You are on page 1of 6

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas


Curso de Antropologia – 1º período
Disciplina: Introdução à Antropologia
Professor: Luydy Abraham
Aluno(a): Kelly Bianca Ribeiro de Miranda

PROPOSTA DE ETNOGRAFIA A RESPEITO DO FUTEBOL AMADOR

1. INTRODUÇÃO
Neste trabalho, pretendo descrever a prática do futebol amador num caso específico,
reconstruindo analiticamente o cenário e o grupo social, com especial ênfase às estruturas
sociais mais amplas e à conduta dos sujeitos como membros do grupo e, dentro desta
perspectiva, identificar suas interpretações e significados da cultura a que pertencem1.
A intenção é fornecer a descrição do caso da “Pelada2 do Mixirica” como uma
prática tradicional3, algo que caracteriza a vida do grupo social e sua comunidade. Para ir além
da descrição, seria necessária uma inserção prolongada em campo, no entanto, é curioso
observar que o tema tem elementos culturais onipresentes, facilmente identificados nas mais
discretas manifestações.

2. CONTEXTO
A “Pelada do Mixirica” acontece há aproximadamente 2 anos no bairro Buritis, na
quadra acoplada à área de lazer do condomínio onde mora o membro e organizador de mesmo
apelido, sempre (com algumas exceções) aos domingos, 10h.
Os participantes da pelada são homens, com idades geralmente em torno de 17-24
anos, porém, não há restrição de idade desde que tenham condições justas de disputa: é comum
que haja variáveis bem extremas como 12 ou 50 anos. São membros da classe média-alta e alta,
escolarmente instruídos, e, em sua maioria, brancos; além disso, boa parte mora próximo ao
local.
A presença de indivíduos que não se adequam a esses padrões é dificilmente vista,
uma vez que o encontro é acessível somente aos amigos e amigos de amigos, todos dentro da

1
Neste trabalho, considero o cenário da cultura brasileira.
2
Designação dada aos jogos de futebol amador em Belo Horizonte.
3
Neste trabalho, o futebol é tratado como um fenômeno muito presente na sociedade brasileira. FREITAS, 2006.
mesma bolha social. Arrisco afirmar que a presença mais atípica, no período que passei
observando, seria a minha4.
A escolha de dia e horário para os encontros reflete as posições sociais dos
frequentadores – acontece no fim de semana porque a maior parte estuda e/ou trabalha durante
a semana, e, segundo o organizador, “domingo é um dia que o povo quase não sai, então mais
fácil comparecer. É de manhã porque as tardes passo no meu avô, e às 10h porque é o meio
termo: nem muito cedo, nem tarde”.
Com frequência, são os moradores do prédio que assumem papel de espectadores,
principalmente os homens mais velhos: uma vez que as peladas são tão enraizadas nos costumes
masculinos há várias gerações, imagino que seja forte o sentimento de familiaridade.

3. ORGANIZAÇÃO
O jogo é combinado através de um grupo fechado do WhatsApp, por onde é
divulgada a lista de participantes, que são no máximo 15, caso tenham 3 goleiros, e 14, caso
tenham 2 (não tem juiz). O ideal é que sejam três times de 5 pessoas: o rendimento do jogo é
melhor quando esse número é respeitado, porque não gera excedentes – num dos dias em que
havia mais que 15 pessoas, uma mesma pessoa acabou ficando “de fora5” duas vezes. Contudo,
não há times previamente formados, a divisão dos jogadores é feita apenas por meio de sorteio
(utilizam um app), salvo quando o time fica desequilibrado em termos de habilidade e eles
decidem entre si uma troca. Isso demonstra o caráter de fair play dos jogos, associado ao
estímulo de competitividade – se o jogador acha que o time dele não tem chance de ganhar em
função do desnivelamento com o outro time, as chances maiores são que ele desanime e não
cumpra o desempenho esperado na partida.
Os jogadores que colocam o nome primeiro na lista têm prioridade para entrar nos
times da primeira partida. Cada partida tem uma duração de 7 minutos ou 2 gols, ou seja, se der
o tempo, a partida acaba e ganha quem tiver maior saldo de gols, ou o time que faz dois gols
primeiro ganha e o outro sai automaticamente. No caso da primeira partida, se ficar empatado
até os 7 minutos, há um acréscimo de 2 minutos, e se, ainda assim, não ocorrer o desempate, a
disputa é por pênaltis. Já nas outras partidas, fica no jogo o time que ganhar, o critério do empate
nestas é que, terminado o tempo, sai o time que estava na partida anterior. Cada encontro tem
uma duração prevista de 2h30, porém depende do rendimento dos jogadores, fatores como
cansaço, compromissos que os forcem a sair mais cedo etc. É interessante ressaltar aqui o

4
No que se refere à presença feminina.
5
Esperando a vez de jogar.
engajamento dos jogadores em manter o nível do jogo, como quando estão cansados e pedem
para trocar durante a partida. Inclusive preferem que o jogo termine quando percebem que não
aguentam mais jogar.
O código de vestimenta atual é bem simples, geralmente composto de roupas
esportivas associadas ao futebol: camisas de time, calção e chuteira. Para identificar os times,
os participantes têm que levar uma camisa azul e uma vermelha. Têm alguns coletes
disponíveis, mas não o suficiente, então, quem não tem como levar, pode usar, mas que não
sejam todos. E, caso não tenham as camisas e nem um colete, não tem problema usar qualquer
cor. Antes dessa proposta, os times eram separados somente em com camisa x sem camisa,
porém, a quadra é aberta e o horário é de sol forte, então, acharam melhor alterar o código para
o que é hoje para evitar queimaduras e insolações.
A inserção de novos participantes depende de alguns critérios, consenso entre os
jogadores: a prioridade é de quem já está no grupo, no entanto, em caso de baixo quórum, é
aberto o convite. Se esses convidados comparecem com frequência, pode ser proposto ao
organizador que eles sejam inclusos no grupo fixo. A recepção de novos membros por parte
dos antigos se dá de maneira muito acolhedora e não houve detalhe que pude observar que
demonstrasse algum tipo de discriminação por isso.
Há também um critério para a permanência dos participantes no grupo – se fica
muito tempo inativo ou se coloca o nome na lista e não vai, sem justificativa, mais de uma vez,
acaba sendo retirado do grupo, ou, se acontecer só uma vez, fica “de fora6” do próximo jogo.

4. SOCIAL
A primeira nota que tomei refere-se à questão de afinidade entre os jogadores,
consequência direta do modo como eles entram no grupo (através de indicação de amigos). É
evidente que os que são mais próximos fora da quadra, também o sejam nos jogos. Essa relação
pode ou não aparecer durante as partidas – houve casos em que promoveu concessões (como
marcações mais descontraídas) e casos em que facilitou a repreensão por lances malfeitos etc.
Atrelado a isso, constatei que, muitas vezes, os que são mais próximos, em termos gerais,
também se sentem mais à vontade para reclamar ou jogar com mais vontade entre si do que
entre os mais “afastados”.
Atribuo essa característica a outro fato que notei – a recorrência de comentários e
piadas dentro e fora do grupo do WhatsApp a respeito dos jogos que ocorrem ou que irão
ocorrer. Esses comentários são muitas vezes guiados através desses níveis de proximidade. A

6
Não participa.
associação entre os indivíduos depende da relação entre eles: aqueles mais entrosados
costumam ser o centro dos assuntos, como é o caso de um dos participantes que fornece abertura
para piadas a respeito do seu peso, do seu rendimento físico, entre outras coisas, e que sempre
é a chacota principal da pelada. Ao contrário de um outro participante que, por ser
extremamente aporrinhante dentro da quadra, dificilmente é incluído nesses momentos de mais
descontração.
Se por um lado as afinidades se apresentam na quadra, por outro elas são
irrelevantes em alguns aspectos para os jogadores: não necessariamente os participantes têm
que saber jogar, é comum que alguns não tenham domínio técnico e isso não motiva nenhum
tipo de represália. A condição subtendida dos encontros é a prática descontraída do esporte, o
que não inclui uma obrigatoriedade técnica, pelo contrário; é verdade que há um mínimo
comum entre os jogadores – o interesse por futebol e o que acontece neste meio, no entanto,
são muitos níveis diferentes de habilidade em jogo que não têm nenhum papel condicionante
nas relações, ou seja, jogar bem ou não, não exclui um participante da atividade.
Vale ressaltar ainda que, apesar de ser comum que os que tenham menos aptidão
sejam foco de piadas, o estímulo por parte dos outros para que participem da mesma forma é
positivo. Esse comportamento é reflexo do caráter de camaradagem que há entre os membros
– na mesma medida que não há repreensão por jogadas malsucedidas ou um gol perdido,
constantemente expressam reconhecimento por algo que um participante faz, como falar “valeu,
valeu7” ou “boa bola8”. Um fator corroborante é a eleição do “melhor da pelada”: não importa
o melhor desempenho mas sim o feito mais marcante do dia, que pode ser quem fez a melhor
jogada, ou um gol diferenciado e até mesmo uma queda cômica.
Quanto aos desentendimentos, parece ser um consenso entre os membros que as
contendas que acontecem durante o jogo, terminem no jogo. Mas nem sempre: por vezes reparei
reclamações de algum conflito perdurarem até dois jogos seguintes.
Tomando como ponto de partida as condições socio-financeiras dos participantes,
não era de se esperar que gastos tão pequenos como a compra de uma bola nova9 fosse ser uma
preocupação de todos. Contudo, nesse caso específico, até mesmo o provedor do local
participou da divisão. Isto remete a um certo nível de comprometimento com a pelada, ainda
que esta não tenha, nem de longe, um caráter obrigativo na vida desses indivíduos.

7
Maneira de agradecer a tentativa.
8
No geral, quando utilizado, significa que foi um bom desempenho, apesar de a jogada ter dado errado.
9
Alguns locais de prática de futebol amador incluem uso da bola própria do local. Neste caso, houve
necessidade de providenciar uma que fosse somente para esse evento.
Durante as observações, emergiu um padrão na maior parte (quase totalidade) dos
hábitos mais marcantes que envolvia evidências claras do machismo e do moralismo no
contexto geral do futebol brasileiro. Eles estão lá, se exibindo, nas nuances das brincadeiras,
atribuições e costumes. É fato que o ambiente do futebol é negado às mulheres de forma bem
clara na sociedade brasileira, o próprio futebol feminino sofre com associações a desvio de
conduta e invasão ao espaço dos homens10. O caso em questão, ainda que em menor escala, é
uma réplica dos cenários mais amplos, com destaque às brincadeiras: apelidos e comentários
carregados de duplo significado, fazendo alusões a comportamentos “tipicamente11” femininos
ou homossexuais. E como que para legitimar a tradicionalidade do ambiente, os jogos são
exclusivos aos homens, mesmo que não explicitamente12. Penso dessa forma porque em um dos
dias que cheguei para o jogo e me anunciei ao porteiro, a reação imediata dele foi rir, portanto,
constato, mais uma vez, que uma mulher chegando para a pelada é algo altamente irregular.

5. CONCLUSÃO
No Brasil, o futebol amador ainda é uma das mais recorrentes práticas de lazer,
portanto, a Pelada do Mixirica não implica qualquer outra finalidade a não ser esta. A
naturalidade de ação no contexto está diretamente relacionada ao seu papel clássico na vida dos
participantes, uma despreocupada manifestação da cultura brasileira. Diferentemente das outras
esferas sociais, nesse contexto vigoram regras impessoais e objetivas, que premiam a união em
lugar da segregação. No momento do jogo, todos são efetivamente jogadores, confortáveis
nesse posto que assumem.
Embora esta seja a análise de um caso particular, acredito que seja possível
identificar os mesmos valores, crenças, sentimentos e outros sentidos imateriais que compõem
o futebol amador na maior parte dos casos.

10
FRANZINI, 2005.
11
Segundo os próprios falantes.
12
Não há necessariamente uma proibição de convites a mulheres, porém não há menção a respeito em nenhum
momento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHIESA, Carolina Dalla, FANTINEL, Letícia Dias. “Quando eu vi, eu tinha feito
uma etnografia”: notas sobre como não fazer uma “etnografia acidental”. Gramado, 2014.
FARIA, Eliene Lopes, GOMES, Ana Maria R. Etnografia e aprendizagem na
prática: explorando caminhos a partir do futebol no Brasil. São Paulo, 2015.
FRANZINI, Fábio. Futebol é “coisa para macho”? Pequeno esboço para uma
história das mulheres no país do futebol. São Paulo, 2005.
FREITAS, Marcel de Almeida. Apontamentos sócio-históricos-culturais sobre o
futebol no Brasil e em Belo Horizonte, Minas Gerais. Santa Catarina, 2006
GONÇALVES, Alana Mara Alves. Uma etnografia do futebol amador.
Disponível em:
<http://www.sbsociologia.com.br/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_downloa
d&gid=800&Itemid=170>
Acesso em: 25/05/2018
JAHNECKA, Luciano, RIGO, Luiz Carlos, SILVA, Inácio Crochemore. Notas
etnográficas sobre o futebol de várzea. Rio Grande do Sul, 2010.
LOPÉZ, Graciela Lima. O método etnográfico como um paradigma científico e
sua aplicação na pesquisa. Canoas, 1999.
URIARTE, Urpi Montoya. O que é fazer etnografia para os antropólogos. São
Paulo, 2012.

You might also like