida.
- Elizabeth, já acabou de descascar as batatas?
A voz da minha mãe sempre foi o leme que nos conduziu a realidade
e a nossa realidade agora era o preparo da ceia de Natal. Eu estava aju-
dando na cozinha e Margareth olhava os menores. Meu pai havia saído
em busca de lenha, pois o nosso estoque estava baixo.

Contos de um Natal sem Luz 78


Naquela noite o único programa era ir à missa, que seria às dezoito
horas e não a meia-noite, devido ao rigoroso inverno que atravessávamos.
Minha mãe iria levar um prato de salgado para a igreja, esse seria nos-
so presente para os necessitados. Apesar de que na cidade não tínhamos
esse tipo de problema, os necessitados fugiam daqui para outros locais.
- Mamãe, a Margareth não quer me dar o candy cane que papai trouxe
- Sarah Helena puxava a saia com voz de choro.
- Margareth, deixa comer um desses doces. Só um.
- Ela já comeu o dela - dizia Margareth - Está inventando que é para
dar para a amiga Bessy que só ela vê.
- Vejo sim mamãe e ela está aqui perto de mim agora.
- Sarah Helena para já com isso. Vamos levar um desses doces para
sua amiga Janet. Ela deve ir à igreja.
- Eu não quero ir mamãe. Tá muito frio lá fora.
Meu irmão Kenny Roger acabava de entrar na cozinha e estava muito
vermelho. Minha mãe desconfiou de febre e realmente ao tirarmos a
temperatura dele já estava com 38 graus e meio.
Foi assim que depois que meu pai chegou, minha mãe e ele decidiram
que iriam rapidamente à Igreja, levar o prato de salgado e eu ficaria com
meus irmãos.
Nossa Vila estava toda enfeitada, cada casa mais bonita que a outra.
Parecia até competição. Eu tinha que concordar que quando havia luz,
era tudo muito lindo. Por faltar luz às vezes, nos preocupamos em ter
muitas velas, fora a lareira acesa, mas eu sempre senti muito medo. Por
isso fiquei meio apreensiva quando soube que ficaria algumas horas só
com meus irmãos naquela noite. E se faltasse luz?
Eu tinha herdado o gosto pela cozinha como a minha mãe e não me
custou nada atender ao pedido dela de fazer um caldo de carne com le-
gumes para meu irmão Kenny. As crianças estavam na sala e ouvia o ba-
rulho de suas vozes.
A neve lá fora caía sem parar e da janela da cozinha eu via também a
Vila enfeitada. Aquele lugar era no mínimo pitoresco, mas para mim o

Contos de um Natal sem Luz 79


que contava é que estava longe da civilização. Isso não me agradava nem
um pouco.
De repente comecei a ver um vulto de Papai Noel caminhando e ar-
rastando um carrinho de corda cheio de presentes e ele estava vindo em
direção a nossa casa. Já passava das sete horas da noite e meus pais devi-
am estar saindo da Igreja naquela hora. Portanto, eu pensei, eu não vou
abrir a porta. Tarde demais. Escutei o ranger de a porta abrir e o grito de
Sarah Helena de alegria ao ver o tal Papai Noel. Corri para a sala, mas
instintivamente levei o facão da cozinha escondido atrás na saia. O Papai
Noel distribuía presentes para os meus irmãos, mas quando o meu olhar
cruzou com o dele, o meu medo aumentou, senti um mau pressentimen-
to.
- Linda garotinha, para você eu trouxe um presente especial, mas é
grande. Você quer me ajudar a pegar?
O Papai Noel pegou minha irmã Sarah Helena no colo e foi saindo e
batendo a nossa porta, e rapidamente fechou a porta por fora, nos tran-
cando na nossa própria casa. Ele estava levando a nossa irmã e nós de-
moramos um pouco, acho que dois segundos, para acreditar que isso
estava acontecendo.
- Margareth! Ele está levando nossa irmã - gritei, enquanto tentava
abrir a porta.
Meu irmão Kenny estava febril deitado no sofá, só restava eu e Marga-
reth para irmos atrás do tal Papai Noel.
- Vamos pela janela - disse Margareth - E assim nós duas pulamos a
janela e lá fora além do frio, outra surpresa nos esperava; a escuridão. De
novo faltou energia, as luzes piscaram duas, três vezes e se apagaram de
vez.
- Sarah! Sarah! - gritei
- Socorro! - gritou Margareth - Levaram minha irmã!
Silêncio. Sarah não respondia.
- Vou pegar uma lanterna - disse Margareth
Os minutos a espera da lanterna ali recostada na parede da janela com
a minha mão no facão. Pensava se teria coragem suficiente para usar ele

Contos de um Natal sem Luz 80


no falso Papai Noel. Minhas pernas tremiam e eu pensava porque meus
pais não chegavam, por quê?
Nas outras casas havia barulhos, mas ninguém tinha ido nos socorrer
lá fora. Avistei um vulto numa das janelas. Uma mulher gritou:
- Volte pra dentro de casa. Eu vou chamar a polícia.
Margareth voltou com a lanterna e juntas e de mãos dadas fomos ca-
minhando para a saída da vila. O vento forte parecia querer nos derrubar
e quando já estávamos alcançando a estrada vimos aqueles dois vultos, de
duas crianças ao longe, caminhando para nós. À medida que elas vinham
se aproximando, eu pude ver que uma delas era minha irmã Sarah. Gri-
tei:
- Sarah, é você?
- Elizabeth me espera, já estou indo.
Eu e Margareth apressamos os passos em direção às meninas, nós du-
as de mãos dadas íamos ao encontro delas que estavam também de mãos
dadas vindo em nossa direção. Mas enquanto as meninas se aproxima-
vam, estranhamente, a tudo que já havia visto na vida, aqueles dois vultos
foram se tornando um só. A única que chegou perto de nós e nos abra-
çou foi nossa irmã Sarah Helena. A outra criança que eu só vislumbrei
como um vulto ao longe, não tinha chegado até nós.
Corremos para casa com Sarah Helena no meu colo e a mão de Mar-
gareth segurando a ponta do meu casaco. A porta da nossa casa estava
aberta. Gelei de medo. Entramos de mansinho, primeiro Sarah, depois
Margareth, e eu atrás segurando agora o facão. Lá dentro o fogo da larei-
ra e algumas velas nos acalmaram. Não havia ninguém lá dentro a não ser
Kenny Roger assustado chorando baixinho. Abraçamos-nos por alguns
minutos até nossos corações conseguirem bater mais compassadamente e
após fechar bem a porta, pedi a Margareth para orarmos em ação de
Graças pela volta de Sarah Helena naquela noite. Depois foi que pergun-
tei:
- O que houve quando o Papai Noel te levou?
- O Papai Noel estava me levando para conhecer a casa dele e lá na es-
trada minha amiga Janet apareceu e eu não sei o que ela fez que assustou

Contos de um Natal sem Luz 81


o Papai Noel. Ele e disse que era assombração e nos largou lá na estrada,
no escuro. Então minha amiga Bessy me deu a mão e disse que me traria
até você.
- Ela está aqui agora? – perguntei
- Está sim e ela quer um doce daquele, o candy cane.
Margareth trouxe o doce e eu dei para Sarah Helena
- Está aqui, pode dar para sua amiga Bessy e agradeça por tudo que
ela fez por nós.
- Ela está feliz e mandou dizer a você que mamãe e papai estão che-
gando.
A porta rangeu de novo e dessa vez era nossos pais.
- Então, como foi tudo aqui? Ficaram com medo do escuro?
- Não mamãe, correu tudo bem por aqui. Até teve a visita do Papai
Noel! – disse Sarah Helena.

Contos de um Natal sem Luz 82


Casa 17

A Boa Filha
S. M. Oliver

Era seis da tarde quando Ava trancou a porta da pequena lanchonete.


De longe viu um carro passar pela estrada e por um momento suas espe-
ranças se acenderam. Mas seu sorriso se desfez quando percebeu que o
motorista não era Louis. Hoje era “o dia”, mas não estava na hora mar-
cada, portanto, paciência. Caminhou para longe da pequena espelunca
no qual servia sanduíches a caminhoneiros e viajantes há dois anos, e
suspirou, agradecendo à Deus pelo término do expediente. À véspera do
Natal não lhe rendera nem dez dólares de gorjeta.
Caminhou com custo, suas botas lutando contra os trinta centímetros
de neve, e o forte vento carregado de flocos de neve. Apertou-se contra o
casaco grosso e sentiu uma pontada no estômago. A verdade é que o que
aconteceria dali a poucas horas poderia ser a maior mudança da sua vida.
Pegou a interestadual e andou a pé até sua casa. Durante o percurso até a
pequena vila, lembrou-se dos beijos inocentes de Louis, e da promessa
que ele lhe fizera. Ele não era como os outros, aqueles que passavam
pela estrada e lhe jogavam cantadas baratas. Ele não. Ele conquistou sua
amizade com um sorriso, bilhetes escritos em guardanapos, e um beijo
roubado depois do expediente. E é claro, fizeram amor dentro do carro
dele. O que ela jamais sonhara fazer. Afinal era filha do reverendo Jacob,
da pequena cidade, onde tudo era comentado, falado. No início teve
medo de que chegasse aos ouvidos do seu pai, mas Louis a levava para a
cidade vizinha, para que ninguém os flagrasse, mas com o tempo nin-
guém desconfiou. Louis nunca se hospedava em motéis, evitando rastros,
evidencias, sempre namoravam no carro e assim quase um ano viviam
esse amor. E agora... era diferente... tudo seria diferente.

Contos de um Natal sem Luz 83


Uma hora mais tarde, sua caminhada pela beira da estrada a levou ao
início da vila. Contemplou as casas simples de seus vizinhos, assim como
a dela, imaginando que depois da meia noite não as veria nunca mais.
Entrou sem fazer barulho, mas seu pai lhe recebeu na porta com um
abraço sufocante, dando-lhe um susto.
- Tire esse casaco Ava! Está ensopado de neve! - disse o velho Jacob
tentando retirar o casaco da filha que o impediu com urgência.
- Não papai! - ela desvencilhou-se. - Irá se sujar de neve, vou tomar
um banho.
- Não demore, sabe que sua mãe serve a ceia antes da meia-noite, e
precisa ajudá-la.
Durante o banho Ava chegou a vomitar. Suas dores aumentaram e ela
desejava que as horas passassem depressa. Não suportaria mais um dia
naquele lugar, longe de Louis, das promessas de uma vida melhor, não
suportava mais viver o papel da filha perfeita do reverendo da cidade.
Colocou seu vestido mais largo, que felizmente era o mais novo e um
casaco grosso por cima. Só precisava disfarçar mais uma vez.
A ceia fora servida às dez e meia. Mas antes, o reverendo quis dar
uma palavra.
- Antes a nossa oração ao Senhor - meditou apontando a cabeça para a
filha. Esta respondeu negativamente, mas diante do olhar severo do pai,
precisou obedecer.
- Senhor... - ela começou, com a mente vazia de agradecimentos. Esta-
va envergonhada diante do Deus de seu pai, se é que era o mesmo dela. -
que abençoe esse alimento e que... - onde estaria Louis? A caminho da
estrada? E a nevasca? Atrapalharia os seus planos? - e... que não falte na
nossa dispensa nem dos nossos irmãos e vizinhos.
- Amém! - disseram em coro.
Comeram em silêncio, enquanto Ava engolia a comida com dificulda-
de. Culpa talvez. Suas pontadas no estômago aumentaram e perdeu
completamente o apetite. Mesmo assim cumpriu seu papel de boa filha
até a sobremesa, pela última vez.

Contos de um Natal sem Luz 84


Ajudou a mãe com a louça, e depois foi se deitar. Alguns minutos de-
pois Jacob aparecera em seu quarto com algo nas mãos. Um embrulho
mal feito, mas ainda assim era um presente com certeza. Ele nunca lhe
dera presentes na vida!
– Ava, sua mãe me disse que gostou de uma coisa, e mesmo eu não
concordando, pois você sabe o que penso sobre isso, eu comprei pra
você. Afinal você fez dezoito anos semana passada. Tive que ir à outra
cidade para achar...
Ava surpresa, tomou o embrulho e descobriu um livro de capa dura
com letras douradas. No título: “Pride and Prejudice”.
- Não pense que depois não lerei isso pra ver se não tem coisa peca-
minosa viu filha?
Ava sentiu as lágrimas brotarem, e sem controle de sua língua pronun-
ciou num sussurro:
- Perdoe-me...
Jacob a olhou profundamente tentando entender, e julgou ser por
causa do livro, por ela querer ler algo que não fosse a bíblia da família.
Então concordou com a cabeça, deu um beijo na testa da filha e se foi.
Ava então abraçou o livro, como se fosse o pai, um abraço que nunca
recebera como deveria. Mas era tarde demais para se arrepender. Tran-
cou a porta, tirou a mochila velha debaixo da cama, já estava arrumada e
pronta. Trocou a camisola que vestira encenando para os pais que dor-
miria, e vestiu-se com calças grossas, blusa e um grosso casaco para en-
frentar a neve. Completou com um gorro, abriu a janela e pulou com
cuidado por ela. Olhou mais uma vez para a vila, despedindo-se se seguiu
novamente pela interestadual. Levou consigo uma lanterna. A estrada era
mal iluminada, e mesmo com medo do que poderia ter no escuro da
noite, ela estava determinada. Combinara de esperar na beira da estrada.
Esperou... Duas horas mais tarde, já sentindo os dedos dormentes de frio
por baixo da luva, começou a deduzir que Louis estaria preso na estrada.
E suas pontadas aumentaram significativamente. Ao ponto de não conse-
guir mais ficar de pé. Foi quando sentiu o líquido descer por sua calça.
“Não” pensou.

Contos de um Natal sem Luz 85


Saiu da beira da estrada e com dificuldades se arrastou para perto das
montanhas onde só havia neve e árvores secas. Soltou um alto gemido
quando uma pontada mais forte na barriga a atingiu. Arrastou-se o quan-
to pôde para o mais longe da estrada, escondeu-se em um montante de
neve, embaixo de uma árvore. Sentiu o bebê coroar e desabotoou a cal-
ça, tirando-a junto com a calcinha. Pôde ver a pequena barriga que apa-
rentava três meses de gravidez, e que conseguiu disfarçar por todo esse
tempo. A hora havia chegado e Louis não estava ao seu lado! Mas Ava
também não imaginava que o bebê nasceria na noite de Natal, na noite
da sua fuga, pelas suas contas, provavelmente erradas, estava de oito me-
ses. Até para Louis ela escondeu a gravidez por muito tempo, até duas
semanas atrás, quando finalmente contou, com medo de perdê-lo. Pro-
vavelmente estava certa. Mas... Ele dissera que estava feliz com a notícia...
e... pensando bem, depois que ela lhe contara que esperava um bebê ele
não aparecera mais. Apenas combinou de pegá-la na noite do Natal. Ou
ele estaria mentindo? Não podia ser!
Seu pai costumava lhe alertar de rapazes que abusavam das moças, e
as deixavam com filhos para criar, mas não, Louis não era assim... não
podia ser!
- Ahhhhhhhh! - Ava gritou ao sentir a cabeça da criança sair, e conti-
nuou fazendo força. - Meu Deus, por favor... Ahhhhhhh...
Foram dez minutos que pareceram dias, Ava esgotando todas suas
forças, enquanto tremia de frio, e por fim, ouviu o choro estridente do
bebê. Imaginou se os pais não estariam ouvindo, mesmo que a distância
fosse enorme. O temor ainda estava presente. Abriu as pernas e viu a
criaturinha se contorcendo na neve, suja de sangue, chorando. Teve re-
ceio de pegá-la, mas teve que tirá-la do frio. Tirou seu casaco com difi-
culdade e enrolou a criança, que agora a olhava com atenção, em silên-
cio. Os grandes olhos, mais azuis que já vira. Azuis com de Louis.
Ainda trêmula Ava vestiu-se, acomodou a criança perto da árvore seca
cercada de neve, e permaneceu a alguns metros de distância do bebê,
num monte de neve que serviu como apoio. Não teve coragem de pegar

Contos de um Natal sem Luz 86


novamente a criança. E então ela recomeçou a chorar, de fome certa-
mente.
Ava chorou também e tapou os ouvidos, como se aquilo fosse trans-
portá-la dali para casa de Louis. Louis... o homem que a abandonara...
- Pare de chorar! - ela gritou para si mesma, incluindo a criança.
Não soube calcular quanto tempo ficou ali chorando, sem saber o que
fazer, mas só notou onde estava quando percebeu que adormecera. Ali
mesmo na neve, tremendo de frio, quase hipotérmica. Sua visão foi inva-
dida pela luz intensa da manhã. Olhou para o céu nublado, flocos de
neve caindo, poderia ficar ali contemplando o céu sem cor para sempre
se não fosse o frio. O frio! A criança!
Olhou ao redor, a neve havia coberto suas pernas durante a noite, e
teve que se levantar com esforço, mas não encontrou o bebê. Correu
para perto da árvore e viu o seu casado parcialmente coberto pela neve.
Rapidamente o pegou no colo. Os olhinhos não estavam abertos, estava
dormindo...
Ava abriu o botão da blusa e ofereceu o peito para a criança, mas ela
não se mexia. Na verdade ela estava com os lábios roxos e uma cor acin-
zentada, e só então Ava notou que era uma menina.
- Olá... - respondeu para o corpinho sem vida. - Olá filhinha...
Ava não demorou a perceber que a alma da pequena criança tinha
deixado o corpo. E então soltou seu grito mais contido na garganta, que
ecoou por toda montanha, assustando até alguns corvos que estavam na
árvore, e saíram voando.
- Não! Não! Não, meu Deus, o que eu fiz? Perdoe-me... perdoe-me.
Ava permaneceu alguns minutos soluçando e desejando morrer ali
mesmo, com o bebê no colo, mas precisava tomar uma decisão. Com as
mãos e todo corpo trêmulo, levantou-se, retirou a luva e cavou na neve o
mais fundo que conseguiu. Até sentir uma de suas unhas saírem. Soltou
um gemido, e depressa acomodou o minúsculo cadáver no buraco, e
enterrou com terra e neve. No fim, suspirou, deixando a última lágrima
cair. Tudo era culpa dela.

Contos de um Natal sem Luz 87


Se tivesse escutado o pai, se não tivesse se apaixonado, se fosse uma
boa filha, se não tivesse medo... Se não existisse...
Ergue-se atordoada, retirou outro casaco da mochila e vestiu, recolo-
cou a luva com dificuldade apertando a unha que saíra. Andou com es-
forço, pela estrada que parecia quase sem vida. Dois ou três carros passa-
ram enquanto tomava o caminho de volta à vila. Só haveria um lugar
onde poderia estar... Bateu na porta de sua própria casa, não se impor-
tando com o estado deplorável em que se encontrava. Suja de sangue e
neve.
Do outro lado, a mãe a recebeu com um olhar assustado, seguido pe-
lo pai, atrás dela, igualmente espantado e intrigado. E então Ava quebrou
o silêncio, respondendo apática:
- Feliz Natal.

Contos de um Natal sem Luz 88


Casa 18

Esposa
Rafael Valore

Não foi com o coração leve que ela embarcou no caminhão. Certo
alívio e um sorrisinho quando o motor finalmente pegou. Margareth Wil-
tmann gastaria afinal o Natal em casa, o que não era pouco consolo. O
senhor Walter Roake também sorriu. Ele ainda sofreria com aquela igni-
ção do largo automóvel cinco vezes, conferindo casa por casa, anotando
reclamações e pedidos. Aquela cidade pequena podia dar-se ao luxo de
cuidar dos seus. Logo o caminhão parava diante de uma das casas mais
humildes da rua principal do povoado. Ela sorriu:
- Obrigada Walt.
Ele sorriu abertamente em dentes pouco cuidados, meneando a cabe-
ça humildemente:
- De nada, s’nhora.
Ele ainda desceu antes, ajudando a senhora Wiltmann a descer os de-
graus da cabine e a caminhar por sobre a neve espessa, até a soleira da
porta da casa. Ela bateu a campainha com certa excitação. Não trazia
chaves nunca. Wally, o pescador, seu pobre marido, abriu a porta de
sorriso e cachimbo na boca, folgando longas férias de inverno com apro-
veitamento do qual só os simples são capazes.
- Entre querida! Você deve estar congelando – e acenou para Walter
Roake, do qual recebeu aceno de retorno, antes que partisse, sofrendo
com a chave de ignição diante do frio. O motor morrera, imaginem,
Roake era simples, mas nunca idiota de desligar o motor nessas condi-
ções.
Casais tão antigos raramente beijam-se, mas ela fez questão de estalar
seus lábios no rosto do velho marido antes de entrar, muito satisfeita da
vida.

Contos de um Natal sem Luz 89


- Ufa. – e sacudiu a neve de seu vestido.
Wally Wiltmann fechou a porta atrás de si, baforando o cachimbo e
fazendo uma careta engraçada, dando uma piscadela bonachona para sua
esposa antes de correr segurando cachimbo e boné estilo italiano numa
das mãos, a fim de livrar a outra mão para correr e apartar o casal de
netos adolescentes que começava a brigar.
- Ei gente, ei gente, sem brigas hoje, certo?
Os dois jovens entreolharam-se e olharam impaciente e desapiedada-
mente para o homem antes de dispersarem-se. Logo já estavam esqueci-
dos de qualquer motivo de briga, animadamente escolhendo lugares na
mesa para as poucas peças de louça que iriam decorá-la. Wally encostou
o corpo no de Maggie lateralmente, cachimbo preso pelos dentes no can-
to da boca, canto que entortava sorriso, repousando o braço sobre o om-
bro dela, enquanto ela mal continha o seu próprio de ver o rapaz e a
moça rindo a valer meio minuto após brigarem. Eram risadas gostosas de
se ouvir. Sorriram todos entre eles.
Uma das famílias mais pobres da região, talvez a mais feliz e completa.
Troféus de campeonatos juvenis recebidos por Francis Wiltmann jaziam
amiúde por sobre a lareira, e quadros com pôsteres de fotografias de
viagens espalhavam-se pelas paredes, e o quadro preferido do senhor
Wiltmann era o que continha a fotografia da família diante do teatro
Grand Ole Opry, em Nashville, Tenessee.
A senhora Wiltmann diligentemente investigou a cozinha, abrindo
uma expressão de surpresa abobada pela também diligência com a qual
tudo foi feito em sua ausência, farejando todas aquelas boas e especiais
comidas que estavam quase todas prontas, com muito capricho. Quando
se virou de costas, pôde observar o trio de sua família aguardando enfilei-
rado no batente, antecipando seu sorriso. E Cristo, ela sorriu, ela sorriu
de verdade. Eles tinham feito tudo perfeito. Ela mal pôde conter certa
vergonha por não participar neste ano das preparações – constrangida
pelo rigor da estação a trabalhar fora agora em duplo horário havia cinco
meses sem boa pesca para Wally –, das quais era sempre a chefe e a guia,
juntando as mãos sobre o ventre e abaixando o rosto que avermelhava,

Contos de um Natal sem Luz 90


somente para receber um amoroso abraço de todos. Um grande abraço
na vovó, do vovô e do casal de netos, e a cozinha é o melhor lugar para
essas coisas. A cozinha, diz o brasileiro, é o melhor lugar da casa.
Enquanto cada um deles desencobria surpresas de debaixo das camas,
anoitecia.
Logo todos estavam atarefados posicionando velas individuais e anti-
gos e tortos castiçais de latão em lugares estratégicos que iriam iluminar a
pequena residência romanticamente. Alguém passava por alguém, e ini-
ciava uma canção, apenas para afastar-se ouvindo a continuação num
próximo verso, num esforço contínuo e entrelaçado.
Enfileirados, traziam os quitutes e dispunham-nos sobre a mesa com
esmero, e todos já tinham fome, fome que não seria saciada antes da
oração. Secretamente, o senhor Wiltmann guardava a oportunidade de
desafiar seu neto Frank a fazê-la este ano. Todos aguardavam aquele
momento antes de sentar-se, rodeando a linda mesa posta, cada um ten-
do em mente onde havia escondido seus presentes de Natal para os ou-
tros, ansiosamente ensejando a ceia, quando o senhor Wiltmann com
um sorriso matreiro encarou o neto.
- Frank. Hoje é com você - e acentuou o sorriso. Como o neto se in-
timidasse ele ainda gesticulou amável e confiantemente, dando sinal para
que o rapaz orasse de coração e sem medo.
O jovem respirou fundo.
- Obrigado Senhor. Por tudo que nos tem feito, pela comida que es-
tamos para comer, pela vida que nos conce... con-ce-des-te. Obrigado.
O avô sorriu, satisfeito. A sentença era curta, mas significativa.
- Obrigado por nossa família, Senh...
Algo batera com força na porta. Uma única batida, forte e surda. En-
treolharam-se. Levaram ainda alguns segundos para livrarem-se do espíri-
to de oração, e acorrerem todos em direção à porta de entrada. Abriram.
Aí jazia um homem. Um mendigo de uma cidade vizinha, que cami-
nhara bêbado demais, desavisado, por longa distância, por tempo de-
mais. Ele alcançara finalmente a casa onde lhe dariam abrigo, fora acon-
selhado, mas por uns minutos tarde demais. A senhora Wiltmann não

Contos de um Natal sem Luz 91


pôde se esquivar da lembrança de sua amiga Fanny, sozinha na noite de
Natal, a algumas quadras de distância, distância invencível por conta da
neve. Uma lágrima bem sentida escorreu, e esfriou rapidamente pelo
vento que entrava. Fechou-se a porta, e assegurava-se sua responsabilida-
de de cuidar de quem ainda vivia, e vivia sob sua responsabilidade, e ti-
nha fome para comer, e muito motivo para comemorar, diferentemente
daquele homem.
Quando tocaram sua pele fria e roxa, estava morto, congelado. Sem
luz, sem telefone, sem tempo hábil, a família Wiltmann passou seu resto
de lindo Natal com aquele cadáver frio, duro e úmido colocado sentado
no batente interior da porta de entrada. E Cristo, eles mereciam melhor.

Contos de um Natal sem Luz 92


Casa 19 –

O Homem que Tinha Medo de Anjos


Alexandre Braoios

Fazia muito frio. Caíra muita neve. Parecia improvável que alguém ba-
tesse à sua porta em pleno dia de um Natal gelado. Quando ele abriu a
porta se deparou com a menina quase congelada. Trouxe um presente
para o senhor – disse aquele amontoado de casacos e cachecóis de onde
brotavam grandes e sorridentes olhos azuis. A menina estendeu os braços
com um pacote colorido nas mãos. O vento, a neve e o inesperado da
situação congelaram-no. Um lindo anjo de voz estridente trouxera-lhe um
presente, mas a visita do anjo era a última coisa que ele desejara. Não
sabia o que fazer, não podia convidá-la a entrar, mas também não pode-
ria mandá-la de volta para casa naquele frio. Olhou para a montanha...
respirou, tentou se controlar. Suava, apesar do frio. Ninguém tem medo
de anjos e nem transpira daquela forma quando os vê, especialmente sob
o vento gelado. Para compreender é preciso conhecer esse homem. Vol-
temos ao dia anterior quando ele admirava e renovava seu pedido à
enorme montanha.
O cume branco... a neve está se acumulando... só um milagre impedi-
rá que ela varra toda a vila. Dessa vez iremos todos para o rodapé da
história e esse lugar, esquecido que é, esquecido permanecerá. Finalmen-
te desaparecer, ser enterrado, sucumbir à neve, sufocar todos os pecados.
Dessa vez não escaparemos – desejou em silêncio, Carl Whitaker, o úni-
co morador da casa 19.
Sua casa ficava na entrada da pequena vila, à esquerda. Essa única rua
morria aos pés da enorme montanha, ao mesmo tempo guardiã e ruína
de quem ali habitava. Todo inverno a Old Rock ameaçava lamber as
casas, mas nesse ano parecia impossível que isso não ocorresse. Vez ou

Contos de um Natal sem Luz 93


outra se ouviam estrondos vindos lá de cima, como se a velha roncasse
antes de finalmente despertar.
Carl se aposentara há alguns meses e desde então passava vários dias
recluso sem colocar os pés na rua. Rua única, feia e estéril. Certa vez
tivera a oportunidade de sobrevoar a vila e quando viu aquelas vinte casas
idênticas margeando a rua, teve a sensação de estar vendo as vértebras de
uma carcaça em decomposição.
O homem de meia idade passava os dias cuidando do jardim, fazendo
pequenos consertos e quando não tinha afazeres, simplesmente se vigia-
va. Evitava a proximidade com qualquer morador. Decidira morar ali
justamente pelo afastamento e pela segurança que isso impunha, mais aos
outros do que a si mesmo. Carl tinha consciência do perigo que repre-
sentava e por isso preferia viver isolado tanto quanto possível.
A tarde da véspera de Natal chegava ao fim e Carl esmerava-se em
preparar a ceia e arrumar a casa. Todo ano o cardápio era o mesmo, mas
sempre o preparava como se fosse a primeira vez. Era quando renovava
seus votos, caso o fim desejado não chegasse.
Haviam previsto uma intensa nevasca para os dias de Natal e ele se
preparara para o isolamento iminente. Era comum que, durante as ne-
vascas mais fortes, a estrada que levava até a cidade ficasse bloqueada,
isolando as vinte casas do resto do mundo.
Enquanto ajeitava a guirlanda empoeirada na porta principal, podia
acompanhar o entra e sai dos poucos carros e pessoas. Viu quando o
casal e a filha que moravam na casa 6 entraram na vila, pararam o carro
em frente à sua casa e vieram em sua direção. Conforme se aproxima-
vam, Carl se agitou nervoso, sentiu uma gota de suor percorrer sua nuca,
feito ácido sobre a pele. Nesse instante a velha tornou a roncar.
- Boa tarde Sr. Whitaker - disse Sarah, a menina com voz estridente,
pele alva e beleza celestial.
- Boa tarde - retribuiu, tentando disfarçar o nervosismo.
Após uma encabulada e breve pausa, dada a concisão da resposta, o
pai da menina convidou-o para a ceia de Natal, convite esse prontamente
recusado segundo a alegação de que ficaria esperando as ligações dos

Contos de um Natal sem Luz 94


familiares. Ligações que sabidamente não receberia, pois há muito tempo
rompera com todos eles. Havia simulado um desentendimento de tal
proporção que a reaproximação era improvável. Tudo planejado fria-
mente como forma de garantir seu isolamento e a segurança de cada um
deles, especialmente das crianças da família.
Enquanto a família se afastava, Carl acompanhou-os com os olhos até
que chegassem à casa do outro lado da rua. Antes de entrar, como se
soubesse que estava sendo observada, Sarah virou-se e acenou sorridente.
A menina havia se apegado a Carl depois que ele a socorrera em um
pequeno acidente com a bicicleta. Carl conseguiu acalmá-la, carregou-a
até sua casa, limpou os ferimentos e acarinhou-a. Foi assim que, desde a
primavera, a menina se afeiçoara a ele, e Carl... bem... Carl voltou a sen-
tir os dentes afiados do desejo inconfessável cravados na carne. O contato
com a pele macia, os olhos desprovidos de malícia e a boca rósea fizeram
a fera, há tanto tempo enjaulada, despertar.
Durante os últimos 20 anos, Carl tentava manter o monstro adorme-
cido. Isolara-se de todos que amava, poupando-os de sua bestialidade.
Evitava a perigosa proximidade com qualquer pessoa e aprendera a viver
sozinho. Depois que a família entrou na casa 6, permaneceu parado...
olhar perdido na única rua, no único caminho a desembocar aos pés do
monstro de pedra e gelo que, de tempos em tempos, voltava a soltar o
seu rugido tenebroso e ameaçador. A temperatura caiu, a noite chegou, a
ceia esfriou, o olhar se turvou, o coração gelou e a cabeça lutou, mais um
Natal, contra o monopólio da ideia suicida. Mais uma taça pra tomar
coragem, preciso colocar fim. Nunca mais machucarei uma criança. Pre-
ciso de coragem. Como em tantos outros natais em que Carl lutou contra
seus demônios, o sono e o torpor alcóolico venceram o desejo suicida.
O dia de Natal amanheceu branco e gelado, talvez como tentativa de
refrear os instintos recém-despertados. Carl levantou-se rapidamente e
tratou de ocupar o tempo, cansar o corpo e afastar qualquer vestígio do
que sentira. Quem o visse empenhado numa faxina profunda no dia de
Natal acharia que era louco, mas era a única forma de esquecer... o mé-
todo sempre surtira efeito.

Contos de um Natal sem Luz 95


A velha ranzinza parecia adormecida no dia de Natal, apesar de toda
neve sobre ela. Depois de limpar cada milímetro de sua casa, lavar todos
os pratos, talheres e copos pelo menos duas vezes e de organizar todos os
armários e gavetas, Carl finalmente se lembrou da data festiva. Aqueceu
novamente a ceia da véspera, abriu uma garrafa de vinho e, como de cos-
tume, sentou-se com o telefone sobre as pernas. Todo ano ele passava
horas agarrado ao aparelho e por algumas vezes simulava longas conver-
sas com os familiares. Nesses momentos, Carl enxergava sua solidão, seu
vazio, seu desamparo. Mas ao mesmo tempo sentia-se vitorioso por con-
tinuar resistindo, sem dúvida era um vencedor. Solitário e triste, mas,
mesmo assim, um vencedor. Absorto em sua própria desilusão, Carl não
imaginava receber visitas. A visão de Sarah com os braços estendidos
somente serviu para recordá-lo de sua infâmia. Pegou o embrulho, desfez
o laço e emocionou-se ao ver um pequeno boneco de pano onde se po-
dia ler Feliz Natal. A grande montanha rugiu novamente, tão alto e tão
assustadoramente que as paredes tremeram. O sorriso nos olhos de Sa-
rah se desfez diante do barulho e não restou alternativa senão levá-la para
dentro de sua casa. Um anjo na jaula. Novo estrondo... ainda mais alto...
a velha fera acordara definitivamente e nada a deteria, enfim.

Contos de um Natal sem Luz 96


Casa 20

O Presente de Mary
Lia Dantas
Eu moro nessa vila desde que era mocinha. Minha mãe e meu pai
moravam aqui, e meu irmão mais velho também. Meu pai morreu de
câncer, minha mãe morreu em um acidente de carro. Eu tinha quinze
anos quando perdi meu pai e vinte e cinco anos quando perdi minha
mãe. Meu irmão não quis mais morar aqui na vila, saindo pelo mundo
afora para tentar ganhar uma nova vida, deixando para trás as tristezas
que a morte de meus pais provocou.
E eu fiquei aqui sozinha, na vila que me traz tantas recordações, boas
e ruins. Nunca fui de fugir de nada, sempre entendi que as alegrias e tris-
tezas é que constroem uma vida. Se fossemos somente esperar pelo que
é bom da vida não seríamos seres humanos evoluídos e completos. To-
dos devem estar preparados para os golpes que a vida, com certeza, vai
dar. Eu sempre pensei assim, até quinta feira quando tudo mudou na
minha vida.
Moro na casa número 20 de uma vila afastada de tudo. A cidade a que
pertence nossa vila fica do outro lado da estrada interestadual que nos
une ao resto do mundo. Temos montanhas, neve e isolamento quase o
ano todo. Mas quando saio e olho as outras casas da nossa vila vejo que
muitos aqui são felizes, ou pelo menos parecem felizes. Temos todos os
tipos de pessoas e vidas aqui, cada um com sua história, seus dilemas e
alegrias. Não posso dizer que o ar isolado da nossa vila nos faz infelizes.
E parece que nesse Natal específico tudo está mais agitado, algo está
no ar, algo que não estava no ar no ano passado. É como se esse ano
fosse especial, diferente, não sei bem explicar como nem por que. Quem
sabe a diferença está dentro de mim?
Semana passada, quando voltei da cidade, vi que alguns moradores es-
tavam montando uma árvore grande na entrada da vila, e alguém teve a

Contos de um Natal sem Luz 97


ideia de colocar embaixo da árvore, uma caixa de madeira onde todos os
moradores podem colocar seus pedidos de Natal. Algo simbólico, feito
mais para as crianças, e quem sabe um ou outro sonhador já adulto, to-
dos na esperança de que na véspera do dia 25, o Papai Noel venha e leve
seus pedidos deixando em troca, presentes.
Eu não posso deixar de sorrir, a evolução chegando a muitas cidades e
nossa vila tentando reacender nos corações dos pequenos o desejo e es-
perança de renovo nos últimos dias do ano. É uma boa tentativa, com
certeza. Confessando um pequeno pecado meu, digo que espiei dentro
da caixa um dia desses, acho que na terça feira, e vi que muitos papeizi-
nhos estavam lá dentro esperando por algo.
Não posso deixar de achar isso uma coisa muito singela e simbólica.
O que vai acontecer quando o dia 25 chegar e os papéis não tiverem saí-
do da caixa? Será que quem a projetou não pensou nisso ou terá ela tido
outra ideia? Eu queria muito ver esse desfecho, mas na quinta feira mi-
nha vida mudou.
As dores era maiores, os zunidos na cabeça, as tonturas, os desmaios,
eu morando sozinha, estava correndo risco de vida se caísse no banheiro,
por exemplo, e apesar de viver muito bem com minha solidão, não que-
ro ser encontrada morta dentro de um banheiro frio.
Portanto, fui ao médico na cidade, mas não resolveu muita coisa. Tive
que ir a cidade mais próxima, uns 100 quilômetros de distância da vila, lá
o médico me recomendou fazer exames, e na quinta-feira eu fui buscá-
los.
Quem diria, não é mesmo? Logo eu que sempre racionalizei cada
momento da minha vida, bom e mau, tentando aprender com tudo, e
tirar experiências dos tropeços. Fui pega desprevenida e tive uma crise de
choro e desespero. Mas tudo bem, agora já estou mais calma e confor-
mada. Acho que o destino escreve uma história para cada um de nós, e
nada poderá apagar uma linha dessa história, às vezes vírgulas interrom-
pem, temporariamente, o curso do enredo, mas o final é sempre aquele
que o escritor de nossas vidas já determinou. E assim será para mim.

Contos de um Natal sem Luz 98


Ouço o barulho da minha chaleira e vou preparar meu chá. Ervas,
gosto de chá de ervas. Sento-me na minha poltrona favorita, pego minha
manta de pés, enrolo nos meus tornozelos, sempre senti muito frio nos
pés. A lenha da lareira está acabando, mas não importa também. Sinto a
xícara de chá nas minhas mãos, o calor sobe pelo meu braço. O aroma
das ervas enche minha sala. Eu sinto que ela está chegando. Está bem
perto agora, quem sabe virando a última curva da autoestrada. Um vento
bate na minha porta fazendo um barulho estranho, mas as chamas do
fogo na lareira iluminam de forma harmônica e encantadora minha casa.
Olho em volta e vejo coisas que me encantam: meus livros, minhas por-
celanas, meus tapetes, as fotos dos meus pais, tudo que eu mais amo.
Tudo que eu sempre guardei com muito carinho e percebo que ali é
meu lugar, sempre foi e agradeço aos céus por nunca ter partido, raízes,
sempre amei ter raízes, e por mais que alguns reclamem da vila e suas
carências, eu, naquele momento, me sentia bem, em casa no lar, em paz.
Ela bate na porta, seu toque é suave, eu tento levantar para abrir a por-
ta, mas não consigo, eu estou fraca, minha cabeça está com nuvens e uma
música bem longe, algo natalino e triste, soa como acorde de fundo. Ela
entra mesmo sem que eu abra a porta, ela para perto de mim, eu olho
para ela, ela estende a mão para mim. Não seguro a lágrima que rola no
meu rosto. Eu quero ficar mais um pouco talvez, mas não posso. Ela toca
meu rosto, meus cabelos e depois disso eu não sinto mais nada.

*******

Na noite de Natal, logo após a meia noite, uma senhora bateu a porta
da casa 20 em busca de Mary, mas ninguém atendeu. A senhora, sua
vizinha, estava com um bolo na mão, ela olhou pela janela e viu reflexos
do fim do fogo na lareira e um vulto sentado na cadeira. Ela chamou seu
marido, que forçou a porta e encontrou Mary morta na sua cadeira pre-
ferida. Em cima da mesa ainda estava um peso de papel segurando os
resultados dos exames que ela tinha feito, resultados que detectaram um
câncer cerebral em estágio avançado.

Contos de um Natal sem Luz 99


Os vizinhos sentiram uma tristeza profunda, Mary sempre foi uma
boa senhora, amiga de todos, isolada, mas querida. Os vizinhos ainda
estavam parados em total estado de lástima quando uma criança entrou
correndo na sala.
- Vô, vó, venham ver, Papai Noel chegou, venham ver.
A menina de tranças douradas puxava o avô para fora da sala ignoran-
do qualquer evento que pudesse ter acontecido na sala. E quando seu
avô chegou a porta da casa de Mary, olhando para fora viu alguns mora-
dores espantados pegando pacotes embaixo da árvore de Natal. Eram os
mais variados pacotes e presentes, todos com seus devidos destinatários,
encaixando de forma perfeita com os pedidos que tinham sido colocados
na grande caixa na entrada da vila.
- Quem fez isso? Foi você Arnald?
- Não, claro que não, não teria dinheiro para isso.
- E você senhora Sanders?
- Não claro que não, confesso que eu coloquei a caixa na entrada da
vila, mas foi só para uma brincadeira entre nossas crianças.
E na medida em que os pacotes eram abertos, mais e mais moradores
se espantavam com seus pedidos sendo realizados em forma de presen-
tes. E em algum lugar de muita paz e serenidade, Mary sorria de forma
arteira, sabendo que, já que alguém teve a ideia de alimentar fantasias e
ilusões em prol de um pouco mais de alegria, quem seria ela para evitar
concretizar esses sonhos já que não teria nada mais a fazer com sua pe-
quena poupança economizada por tantos anos? Que sejam todos felizes
e que tenham todos um Feliz Natal, seja ele na dor, ou na alegria, no
sofrimento, ou nas realizações, porque o Natal está em nós e não no
mundo ou no capitalismo. O verdadeiro sentimento que o Natal deveria
fazer renascer é a honestidade, verdade e amor a quem realmente nos
ama e não uma hipocrisia fundamentada e fortalecida por sorrisos falsos
e abraços impostos.
Sejamos mais verdadeiros, sejamos mais nós mesmos, sejamos todos
reais nesse Natal.

Contos de um Natal sem Luz 100


Epílogo
O Natal Perfeito
Helena Dias

- Bom dia, meu amor. Vejo que acordou bem animada - ouvi a voz
de meu marido ao pé do meu ouvido, enquanto me abraçava por trás.
Kim e eu estamos casados há cinco anos. Eu não diria que sou a mu-
lher mais bonita do mundo, mas perto dele eu sinto como se eu fosse a
única. Dois anos atrás, recebemos os melhores presentes da nossa vida,
William e Melanie, nossos filhos. Lembro, como se fosse hoje, do brilho
nos olhos de Kim ao pegá-los no colo pela primeira vez. Meio desajeita-
do, mas com todo o amor que um pai pode ter por seus filhos.
Virei-me para ele e não pude deixar de notar as rugas de cansaço
abaixo de seus olhos. Talvez fosse o excesso de trabalho, ou a velhice
chegando mesmo. Dei-lhe um beijo leve nos lábios, sentindo o gosto do
café vindo do único gole que ele havia tomado da xícara em sua mão.
Ficamos abraçados durante alguns segundos e, em seguida, começa-
mos a rir. Pela primeira vez, percebi que ele se arrumou como se estives-
se saindo para trabalhar.
- Vai sair, darling? – perguntei
- Tenho que trabalhar amor.
- Mas, Kim, é véspera de Natal – pude sentir minha expressão mudar.
- Anne, - ele disse meio arrastado - não faça essa carinha. Você sabe
que a loja precisa abrir hoje. Sempre existem os atrasados - ele beijou-
me os lábios.
- Tudo bem, mas prometa que chegará a tempo para a ceia. Seus pais
já confirmaram presença.

Contos de um Natal sem Luz 101


- Palavra de escoteiro - ele respondeu levantando a mão e fazendo o
sinal de juramento.
Kim era dono do mercadinho da cidade. Apesar de trabalhar demais,
ele sempre foi um ótimo marido e um pai presente.
Dei-lhe um beijo de despedida e o acompanhei até a porta. Fui até a
janela e fiquei observando até que ele entrasse no carro. Acenei para ele,
que me jogou um beijo. Fingi pegá-lo no ar e guardar no coração. Ele riu
e seguiu viagem. Vi Ava, a filha do reverendo, sair da casa 17, encolhida
dentro de umas roupas largas e um casaco grosso. Provavelmente estava
indo trabalhar. Ultimamente, ela parecia sempre desconfiada e quase não
falava mais. Acenei para ela, mas não tive resposta. Seja lá o que estava se
passando em sua vida, não estava lhe fazendo bem.
Esperei o carro desaparecer em meio à neblina na estrada e fechei a
cortina da janela. Mal cheguei à cozinha e a babá eletrônica deixou esca-
par um barulho vindo do quarto das crianças. Meu instinto de mãe me
dizia ser William. Tirei o avental e subi as escadas correndo. Quando
cheguei ao quarto, confirmei as minhas suspeitas. Lá estava ele, sentado,
olhando para a porta como se já esperasse a minha presença.
- Bom dia, meu amor. – disse, enquanto o pegava no colo.
Ele, por sua vez, resmungou um pouco e sorriu. Não demorou muito
até Melanie acordar. Não sei se existe explicação para isso, mas eles dois
tinham essa conexão de gêmeo. Eu até que achava bonitinho.
Dei banho nos dois, troquei suas fraldas e coloquei roupinhas bem
quentes, mas confortáveis. Descemos as escadas juntos e eu os coloquei
no cercadinho na sala de jantar, de forma que eu pudesse vigiá-los através
da bancada que a separava da cozinha. A barriga de William roncou bai-
xinho e os dois começaram a rir. Não me contive e ri também. Preparei
bananas amassadas com aveia. Eles comeram tudo num piscar de olhos.
Beijei suas testas e sorri para eles, brincando com seus narizes, quando
Melanie apontou para a cozinha e balbuciou algo em bebenês.
Imaginem a minha surpresa quando percebi que a cozinha estava es-
condida atrás de uma névoa negra. Cheguei mais perto e o cheiro de

Contos de um Natal sem Luz 102


queimado entrou rasgando pelas minhas narinas. Distraída com os meni-
nos, esqueci completamente que havia deixado uma panela no fogo.
- Que merda! – exclamei e olhei para os dois tampando a boca. Por
sorte estavam brincando e não escutaram.
Rapidamente, apaguei o fogo e joguei a panela dentro da pia, abrindo
a torneira. Uma fumaça branca subiu no momento em que a água se en-
controu com a quentura da panela. Apesar do frio, me vi obrigada a abrir
a janela. Infelizmente, meu sugador estava quebrado e eu precisava tirar
aquela fumaça dali antes que as crianças a inalassem. O vento gelado
bateu no meu rosto e eu achei que fosse rasgar a minha pele, mas, de
alguma maneira, fez a fumaça desaparecer de forma muito rápida. Enca-
rei a panela queimada dentro da pia e bufei, irritada. Parei por alguns
segundos, fechei a janela e a cortina, respirei fundo e decidi que isso não
me estressaria. Essas coisas acontecem a todo tempo. Achei melhor pen-
sar naquela desventura como uma oportunidade de fazer melhor.
Fui até a bancada, dei uma olhada nos meus bebês e acenei para eles,
que começaram a rir e dizer “mama”. Liguei o rádio, não muito alto,
apenas o suficiente para me deixar mais disposta e me reanimar. “Dance
me to the end of love...”. Ao som da voz de Medeleine Peyroux, reco-
mecei tudo, cantarolando e, ainda, arriscando uns movimentos descom-
promissados.
***
O dia já estava escuro, quando eu coloquei o último enfeite na mesa
de jantar. Fui até a janela e olhei ao redor. A neve caia lenta e majesto-
samente pela rua, formando um enorme manto branco. As casas já co-
meçavam a se destacar na escuridão, com seus pisca-piscas e decorações
iluminadas. Era a época do ano que eu mais gostava, de fato.
Engraçado como as coisas funcionavam no mundo. Cansei de assistir
filmes que se passavam em cidades movimentadas, cheias de lojas e arra-
nha-céus, e que pareciam ser o sonho de todas as pessoas. Mas não o
meu. Nunca quis morar em um glamour fabricado. Kim e eu sempre
sonhamos em ter algo mais íntimo e particular. Foi quando descobrimos
esse lugar e a casa número 3. Desde então, nunca pensei em me mudar

Contos de um Natal sem Luz 103


daqui. Como eu gostava de acordar de manhã e ver as montanhas vesti-
das de acordo com as estações e de como o sol brilhava em degradê nos
dias de verão. Essa vila é o meu lar e eu a amo de uma forma que não sei
explicar. Não trocaria aqui por nenhum outro lugar no mundo.
Não sei quanto tempo fiquei ali, olhando toda aquela imensidão e
pensando na minha vida, mas despertei de meus devaneios quando vi o
carro de Kim estacionar em frente a nossa casa.
- Oi, amor. Foi tudo bem na loja hoje? - eu disse, pegando seu casa-
co e o pendurando.
- Foi agitado. Esse ano teve mais gente atrasada que de costume - ele
suspirou - Vou subir e tomar um banho. E as crianças?
- Já estão arrumadas, esperando no cercadinho, na sala.
- Que ótimo. Volto logo.
Quando sua sombra desapareceu no último degrau da escada, a cam-
painha tocou. Os pais dele chegaram.
Confesso que eu nunca fui muito fã da minha sogra. Ela sempre ten-
tou se meter no meu casamento e tudo que eu fazia, para ela, estava er-
rado. Mas, ela estava decidida a mudar isso naquele ano, passar por cima
de tudo e apenas ser a melhor nora do mundo. Meu sogro, ao contrário,
era um amor de pessoa. Carinhoso, atencioso e calmo. Graças a Deus,
Kim puxou o gênio do pai.
Abri a porta e os fiz entrar rapidamente, pois o frio estava insuportável
lá fora. Lorraine olhou-me de cima a baixo, como se me analisasse, e
depois me deu um beijo em cada lado do rosto. Cristian abriu um sorriso
gigante ao me ver e me deu um abraço apertado, daqueles que um pai dá
em uma filha.
- Desculpem-me, ainda não estou pronta. Estava esperando Kim ter-
minar para ficar com as crianças - eu disse um tanto envergonhada.
- Tudo bem, filha - respondeu Lorraine e, pela primeira vez, senti
que ela realmente estava sendo sincera.
Caminhamos juntos até a sala, onde as crianças brincavam distraídas.
Cristian logo pegou Melanie no colo. Era evidente como os dois se iden-
tificavam. Acho que ele via na minha filha a menina que ele nunca teve.

Contos de um Natal sem Luz 104


Peguei uma garrafa de vinho, quatro taças e nos servi. Lorraine e eu sen-
tamos no sofá e começamos a conversar sobre o Natal e o que eu havia
preparado para aquela noite. Por mais estranho que pudesse parecer,
estávamos nos divertindo juntas. Talvez, ela estivesse com o mesmo pen-
samento que eu e decidiu ser uma sogra melhor.
Kim desceu alguns minutos depois e eu o pedi que ficasse com seus
pais, enquanto eu me arrumava. Lorraine se ofereceu para vigiar o peru,
que estava no forno. Estávamos realmente progredindo. Tentei me ar-
rumar o mais rápido que eu pude e, ao descer as escadas, me deparei
com Kim e seus pais conversando animadamente. Eles riam e se diverti-
am como há tempos não faziam. Fiquei emocionada e senti uma lágrima
descer pelo meu rosto. Tive vontade de voltar para o quarto e deixa-los
ali, sendo a família que há muito não eram. Mas fui pega por William,
que começou a chamar por mim.
Fui até a mesa de centro achando que aquilo tudo poderia ser efeito
do álcool, mas, para a minha surpresa, tudo ainda estava como eu deixei
ao subir para me arrumar. Ainda permanecemos por um tempo, senta-
dos ali, jogando conversa fora e relembrando o passado. Bateu uma sau-
dade dos pais que nunca tive e me emocionei mais um fez.
Durante a ceia não foi diferente. Eu observava aquilo tudo como se
fosse um espectador. Era realmente gratificante ver todo mundo reunido.
Meu sogro contando piadas, quem diria... Naquele momento, tive certeza
de que realmente erámos uma família.
Levantei-me e fui até a janela. Queria observar mais uma vez o encan-
to das luzes de Natal, iluminando a rua. Passei por Melanie, que me pe-
diu colo. Levei-a comigo. Algo me dizia que ela também gostava do Natal
e das decorações nas casas.
Enquanto, admirava a paisagem, vi alguém se esgueirar pelas sombras
na casa do reverendo. Primeiro achei que poderia ser o próprio ou sua
esposa ou Ava, mas nenhum deles tinha o costume de sair a essa hora da
noite. Olhei em volta, mas tudo estava escuro e em completo silêncio.
Comecei a me preocupar, porém as luzes pareceram aumentar de inten-
sidade, tirando a minha atenção. Elas causaram uma pontada na minha

Contos de um Natal sem Luz 105


cabeça e fiquei um pouco tonta. Procurei mais uma vez por aquele al-
guém e o vi se afastar da casa, com pressa e carregando algo com ele.
Senti meu braço ser tocado e uma voz meio apagada falar meu nome. Foi
então que o mundo começou a mudar.
***
- Anne, está na hora de seus remédios - disse a voz apagada, pegando
Melanie do meu colo.
Ela era uma estranha e queria tirar o meu bebê de mim, não poderia
permitir isso. Comecei a gritar descontroladamente e a me debater. Sabia
que ela não estava sozinha e que as outras viriam ajuda-la. Mas isso não
foi o suficiente para me fazer desistir.
Logo, outras vozes, homens e mulheres, começaram a aparecer e bra-
ços fortes me seguraram. Melanie foi tirada dos meus braços e arremes-
sada ao longe, no lugar onde William estava sentado. Eles machucaram o
meu bebê. A minha fúria aumentou e consegui me desvencilhar um pou-
co daqueles braços. Mordi uma das vozes, não sei qual, mas pude sentir
seu gosto na minha boca, e ouvi-la gritar. Meu esforço, porém, não durou
muito tempo e eles logo me prenderam a uma cama. As amarras eram
muito fortes e, por mais que eu tentasse, não conseguia me soltar, e meus
movimentos eram limitados.
- Sei que não gosta disso, Anne. Mas está muito agitada. Precisa se
acalmar. Ninguém aqui quer o seu mal - ouvi alguma das vozes.

Senti a picada no meu braço e me contorci. Logo minha mente e


meus sentidos começaram a falhar, e tudo ao redor ficou embaçado, con-
fuso e escuro. Dali por diante foi só breu.
Não sei quanto tempo fiquei apagada, porém acordei mais calma.
Olhei para o lado e vi meus filhos comigo.
***
Ao longe, uma enfermeira e uma senhora conversavam entre si, en-
quanto observavam os outros tentarem controlar Anne.
- Nossa! Ela me pareceu tão calma, brincando com suas bonecas -
disse a senhora.

Contos de um Natal sem Luz 106


- Geralmente ela é - respondeu a enfermeira.
- O que ela tem? - questionou a senhora.
- Anne tem depressão e uma forte insanidade mental.
- Uma moça tão bonita. Desculpe a minha intromissão, mas como is-
so aconteceu? - a senhora era bastante curiosa
- Seu marido saiu para trabalhar na véspera de Natal, em 2020, e
nunca mais voltou. Um terrível acidente de carro o tirou de sua família.
Anne o amava incondicionalmente e não aguentou a perda. Completa-
mente fora de si, ela tentou matar seus filhos afogados na pia do banheiro
e depois tentou tirar a própria vida. William morreu na hora. Foi graças
ao choro de Melanie que os vizinhos encontraram Anne jogada no chão
com os pulsos cortados. Infelizmente, Melanie não resistiu a uma forte
pneumonia - respondeu a outra.
- E quando foi isso?
- Há dois anos. Desde então, em toda véspera de Natal, ela tem alu-
cinações com a ceia que nunca teve - a enfermeira ficou em silêncio por
um tempo, mas depois continuou - E a senhora? Veio visitar alguém?
- Sim. Não vejo minha nora há três anos, desde o dia em que eu disse
não ao seu convite para passar o Natal com ela, meu filho e meus netos.
Meu nome é Lorraine e aquela lá - apontou para Anne - é a minha
nora.

Contos de um Natal sem Luz 107


Contos de um Natal sem Luz 108
Parte II
Natal de 2021

Contos de um Natal sem Luz 109


Contos de um Natal sem Luz 110
Remanescentes
O ano de 2020 passou, o Natal chegou e muitas histórias se sucede-
ram desde então. O ano de 2021 chegou trazendo algumas esperanças,
mas poucas vitórias, uma vez que a cada dia, mais e mais, a humanidade
se fecha em si mesma e não olha para o próximo, não respeita a nature-
za, não preza pela família e muito menos pelo amor a Deus e a tudo que
Ele dá como saúde e vida.
Mas é mister que o tempo passe. Ele não para. Não espera. E o fim
do ano de 2021 chega com novas histórias e algumas ainda piores que as
anteriores. E na vila Garden Rose nem todos resistiram aos eventos do
Natal passado, e tendo suas vidas mudadas de forma tão trágica, muitos
se foram. E nesse Natal de 2021, muitas casas estão vazias naquela pe-
quena vila.
Nas casas 1, 6, 10, 11, 12, 13, 14, 14, 16, 17, 19 e 20 agora só o vento
habita. O padre Arlindo se foi, os pais de Sarah também, a própria
Sarah teve seu fim trágico nas mãos do homem que tinha medo de
anjos. A família Mitchell mudou-se para uma cidade maior com mais
oportunidades para aquelas doces meninas, quem sabe agora terão
um Feliz Natal, ou não.
Oliver foi preso, sua esposa voltou para a casa de sua mãe e Ellen,
da casa 11, estava agora no corredor da morte. A família de Hilary
mudou-se assim como a família de Lúcia e de Margareth, não aguen-
taram mais a solidão e a tristeza daquele lugar. O morador sinistro
da casa 13 havia desaparecido, ninguém sabia dele. E na casa 20,
agora só as cortinas se balançam toda vez que o vento passa. Vizi-
nhos esparsos ainda dizem que veem Mary andando pela casa nas
noites de lua cheia. Mas ali na vila Garden Rose ainda existe vida,
ainda existem pessoas que precisam suportar mais uma noite de
Natal, mesmo que esse não seja novamente como o esperado.

Contos de um Natal sem Luz 111


Contos de um Natal sem Luz 112
Casa 2 –

Em Busca Dela
Rô Mierling

Eu não aguento mais. Nunca pensei que alguém pudesse fazer tanta
falta na vida de outra pessoa. Não consigo mais respirar. De noite quan-
do me deito, sinto o ar faltar no meu peito e uma pressão sem fim me
sobe para a cabeça. Como se alguém estivesse me apertando. Um espíri-
to oriundo das trevas sentado sobre mim, enquanto em vão, tento dor-
mir.
Dormir! Utopia! Não durmo mais de 3 horas seguidas faz muito tem-
po. Nem sei na verdade quanto tempo faz que não durmo direito. Mas
sei exatamente desde quando não o faço.
Ela se foi. E desse dia em diante, tudo a minha volta se foi também.
Meu apetite, meu sono, minha paz. Eu acordava sabendo que ela estava
do outro lado das paredes, vivendo a vida dela, feliz. E eu era feliz com
isso. Quando passava na sua porta, sentia o cheiro dela, e eu gozava. Mas
agora não vivo mais.
E mais um ano se passou. É incrível como o tempo não se importa
conosco. Ele é alheio a qualquer sofrimento ou alegria que possamos ter.
Ele simplesmente passa. Vai-se, impiedoso, pouco importando para ele
se você quer que ele passe rápido ou lento, se você quer que os dias se
acabem ou perdurem.
E o tempo passou. E eu sem ela não passei. Sobrevivi. Como um
animal preso, sem comida, sem água, abandonado. Sendo, dia a dia, tor-
turado. Coração em brasas, pele ferida, garganta ressacada de tanto gritar
o nome dela. O som da minha voz ecoou por muitos dias, semanas e

Contos de um Natal sem Luz 113


meses nas paredes de minha casa. Meus poucos vizinhos que ainda res-
tam nessa vila, se acostumaram com meus berros em busca dela.
Em vão. Ela se foi. Arrastada, carregada, arrancada de dentro de mim
e da minha vida. Nossa relação era de alma, de espírito. Sei que em al-
guma outra vida, nós nos conhecemos, nos amamos e nos pertencemos.
Mas nessa vida ela era apenas minha vizinha. Casada, com filhos, uma
família linda. Uma vida que parecia exemplar. Até que algo a atingiu.
Forte, definitivo, impiedoso. Arrasou a vida dela e a minha.
E hoje quando escuto ao longe os primeiros acordes da primeira can-
ção natalina do ano, as lágrimas descem pelo meu rosto e eu não as dete-
nho, nem as enxugo. Só as deixo rolar. E elas, ali, no seu caminho traves-
so pelo meu rosto enrugado, ressecam e deixam mais e mais marcas do
meu sofrimento.
Era um amor platônico para essa vida, mas não para outras vidas que
com certeza vivemos juntos.
Já tentei sair em busca de um novo sentido para minha vida, mas se-
quer consegui abrir a porta.
Tudo era diferente antes de eu vir morar aqui. Eu era um advogado
bem sucedido, com uma carreira sólida, investimentos, uma polpuda
conta bancária e muitas mulheres. Nunca fui dado ao amor. Casamento e
filhos não ficaram para mim. Mas um dia me veio a ideia de escrever um
livro sobre alguns assuntos jurídicos que poderiam ser explorados com
mais afinco. E para isso escolhi essa vila, essa casa. Eu me afastei de tudo
para escrever.
MALDITO DIA! O inferno ria de mim quando tomei essa decisão, e
o destino selou o que seria o resto dos meus dias no momento em que a
vi pela primeira vez.
Isso pode estar parecendo uma grande bobagem para você que me lê,
mas acredite, às vezes, em algum lugar, em um tempo único, uma pessoa
entra na sua vida e nunca mais sai. Ela vem como um furacão, devastan-
do tudo, deixando marcas e impressões que nunca mais serão apagadas.
E até o fim dos seus dias você se lembrará do momento exato do primei-
ro encontro.

Contos de um Natal sem Luz 114


Eu não consegui escrever meu livro. Não voltei para meus escritórios,
e meus clientes e amigos, pouco a pouco, se acostumaram com minha
ausência. Hoje não tenho mais ninguém.
Em alguns dias do mês, um jovem rapaz do mercado da cidade vizi-
nha, vem até mim com produtos de uma lista que ele conhece tão bem.
Café, batatas, alguns enlatados, queijo e outras coisas que o mundo diz
que preciso para continuar vivendo. Mas eu nem sei bem quando e como
eu as consumo.
Os sons natalinos agora são mais constantes. Até escuto uma criança
rindo passando pela minha porta. É o Natal chegando de novo!
Infeliz! Cruel! Torturador! Assim é o Natal que nos mostra o quanto
somos infelizes por não estar sorrindo e dizendo “Feliz Natal”. Se não
estou tomado pelo tal “espírito do Natal” deve ser porque sou uma pes-
soa ruim, amarga, cruel.
Ninguém quer saber por que eu me escondo, só me rotulam, eu bem
sei.
Escuto um barulho diferente perto da minha porta e vejo pela janela,
que é um carro. Mais precisamente um táxi que talvez tenha vindo trazer
visitas natalinas para meus vizinhos. Táxi aqui é coisa rara. Eles não gos-
tam de vir a nossa vila desde que muitos moradores se foram e deixaram
para trás seus fantasmas. Mas esse veio e por um momento, uma luz pe-
quena e tênue, se acende em minha mente, e ideias me consomem como
uma tentativa vã de salvar o que restou de minha sanidade mental.
Há alguns meses, o rapaz que me traz os mantimentos, fez um comen-
tário que mudou toda a forma como eu sofria por ela. Ele alterou meus
pensamentos me dando respostas que me perseguiam nos sonhos e nos
pesadelos. O rapaz mencionou o local para onde ela foi levada. Como
um comentário banal, uma fofoca talvez com tom maledicente, quase
irônico.
E olhando para o táxi, aqui, parado a minha frente, meu corpo e alma
clamam por uma atitude.
Eu coloco a mão na maçaneta e com um esforço sobre-humano abro
a porta.

Contos de um Natal sem Luz 115


O táxi ainda está ali parado, recebendo seu pagamento, quem sabe.
Eu olho e sinto a claridade da pouca luz do dia ofuscar meus olhos.
Eu quero falar. Quero chamar, mas é difícil. Vocês não entenderiam se
eu tentasse explicar. É como se algo tivesse sido sugado de dentro de
mim, todas as minhas forças, minhas ações, atitudes, que são normais a
qualquer outra pessoa, agora é tudo vazio e eu não consigo falar.
A vizinha se despede do taxista e me olha com curiosidade mórbida.
Semanas e meses se passam sem que ela tenha me visto.
O táxi vai até o final da nossa rua sem saída, contorna e bem devagar
passa na frente da minha porta.
- Hei! Por favor! – ouço alguém gritando e qual a minha surpresa
quando vejo que o som saiu da minha própria garganta.
O táxi para.
- Quer ir a algum lugar senhor?
Eu hesito. Tremulo, não sei o que dizer.
- Senhor?
- Sim, eu.. eu não sei bem. Eu queria..
- Posso levá-lo a algum lugar? - insiste o taxista.
Reúno forças que eu nem lembrava que tinha e informo a ele onde eu
quero ir.
- Sim senhor. Posso levá-lo. Mas não seria melhor o senhor se vestir
apropriadamente primeiro?
Reparo então que estou vestindo o que um dia foi um elegante pijama.
Noto que meus pés congelam e as pontas de meus dedos já quase não se
movem.
Corro para dentro e procuro como um louco desvairado, uma roupa
que seja considerada “adequada”.
Acho uma calça e um casaco grosso. Pouco importa a cor ou se com-
binam. Aquilo que antes era sagrado para mim - a elegância no vestir -
hoje nem faz mais sentido.
Coloco botas de neve que ficam como que esquecidas atrás da porta,
e corro novamente para fora.

Contos de um Natal sem Luz 116


Entro no carro. E ele parte. Eu sinto todo meu corpo se arrepiar, ten-
to engolir em seco e me parece que sangue brota da minha garganta.
Ao longe, escuto uma voz falando algo que não consigo entender.
Percebo pelo espelho retrovisor que é o taxista falando. Mas minha
mente se recusa a dar espaço para a compreensão daquelas palavras. To-
do o meu ser se volta para um único pensamento a se concretizar em
ação: estou indo em busca dela.
Tento me concentrar, pois o taxista fala mais e olha insistentemente
para mim.
- Logo estaremos lá. O senhor tem algum parente ou amigo naquele
lugar?
- Simm – consigo balbuciar.
- Deve ser alguém muito querido para o senhor sair assim, desespera-
do.
Penso: “você nem imagina”. Não é alguém querido. Eu vou em busca
do ar para respirar, da fome para me alimentar, do sono para eu conse-
guir repousar. Só quem já esteve na guerra é que pode dizer como é não
conseguir dormir devido a terrores em sua volta, não conseguir comer,
pois o medo e o pânico te dominam de tal forma que a coordenação
necessária para mastigar fica inexistente.
O taxista abre um pouco o vidro do carro e deixa entrar um ar conge-
lado, eu, inconsciente do meu próprio cheiro, não percebo o motivo.
O motorista tenta ainda conversar, mas diante da recusa de respostas,
ele se cala e vamos adiante em silencio.
Eu vejo o mundo passar lá fora. Tudo tão coberto de neve. A estrada,
carros, alguns pessoas aqui e ali. Um posto de combustível. Coisas que eu
sequer imaginava que ainda existiam.
O tempo passa, sempre célere e enfim o carro para.
São portões grandes, intimidadores, prontos a te afastar e prender
quem dentro está.
- São 43 dólares – diz o taxista.
Evidente que não tenho como pagar, pois em meu delírio, não me
veio a mente essa necessidade.

Contos de um Natal sem Luz 117


Ficamos nos olhando e ele parece conseguir ver em mim o louco que
agora sou.
- Sabe de uma coisa? Deixa para lá. Fica como presente de Natal e se
você quiser, eu te espero.
Eu nem sei o que dizer. Balanço levemente a cabeça e saio do carro.
- Quer que eu espere? - pergunta o taxista solícito.
Eu não respondo. Devagar, pisando em mais de meio metro de neve,
me aproximo dos grandes portões.
Um vento quase assassino passa por mim. Eu cambaleio. Olho em
volta e não vejo ninguém. Olho para dentro das grades dos portões e lá
ao longe, muito longe, vislumbro pessoas de branco. Alguém em algo
que me parecer ser uma cadeira de rodas, mas não consigo identificar
nada além disso. A distância entre mim e os prédios por trás das grades é
grande. Muito grande. Eu procuro algo similar a uma campainha, inter-
fone, qualquer coisa e não acho. Fico ali parado só imaginando que ela
está lá dentro, a poucos metros de mim. Parece-me até, de forma irracio-
nal que sinto seu cheiro. Meu peito se abre e já respiro melhor, até con-
sigo engolir a saliva que me vem aos lábios. As batidas de meu coração,
que antes eram cruas como estocadas em uma carne viva, agora, como
que por encanto, começam a se acalmar.
Eu sei que ela está lá dentro, sinto isso e essa certeza me devolve um
pouco do que antes eu chamava de vida. Inspiro e respiro, várias vezes.
Algo que antes me era doloroso agora me vem quase normal. Sinto uma
sensação dominante percorrer meu corpo, algo como uma leve tonteira,
um suave deslizar. Minha mente se concentra em tentar entrar, chegar
mais perto e quem sabe vê-la, senti-la. Momento de êxtase.
Caminho mais uns metros, mas é em vão. Depois dos grandes portões
só um infindável muro branco com uns três metros de altura.
Vejo mais uns movimentos lá dentro. Tento sacudir as mãos, mas algo
estranho as domina e elas não se erguem. Tento gritar, mas a distância é
muito grande e não me escutam. Eu me agarro as grades do portão e
olhado fixamente para o prédio, eu vejo suas infinitas janelas e em uma

Contos de um Natal sem Luz 118


delas eu vejo: cabeços longos e negros emoldurando um rosto que daqui
não consigo ver em detalhes, mas minha alma me diz: é ela.
Uma corrente de sensações me envolve, caio de joelhos e a neve me
acolhe. Meus pés não respondem mais, a inexistência dos meus dedos
me faz soar um alarme no fundo da minha mente. Mas eu ignoro. Deixo-
me inundar pela felicidade. Ela está ali e eu aqui e logo estaremos juntos.
Sinto algo que me rasga. Sinto uma dor aguda no peito. Agarrado as
grades, eu vou me deixando levar por essa onda de felicidade. Vejo nu-
vens, sinto um vazio me acolhendo, mas é uma sensação boa. Uma onda
de esperanças, possíveis e futuras alegrias, o sorriso dela que verei de
novo, a voz dela que escutarei, e quem sabe até poderei tocá-la, abraçá-la.
É tudo tão lindo, tão bonito. Essas cores que vejo. Minha cabeça on-
dula.
Água. Sinto cheiro de água. Algo frio no meu rosto, mais nuvens e os
cabelos dela ao vento. É ela, ali dentro. É ela. Uma última nuvem vem
sobre mim e então a paz total e sem fim. Acordes natalinos, o sorriso
dela, sua voz me chamando e eu vou. Vou até ela flutuando sem dores,
sem distância, só eu e ela. Será um lindo e Feliz Natal.

***********

- Você já foi limpar a calçada da frente?


- Não. Ainda não. Está uma nevasca dos infernos lá fora.
- Sim, mas é véspera de Natal, teremos visitantes para nossos pacien-
tes, é necessário limpar a frente do prédio.
- Eu vou assim que a nevasca passar.
- Mas você está ficando muito abusado mesmo.
- Pelo amor de Deus, tenha misericórdia, ser humano algum sobrevive
nesse tempo, se eu for lá fora, vou morrer congelado.
- Bil ajuda ele. Vai lá fora e limpa um pouco a entrada e vê se a neve
não cobriu nosso interfone.

Contos de um Natal sem Luz 119


Lev se levanta resmungando, seguido por um Bill agasalhado com tan-
tos casacos que mais parecia um cabide. Eles abrem a porta do prédio
principal e se dirigem aos portões do sanatório.
- É coisa de louco mesmo, quem vai vir visitar alguém num sanatório
num dia como esse?
- Lev é Natal. Eles têm parentes.
- Tem porra nenhuma. São esquecidos, abandonados, ninguém liga
para ele.
- Ok, pare de reclamar e me ajude a abrir o portão.
- Que merda é aquela li?
Lev e Bill olham para fora dos portões, agora abertos, e vislumbram
um casaco em meio a quase um metro de neve.
- É um casaco.
- Casaco nada. Veja, tem botas. Porra, é um homem!!!
- Corre e chama alguém lá dentro..
- Chamar alguém para que Bill? Olha para ele. Está duro, estático,
olhos vazios. Ele está morto há horas.
- O que será que ele estava fazendo aqui?
- Tentando visitar alguém tão louco quanto ele, no mínimo, para sair
num tempo desses e ainda a pé.
- Venha, vamos chamar a segurança.
- O diazinho infeliz.
- Para de reclamar infeliz, é Natal.
- Natal? Sei. Grande coisa. O picolé humano ali fora deve estar tam-
bém tendo um Feliz Natal.

Contos de um Natal sem Luz 120


Casa 3 –

Uma Nova Entrevista com Deus


Adriana Araujo

Aquele período foi muito difícil sem ela.


Já havia se passado um ano sem a presença da minha mãe em minha
volta. Minha rotina havia mudado completamente, uma vez que não ti-
nha mais de quem cuidar.
Foi um ano de reestruturação física ao meu redor.
Doei muitas coisas que estavam paradas em minha vida, doei móveis,
roupas, utensílios que usava para cuidar da minha mãe, enfim... Limpei
minha casa de coisas que me traziam recordações de apego e a deixei
clara, com novos ares, com a pintura palha nas paredes e o teto bem
branquinho para contrastar com o piso de madeira castanho da casa.
Parada na porta de entrada, a olhava saudosa e me sentia leve de revê-
la após sete meses afastada deste local que me traz maravilhosas e pesa-
rosas lembranças ao mesmo tempo. Um furacão antagônico de sentimen-
tos me fazia ir da alegria a tristeza em cada cômodo, quase vazios, que eu
passava aos passos lentos e quase silenciosos, se não fossem o tocar dos
meus sapatos no chão de madeira empoeirado, devido a casa fechada
após retornar da minha viajem ao Brasil.
Mas havia um lugar que ainda não tinha passado, sendo assim, peguei
um pequeno pano numa das gavetas da cozinha, porque era certo o pó
encrustado, assim como estava a casa inteira, e a passos largos, me dirigi
ansiosa para lá.
Como se estivesse revendo a pessoa mais importante da minha vida,
fui até ele emocionada e com lágrimas nos olhos. Comecei a passar o
pano limpo em cada pedaço de madeira mais mal pintado de branco

Contos de um Natal sem Luz 121


ainda e, quando acabei, admirava o meu feito como se estivesse acabado
de cuidar da minha mãe.
Lágrimas escorreram por meu rosto, desta vez, mais corado e mais
cheio que antes, passei uma de minhas mãos para enxuga-las e minha
maquiagem estava se esvaindo com as lágrimas mais sinceras e estocadas
ao longo deste ano que me permiti cuidar de mim.
Fazia tempo que não chorava e apenas este lugar tem esse poder sobre
mim.
Não estava triste, eu estava apenas emocionada.
Aqui, neste banco de madeira com pouca tinta, que eu amo, um dia, o
mais difícil de minha vida, refleti que a minha fé é única e que se eu a
viver de verdade, acreditando que tudo nesta vida nos serve como apren-
dizado, mudanças constantes e intensas mudam o meu destino.
Não há como fazer diferente, então, sentei no banco de madeira, con-
fortavelmente, apoiei uma mão a cada lado de meu corpo, me coloquei
cabisbaixa e meus cabelos castanhos, mais curtos e brilhantes, invadiram
o meu campo visual.
Balbuciei algumas palavras que saíram quase sem querer de minha
boca.
- Meu Deus, eu sei que o Senhor está aqui!
Um leve sorriso apareceu em meus lábios rosados e saudáveis. Sorri,
porque eu já estava acostumada a falar com Ele todos os dias.
Falava mentalmente, mas esse lugar tem o poder de me fazer falar em
voz alta, assim como um amigo ou como um parente que estivesse ao
meu lado. Aqui é como se fosse meu porto seguro, minha conexão, meu
ponto de encontro. Aqui aprendi que Deus está mais próximos de nós
do que podemos imaginar.
Olhei à frente e via pequenos flocos de neve caindo uns sobre os ou-
tros na sacada da varanda da casa, que se acumulavam e não me incomo-
davam mais.
Aliás, várias coisas já não me incomodavam mais, porque havia me
desprendido de muitos conceitos.

Contos de um Natal sem Luz 122


Vi com meus olhos que o mundo é enorme e que todas as pessoas
que me deparei vivem numa constante em busca do Senhor em lugares
que jamais O encontrarão. Também, vi com meus sentimentos que não
temos controle de nada... absolutamente nada nesta vida.
Vi, o quanto pessoas se debaterem em busca de respostas para suas
angustias e problemas tão pequenos, que apenas dependeriam de peque-
nas mudanças de postura mental, mas elas não conseguem mudar, por-
que também, não conseguem enxergar que só elas podem fazer isso, e
mais ninguém.
Rodei parte do planeta para poder me encontrar e percebi que eu
sempre estive aqui dentro de mim e que nada, nada neste mundo pode
me completar, se não, eu mesma.
Compreendi que não existe maior e mais completa viagem a não ser
aquela que fazemos dentro de nossa mente, nos conhecendo de verdade,
e que muitos não gostam de fazer isso, porque dói e que isso inclui mu-
danças radicais.
- Mas, meu Deus! Como essa viagem é libertadora de nós mesmos!
Como é bom!
Simplesmente dói porque nos deparamos com conceitos antigos e ul-
trapassados que estão enraizados em nós e estes vêm de gerações antigas
e tão infelizes e tristes que não souberam lhe dar com eles e que a nossa
geração está aqui para fazer diferente, porque temos mais informações do
que eles tinham. E temos que estar libertos, de mente livre e serena para
que possamos enxergar essas novas informações, novos conceitos para
que possamos fazer diferente do passado.
- Nossa! Eu vi e percebi tanta coisa! Quanto conhecimento incrustrado
nas pessoas e nas diversas situações que nos rodeiam!
Essa casa, meu trabalho na vinícola e esta pequena cidade, não conhe-
ço ainda, não desta forma nova que aprendi a descobrir a vida.
Retorno para esta nova casa que enxergo com novos olhos para
aprender novas lições, novas possibilidades.

Contos de um Natal sem Luz 123


Aprendi, de verdade, que dentro de nós existe um mundo, um univer-
so, uma galáxia de conhecimentos e aprendizados e que todas as respos-
tas para nossos problemas estão dentro de nós mesmos.
Ah! E quando nos falta o que complementar o universo se encarrega
de nos enviar, exatamente, a informação complementar para o nosso
crescimento e evolução.
Mas que tudo isso só é possível quando acreditamos em nós, quando
manifestamos o desejo do querer aprender, aí... o mundo se transforma a
sua frente e ele vira uma grande e enorme apostila para ser desvendado
em benefício de si próprio.
Enfim, pessoas para mim, são meus professores e suas histórias de vi-
da, são minhas preciosas lições.

Contos de um Natal sem Luz 124


Casa 4

O Último Natal
Adriana Ribeiro

Aparentemente estava tudo normal na casa de número 4, da vila for-


mada por vinte modestas casas, em uma rua sem saída.
Após os acontecimentos no Natal anterior, Dani acreditou que tudo fica-
ria bem. Mas não foi bem assim.
Após a morte de seu pai, de forma inesperada, sua mãe D. Margareth
nunca mais foi a mesma, sua fuga deixando Dani sozinha, seu compor-
tamento nos dias que se passaram, deixava no ar uma sensação que algo
não estava normal, definitivamente nada estava normal. Porém, muitas
vezes só enxergamos aquilo que queremos ver. É aí que mora o perigo.
Véspera de Natal, Dani volta ansiosa em contar a novidade para a
mãe, finalmente após todo seu esforço foi promovida a gerente do posto
de gasolina em que trabalha. Dirigindo tranquilamente pela rodovia can-
tarolando “All You Need Is Love” dos The Beatles, ela faz a curva que
leva para rua de sua casa. Logo na entrada vê os enfeites que deixou sua
mãe arrumando de manhã, ela já tinha terminado e estava tudo lindo! O
aroma da comida especial, o cheiro do peru assando, despertou-lhe a
fome. Ela abre a porta e grita:
- Mãe! Cheguei! Tenho uma novidade para te contar.
Ao entrar na cozinha, Dani encontra sua mãe sentada, quieta, pensati-
va e de repente ela se levanta.
- Querida você chegou! Nem percebi você entrar.
- Sim mãe. Cheguei. Está tudo bem?
- Claro, claro. Vamos conte-me a novidade.
- Ah, mãe fui promovida a gerente!

Contos de um Natal sem Luz 125


- Que maravilha meu anjo, sempre soube da sua capacidade, serás
muito feliz e próspera. Ande, venha ver todas as comidas que preparei
para você.
- Para nós mãe, você preparou tudo para nós duas.
D. Margareth e Dani começam a olhar as sobremesas na geladeira, os
assados no forno, a cesta de frutas tão bem arrumada.
- Caramba, mãe! Você caprichou, parecer estar tudo tão gostoso, não
vejo a hora de começar a devorar tudo.
- Mais tarde, você vai comer o quanto quiser.
Dani repara que a mãe, novamente se excluiu da situação. Mas não
corrigiu novamente, a mãe estava de bom humor, era bom que continu-
asse assim.
- Oras! Quase esqueci. Também tenho uma surpresa para você Dani.
Venha, venha - diz D. Margareth, que pega na mão da filha e a leva até o
quarto.
- Sente-se querida.
D. Margareth vai até o guarda roupa e retira da primeira gaveta uma
caixinha vermelha.
- Tome é seu. Prometa-me que vai usar e que tomará cuidado para
não perder - diz D. Margareth entregando a caixinha vermelha para a
filha.
Dani abre a caixa e fica estática.
- O que foi? Não gostou? – pergunta a mãe.
- Claro, que gostei é linda. Mas, é que... não a vejo usar desde que o
papai... – Dani deixa as palavras morrerem no ar.
- Ah sim, eu não tinha mais motivos para usar. Quando seu pai me
deu esta gargantilha, me sentia tão linda! Viva! Ao contrário de hoje, me
sinto tão... bom não importa, pegue-a, quero que fique com você.
- Mamãe eu te amo, quero que saiba disso, não sei o que seria de mim
sem você – diz Dani.
- Eu também te amo filha. Deixe-me colocá-la.
D. Margareth ajuda a filha a fechar a gargantilha.
- Ah Dani, ficou linda!

Contos de um Natal sem Luz 126


- Obrigada mãe. Ai caramba! Esqueci o seu presente no posto!! Que
droga! Vou lá buscar – desespera-se Dani.
- Não, meu anjo, não precisa. A comida já está quase pronta. Fique
mais um pouco comigo – implora D. Margareth.
- Poxa mãe, comprei o seu presente com tanto carinho. Só esqueci,
pois acabei ficando empolgada com a notícia da promoção. Eu vou lá é
rapidinho em alguns minutos estou de volta, ok?
- Fique comigo mais um pouco Dani – repete D. Margareth olhando
para o chão, não era o que esperava, não era para ser desse jeito. Não era
para ser assim.
- Já volto, ok? – Dani despede-se da mãe com um beijo no rosto, dá as
costas e sai do quarto.
D. Margareth fica com as mãos no local beijado, ouve a porta do carro
bater e chora.
Dani certifica-se que está com a chave do posto, ela está no bolso da
calça, liga o carro dá a ré e parte em direção ao posto de gasolina. O per-
curso é rápido em alguns minutos ela chega no posto, que está fechado.
Estaciona o carro próximo da porta, abre e entra.
- Onde deixei o pacote? – Dani fala com si mesma.
Ela se lembra de tê-lo levado para o quarto do cofre, e sim, lá está o
embrulho sobre a mesa. Sua nova mesa é ali que partir do dia 26 vai tra-
balhar, aquela lembrança a faz sorrir. E ela fica por alguns momentos
admirando o ambiente, o silêncio. E como num acordar de um sonho,
ela volta a si e sai. Tranca a porta e entra no carro. Ao manobrar o carro,
uma van para na sua frente. Um casal e duas crianças. A mulher, no ban-
co do passageiro baixa o vidro, mas é o marido no volante que fala.
- Boa tarde! A senhora trabalha no posto? – pergunta o homem.
Dani pensa em dizer não, já está com muita pressa, não quer deixar a
mãe sozinha por muito tempo. Então ela se questiona mentalmente:
“Porque minha mãe não pode ficar sozinha? ”
A vontade de dizer não aumenta, mas não seria um comportamento
adequado para uma gerente novata.
- Sim, trabalho. Mas já está fechado – responde Dani.

Contos de um Natal sem Luz 127


- Poxa, é que fizemos esse desvio e acabamos entrando nessa cidade,
esperando achar um posto de gasolina aberto. Estou com medo de con-
tinuar viagem e ficar sem gasolina.
“Espírito de Natal Dani, onde está? Coisa rápida. Abasteça o carro do
senhor, receba e cai fora! ” – pensa Dani.
- Claro, por que não? – diz Dani.
- Moça, muito obrigada pela gentileza, obrigada mesmo! – diz a mu-
lher no banco do passageiro.
Dani abastece o carro, recebe o dinheiro e sai em disparada para casa.
Mas a euforia se foi. A apreensão toma conta do seu ser. Algo está erra-
do, ela sabe, senti.
Ela chega rapidamente em casa. Estaciona e entra pela cozinha carre-
gando o embrulho.
- Mãe? Cheguei de novo. – grita Dani.
Uma música, da cozinha ela não consegue identificar qual é.
- Mãe? – Dani, reconhece a música, “The end of the world “ da Skee-
ter Davis, nunca gostou desta música, ela para em frente a porta do quar-
to e empurra a porta.
- MÃE!
E o mundo, o Natal e todos os dias que viriam acabou quando D.
Margareth disse "ADEUS" para sua vida e sua filha, pendurada numa
corda.

Contos de um Natal sem Luz 128


Casa 5

Esperas
Marcelino Taveira da Silva

O tempo é uma dimensão traiçoeira dentro e fora de nós mesmos. A


passagem do tempo marca o compasso dos dias mais amargos que o ser
humano pode experimentar. Poderia ele ser colocado em uma cápsula
para que não pudéssemos sofrer a angústia de viver uma vida miserável?
“Poderia” é um verbo... um verbo no futuro do pretérito. É um pre-
sente na vida das pessoas que querem romper com a barreira do tempo.
Após a morte de sua avó, Simone acabou ficando emocionalmente
instável. Chorava frequentemente, ficava durante horas olhando para as
paredes, esquecia-se da fome que sentia, dormia no chão, sonhava com...
sonhava... simplesmente sonhava.
- Simone, tenho sede.
- Grandma! A senhora está aqui?!
- Eu nunca fui embora daqui, minha neta.
- Preciso tanto da senhora. Eu me sinto tão sozinha.
- Simone, eles virão ajudar você.
- Quem?
Simone sentiu que sua pergunta ecoava no ambiente. Ela ouvia um
som ensurdecedor e sentia que seu corpo estava paralisado. Tentou mo-
vimentar os braços em vão, tentou gritar, tentou sair dali.
- Meu Deus! – gritou Simone despertando de um sono truculento. –
Que horrível! Por que eu não morro logo? Por quê?!!!
Mais um dia de lágrimas... Lágrimas de profunda tristeza.
A melancólica garota escrevia, documentava suas cáusticas dores em
um diário. Ela voltou a ler tudo aquilo que escreveu durante um ano. Seu

Contos de um Natal sem Luz 129


diário sempre foi de tristezas, mas, depois da morte de sua querida avó,
tornou-se torturante.
Simone parecia querer registrar seus últimos dias de vida. A morte de-
veria chegar no momento oportuno, preciso, conveniente. Ela jamais
tiraria a própria vida, pois acreditava que isso seria um crime contra a
natureza. Este foi um pensamento interessante relatado por ela:
“Existem vários caminhos para aqueles que morrem. Aqueles que
morrem fazendo obras de caridade, que superam seus próprios medos e
vazios, que se mantém conectados em corpo e alma com o Grande Ser,
essas pessoas retornam para Deus. Elas se tornam anjos! A maioria das
pessoas, porém, dormem, sonham acordadas, não sabem o que come-
ram no café da manhã, são mecânicas, são máquinas de carne e osso.
Esse tipo de pessoa sonha, morre e volta a sonhar. Sonham pra sempre!
São fantasmas assombrando a própria existência. Quem tira a própria
vida é desprezível. Não merece sequer a morte. Só lhes restam a dor, a
amargura, o fel. Minha querida grandma morreu... Eu já quis me enfor-
car, cortar os pulsos, morrer silenciosamente. Mas a minha dor não é
silenciosa. A minha dor é um hálito de fogo nessa frígida vila. Às vezes,
meus pensamentos de morte são como formigas que picam a carne do
meu corpo inteiro sem pele. Elas se alimentam do meu sangue e eu as
odeio muito! A morte seria um prêmio pra mim. Mas eu ainda sou cheia
de defeitos e não me lapidei o bastante ainda nessa vida. E agora, mais
um Natal sem luz.”.
- Minha neta amada!
Simone volta-se para à esquerda e encara sua desencarnada avó de
frente, dizendo:
- Vovó querida, agora eu estou acordada. Queria tanto abraçá-la.
- Eu também, dear. Eu te amo muito! Não quero que você sofra mais.
Não quero ver você buscando alimento no lixo. Você precisa ir embora.
- Não quero apagar minhas memórias, grandma. É melhor eu ficar
aqui.
- Aqui você só vai encontrar a morte. E você ainda tem muito trabalho
a realizar em vida.

Contos de um Natal sem Luz 130


- Trabalho? – indaga Simone com certo ar de preocupação.
- Sim, minha neta. O trabalho sobre a sua própria pessoa. – disse a
avó, enquanto sua imagem se misturava à das paredes descascadas do
velho casebre. – Você sabe! Você sente! O trabalho já começou, mas não
terminou.
Batidas na porta. Simone abre intuitivamente. Sua visão estava turva,
embaçada. Logo ela vê um casal.
- Tereza?!!! – indagou a garota com um enorme sorriso.
- Minha irmãzinha querida, viermos te buscar.
Lágrimas de profunda alegria.
- Eu pensei que nunca mais veria você, Tereza.
- Sei que muita coisa ruim aconteceu aqui. Sei do seu sofrimento. Mas
agora vamos ficar juntas. Esse é o meu esposo, Nasard.
- Prazer, Nasard! – a garota cumprimentou o cunhado e tentou, sem
êxito, conter as lágrimas e a emoção. – A vovó falava comigo, sister. A
vida aqui foi tão difícil, tão penosa!... Eu sei que não deveria, mas acabei
ficando muito triste com tudo. Eu já quis morrer. Várias vezes! Eu que-
ria...
- Senhorita Simone Dumas, levanta a cabeça. – exortava Tereza do-
cemente. – O que aconteceu, aconteceu. Vamos pensar no nosso futuro
agora.
- Eu vou com vocês, de verdade?
- Claro que sim, minha irmã.
- Para o Brasil?
- Sim, você vai morar com a gente. Você quer?
- Quero muito!!! Vou com vocês! I hope for the best! Eu te amo, mi-
nha irmã!
- Também te amo, minha irmãzinha. – disse Tereza enquanto dava
outro caloroso abraço em Simone, concluindo aquela belíssima cena
com uma frase. – Esperas!
Quando perdemos a esperança, a amargura de viver torna-se sólido
concreto que nos leva para o fundo do mar. Realmente, esperar não é

Contos de um Natal sem Luz 131


algo simples. Envolve tanta coisa, tantos dizeres, tantas farsas, tantas ilu-
sões, tanta espera.
Simone Dumas conseguiu esperar. Ela, que tantas vezes, olhava para o
céu, durante frias noites, como quem grita “hope” para o espírito de Na-
tal, sentiu o seu coração recarregado de energias boas, de satisfação, de
amor, amor fraterno. Selou a última página de seu diário com três pala-
vras: Hope, Esperas, Esperança.
Naquele mesmo dia, deixando suas piores lembranças pra trás, Simo-
ne lembrava-se de que, há um ano, falecia sua doce avó. Lembrava-se de
que viveu ao lado de uma mulher forte, decidida, que soube se despedir
da dura vida que tivera ao lado da neta. “Nossos ídolos continuam sendo
Lincoln e Santa Claus.”, dizia a sábia senhora.
As irmãs Dumas viveram dias felizes... Até se separarem novamente.

Contos de um Natal sem Luz 132


Casa 7

Hospital
Rafael Velore

Na igreja, Fanny Widlow e Margareth Wiltmann entreolharam-se


cúmplices, com sóbrios sorrisos e serenas compleições. Sentadas lado a
lado no banco de madeira, nesta fase da vida extraíam felicidade das coi-
sas mais ligeiras e leves. Que grande conforto aquela missa de véspera de
Natal! Levantavam-se e dirigiam-se todos à porta e à escadaria daquele
templo em real, indisfarçada, porém severa satisfação.
Wally esperava no estacionamento com o carro ligado e o cachimbo
aceso. Sorriu, abrindo a porta do veículo para as duas senhoras consecu-
tivamente.
Almoçariam todos juntos desta vez, neste ano.
Frank e Daniela estavam de férias, esperando em casa. Provavelmente
brigando. E divertindo-se enormemente à medida que o faziam, como
esporte de irmão e irmã que na realidade se amam muito.
O motor grunhiu, e as rodas patinaram na neve um tanto, guinando
um pouco o carro para o lado.
- Acho que as correntes estão frouxas – disse o pescador, de olho no
capô que esbranquiçava.
- Podemos aproveitar a ajuda de alguém, Wallace. Ainda estão saindo
da igreja.
- Maggie está certa, querido.
O vidro do carro embaçava enquanto ele bufou um tantinho, assen-
tindo com a cabeça e abrindo a porta do carro.
- Já volto princesas.
Deu a volta no carro abrindo o porta-malas atrás de um macaco, e as-
soviava e acenava para alguém.

Contos de um Natal sem Luz 133


Decerto a neve atrapalhava, mas ergueram o carro e prenderam firme
a corrente no pneu em dois homens em questão de poucos minutos. Um
cumprimento efusivo e uma baforada de cachimbo enquanto as senhoras
esfregavam as mãos umas nas outras e logo Wally guiava o sedan vagaro-
sa e cuidadosamente para casa.
O cinema estava aberto, Wally notou. “Quanto tempo!”, pensou. O
anúncio luminoso vermelho era bonito.
Daniela ria histericamente enquanto esguichava espuma de suspiro no
rosto de Francis, com o bico de confeitar. Quanto mais o palhaço se
ofende, mais engraçada é a piada, pensou.
O bolo decorado e pronto para ser assado a permitia sair correndo e
rindo antes que seu irmão mais velho e mais forte a torturasse com cóce-
gas que a deixariam sem fôlego. Mas foi alcançada bem cedo. Uns bons
cutucões e açúcar com ovo misturados espalhados no cabelo.
Riram mais um tanto e após posicionar o quitute no forno, subiram a
escada, para tomar banho e arrumar-se.
A senhora Widlow olhava para a rua coberta de branco com o mesmo
olhar de sempre adquirido nos anos anteriores, quando o Natal perdera a
razão de ser para si. Suspirou ligeiramente para si mesma, grata mesmo
pela companhia dos Wiltmann.
Estava tão acostumada com a tristeza, que sabia simplesmente como
sorrir de gratidão, tendo dentro força e vazio; se é que isto é possível,
como ela parecia tornar.
Pouco se via através daquele vidro do banco de trás.
Walter Roake estava bem na esquina adiante, defronte à loja de ferra-
gens, se a neve que recomeçava a cair permitisse que alguém visse.
Sorria e entrava na pick-up. Tinha um jeito de sorrir com o canto da
boca e mexer no boné, para então logo abaixar a cabeça em respeito –
agia assim com qualquer um – que assinalava a todos que nunca mudaria.
Houvesse alguém em quem qualquer um naquela vila ou no posto da
interestadual confiava, era Walt.
Dani secava e logo passava uma prancha térmica nos cabelos. Lá em-
baixo Frank colocara música country para tocar, e ela deu um sorriso

Contos de um Natal sem Luz 134


diante do espelho. Chutou a toalha molhada para fora da cama, atenção
vidrada nos cabelos do espelho.
Frank ironicamente ouvia a canção Daddy Frank do cantor Merle
Haggard e imaginava se um dia teria gosto por ser pai. Seus troféus de
futebol sobre a lareira, todos empoeirados e cheios de teias de aranha.
Dani desceu com os presentes e colocou-os por sob a árvore de Natal.
- Eles tão demorando, não tão?
Frank deu de ombros. Dani correu para perto do forno, e alcançou
uma luva de amianto. Abriu a portinha do forno, alcançou e depôs o
bolo por sobre a mesa da cozinha.
No carro, o vento insistia em entrar pelas mais delgadas frestas e casti-
gar aquela turma de amigos já de idade, acostumada com um dos inver-
nos mais frios do país.
- Fanny, as crianças – Dani, a mais nova, tinha vinte e três anos, mas
seriam para sempre “as crianças” – perguntaram se você não gostaria – o
cachimbo vacilou na boca, mas Wally o mordeu a tempo de livrar as
duas mãos para uma guinada à direita ao volante, em direção à rua sem
saída. – se você não gostaria de ficar esta noite e ir conosco viajar ama-
nhã. Eles têm um roteiro espetacular todo planejado, se eu fosse você eu
vinha conosco. – ele deu um sorriso matreiro em direção ao espelho
retrovisor central interno. – vai ter pescaria. – alarga o sorriso.
A senhora Widlow obtém um sorriso genuíno, porém depois de mui-
to esforço.
- E-eu... adoraria, Wally. – ela olha para a direita; sua amiga Maggie
sorri, também no banco de trás. Fanny Widlow retoma fitar a rua de ca-
beça baixa, mas sorrindo ligeiramente mais.
Na casa dezoito da rua sem saída, Frank e Dani começam a olhar-se
entediados.
- Já era para estarem aqui...
- Vou ligar. – Frank enfia a mão no bolso e puxa o telefone celular. –
sem sinal. – bufou.
Fosse verão, os dois entediados certamente esperariam no alpendre,
na frente da casa, sentados e provocando-se mutuamente para passar o

Contos de um Natal sem Luz 135


tempo. Só restava olhar para aquela lareira, hipnotizados pelo estrepitar
do fogo.
Estranhamente, neste ano, tinham luz elétrica – até àquele ponto – e
ouviam música para distrair-se. As sombras das árvores cresceram lá fora,
e logo era noite.
O dia inteiro fora de uma luz escura, mas a rua ainda não tinha sumi-
do na noite até então.
- Cadê eles? – ela olha pela janela.
- Poxa. – ele olha novamente para a tela do telefone celular. Ele clica
algumas vezes. Espera um pouco, ouve o toque muitas vezes, contorce o
canto do lábio. Encolhe os ombros eloquentemente olhando nos olhos
dela.
Ela estica uns paninhos velhos e esgarçados por sobre as sobremesas
na cozinha e volta. Cruza os braços preocupadamente, mordendo os
lábios superiores mimadamente, olho na janela. Ele olha de novo para o
telefone.
- Eles não chegam nunca? – ela bate o pezinho no chão da sala de
braços cruzados e boca torta, atravessando o janelão de cortinas escanca-
radas com o olhar, acenando com a cabeça algumas vezes impaciente.
A perspectiva de chegada da família juntamente com a senhora Wi-
dlow a estimulava, aqueles avós tinham uma conversa gostosa e eram
garantia de muitas horas de diversão; sadia, singela, inocente, virtuosa.
O telefone da casa toca. Eles se olham. Ela corre e estende o braço:
- Residência dos Wiltmann?
- S-sim.
Os olhos dela arregalam. Consequentemente, os dele também.
- Hospital Wine Country. Okay. – ela desliga sem perder a estupefa-
ção. – p-pegue as chaves do carro, Frank.
As passadas seriam ouvidas por todo o prédio se tivesse alguém ali: os
dois entraram no hospital, pela porta de vidro aberta, apenas para encon-
trarem o local quase completamente apagado, sem ninguém que os aten-
desse na recepção escurecida.

Contos de um Natal sem Luz 136


Luzes dos corredores acesas. Os dois irmãos se olharam e subiram na
ponta dos pés, arrancando.
Somente uma única sala com a luz acesa adiante, uma sala grande de
enfermaria. Eles estacaram diante da porta para ver um menino sobre
uma maca; um médico suturando sua pálpebra e sua mãe rindo de ner-
vosa:
- Obrigada, doutor. – exprobava a criança – Nada de correr perto da
cristaleira de novo, hein? – sorria para o menino. – Que susto você me
deu. – ela olhava um pouco de sangue na camisa nova do garoto.
- Com licença? Estamos procurando Wallace Wiltmann?
A cidade era pequena. O médico desfez o sorriso e assentiu algumas
vezes com a cabeça.
- Claro. – e indicou o caminho. O olhar de pesar do doutor assustou-
os.
Acharam as senhoras. Escoradas no batente do quarto de terapia in-
tensiva, observavam enfermeiras debatendo-se, nervosamente, soluçando
baixo.
- Vovó!
Margareth Wiltmann chorou ao ouvir a voz da neta. Abraçaram-se,
quando a idosa tornou-se.
Wally Wiltmann jazia morto por sobre a cama hospitalar.
O ataque cardíaco fulminante o teria feito perder a direção, se o carro
já não tivesse meio enterrado na neve, e felizmente as senhoras não havi-
am se machucado. Nunca houve nada mais perdido do que o olhar da
senhora Widlow por sobre aquelas três criaturas chorando.
Um enfermeiro empurrava a cama com rodinhas de cabeça baixa.
Um médico repousava a mão no braço de Margareth, para então
igualmente deixar o local de cabeça baixa.
Nas poltronas do corredor, todos sentaram e choraram um pouco. O
penúltimo médico – aquele que costurara a pálpebra do menino – dava
partida no carro lá fora.

Contos de um Natal sem Luz 137


Já no hospital, Wally tivera um novo ataque cardíaco, e não resistira:
Maggie explicou aos dois jovens, que nem chorar direito podiam, em
choque.
A senhora Widlow levantou-se, sem ser notada, e virou-se em direção
ao corredor, agora escuro.
Havia uma luzinha bem no fundo do corredor.
Ela atravessou o lugar com seus passinhos lentos mas diligentes.
Com a cabeça sempre baixa.
A luz da capelinha, fraca, amarelada.
A porta, entreaberta.
Alguém ali sentado, rezando baixinho, acendera a luz lateral.
A senhora Fanny Widlow, olhou para trás de si uma última vez, con-
templando o escuro de morte de um hospital apagado e esvaziado duran-
te uma noite de Natal, e entrou decisivamente naquela luz fraca mas es-
perançosa, e sentou-se numa banquetinha daquelas, mais atrás, e orou.

Contos de um Natal sem Luz 138


Casa 8

Luzes de Natal
Raquel Cavasini

O último ano custou a passar para a família Johnson, além da perda da filha
Anna, as circunstâncias que desencadearam essa terrível situação também fo-
ram um choque para todos.
Enterrar um filho nunca é fácil, ainda mais quando esse tem tanto ainda pa-
ra viver, mas esse sofrimento foi ainda mais desolador, pois no incidente três
filhos foram perdidos. Willian foi apontado como o principal responsável pela
morte da irmã, pois foi quem puxou o gatilho, e Thiago foi dado como cumpli-
ce, além da acusação de assalto e formação de quadrilha. Como ambos ainda
eram menores de idade foram mandados para um centro de recuperação de
jovens, Willian com seu temperamento mais agressivo logo se adaptou, for-
mando um grupo com outros jovens encrenqueiros, pouco se incomodava com
o ocorrido e quase nunca pensava em Anna, aliviava sua culpa na frase “hora
errada no lugar errado, poderia ser qualquer um!”, mas para Thiago aquilo era
um martírio sem fim, entrou de gaiato na história toda e agora via seu futuro
arruinado e sua família consumida pela dor, assim, dois meses após trancafia-
do, ele sucumbiu ao desespero, começou a ter ataques psicóticos e foi manda-
do para uma clínica psiquiátrica.
Marcados pela morte, prisão e loucura dos filhos, tudo de uma só vez, as
coisas ficaram ainda mais complicadas para o senhor e senhora Johnson, a au-
sência dos filhos deixava um enorme vazio, tanto no interior da pequena casa,
quanto em seus corações. No início foi tudo muito complicado, cuidar da pa-
pelada do enterro, às audiências judiciais, a exposição de suas vidas nos telejor-
nais e nas páginas das revistas, encarar toda a situação e continuar seguindo em
frente com a farmácia, a qual perdera muitos clientes, mesmo a concorrência
sendo tão pequena na pacata vila onde viviam, muitos dos vizinhos não queri-

Contos de um Natal sem Luz 139


am se associar àquela família. Para colaborar com o clima tenso o qual a família
se encontrava, o velho senhor Agenor sofreu um ataque cardíaco após ver sua
querida neta morrer em seus braços, passou algumas semanas no hospital o
que gerou mais preocupação ao filho e um aumento significativo nas despesas
da família.
O tempo foi passando lentamente até que os Johnson conseguissem se rees-
tabelecer, levando uma vida impassível, mas a dor e a saudade ainda estavam
presentes, principalmente o sentimento de falha. Dezembro chegou novamen-
te, intensificando as magoas até então tranquilizadas, senhor Agenor começou
apresentar algumas mudanças no seu comportamento, devido à proximidade
da data fatídica, pensava cada vez mais em Anna e a falta que sentia da neta.
Passava o dia todo olhando pela janela da sala, vendo os flocos de neve cair e
suspirava quando uma corrente de ar cortava o clima aconchegante do ambien-
te, ele acordava no meio da noite assustado e suando frio, em seus pensamen-
tos uma voz chamava seu nome incessantemente, ele jurava conhecer aquele
som, mas não se recordava de onde.
Os sonhos ficaram ainda mais intensos com o passar dos dias e a voz mais
perceptível, algumas vezes senhor Agenor acreditava ouvi-la mesmo acordado,
através de pequenos devaneios e lapsos de atenção.
Dois dias antes do Natal, os Johnson resolveram fazer uma visita as filhos
reclusos e o velho Agenor ficou sozinho em casa. Sentado à beira da janela ele
começou a recordar os mementos maravilhosos que passou junto a falecida
esposa e a pequena Anna, como essas duas mulheres faziam falta em sua vida.
Perdido em seus pensamentos, Agenor escutou uma voz doce e suave cha-
mando-o, lentamente ele pegou no sono e logo iniciou um sonho confuso e
agitado. No sonho, ele se encontrava em um longo corredor escuro, ao fim
desse corredor brilhavam dois pontos luminosos os quais chamavam-no inces-
santemente. Assim como em sonhos anteriores Agenor sabia que já ouvira
aquela voz, a lembrança estava guardada bem no fundo de sua mente.
O sol se pôs e a chegada dos Johnson acordou o velho senhor de seus so-
nhos inquietos, ele comeu a refeição servida por sua nora, tomou um banho e
partiu rapidamente para a cama, pois sabia que logo iria reencontrar a voz em

Contos de um Natal sem Luz 140


seus sonhos, ansiava por isso, queria descobrir a quem ela pertencia e o porquê
ela o chamava com tanta frequência.
Ao pegar no sono, logo surgiram os pontos de luz brilhantes, mas dessa vez
eles não permaneceram distantes no final do corredor, eles caminhavam na
direção do velho senhor, conforme iam aproximando-se as silhuetas ganhavam
forma, uma senhora de aparência bondosa, poucos anos mais jovem que Age-
nor e uma pequena garotinha sorridente de olhar perspicaz, ambas velhas co-
nhecidas dele.
- Olá vovozinho, quanto temp. Estávamos com saudades do senhor.
- Oh meu Deus, minhas duas meninas amadas, como vocês chegaram até
aqui? Vocês não sabem quantas saudades eu senti, quanta falta vocês me fa-
zem.
- Meu querido, você nunca esteve sozinho, eu sempre acompanhei seus pas-
sos e a pouco tempo chegou alguém para me fazer companhia – Falou a se-
nhora olhando para Anna com um sorriso singelo.
- A muito tempo espero por esse dia, o qual eu poderia reencontrar minhas
preciosidades que foram tão injusta e dolorosamente arrancadas de mim.
- Vovô, estamos aqui para leve-lo conosco, chegou o momento de estarmos
novamente juntos, sei que papai e mamãe sentirão sua falta, assim como o se-
nhor vem sentindo a nossa.
- Agenor, temos observado você durante algum tempo e percebemos como
tem sido difícil conviver com tanta dor, principalmente após a partida de Anna.
Sua saúde ficou mais debilitada e seus pensamentos caminham lado a lado
entre a lucidez e a insanidade, por isso, para evitar mais sofrimento queremos
que você venha conosco.
Agenor não pensou duas vezes, era muito grato pelo carinho o qual sempre
fora tratado por seu filho e sua linda esposa, mas sabia que seu tempo já tinha
atingido o limite e que se continuasse com os lapsos, logo seria levado a uma
casa de repouso. Assim ele partiu, seguiu pelo corredor, na companhia de sua
doce esposa e de sua neta Anna, seu pequeno Anjo.

Contos de um Natal sem Luz 141


Casa 9

Um Novo Natal
Marcio Muniz

O natal de 2020 fora o pior da vida de Jeff. Afinal, um ciclo de sua vi-
da se findava, era como se uma parte sua se desgarrasse do corpo e o
deixasse inválido. Além disso, foi difícil demais contornar junto as crian-
ças a ausência da mãe. A elas, não cabiam explicações racionais para o
fato, elas exigiam sua presença, seus cuidados. Jeff precisava ser forte, ele
só podia verter suas lágrimas na solidão do quarto, à noite e após pôr as
crianças para dormir, quando todas as luzes já estivessem apagadas. En-
tão sim, era ele e sua saudade.
Manteve a loja fechada por todo aquele inverno, seus filhos eram a
sua prioridade. Os vizinhos ajudavam quando e como podiam, uma vez
que o natal passado tinha sido difícil para toda a vila, cada um parecia
ocupado demais com seus próprios dramas, continuando a vida sob a
sombra da montanha e o inverno rigoroso que os castigava.
Apesar de toda dor e saudades que Jeff sentia, ele nunca fraquejou.
Dois pilares o mantinham de pé. A fé que eles professavam dava confor-
to e lhe dizia que Mary estava livre das mazelas da vida e em um lugar e
estágio melhores e; O amor, que mesmo após a morte da companheira,
permanecia intacto em seu coração. A presença constante do pai ajudou
em parte as crianças a passarem pelo impacto inicial da falta da mãe. Jeff
tentou lhes dar todo carinho, amor e atenção que pudesse lhes proporci-
onar, ele literalmente os envolveu em uma bolha de cuidados.
Todavia, como dito pela esposa, o sonho deles precisava continuar e
a vida precisava seguir adiante. Já quase no fim do inverno Jeff pôs no
jornal da cidade um anúncio para contratar um governanta/babá. O
anúncio custou a surtir efeito e mesmo assim, apenas uma pessoa res-

Contos de um Natal sem Luz 142


pondeu, uma jovem com 22 anos de idade, pouca experiência, mas um
carisma que saltava aos olhos. Ele não teve escolha, precisava reabrir a
loja, as economias chegariam logo ao fim se não o fizesse. Então ele a
contratou. Dormiria com eles de segunda a sexta e no sábado pela ma-
nhã iria para casa retornando segunda. As crianças logo se apegaram a
jovem governanta.
Era nítida a felicidade em seus sorrisos quando ela chegava as segun-
das, e a tristeza que sentiam ao acordarem e não a verem em casa aos
sábados de manhã. Susan mostrou-se muito competente no cuidado da
casa. Pouco a pouco foi conquistando a confiança de Jeff com seu traba-
lho e sua dedicação. Ela dizia estar muito afeiçoada àquela família, tanto
que pouco a pouco foi passando a deixar de ir a cidade e foi ficando o
fim de semana com eles, inclusive, levando as crianças para a loja para
que pudessem passar algumas horas com o pai lá também. Susan era
uma jovem muito bonita, daqueles que se destacariam como líder de
torcidas. Era loira natural, olhos verdes, corpo bonito, seios grandes e já
era perceptível a todos, os olhares ainda que meio tímidos, que ela as
vezes direcionava à Jeff. Ela era órfã de pais e sua única parente era uma
tia-avó que não lhe era assim tão próxima.
Entretanto para Jeff, toda essa beleza e esses olhares passavam prati-
camente despercebidos. Ele mantinha o seu luto pela perda do grande
amor da sua vida. Se uma porção do seu coração era amor puro e cuida-
do dedicado aos filhos, a outra permanecia fria tanto quanto fora o rigo-
roso inverno de 2020, eclipsado e escuro como a grande sombra da mon-
tanha. Quanto a isso, sua decisão parecia tomada.
Mas o tempo foi passando e as coisas mesmo que involuntariamente
iam voltando à sua normalidade. As crianças adoravam Susan. Ela agora
só voltava a cidade um único final de semana por mês e Jeff cada vez
mais a vontade, quase sentia desejo de sorrir. Criou-se entre eles então,
uma certa intimidade, os laços foram se entretanto e para quem observas-
se de fora, eles até que pareciam uma família normal. Jeff fazia força para
não notar Susan, mas parecia questão de tempo até que ele se rendesse
aos seus muitos encantos, à forma com que ela cuidava dos seus filhos,

Contos de um Natal sem Luz 143


da sua casa, da sua família. Contudo, a memória de Mary ainda estava lá
e precisava a todo custo ser preservada e respeitada.
Faltava então uma semana para o natal de 2021 e outra vez as pre-
visões eram de um inverno rigoroso na vila Garden Rose. Durante todo
aquele mês Jeff estava tendo uma série de pesadelos que o faziam acor-
dar assustado e ensopado de suor no meio da madrugada, quase aos gri-
tos. Eram sonhos sempre voltados a sensação de perda e de abandono e
ele passou a ter medo do futuro e de deixar desamparados seus filhos.
Susan também não parecia muito animada em passar as festas na cidade.
Dizia que ia sentir falta das crianças, mas não ousava se oferecer para
passar ali aquela data. Não queria parecer como se estivesse tentando
ocupar o lugar de Mary na família.
Por conhecer a história de vida de Jeff e seus filhos, sabia que aquela
seria uma data difícil, de muito simbolismo e por isso, sentia quase que
uma necessidade de estar com eles. Então no dia 23 de dezembro, ao
acordar de mais um pesadelo e ir às lágrimas, Jeff dobrou seus joelhos e
pediu a Deus que enfim aquebrantasse a dor do seu coração e que colo-
casse na frente dele a resposta para suas angústias e dos seus filhos. Com
muito custo pegou outra vez no sono e tornou a sonhar.
Desta vez, porém, teve um sonho leve em que parecia caminhar no
meio de uma neblina. Sentia um calor aconchegante envolve-lo e então
ele a viu. Mary em uma camisola transparente trazia seu sorriso miúdo,
aquele mesmo sorriso tranquilo que lhe trazia paz. Seus olhos se encon-
traram e sem abrir os lábios ele a ouviu dizer: “A resposta as suas angús-
tias já está diante de você. Dê uma chance a vida. Não permita que nosso
sonho morra”.
Então tudo se desfez e ele acordou. Apenas abriu os olhos e perma-
neceu imóvel. Por um segundo ele se entregou ao silêncio daquela ma-
nhã de véspera de Natal. Seus olhos demoram um pouco a acostumar-se
a claridade matinal. Então ele se lembrou de que Susan deveria estar
neste momento arrumando as malas para ir para a cidade. Jeff deu um
salto da cama, correu até o quarto dela e abriu a porta sem bater. Susan

Contos de um Natal sem Luz 144


pareceu assustada pela entrada abrupta, mas não se mostrou contrariada
com a “invasão”. Então ele disse:
- Não me pergunte mais nada. Não me cobre um tempo, mas, por fa-
vor, passe este natal conosco!
Ela correu em sua direção e em silêncio o abraçou forte. No peito Jeff
sentiu uma lágrima quente lhe tocar e foi como se aquela lágrima lhe
aquecesse o coração naquela manhã fria de inverno. Então ele se desven-
cilhou do abraço e disse a Susan:
- Venha, temos muitos preparativos para esta noite. Preciso da sua
ajuda.
E eles saíram, deixando para trás as malas por fazer de Susan e um
par de olhos que do lado de fora, flutuando entre a neblina, se afastava
sorrindo, com a certeza de que sua missão enfim, fora cumprida.

Contos de um Natal sem Luz 145


Biografias
Adriana Ribeiro - Escritora desde 2013, após passar por uma crise
de depressão forte, que impulsionou o dom soterrado por anos. Na-
tural de São Paulo. Autora de "Intercâmbio de vidas", das histórias
infantis "O elefante e a preguiça" e "Está tudo trocado", diversos
poemas e o "Conto do malandro".

Adriana Araujo - Nasceu em 31/03/1984 na cidade de São Paulo.


Formanda em Sistemas de Informação. Ela mora em São Paulo com
seu companheiro. Sua paixão pelo mundo da literatura começou
cedo, aos 7 anos já lia e desde então não parou mais. Sua lista de
leitura já alcança a casa dos 300 livros. Pela primeira vez publica
um conto, porém tem alguns espalhados na web. Seu maior sonho é
escrever um livro de ficção e poder publicá-lo.

Alexandre Braoios – Paulista, atualmente mora na cidade de Jataí,


GO. Graduou-se em Biomedicina e possui doutorado em Análises
Clínicas. Atualmente é professor da Universidade Federal de Goiás –
Regional Jataí e cursa Psicologia na mesma instituição. Possui um
conto publicado na coletânea Contos de Som e Silêncio.

Eliana Magrini Fochi – Advogada, dedicou-se à carreira universitá-


ria em faculdades públicas paulistas (FATECs), como docente das
disciplinas Língua Portuguesa, Literatura e Comunicação Empresa-
rial. Mestre e Doutora em Letras com artigos publicados em revistas
especializadas. Retoma, com especial entusiasmo, suas incursões no
terreno da criação literária.

Eloisa Helena Barroso - Atuou como atriz pela primeira vez aos on-
ze anos e desde pequena gostava de escrever. Formou-se em Biblio-
teconomia e trabalhou como bibliotecária do MPRJ, se aposentando
em julho de 2014. Atualmente se dedica a Literatura.

Contos de um Natal sem Luz 146


Helena Dias – Carioca, formada em Comunicação Social, Publicidade
e Propaganda. Amante da leitura desde os nove anos de idade, co-
meçou a escrever três anos depois e ingressou no mundo dos blo-
gueiros literários Contos de um Natal sem Luz 116 em 2013. Adora
frio, tatuagens, viajar, tomar café (e tequila) e fazer caminhadas sem
destino. Teve seu primeiro conto publicado na “Antologia - Amor e
Morte".

Juh Cortez – Gaúcha de Gravataí. Atualmente mora em Porto Alegre


e divide a vida há dez anos com seu companheiro, Almir. Estudante
de Pedagogia, escreve como hobby.

Lana Gomes - Carioca, alma cigana, filha, esposa, auxiliar de produ-


ção literária com Rô Mierling. Sorriso da alma, alma do mundo,
mundo de seus amigos (como uma autêntica carioca) e odeia sentir
calor (como jamais um carioca seria). Divide seu tempo entre sua
casa e restaurante na Região dos Lagos, e sua vida é a cena de fundo
para suas inspirações e escritos.

Lia Dantas – Baiana e professora de inglês, usa as letras como forma


de escape para seus problemas e dilemas da vida.

Marcelino Taveira da Silva - Goiano, professor, poeta contista e pa-


lestrante; trabalha com desenvolvimento humano. Autor do livro
Verde-Louro Brasileiro (2012).

Marcio Muniz – Formado em Administração, pós-graduando em


Gestão de Pessoas e Projetos. Escritor e poeta por vocação. Poesias
publicadas nas coletâneas: “Inspirar, escrever e sonhar” da Editora
Casa Cultura e “Entrelaços” da Darda Editora. Autor do livro “En-
contros com o amor” pela Editora Multifoco.

Marli Schiefelbein Arruda - Santa-rosense, educadora, escritora,


contadora de histórias. Publicou os livros “Teatro Infantil” (2003),
“Os apuros de Melado” (2013) e a “Chegada de Barney” ( 2014).

Contos de um Natal sem Luz 147


Priscilla Ibañez - nasceu em abril de 1995 e tornou-se amante das
palavras com pouca idade, hoje acadêmica de Direito usa suas pala-
vras para transmitir ao mundo o que seus olhos veem.

P.H. Bragança - Ama livros, filmes e gatos, na verdade seu maior


medo é se transformar na “velhinha dos gatos”. Escreve no blog Es-
tante Jovem e possui nos livros sua melhor forma de viajar, conhe-
cer culturas e se divertir.

Rafael Valore - Músico, vocalista, instrumentista, letrista e composi-


tor curitibano, formado em Licenciatura em Música pela Faculdade
de Artes do Paraná. Desde 2010 encabeça a banda curitibana de
horror punk Nekromonsters. Começou, em 2012, a escrever contos
de horror e ficção, estreando como escritor na Antologia Amor e
Morte (Ixtlan – 2014).

Raquel Cavasini – Paulista nasceu em Americana. Engenheira Agrô-


noma, Mestre em Agronomia (Horticultura). Atualmente cursa Dou-
torado em Engenharia Agrícola na Universidade Estadual de Cam-
pinas e é responsável pelo blog Literaleitura.

S.M.Oliver - Carioca, 26 anos, apaixonada pela leitura e escrita desde


os onze anos quando começou a ler os livros da série Vaga-lume.
Desde então transforma seus sentimentos e inspiração em histórias.
Sua primeira publicação foi na Antologia Amor e Morte, com o conto
"A menina, o porão e o silêncio".

William Wagner Westphal – Catarinense de Blumenau. Graduado


em Jornalismo e graduando em Psicologia. Publicou em diversas
antologias literárias.

Contos de um Natal sem Luz 148


Organização e Projeto:
Antologias Brasileiras2
Coordenadora: Rô Mierling

Gaúcha, brasileira, escritora, antologista, filiada da REBRA e acadêmica cor-


respondente na cadeira 42 da Academia Internacional de Letras, Artes e Ci-
ências 'A Palavra do Século 21'. Participando de diversos projetos literários
ajuda a divulgar a literatura nacional brasileira no Brasil e em Buenos Aires
onde vive metade do ano em função da divulgação de novos talentos literários
brasileiros. A escritora recebeu vários prêmios literários e atualmente é coor-
denadora do grupo “Antologias Brasileiras” que tem como missão publicar e
divulgar o trabalho de escritores brasileiros iniciantes.

Livros publicados: Contos e Crônicas do Absurdo, Íntimo e Pessoal e Quan-


do as Luzes se Apagam.

Organização/Coautora

 Amor e Morte
 Sombras e Desejos
 Contos de um Natal sem Luz- 1ª Edição
 Clímax! Contos Eróticos
 Eu me ofereço! Um tributo a Stephen King – edição bilíngue
 Vida & Verso
 Letras do Brasil
 Vícios, Taras e Medos
 Ano 2500: um novo mundo.
 Mulheres & Meninas
 Modus Operandis
 Contos Insólitos
 Pequenos escritos, sinistras histórias
 Mulheres & Meninas
 Os Desconhecidos
 Contos e Reencontros – edição bilíngue.
 Natal – Prosa e Verso

2Editora Illuminare – www.editorailluminare.com.br. Novas seletivas abertas


para publicação de contos, poesias e crônicas. Participe!

Contos de um Natal sem Luz 149


Contos de um Natal sem Luz 150

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