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Como bem sabemos, a questão referente à maioridade penal engendra uma série de
controvérsias. Muitos defendem a redução da idade para responsabilização penal ou apóiam a
imputação de penas mais gravosas em relação ao adolescente infrator. Muito poderia ser dito a
respeito dessa questão, contudo, esse não é o nosso objetivo nesta apresentação. Pretendemos
complexificar essa discussão somando a ela um elemento que suscita polêmicas seja no sistema
socioeducatico, seja no sistema prisional: a loucura. O que dizer a respeito dos adolescentes
portadores de algum sofrimento psíquico que cometem algum crime? E o que dizer quando esse
crime possui nuances bárbaras?
Se para aqueles que cometeram algum crime após terem completado dezoito anos nos
valemos do CPB, para aqueles que cometeram um ato infracional entre os 17 anos, 11 meses e
30 dias, valemo-nos do Estatuto da Criança e da Adolescência. Este é reconhecido
internacionalmente como um das mais avançadas legislações dedicadas à garantia dos direitos
de crianças e adolescentes. Apesar de suas qualidades, suas disposições são pouco conhecidas
pelo público leigo e também por alguns juristas, não sendo incomum encontrarmos atores da
seara jurídica que desconhecem aspectos básicos do Estatuto.
Diferentemente do CPB, não há no ECA diretrizes definidas quanto aos trâmites a serem
seguidos quando um adolescente portador de sofrimento psíquico comete um ato infracional.
Isso em parte se justifica pela própria definição de adolescente pela lei, ou seja, no Brasil, o
adolescente se encaixa entre aqueles que possuem “desenvolvimento mental incompleto”.
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Contudo, no ECA, existem as chamadas “Medida Protetivas” que se encontram elencadas entre
os direitos fundamentais postulados pelo Estatuto. A medida protetiva existe para assegurar
“atendimento médico à criança e ao adolescente, através do Sistema Único de Saúde, garantido
o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da
saúde.” Ainda de acordo com o ECA, “a criança e o adolescente portadores de deficiência
receberão atendimento especializado (...) Os estabelecimentos de atendimento à saúde deverão
proporcionar condições para a permanência em tempo integral de um dos pais ou responsável”.
Nos casos em que se faz necessária a internação da criança ou adolescente, é possível requisitar
“tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; inclusão
em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e
toxicômanos e abrigo em entidade.”
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do ato), sendo o adolescente o executor do casal. Além disso, o adolescente recebeu
diagnósticos que apontavam para a presença de um sofrimento psíquico. Champinha recebeu o
diagnóstico de transtorno de personalidade, bem como foi verificada certa debilidade mental por
meio de testes cognitivos. De acordo com estes, ele seria um limitado intelectual, uma vez que
teria um QI de 73 pontos.
Em uma reportagem da Revista Piauí intitulada “Os que morrem, os que vivem:
Champinha, estuprador e assassino, continua preso apesar de ter cumprido sua pena”, de 2011,
encontramos uma exposição detalhada do crime, bem como da repercussão deste na vida do pai
de Liana e de Champinha. Um dos maiores impasses do caso se configura em função desse
suposto “transtorno de personalidade” associado a uma debilidade mental, o que, para os atores
envolvidos, determinaria a impossibilidade de Champinha viver em sociedade. Em relação às
avaliações psiquiátricas realizadas no caso, o autor da reportagem da Revista Piauí nos revela
que:
“Todos os laudos concordam que Champinha não age dominado pela fúria de
um louco. Quando deu repetidas facadas em Liana, não teve prazer: queria
acabar com o problema, se livrar da menina da qual abusara. Nos seus
termos: „ Se ela saía, a polícia pegava eu”. Ou seja, se Liana fosse libertada,
ele seria preso. Para um de seus avaliadores, ele contou que deu ´um monte
de facada,mas ela morreu antes porque a primeira foi no pescoço´. O que
pode ser indício de frieza, característica dos psicopatas, seria, no caso de
Champinha, um entendimento superficial dos próprios atos.”
Passemos agora propriamente aos impasses do caso, embaraços que justificam o título
desta apresentação: afinal, o que fazer com Champinha? Antes disso, é preciso entender o que já
está sendo feito para em seguida pensarmos em outras soluções possíveis. Roberto, embora já
tenha cumprido os três anos de internação previstos na lei, vive hoje em uma espécie de “limbo
jurídico”. Apesar de já ter quase 27 anos, não pode ser preso em uma penitenciária para
criminosos comuns, uma vez que era adolescente quando cometeu o crime. Também não pode
ser encaminhado para um hospital psiquiátrico ou de custódia, uma vez que só é possível
recorrer a esses dispositivos, como já falamos, em casos de medidas de segurança que só são
aplicáveis em maiores de idade.
Em virtude do clamor social gerado pelo caso, bem com em função do movimento
exaustivo do pai de Liana em acionar e imobilizar o poder público, o Ministério Público
ingressou com uma ação civil de interdição, cumulada com internação compulsória. A
Promotoria se baseou em laudos médicos que constataram que o rapaz sofre de problemas
mentais e que não poderia voltar a viver em sociedade.
Em 2003, a juíza responsável pelo caso atendeu o pedido do MP e determinou a
interdição civil de Champinha. Como na época não havia uma unidade para atender pessoas
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com esse perfil, foi feita uma parceria entre as secretarias de Justiça, Saúde e Administração
Penitenciária para encaminhar Champinha para uma instituição criada para acomodá-lo, a
chamada Unidade Experimental de Saúde (UES). Esta é um equipamento atrelado à Secretaria
de Estado da Saúde de São Paulo, destinado a custodiar, segundo o Decreto que o regulamenta,
“adolescentes e jovens adultos” com diagnóstico de distúrbio de personalidade e alta
periculosidade que cometeram atos infracionais graves, egressos da Fundação Casa e
interditados pelas Varas de Família e Sucessões.
Feito esse delineamento do caso, podemos traçar um breve resumo dos elementos que o
constituem para apreendermos o grau de complexidade do mesmo:
No caso, observamos um indivíduo que, pela lei, já cumpriu a sua medida, mas ainda
permanece preso.
O caso de um indivíduo que, mesmo tendo cometido o crime durante a adolescência,
cumpre uma espécie de medida de segurança, exclusiva aos maiores de idade.
Champinha vive em um regime excepcional no qual não se encaixa propriamente no
que legisla o ECA ou o CPB.
Uma vez que não se trata de uma medida de segurança, a questão relativa ao exame de
cessação de periculosidade se torna ainda mais polêmica, uma vez que não há diretrizes
regulamentadas que definam a sua aplicação na UES.
Champinha encontra-se internado na UES ainda que exista discordâncias quanto ao seu
diagnóstico.
No caso, observa-se uma ênfase na responsabilidade psiquiátrica, ainda que se observe,
a princípio, um imbróglio essencialmente jurídico.
Também observamos grandes discussões de cunho jurídico que questionam essa
invenção que, segundo alguns especialistas, configura-se como um limbo jurídico,
havendo a possibilidade da instauração de uma espécie de “prisão perpétua a brasileira”.
Diante do que foi exposto, faz-se necessário dizer que não pretendemos de forma alguma
exaurir a questão, e sim levantar alguns questionamentos. O caso Champinha envolve
problemas que embaraçam juristas, legisladores, psiquiátricas, psicólogos e outros. É evidente
que existem minúcias legais que nos escapam, uma vez que não tivemos acesso aos autos, bem
como não somos especialistas em Direito. Contudo, é inegável que o caso Champinha
configura-se como um emaranhado de problemas de cunho legal e psiquiátrico. A fim de
ultrapassarmos os apontamentos desses impasses, propomos agora abordar o caso por outro
viés, tentando compreender a que se deve essa espécie de Frankenstein jurídico e as suas
repercussões, bem como possíveis saídas para casos como o aqui apresentado.
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Acreditamos que a criação de uma instituição como a UES é apenas um sintoma de um
sistema permeado por falhas. Diante da escassez ou até mesmo ausência de dispositivos que se
ocupem da saúde mental do adolescente, percebemos, a partir do caso Champinha, que o
recurso privilegiado foi o da segregação. Com o endosso de avaliações psiquiátricas, o Direito
acabou acolhendo o clamor popular e determinou a permanência do adolescente na UES.
Acreditamos que um primeiro passo é abordar o caso para além daquilo que ele possui de
bárbaro, cruel e até mesmo monstruoso. É preciso que para além de toda a violência, nos seja
possível uma posição crítica e atenta aos problemas envoltos na criação de um arranjo jurídico
tal como o manejado no caso. No caso citado, a juíza tomou uma decisão inédita e após esse
movimento, outros magistrados no Estado de São Paulo aplicaram a mesma solução encontrada
pela juíza do caso Champinha. De acordo com a Revista Piauí, Champinha
A história de Champinha demonstra com exatidão que o juiz não se restringe às leis ou
aos precedentes ao julgar uma causa. Fatores diversos como o clamor popular, a pressão da
imprensa, e as próprias experiências pessoais e subjetividade do juiz orientam sua decisão. Há
quem defenda a criação da “Lei Champinha”. Acreditamos que antes de falarmos sobre a
possibilidade da criação de uma lei semelhante, é preciso sabermos em que medida ela fere ou
não os dispositivos jurídicos dos quais dispomos.
Também não podemos deixar de marcar que entre os atos infracionais cometidos pelos
adolescentes, menos de 5% configuram-se como crimes contra vida. Entretanto, ainda que os
adolescentes que cometem homicídios sejam uma minoria, eles existem, assim como os
adolescentes que cometem crimes hediondos acometidos por alguma loucura. Desse modo, nos
indagamos: o que esses casos podem nos ensinar?
Por outro lado: será que os dispositivos que dispomos não são suficientes? Há de se
criar jurisprudências como no caso Champinha? Será que as leis brasileiras devem ser
modificadas a fim de aumentar o período de internação para até oito anos em caso de crimes
hediondos, projeto de lei que já está tramitando no Congresso Nacional? Será que Unidades
Experimentais de Saúde são a solução para adolescentes infratores portadores de sofrimento
psíquico? Por fim, será que Champinha deve ser liberado em nome de direitos que não foram
estabelecidos para lidar com casos como o dele?
Como já foi colocado, não pretendemos esgotar a questão aqui exposta, e sim trazer um
caso complexo e pouco conhecido, bem como levantar alguns questionamentos. Como é
possível observar, o caso Champinha é extremamente complicado e polêmico, sendo impossível
qualquer consenso quanto às possíveis saídas para o mesmo.
Ou seja, em 1932, Einstein já apontava para o fato de que há uma ampla influência do
clamor social nas decisões jurídicas, elemento que surge como crucial no caso de Champinha.
Em nome da crença de uma possível “justiça ideal”, o jovem é obrigado a lidar com um sistema
legal que parece estar entrincheirado entre a lei prescrita e a sua interpretação. Como
psicanalistas, devemos estar atentos a esse hiato entre a justiça e o aparelho jurídico, e,
principalmente, como o sujeito criminoso se posiciona diante disso, ou seja, quais as
respostas que ele fornece ou não diante de sua situação. Acreditamos que a despeito de uma
suposta debilidade mental conjugada a um também suposto transtorno de personalidade,
Champinha é irremediavelmente responsável pelos seus atos. A psicanálise lacaniana aponta
para a radicalidade da responsabilidade, defendendo que de nossa posição de sujeito somos
sempre responsáveis.
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Á medida que falamos de responsabilidade, podemos igualmente nos questionar
sobre a nossa responsabilidade em frente a casos como o de Champinha. Acreditamos ser
uma tarefa impossível atestar ou não a periculosidade de quem quer que seja, sendo
impraticável prever neste e também em outros casos uma possível reincidência criminal. A
tônica não deveria ser na periculosidade, e sim no acompanhamento e tratamento. Embora
acreditemos que o tratamento seja indispensável, ele tampouco nos fornece garantias quanto
a uma futura não reincidência. Como nos alerta Freud, “A psicanálise nunca se apresentou
como uma panacéia e jamais reivindicou milagres” (Freud, 1923, p.303); ou seja, sabemos
que existem casos que nos confrontam com a intratabilidade, com fortes alianças entre o
sujeito e o gozo. Será esse o caso de Champinha? O certo é que não podemos afirmar de
antemão, sem que antes lhe tenha sido oferecida a palavra.
É fundamental sublinhar que diante de tudo que foi aqui exposto, um aspecto se faz
ouvir pela sua ausência: em meio a tantos problemas de cunho jurídico, não encontramos
elementos clínicos. Na busca por bibliografias que contemplem aspectos clínicos do caso,
encontramos o silêncio, talvez em função do sigilo. Certamente, há um trabalho sendo feito na
UES, e como um próximo passo, gostaríamos de saber com os profissionais que ali trabalham, o
que vem sendo realizado nesta instituição. Champinha se faz ouvir, a princípio, pela bizarria da
invenção jurídica na qual se encontra. Com as informações que dispomos, não enxergamos
qualquer resquício de sujeito diante de tantas manobras legais, tampouco sabemos o que ele é
para além dessa exceção jurídica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Freud, S.(1923). “Dois Verbetes de Enciclopédia”In. Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, (Vol.XVIII, PP.303) Rio de Janeiro:Imago,1976
Libague, L.H. “Os que morrem, os que vivem – Champinha, estuprador e assassino, continua preso
apesar de ter cumprido a sua pena” In: Revista Piauí, Edição 56, Maio, 2011. Disponível em:
www.revistapiaui.estadao.com.br/edicao-56/questoes-juridico-psiquiatricas/os-que-morrem-os-
que-vivem
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