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O que fazer com Champinha?

Como bem sabemos, a questão referente à maioridade penal engendra uma série de
controvérsias. Muitos defendem a redução da idade para responsabilização penal ou apóiam a
imputação de penas mais gravosas em relação ao adolescente infrator. Muito poderia ser dito a
respeito dessa questão, contudo, esse não é o nosso objetivo nesta apresentação. Pretendemos
complexificar essa discussão somando a ela um elemento que suscita polêmicas seja no sistema
socioeducatico, seja no sistema prisional: a loucura. O que dizer a respeito dos adolescentes
portadores de algum sofrimento psíquico que cometem algum crime? E o que dizer quando esse
crime possui nuances bárbaras?

A fim de discutirmos essa questão, tomaremos o caso Champinha como um exemplo


que ilustra e nos leva a questionar os rumos possíveis em uma clínica tão particular que conjuga
a loucura, a adolescência e a lei em sua excepcionalidade. Como mostraremos adiante,
Champinha, considerado portador de um transtorno de personalidade, executou, aos 16 anos,
um casal de namorados e, a despeito de ter cumprido a sua medida no Sistema Socioeducativo,
permanece preso em uma Unidade Experimental de Saúde, criada, inicialmente, apenas para
acolhê-lo.

Antes de entrarmos propriamente no caso, faz-se necessário realizar alguns


esclarecimentos de cunho prático, uma vez que não é incomum um amplo desconhecimento a
respeito dos procedimentos jurídicos existentes no Brasil para lidar com essa sorte de público.
Primeiramente, é preciso contemplar a questão da inimputabilidade penal presente no Código
Penal Brasileiro. Este, em seu artigo 26, determina que “é isento de pena o agente que, por
doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou
da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de
acordo com esse entendimento”. De acordo com a lei, nos casos dos indivíduos inimputáveis,
deve ser aplicada uma medida de segurança, ou seja, um tratamento e acompanhamento médico.

A medida de segurança, no entanto, é envolta pelo problema da definição de seu tempo


de duração. A lei diz que ela pode perdurar por prazo indeterminado, até que perdure a
periculosidade. Em nossa legislação penal, coexistem duas modalidades de sanção penal: a pena
e a medida de segurança. A pena pressupõe a culpabilidade; a medida de segurança, a
periculosidade. A pena tem seus limites mínimos e máximos predeterminados; a medida de
segurança tem um prazo mínimo de um a três anos, porém, o máximo da duração é
indeterminada, perdurando a sua aplicação enquanto não for averiguada a cessação da
periculosidade. Ou seja, embora poucas pessoas saibam disso, a medida de segurança é a única
forma possível de prisão perpétua no Brasil. Caso o indivíduo a quem foi “imputada” a medida
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de segurança não seja avaliado positivamente no chamado “exame de cessação de
periculosidade”, ou seja, caso a junta médica que o avalie perceba que ainda se constitua em um
risco para a sociedade a sua soltura, o indivíduo avaliado pode ficar indefinidamente em
hospitais psiquiátricos ou de custódia.

Se para aqueles que cometeram algum crime após terem completado dezoito anos nos
valemos do CPB, para aqueles que cometeram um ato infracional entre os 17 anos, 11 meses e
30 dias, valemo-nos do Estatuto da Criança e da Adolescência. Este é reconhecido
internacionalmente como um das mais avançadas legislações dedicadas à garantia dos direitos
de crianças e adolescentes. Apesar de suas qualidades, suas disposições são pouco conhecidas
pelo público leigo e também por alguns juristas, não sendo incomum encontrarmos atores da
seara jurídica que desconhecem aspectos básicos do Estatuto.

O ECA foi promulgado em 1990, sendo, portanto, um instrumento relativamente


recente. Nessa carta, além dos direitos fundamentais, é incluída também toda uma disposição
acerca da prática do ato infracional e das medidas socioeducativas passíveis de serem aplicadas.
O Estatuto abrange o adolescente e a criança partindo de premissas cronológicas. Para o ECA, a
criança é aquele indivíduo menor de doze anos e o adolescente é aquele cuja idade está
compreendida entre os doze e dezoito anos. Há certas especificidades, sendo possível que um
jovem cumpra medida socioeducativa até completar vinte e um anos. Isso pode ocorrer se o
adolescente tiver cometido o ato infracional perto de completar dezoito anos. Uma vez que o
período máximo de duração de uma medida socioeducativa é de três anos, podemos, portanto,
encontrar alguns “jovens-adultos” no Sistema Socioeducativo, muito embora isso não seja tão
freqüente.

As medidas socioeducativas passíveis de serem aplicadas no Brasil são seis e são


imputadas de acordo com a capacidade do adolescente de cumpri-la, bem como a gravidade,
reincidência ou cumprimento insatisfatório da medida. São elas: a Advertência, a Obrigação de
Reparar o Dano, a Prestação de Serviço à Comunidade, a Liberdade Assistida, a Semiliberdade
e a Internação, sendo esta última a mais gravosa. É fundamental sublinhar que enquanto as
penas – aplicadas no Sistema Prisional- são de caráter retributivo/punitivo, as medidas
socioeducativas têm um caráter essencialmente pedagógico, visando, portanto, a educação e
responsabilização do infrator.

Diferentemente do CPB, não há no ECA diretrizes definidas quanto aos trâmites a serem
seguidos quando um adolescente portador de sofrimento psíquico comete um ato infracional.
Isso em parte se justifica pela própria definição de adolescente pela lei, ou seja, no Brasil, o
adolescente se encaixa entre aqueles que possuem “desenvolvimento mental incompleto”.
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Contudo, no ECA, existem as chamadas “Medida Protetivas” que se encontram elencadas entre
os direitos fundamentais postulados pelo Estatuto. A medida protetiva existe para assegurar
“atendimento médico à criança e ao adolescente, através do Sistema Único de Saúde, garantido
o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da
saúde.” Ainda de acordo com o ECA, “a criança e o adolescente portadores de deficiência
receberão atendimento especializado (...) Os estabelecimentos de atendimento à saúde deverão
proporcionar condições para a permanência em tempo integral de um dos pais ou responsável”.
Nos casos em que se faz necessária a internação da criança ou adolescente, é possível requisitar
“tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; inclusão
em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e
toxicômanos e abrigo em entidade.”

É importante destacar que as medidas protetivas estão entre os direitos fundamentais às


crianças e aos adolescentes, não estando necessariamente associadas à atuação infracional.
Contudo, não é incomum que as medidas protetivas sejam determinadas em concomitância com
alguma das medidas socioeducativas. Ou seja, ainda que possamos contar com as medidas
protetivas que determinam judicialmente o tratamento médico, psiquiátrico e psicológico, elas
são amplamente distintas da medida de segurança. Elas se configuram como um direito
fundamental e não como um tratamento compulsório em função do cometimento de um crime
por um indivíduo portador de sofrimento psíquico. Ademais, não é incomum observarmos uma
ineficácia na aplicação das medidas protetivas, seja em função da escassez de dispositivos aptos
a fazê-lo, seja por resistência do adolescente e de seus familiares em aceitá-las.
Independentemente da falta de diretrizes no ECA referentes a adolescentes infratores
portadores de sofrimento mental, observamos um grande número de menores que cometem atos
infracionais no curso de um surto ou por meio de passagens ao ato psicóticas. Desse modo, nos
perguntamos: o que fazer com esse tipo de caso? Quais os dispositivos disponíveis em nosso
país para lidar com eles?

Como já foi dito anteriormente, a fim de contemplarmos essas questões, trataremos de


um caso extremamente complexo e perpassado por uma série de impasses: o caso de Roberto
Aparecido Alves Cardoso, o Champinha. Ele foi acusado e condenado de ter participado da
tortura e assassinato de Felipe Caffé (19 anos) e pela tortura, estupro e assassinato de Liana
Friedenbach (16 anos) no ano de 2003, no interior de São Paulo. Esse caso gerou uma grande
repercussão nacional não só pela violência que o permeia, como também pelo fato de ter entre
os responsáveis um adolescente que, de acordo com relatos, foi um dos membros mais violentos
entre aqueles que cometeram o crime (além de Champinha, outros quatro homens participaram

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do ato), sendo o adolescente o executor do casal. Além disso, o adolescente recebeu
diagnósticos que apontavam para a presença de um sofrimento psíquico. Champinha recebeu o
diagnóstico de transtorno de personalidade, bem como foi verificada certa debilidade mental por
meio de testes cognitivos. De acordo com estes, ele seria um limitado intelectual, uma vez que
teria um QI de 73 pontos.

Em uma reportagem da Revista Piauí intitulada “Os que morrem, os que vivem:
Champinha, estuprador e assassino, continua preso apesar de ter cumprido sua pena”, de 2011,
encontramos uma exposição detalhada do crime, bem como da repercussão deste na vida do pai
de Liana e de Champinha. Um dos maiores impasses do caso se configura em função desse
suposto “transtorno de personalidade” associado a uma debilidade mental, o que, para os atores
envolvidos, determinaria a impossibilidade de Champinha viver em sociedade. Em relação às
avaliações psiquiátricas realizadas no caso, o autor da reportagem da Revista Piauí nos revela
que:
“Todos os laudos concordam que Champinha não age dominado pela fúria de
um louco. Quando deu repetidas facadas em Liana, não teve prazer: queria
acabar com o problema, se livrar da menina da qual abusara. Nos seus
termos: „ Se ela saía, a polícia pegava eu”. Ou seja, se Liana fosse libertada,
ele seria preso. Para um de seus avaliadores, ele contou que deu ´um monte
de facada,mas ela morreu antes porque a primeira foi no pescoço´. O que
pode ser indício de frieza, característica dos psicopatas, seria, no caso de
Champinha, um entendimento superficial dos próprios atos.”

Passemos agora propriamente aos impasses do caso, embaraços que justificam o título
desta apresentação: afinal, o que fazer com Champinha? Antes disso, é preciso entender o que já
está sendo feito para em seguida pensarmos em outras soluções possíveis. Roberto, embora já
tenha cumprido os três anos de internação previstos na lei, vive hoje em uma espécie de “limbo
jurídico”. Apesar de já ter quase 27 anos, não pode ser preso em uma penitenciária para
criminosos comuns, uma vez que era adolescente quando cometeu o crime. Também não pode
ser encaminhado para um hospital psiquiátrico ou de custódia, uma vez que só é possível
recorrer a esses dispositivos, como já falamos, em casos de medidas de segurança que só são
aplicáveis em maiores de idade.
Em virtude do clamor social gerado pelo caso, bem com em função do movimento
exaustivo do pai de Liana em acionar e imobilizar o poder público, o Ministério Público
ingressou com uma ação civil de interdição, cumulada com internação compulsória. A
Promotoria se baseou em laudos médicos que constataram que o rapaz sofre de problemas
mentais e que não poderia voltar a viver em sociedade.
Em 2003, a juíza responsável pelo caso atendeu o pedido do MP e determinou a
interdição civil de Champinha. Como na época não havia uma unidade para atender pessoas

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com esse perfil, foi feita uma parceria entre as secretarias de Justiça, Saúde e Administração
Penitenciária para encaminhar Champinha para uma instituição criada para acomodá-lo, a
chamada Unidade Experimental de Saúde (UES). Esta é um equipamento atrelado à Secretaria
de Estado da Saúde de São Paulo, destinado a custodiar, segundo o Decreto que o regulamenta,
“adolescentes e jovens adultos” com diagnóstico de distúrbio de personalidade e alta
periculosidade que cometeram atos infracionais graves, egressos da Fundação Casa e
interditados pelas Varas de Família e Sucessões.
Feito esse delineamento do caso, podemos traçar um breve resumo dos elementos que o
constituem para apreendermos o grau de complexidade do mesmo:
 No caso, observamos um indivíduo que, pela lei, já cumpriu a sua medida, mas ainda
permanece preso.
 O caso de um indivíduo que, mesmo tendo cometido o crime durante a adolescência,
cumpre uma espécie de medida de segurança, exclusiva aos maiores de idade.
 Champinha vive em um regime excepcional no qual não se encaixa propriamente no
que legisla o ECA ou o CPB.
 Uma vez que não se trata de uma medida de segurança, a questão relativa ao exame de
cessação de periculosidade se torna ainda mais polêmica, uma vez que não há diretrizes
regulamentadas que definam a sua aplicação na UES.
 Champinha encontra-se internado na UES ainda que exista discordâncias quanto ao seu
diagnóstico.
 No caso, observa-se uma ênfase na responsabilidade psiquiátrica, ainda que se observe,
a princípio, um imbróglio essencialmente jurídico.
 Também observamos grandes discussões de cunho jurídico que questionam essa
invenção que, segundo alguns especialistas, configura-se como um limbo jurídico,
havendo a possibilidade da instauração de uma espécie de “prisão perpétua a brasileira”.
Diante do que foi exposto, faz-se necessário dizer que não pretendemos de forma alguma
exaurir a questão, e sim levantar alguns questionamentos. O caso Champinha envolve
problemas que embaraçam juristas, legisladores, psiquiátricas, psicólogos e outros. É evidente
que existem minúcias legais que nos escapam, uma vez que não tivemos acesso aos autos, bem
como não somos especialistas em Direito. Contudo, é inegável que o caso Champinha
configura-se como um emaranhado de problemas de cunho legal e psiquiátrico. A fim de
ultrapassarmos os apontamentos desses impasses, propomos agora abordar o caso por outro
viés, tentando compreender a que se deve essa espécie de Frankenstein jurídico e as suas
repercussões, bem como possíveis saídas para casos como o aqui apresentado.

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Acreditamos que a criação de uma instituição como a UES é apenas um sintoma de um
sistema permeado por falhas. Diante da escassez ou até mesmo ausência de dispositivos que se
ocupem da saúde mental do adolescente, percebemos, a partir do caso Champinha, que o
recurso privilegiado foi o da segregação. Com o endosso de avaliações psiquiátricas, o Direito
acabou acolhendo o clamor popular e determinou a permanência do adolescente na UES.
Acreditamos que um primeiro passo é abordar o caso para além daquilo que ele possui de
bárbaro, cruel e até mesmo monstruoso. É preciso que para além de toda a violência, nos seja
possível uma posição crítica e atenta aos problemas envoltos na criação de um arranjo jurídico
tal como o manejado no caso. No caso citado, a juíza tomou uma decisão inédita e após esse
movimento, outros magistrados no Estado de São Paulo aplicaram a mesma solução encontrada
pela juíza do caso Champinha. De acordo com a Revista Piauí, Champinha

“está duplamente jurado de morte no sistema prisional: por ser estuprador e


também por ser considerado o responsável pela criação da UES. Todos os
presos ali – hoje são seis- se sentem injustiçados. (...) Como cometeram
crimes hediondos ou violentos, e tiveram sua sanidade mental contestada, a
perpectiva é de que apodreçam ali até silenciar o ´clamor popular´”

A história de Champinha demonstra com exatidão que o juiz não se restringe às leis ou
aos precedentes ao julgar uma causa. Fatores diversos como o clamor popular, a pressão da
imprensa, e as próprias experiências pessoais e subjetividade do juiz orientam sua decisão. Há
quem defenda a criação da “Lei Champinha”. Acreditamos que antes de falarmos sobre a
possibilidade da criação de uma lei semelhante, é preciso sabermos em que medida ela fere ou
não os dispositivos jurídicos dos quais dispomos.

Também não podemos deixar de marcar que entre os atos infracionais cometidos pelos
adolescentes, menos de 5% configuram-se como crimes contra vida. Entretanto, ainda que os
adolescentes que cometem homicídios sejam uma minoria, eles existem, assim como os
adolescentes que cometem crimes hediondos acometidos por alguma loucura. Desse modo, nos
indagamos: o que esses casos podem nos ensinar?

Se pensarmos nos dispositivos existentes e previstos no ECA, podemos nos perguntar:


Será que uma rede de saúde mental mais ampla e efetiva para adolescentes poderia auxiliar em
casos como o que foi aqui discutido? Será que um trabalho mais ativo em relação às medidas
protetivas também pode ser uma saída? Dispositivos como o CATU que é um Projeto de
Acompanhamento de Medidas Protetivas do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, por exemplo,
podem servir como uma ponte entre a medida socioeducativa e a rede de saúde mental,
ajudando em casos como o do Champinha? E o estreitamento de redes? Será que nesses casos
não poderíamos pensar em projetos terapêuticos bem amarrados antes do desligamento do
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adolescente para que assim que seja liberado já possa usufruir de todo o trabalho de rede
previamente construído pela equipe que o assistiu no socioeducativo?

Por outro lado: será que os dispositivos que dispomos não são suficientes? Há de se
criar jurisprudências como no caso Champinha? Será que as leis brasileiras devem ser
modificadas a fim de aumentar o período de internação para até oito anos em caso de crimes
hediondos, projeto de lei que já está tramitando no Congresso Nacional? Será que Unidades
Experimentais de Saúde são a solução para adolescentes infratores portadores de sofrimento
psíquico? Por fim, será que Champinha deve ser liberado em nome de direitos que não foram
estabelecidos para lidar com casos como o dele?

Como já foi colocado, não pretendemos esgotar a questão aqui exposta, e sim trazer um
caso complexo e pouco conhecido, bem como levantar alguns questionamentos. Como é
possível observar, o caso Champinha é extremamente complicado e polêmico, sendo impossível
qualquer consenso quanto às possíveis saídas para o mesmo.

A fim de concluirmos esta exposição, recorremos a um trabalho pouco lido de Freud,


intitulado “Por que a guerra?”, de 1932. Tal texto é na verdade uma troca de cartas entre Freud e
Einstein com o escopo de discutir o tema da guerra, mais precisamente os motivos que levam o
homem a guerrear.
Após uma ampla discussão, Einstein chega a uma conclusão que aqui nos parece
preciosa. O autor termina por afirmar que:

“a lei e o poder inevitavelmente andam de mãos dadas, e as decisões


jurídicas se aproximam mais da justiça ideal exigida pela comunidade (em
cujo nome e em cujos interesses esses vereditos são pronunciados), na
medida em que a comunidade tem efetivamente o poder de impor o respeito
aos seu ideal jurídico”. (p.242).

Ou seja, em 1932, Einstein já apontava para o fato de que há uma ampla influência do
clamor social nas decisões jurídicas, elemento que surge como crucial no caso de Champinha.
Em nome da crença de uma possível “justiça ideal”, o jovem é obrigado a lidar com um sistema
legal que parece estar entrincheirado entre a lei prescrita e a sua interpretação. Como
psicanalistas, devemos estar atentos a esse hiato entre a justiça e o aparelho jurídico, e,
principalmente, como o sujeito criminoso se posiciona diante disso, ou seja, quais as
respostas que ele fornece ou não diante de sua situação. Acreditamos que a despeito de uma
suposta debilidade mental conjugada a um também suposto transtorno de personalidade,
Champinha é irremediavelmente responsável pelos seus atos. A psicanálise lacaniana aponta
para a radicalidade da responsabilidade, defendendo que de nossa posição de sujeito somos
sempre responsáveis.
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Á medida que falamos de responsabilidade, podemos igualmente nos questionar
sobre a nossa responsabilidade em frente a casos como o de Champinha. Acreditamos ser
uma tarefa impossível atestar ou não a periculosidade de quem quer que seja, sendo
impraticável prever neste e também em outros casos uma possível reincidência criminal. A
tônica não deveria ser na periculosidade, e sim no acompanhamento e tratamento. Embora
acreditemos que o tratamento seja indispensável, ele tampouco nos fornece garantias quanto
a uma futura não reincidência. Como nos alerta Freud, “A psicanálise nunca se apresentou
como uma panacéia e jamais reivindicou milagres” (Freud, 1923, p.303); ou seja, sabemos
que existem casos que nos confrontam com a intratabilidade, com fortes alianças entre o
sujeito e o gozo. Será esse o caso de Champinha? O certo é que não podemos afirmar de
antemão, sem que antes lhe tenha sido oferecida a palavra.

É fundamental sublinhar que diante de tudo que foi aqui exposto, um aspecto se faz
ouvir pela sua ausência: em meio a tantos problemas de cunho jurídico, não encontramos
elementos clínicos. Na busca por bibliografias que contemplem aspectos clínicos do caso,
encontramos o silêncio, talvez em função do sigilo. Certamente, há um trabalho sendo feito na
UES, e como um próximo passo, gostaríamos de saber com os profissionais que ali trabalham, o
que vem sendo realizado nesta instituição. Champinha se faz ouvir, a princípio, pela bizarria da
invenção jurídica na qual se encontra. Com as informações que dispomos, não enxergamos
qualquer resquício de sujeito diante de tantas manobras legais, tampouco sabemos o que ele é
para além dessa exceção jurídica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Brasil, Código Penal Brasileiro (1940).

Brasil, Constituição da República Federativa Brasileira de (1988).

Brasil, Estatuto da Criança e do Adolescente (1990).

Brasil, DECRETO NUMERO 53.427, DE 16 DE SETEMBRO DE 2008. Cria e organiza, na


Secretaria da Saúde, a Unidade Experimental de Saúde e dá providencias correlatas. In: Diário
Oficial da Republica Federativa do Brasil, Brasília, Executivo I, 17/09/2008, p.3

Freud, S.(1923). “Dois Verbetes de Enciclopédia”In. Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, (Vol.XVIII, PP.303) Rio de Janeiro:Imago,1976

_______ “Por que da guerra?” (1932) (v.XXII, pp.242)

Libague, L.H. “Os que morrem, os que vivem – Champinha, estuprador e assassino, continua preso
apesar de ter cumprido a sua pena” In: Revista Piauí, Edição 56, Maio, 2011. Disponível em:
www.revistapiaui.estadao.com.br/edicao-56/questoes-juridico-psiquiatricas/os-que-morrem-os-
que-vivem
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