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BERTOLT BRECHT E GALILEU GALILEI em
DIÁLOGOS SOBRE TEATRO E CIÊNCIA
Manhã dos inícios!...
Fevereiro de 1898, Augsburg, Alemanha: nasce BB. Fevereiro de 1564, Pisa,
Itália: nasce Galileu Galilei – GG. Novembro de 1939: há um Galileu no reino da
Dinamarca. Brecht, Galileu e o Galileu de Brecht. Se o dramaturgo e encenador foi
poeta, o cientista também escreveu poemas e não abriu mão, em seus textos
científicos, do cuidado com a escrita e com o estilo. Curiosos e desconfiados, ambos
estranharam o habitual, e quando o dramaturgo dá voz ao cientista o faz dizer que
tudo gira, girando a frase – “se as coisas são assim, assim não ficam” – e o faz citar o
poeta e o autor para multiplicar o recomeço – “Ó manhã dos inícios!...” 1
Versus Aristóteles
Bonauiti e de Giulia Ammannati. O pai dava aulas de música na casa alugada de
2
Pisa, onde Galileu nasceu e passou parte de sua vida. Com a incumbência de
contribuir no sustento da família, em 1581, Galileu matriculouse na Universidade de
currículo do curso de medicina não lhe agradava e em 1585, deixou Pisa sem
completar os requisitos para se diplomar em medicina. Galileu passou a se dedicar à
matemática, sua verdadeira vocação, desenvolvendo estudos no campo da geometria,
realizando demonstrações matemáticas e proferindo conferências públicas. Em 1589,
Galileu voltava para a Universidade de Pisa como professor de matemática. Galileu
Galilei viveu setenta e oito anos e sua obra abrange os domínios da física, da
matemática e da astronomia. Seu nome está indissoluvelmente ligado à revolução
científica do século XVII, considerada como uma das mais profundas, senão a mais profunda
revolução do pensamento humano desde a descoberta do Cosmo pelo pensamento grego, revolução que
expressão3. O historiador da ciência Jonh Henry esclarece: Revolução científica é o nome dado
pelos historiadores da ciência ao período da história européia em que, de maneira, inquestionável, os
primeira vez. O período preciso em questão varia segundo o historiador, mas em geral afirmase que o foco
principal foi o século XVII, com períodos variados de montagem do cenário no século XVI e de
completa da atitude do homem em relação à natureza. A revolução científica, que
substituição da theoria, vita contemplativa, até então considerada como a forma mais
elevada de conhecer a natureza, pela vida ativa, vita activa. A ciência realizada antes
Assim, por centenas de anos, a ciência baseouse nos registros elaborados por
Aristóteles, e os cientistas deviam consultar os escritos aristotélicos para interpretar o
moderna optaram por consultar a própria natureza e não os escritos de Aristóteles.
Aristóteles, Galileu propunha que o cientista não assumisse, apenas, uma postura de
leitor da natureza, mas que adotasse um comportamento de quem duvida daquilo que
a natureza oferece aos olhos. Partindo deste comportamento, o cientista italiano fez
importantes descobertas. A descoberta de que a Terra não é o centro do Universo, por
exemplo, talvez seja uma de suas maiores contribuições, e ela só foi possível a partir
deste novo comportamento. Visto da Terra, o Sol nascente se desloca sobre as nossas
cabeças ao longo do dia, até se pôr. Temos, portanto, a nítida impressão de que é ele
que se move em torno da Terra. Hoje temos a convicção de que é a Terra que se
move, mas para se obter tal convicção foi preciso duvidar deste “trajeto óbvio” do
sol, que os nossos olhos testemunham diariamente. Neste sentido, a ciência moderna
propõe uma transformação da atitude do homem diante da natureza. Não por acaso o
pensamento gerou importantes contribuições em diferentes campos da ciência, da arte
e da filosofia. Entretanto, se por um lado os estudos de Aristóteles promoveram o
desenvolvimento científico, e um dos campos mais afetados foi o da astronomia. O
pensamento aristotélico no campo da ciência confere aos componentes do universo o
caráter de um desenvolvimento natural e inato, ao qual Galileu se opôs, na medida
instrumentos à pesquisa científica, o mundo supralunar apresentavase aos olhos de
Galileu tão mutável e imperfeito quanto a Terra. A nova metodologia de Galileu
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contrariou o saber vigente de modo irreversível, comprovando que Aristóteles estava
errado.
Bertolt Brecht nasceu no mesmo ano em que Stanislavsky iniciava suas
atividades no Teatro Artístico de Moscou, e viveu 58 anos. Augsburg, onde nasceu,
era uma cidade pequena, de tradições burguesas, cuja economia baseava-se na
produção de algodão, lã e seda. Brecht nasceu em um bairro operário da cidade, mas
era filho de um próspero burguês, chamado Berthold Brecht, diretor de uma fábrica
de papel. A mãe de Brecht, Sophie Brezing, batizou o filho na religião protestante
com o nome de Berthold Eugen Friedrich Brecht. Mais tarde, Brecht transformou seu
nome em Bertolt Brecht, ou simplesmente, Bert Brecht. Assim como Galileu, Brecht
também fez sua incursão pela medicina. Em 1917 ele foi para Munich iniciar os
estudos, não chegando a completá-los. Entretanto, Brecht se dedicou às atividades
médicas por um breve tempo. Durante uma greve política, ocorrida na Alemanha em
1918, Brecht participava do conselho operário e trabalhou como auxiliar médico em
um hospital de sua cidade. Brecht registrou: Eu fazia curativos, transfusões de sangue. Se o
médico ordenava: Brecht, ampute aquela perna! Eu respondia “sim, excelência” e cortava a perna. Eu vi de
que maneira os médicos remodelavam as pessoas, para expedir todos de volta para o front o mais rápido
possível.5Mas a verdadeira vocação deste germânico não era a medicina, e sim o teatro.
Brecht produziu inúmeros trabalhos relacionados à atividade teatral. Além da
produção dramatúrgica, que inclui mais de cinqüenta peças, Brecht destacou-se como
teórico, crítico e ensaísta. Produziu textos sobre teatro, literatura, arte, estética,
política, diários de trabalho, cartas e poemas. Assim como Galileu, que no campo da
ciência rompeu com o modelo aristotélico, Brecht, no campo artístico-teatral,
procurou romper com a herança aristotélica no sentido de abolir de seu teatro a
empatia e a catarse, conceituadas por Aristóteles em sua Poética. Brecht afirmou: O
abandono da empatia não se origina de um abandono das emoções e não leva a isto. A tese da estética
vulgar de que somente podem ser criadas emoções através da empatia é uma tese errada. Em todo o caso,
uma dramática não-aristotélica tem que se submeter a uma crítica cuidadosa quanto às emoções que
pretende criar e que estão contidas nela.6 Rompendo, portanto, com a tradição que ele próprio
5 PEIXOTO, Fernando. Brecht Vida e Obra. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1968. p 28
6 BRECHT, Bertolt. O Teatro dialético. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1967.p.175
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chamou de aristotélica, Brecht inaugurou um novo teatro, que batizou de teatro épico,
transformando-se em um dos mais importantes dramaturgos e encenadores do século
XX. O nome que Brecht escolheu para designar o teatro que ele pretendia
desenvolver traz, em si, segundo o próprio dramaturgo, uma oposição à Aristóteles.
Em um de seus escritos ele afirma: a expressão ‘teatro épico’ pareceu a muitos contraditória em si,
pois, a exemplo de Aristóteles, considerava-se que a forma épica e a forma dramática de narrar uma fábula
eram fundamentalmente distintas uma da outra 7. Brecht, quando formulou a teoria do teatro
épico, buscava a contaminação de gêneros que tradicionalmente eram considerados
mutuamente excludentes. Na verdade, o conceito brechtiano de teatro aristotélico
abrangia todo tipo de teatro em que prevalecesse a identificação na relação palco-
platéia.
ciência, em particular, interessou o dramaturgo alemão. O questionamento em torno
apenas como dois domínios valiosos da atividade humana, mas totalmente diversos
7 BRECHT, Bertolt. O Teatro Épico:In Estudos sobre o teatro .Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978. p.46
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entre si, constituía um terrível equívoco. Brecht avaliava que embora arte e ciência
atuassem de maneiras muito distintas, ele próprio não subsistiria como artista, sem se
contribuiria para desmitificar uma certa imagem do artista, construída a partir de uma
ciência, que é um conhecimento adquirido por meio de um método e que pode ser
procedimentos e que não é fruto de uma “inspiração divina”, ao sabor do acaso e
destinada aos seres especiais. Sobre isso, Brecht afirmou: Estão habituados a ver nos poetas
seres sem par, seres quase anormais, que, com uma certeza verdadeiramente divina, conhecem coisas que
aos outros só é dado conhecer com muito esforço e aplicação. É, naturalmente, desagradável ter de admitir
que não pertencemos ao número desses seres eleitos. Não podemos, porém, deixar de admitilo. Não
podemos também deixar de objetar que se considerem as tarefas científicas daqueles que declaradamente as
professam ocupações secundárias 8. Não por acaso, talvez, uma certa “aura”, ainda que por
razões distintas, é imputada também aos cientistas a partir do século XIX, uma vez
que estes, por supostamente aterem-se aos “fatos” e utilizarem um “método” único e
rigoroso, passam a ser vistos como portadores da verdade. Claude Chrétien, em sua
obra A Ciência em Ação , discute o papel da ciência em diferentes sociedades e
épocas, e aponta a ciência como sendo uma instituição mitificada. Mas se a ciência
moderna atuou como grande destruidora do obscurantismo e dos mitos perante a história, ela instila sua
figura do cientista, ao encenar histórias que exponham as ambigüidades dos homens
8 BRECHT, Bertold. Pequeno organon para o teatro In: Estudos sobre o Teatro. op.cit, p50.
9 CHRETIEN, Claude. A ciência em ação. Campinas: Papirus, 1994. p.268
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da ciência em suas práticas científicas. Podemos dizer que, por um lado, Brecht
defende a importância da ciência no processo artístico, considerando-a como um
recurso indispensável para melhor compreender o mundo, e por outro, vai questionar
o papel da ciência na sociedade, explorando as contradições implícitas no exercício
da ciência. Dizemos implícitas porque na medida em que toda a atividade científica
está contextualizada em um determinado ambiente social, mesmo quando
aparentemente desligada da vida social, ela está necessária e indissoluvelmente
exposta às contradições das sociedades. Diante das contradições da ciência, Brecht
elaborou um sofisticado questionamento artístico, que batizou como Vida de Galileu.
Nesta obra, a ciência é abordada como uma prática política, social e cultural, que se
relaciona diretamente com os âmbitos de poder. O Galileu de Brecht denuncia os
cientistas que em nosso tempo são encarados como portadores da verdade absoluta, e
que, portanto, não devem ser questionados, como se suas descobertas e feitos
pudessem compensar eventuais danos e estivessem acima de quaisquer indagações.
Brecht pretendeu incluir a perspectiva científica em sua estética teatral, e também
vislumbrou a possibilidade de se pensar em uma estética da ciência. No prólogo de O
Pequeno Organon para o Teatro, Brecht afirma: poderseia mesmo escrever, hoje em dia,
uma estética das ciências exatas. Galileu já falava da elegância de certas fórmulas e do humor das
10 BRECHT, Bertolt. Prólogo In: Estudos sobre Teatro. Rio de Janeiro, 1977 p 100
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obediência às propriedades numéricas das notas de uma escala. 11 O estilo retórico de Galileu
afastava-se dos discursos tradicionais e sisudos dos homens da ciência de seu tempo.
Seu estilo poético e bem humorado de relatar suas experiências, contribuíram para
difundir os temas da ciência junto ao público leigo. Sabe-se também que Galileu
escrevia poemas, e que chegou a dedicar alguns deles ao então amigo, o papa Urbano
VIII. Sobel comenta: (...) seu estilo ardoroso de difundir suas idéias – às vezes em escritos
transbordantes de um humor lascivo, as vezes em alto e bom som em jantares e debates – transportou a nova
astronomia dos Quarties Latins universitários para a arena pública .12 Galileu produziu inúmeros
escritos dentre cartas, manuais, relatos de experiências e livros. Seus livros também
apresentam um estilo de escrita elaborado e bastante peculiar. Dentre as obras mais
importantes de Galileu, podemos citar O Mensageiro das Estrelas (1610), O
Ensaiador (1623) Diálogo concernente aos dois principais sistemas do mundo (1632)
e Discursos e Demonstrações Matemáticas acerca de Duas Novas Ciências. (1638).
O Diálogo... e o Discursos... são os dois últimos livros do cientista italiano. Ambos
foram escritos sob a forma de diálogo, e os interlocutores são os mesmos, ou seja:
Salviati, Sagredo e Simplício. Último livro de Galileu, o Discursos... é considerado a
mais importante obra do cientista italiano, e foi publicado quando o autor tinha 74
anos de idade e achava-se confinado desde a condenação de 1633 e cego. Nos livros
dialogados, podemos observar como Galileu se apropriou da estrutura ficcional, e,
neste caso, mais propriamente da estrutura dramatúrgica, para registrar e divulgar sua
ciência. Sobel analisa que, ao optar pela formato dialógico, o cientista não apenas
estaria tornando a leitura mais agradável, como estaria se resguardando pois, segundo
ela, o formato oferecia a Galileu uma medida de proteção: pondo as deficiências de Ptolomeu e os méritos
11 SOBEL, Dava. A Filha de Galileu, um relato biográfico de ciência, fé e amor. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000. p 25 -26
12 SOBEL, Dava. A Filha de Galileu, um relato biográfico de ciência, fé e amor. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000. p 16
16
de Copérnico na boca de dramatis personae, o autor podia distanciar-se de suas melindrosas discussões
forma).14 A escrita do Diálogo... ocupou Galileu durante um período de seis anos. Neste
livro o cientista italiano estabeleceu um diálogo entre três personagens, que discutem,
ao longo de quatro noites, os dois principais sistemas do mundo, ou seja, o sistema
geocêntrico (defendido por Ptolomeu e Aristóteles, e que localiza a Terra como centro
do universo) e o sistema heliocêntrico (teorizado por Copérnico, que localiza o Sol
como o centro do sistema solar). Os personagens criados por Galileu não são
inteiramente fictícios. Na verdade dois deles foram seus amigos íntimos e já haviam
falecido: Filipo Salviati, nobre florentino, nascido a 19 de janeiro de 1582, e
Gianfrancesco Sagredo, nascido em Veneza a 19 de junho de 1571, que foi aluno
particular de Galileu em Pádua e continuou em estreito contato com ele até sua morte
em Veneza, em 1620. O nome Simplício não remete a nenhum amigo de Galileu, e
sim ao filósofo grego, nascido na Sicília e que viveu no VI século d.C – Simplicius,
renomado comentador de Aristóteles. Brecht em sua peça sobre Galileu, também
criou um personagem chamado Sagredo. Nesta obra, Sagredo testemunha uma
importante descoberta do cientista, estabelecendo com ele, uma relação de amizade e
cumplicidade. Sagredo e o Galileu de Brecht dialogam:
Galileu – (...) Os cimos são dourados pelo sol nascente, enquanto a noite cobre os abismos em volta. Você
está vendo a luz baixar dos picos mais altos ao vale.
Sagredo – Mas isto contradiz a astronomia inteira de dois mil anos.
13 SOBEL, Dava. A Filha de Galileu, um relato biográfico de ciência, fé e amor. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000. p 143
14 BRECHT, Bertolt. Diario de trabajo. Buenos Aires: Nueva Vision, 1977. p 38
17
Galileu – É. O que você está vendo, homem nenhum viu além de mim. Você é o segundo. 15
No Diálogo..., podemos dizer que Salviati representa o cientista investigativo, porta-
voz da argumentação de Galileu. Simplício, não por acaso assim nomeado, representa
o pensamento aristotélico, e Sagredo representa um cientista pretensamente neutro.
Nesta obra, Galileu opõe suas teorias à visão de mundo aristotélica e, ao mesmo
tempo, argumenta em favor de uma novo paradigma, baseado no movimento da terra
segundo a teoria de Copérnico. O Diálogo... está dividido em quatro jornadas. A
primeira contém a crítica aos princípios fundamentais da Física Arsitotélica e aos
fundamentos teológicos da teoria Ptolomaica. A segunda e terceira jornadas fazem a
defesa do sistema copernicano. Finalmente a quarta jornada apresenta a teoria das
marés, que Galileu, erroneamente, pensava ser uma prova experimental conclusiva da
hipótese da mobilidade da Terra.
Os textos que Brecht reuniu sob o título A Compra do Latão resultam de um
trabalho que se estendeu por cerca de dezesseis anos . Brecht pretendeu que esta obra
16
fosse uma conversa a quatro sobre a nova maneira de fazer teatro . Seu objetivo ao 17
organizar esta obra parece ter sido o de explicitar o conceito de um teatro a serviço
dos homens que pretendem determinar o seu próprio destino. Brecht objetivou reunir
em uma única obra os seus numerosos textos teóricos, muitas vezes fragmentos sobre
o teatro. Em 1948, ao finalizar o Pequeno Organon para o Teatro, Brecht designa-o
como um breve resumo da Compra do Latão . Entretanto, o modo como os textos de
18
A Compra do Latão chegaram até nós, ou seja, sob a forma de diálogos entremeados
com poesias e comentários do próprio Brecht, conferem À compra do Latão um
aspecto fragmentário. Bernard Dort, no programa de uma montagem de A Vida de
Galileu, realizada pela Comédie Française em 1992 sob a direção de Antoine Vitev,
comenta a inspiração de Brecht na obra de Galileu: Um vez concluída “A Vida de Galileu” em
23 de novembro de 1939, Brecht não se considera quites com Galileu. Por um lado ele toma seus
“diálogos” (notadamente os diálogos sobre os dois sistemas de mundo) como modelos para escrever “A
15 BRECHT, Bertolt. Vida de Galileu. São Paulo: Abril Cultural, 1977. p 47-48
16 Segundo Urs Zuber, tradutor da edição portuguesa de A Compra do latão, entre os anos de
1939 a 1955, Brecht se dedicou, com mais ou menos intensidade e com interrupções a
elaboração desta obra.
17 BRECHT, Bertolt. A Compra do latão. Lisboa: Vega, 1999. p 170
18 BRECHT, Bertolt. A Compra do latão. Lisboa: Vega, 1999. p 170
18
compra do latão”, estas “conversas a quatro sobre uma nova maneira de fazer teatro” (12.2.39) (...) “foram
os diálogos de Galileu que me conduziram a esta forma” e Galileu é citado, paralelamente a Shakespeare e
Bacon, como experimentadores de uma nova concepção do mundo: “o que eu quero dizer, é que eles (os
comediantes do Globe Theatre) experimentavam. Eles não experimentavam menos do que, na mesma época,
19 DORT, Bernard. De La Terre tourne à la Vie de Galilée: une longue historie. In: ComédieFrançaise La Vie de
Galilée (Programa da peça) 1992. p 14
20 BRECHT, Bertolt. A Compra do latão. Lisboa: Vega, 1999.p 61-62
19
Tanto Brecht com A Compra do Latão, quanto Galileu, com seu Diálogo...
comunicação, e na tentativa de transformar o antigo discurso, Galileu recorreu à arte,
e Brecht à ciência. Galileu no campo da ciência, e Brecht com o seu teatro épico,
buscaram intervir nos acontecimentos sociais de seu tempo, e mostrar o mundo como
passível de mudança. Ao pensar sobre como estruturaria A Compra do Latão, Brecht
registrou em seu diário: (...) teatro só para fins de instrução, modelação dos movimentos dos homens
(também dos sentimentos) para fins de estudo, mostrar o funcionamento das relações sociais para que a
sociedade possa intervir. Os seus desejos resolvemse no teatro, pois eles podem ser realizados por este. De
uma crítica ao teatro nasce um teatro novo. Tudo pensado de modo a poder ser encenado, com experiência
e exercício. No centro o efeito de distanciamento .21Galileu, ao tentar demonstrar que o mundo
não deve ser visto como imutável, redigiu em seu Diálogo.
Sagredo – (...) Os que tanto exaltam a incorruptibilidade, a inalterabilidade etc., são induzidos a falar
desse modo, creio eu, por seu grande desejo de continuar vivendo e pelo pavor que tem da morte. Esses
indivíduos não cogitam que, se o homem fosse imortal, eles nunca teriam vindo ao mundo. Tais pessoas
merecem realmente encontrar uma cabeça de Meduza que as transforme em estátuas de mármore e de
diamante, o que as tornaria mais perfeitas do que são.22
21BRECHT, Bertolt. Diario de trabajo. Buenos Aires: Nueva Vision, 1977. p 38
22SOBEL, Dava. A Filha de Galileu, um relato biográfico de ciência, fé e amor. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000. p 147
20
de 1956, sem assistir a montagem realizada pelo Berliner Ensemble de sua última
versão de Vida de Galileu. Terminaria aqui o diálogo entre Brecht e Galileu ?
Voltando ao começo
“Começo” – esta é a última palavra de Brecht. Seu último Galileu... Sua última
peça... E neste final, o que Brecht tem a dizer é que nós ainda estamos muito no
começo ... Fazendo girar o texto, ao fim da peça Vida de Galileu ele nos convida a
23
recomeçar e, aceitando o convite, termino começando pela última cena da peça para
refletir sobre o começo, o meio e o fim (fim?) deste diálogo. A cena intitula-se “1637.
O livro de Galileu, os Discorsi, atravessa a fronteira italiana” e apresenta o seguinte
verso:
Distinto público, a ciência neste final
Deixa às carreiras o solo nacional.
E nós que dela precisamos mais,
Eu, Tu, Ele, nós ficamos para trás.
Meu vizinho, a ciência agora está contigo,
Cuida dela, cuida bem, mas como amigo.
Que senão ela sobe, cresce, estoura e desce,
Nos come a todos e depois esquece.
E depois esquece.24
preciso duvidar sempre. Um dos meninos, o mais desconfiado, o que quer saber se é
mesmo possível gente voar em cabo de vassoura, é de certo modo, um novo Andrea.
Nesta cidade, em que se passa a última cena, a fronteira é entre o velho e o novo, e lá
identificamos uma questão fundamental que permeia toda a peça de Brecht, sua
produção artística e teórica e a vida do cientista Galileu Galilei. Com seu teatro,
23 BRECHT, Bertolt. Vida de Galileu. São Paulo: Abril Cultural, 1977. p. 236. Esta é a última
frase da fala de Andrea, que é a última fala da peça.
24 Ibidem p. 230.
25 No final desta cena, há uma rubrica indicando que Andrea pega uma jarra de leite, enquanto
tenta contrabandear os Discorsi.
21
Brecht pretendeu mostrar o mundo como algo que pode ser transformado. Um mundo
que pode trocar o velho pelo novo. Galileu abandonou a velha ciência e concebeu um
novo método científico. Mas era só o começo... a revolução científica de Galileu
repercute até os nossos dias. E Brecht sabia disso. Brecht trocou o velho teatro por
um novo. Também era só o começo... E Brecht também sabia disso. Disposto a
recomeçar, ele não só se contradisse algumas vezes, ao rever conceitos teóricos e
mudar de opinião, como também ressaltou as contradições dos personagens de suas
peças. O resultado é que em seu teatro não há heróis. E aqui identificamos outra
questão fundamental do teatro de Brecht, e que se relaciona com as vidas do
dramaturgo e do cientista – a questão do heroísmo. O verso que introduz a segunda
cena da última versão da peça sobre Galileu, ilustra o anti-heroísmo dos personagens
brechtianos. Diz o verso: Um grande homem não é grande por igual; Mais vale comer bem que
comer mal. A peça sobre Galileu traça uma desconstrução da idéia de herói. O
26
que gera prazer, e na razão. Por isso lhe pareceu muito natural que suas convicções
fossem aceitas. Em diálogo com Sagredo, em que este aconselha o cientista a ter
cautela com a divulgação de suas descobertas, Galileu esbraveja: Eu não entendo como
você pode amar a ciência, acreditando nisso. Só um morto é insensível a um bom argumento !29
Erro de cálculo... Talvez devesse ter duvidado, mais uma vez, do que lhe pareceu
óbvio... ou seja, que a verdade, uma vez comprovada, seria imediatamente aceita por
todos... E deveria mesmo?! Mas era só o começo... como saber? Sua fé cega na
26 BRECHT, Bertolt. Vida de Galileu. São Paulo: Abril Cultural, 1977. p. 37.
27 BRECHT, Bertolt. Vida de Galileu. São Paulo: Abril Cultural, 1977. p. 65.
28 Ibidem p. 59.
29 BRECHT, Bertolt. Vida de Galileu. São Paulo: Abril Cultural, 1977. p. 59.
22
E terá sido mesmo a pior fala? Os Discorsi teriam sido escritos se Galileu
tivesse abjurado? O que o mundo teria ganho se ele tivesse se martirizado? Outro
grande cientista, talvez mais tarde, teria escrito os Discorsi? Quais seriam as
conseqüências?
- Mas quanta pergunta!
- Qual o final desta conversa?
- Qual o final desta discussão?
- O final não interessa,
- O que interessa é a discussão!
- E se querem heróis...
- Pobre GG!!!
- Pobre BB!!!
- Pobre de nós!!
30 Ibidem p. 201.