Professional Documents
Culture Documents
Neste sentido, podemos dizer que a função terapêutica está dividida na figura
dos dois profissionais, por isso pode se dizer que ela é bipartida. Contudo, não são
lugares totalmente estranhos um ao outro. Pelo contrário, a função do psicoterapeuta se
enlaça com a função do observador, formando uma dupla, na qual um diferencia-se e
intersecciona-se com outro. Isto significa que a função terapêutica é bipartida,
diferenciada, mas suplementar.
Contudo, ocupar este lugar não é uma tarefa simples, apesar de tudo o que
fazemos sempre parecer ser simples. Há a implicação subjetiva deste, ou seja, ele afeta
o campo afetivo, como também é afetado por ele. Mesmo que inicialmente o observador
tente se manter distante, demonstrando o desejo de se portar como um adorno na sala,
como uma peça sem importância, podendo parecer ser despercebido, este lugar não lhe
faculta manter-se no anonimato. Tanto a criança como os pais olham, falam, tocam o
observador em diversos contextos, trazendo-o para o campo, ao mesmo tempo em que o
mantém na zona de limite, na fronteira – aquela que lhe cumpre guardar, estando nem
totalmente dentro nem totalmente fora, estado do umbral.
Além disso, observar também demarca o lugar daquele que se faz aprendiz.
Daquele que não sabe o que está por vir e encontra-se no campo para investigar por
meio da observação. Há o exercício da capacidade negativa, ou seja, de se sustentar o
lugar do não saber, abrindo espaço para a expressão do sujeito, abrindo caminho para a
palavra, representação do método psicanalítico e, a partir disso, possibilitando a
investigação dos movimentos e modulações afetivas, dos fenômenos transferenciais e
contratransferenciais.
A criança, sentada no colo da mãe, engolfada nela como se fosse uma boneca de pano,
pois se conformava ao corpo dela, dirige seu olhar para o terapeuta. Os dois
comunicam-se com caretas que vão tomando formas diversas nos rostos, ao mesmo
tempo em que sorrisos são correspondidos. Uma conversa se estabelece pelas feições
faciais inicialmente e depois evoluindo para sons e ruídos feitos pela menina através de
sua boca: “bruu”, e que é imitado pelo terapeuta. A mãe acompanha todo este
movimento que continua por um longo tempo, sem palavras verbais, somente
comunicação não verbal. Em seguida, um jogo de esconde-esconde se estabelece. A
criança vira o rosto para o lado oposto escondendo-se no peito da mãe para em seguida
virar-se novamente em direção ao terapeuta, o qual esconde seus olhos com suas mãos,
dando continuidade ao jogo. Os sorrisos permanecem. Na seqüência, a mãe coloca sua
filha no chão, bem próxima às suas pernas e o terapeuta aproxima-se, sendo que um
jogo começa a se desenvolver com panelinhas. A criança busca a mãe incessantemente
com o olhar, demonstrando com seu movimento corporal querer voltar para o colo. O
terapeuta conversa com ela sobre estar longe da mamãe (ainda que a distância dos
corpos seja mínima, mas para criança parecia uma distância aterradora).
A mãe observa todo o tempo este diálogo não verbal e verbal que se estabelece na
sessão e ao final deste atendimento ela verbaliza que ela precisa conversar mais com sua
filha.
Esta posição é extremamente importante, pois é por meio deste movimento que se torna
possível aproximar dos não-ditos, dos vazios, dos espaços onde não há palavra. Isto
demarca a posição de quem está livre de “pré-ocupações”, pois o observador resguarda
o lugar de quem vai se ocupar do registro, permitindo ao psicoterapeuta estar nesta outra
posição.
Dessa forma, é uma cisão que se apresenta. O grande sinal é mal estar sentido no corpo
da observadora, é o inominável que aparece no nível não-verbal, inconsciente, onde o
caso é ouvido com o estômago em rebuliço. Enquanto em outro nível, a psicoterapeuta e
também a observadora em outros momentos conseguem ouvir com aparente
tranqüilidade toda a violência e barulho de uma relação materna onde a condição odiada
do bebê aparece de forma contundente em expressões verbais por parte da mãe, tais
como: “eu tenho vontade de fazer besteira. [...] beber remédio, por fogo na casa, ele tem
problemas, eu também tenho. [...] tenho vontade de morrer, nunca tive alegria na vida,
só sofrer, sofrer, sofrer.” (Primeira sessão). O bebê, por sua vez, manifesta em seu rosto
expressões faciais de susto e medo, permanecendo entrincheirado em seu carrinho de
bebê, o qual constitui para ele um porto seguro, pois mesmo sabendo andar, não se
aparta dele.
Neste caso, pode-se entender um pouco mais sobre o processo de cisão ( de maneira
correlata a transferência bipartida), onde a observadora fica com objetos psíquicos
registrados em seu corpo na ordem do insuportável, sentindo-se cheia, saturada e com
muito medo que a mãe mate o filho e portanto, não conseguindo digerir e metabolizar
assim como a criança e identificada com ela, recebendo um alimento cheio de ódio e
horror. Por outro lado, a psicoterapeuta não registra nenhum mal estar físico e fica com
a parte do suportável,ou seja, da possibilidade de dar suporte ao tentar formular em
palavras as vivências emocionais. Este fato demarca a diferença das posições. O
psicoterapeuta, por ocupar esses lugares diversos, vivencia parte da transferência, tendo
assim uma experiência emocional muito particular. E o observador, por sua vez, também
acaba tendo uma vivência específica, resultante do lugar em que ocupa. Neste sentido,
temos duas perspectivas diferentes de um mesmo acontecimento, o que nos leva a
perceber a bipartição da transferência. Esta diferença, no entanto, não invalida nenhuma
das experiências, muito pelo contrário, é a riqueza de trabalho transferencial intensivo.
Consideramos que este trabalho traz uma perspectiva possível de Prevenção em Saúde
Mental nos primeiros anos de vida que toma em consideração o desejo e o sujeito.
Como afirma Teperman (2002), “[...] prevenir faz pensar em pré-venir, pré-venir o
sujeito, antecipar um sujeito para a criança, quando os pais não puderam fazê-lo” (Ibid.,
p. 152).
Por meio desta discussão, fica evidente que não é possível pensar a questão da
prevenção como uma antecipação em relação à aparição de um sintoma. Contudo, são
somente os elementos que não puderam ser ligados a uma significância que cria o
acontecimento traumático, a partir de um segundo fato. A prevalência dos não-ditos
possui papel importante na formação sintomática. Neste sentido, é possível acontecer
uma escuta atenta e organizadora que confira um lugar para a significância que tal
acontecimento toma para uma pessoa. Esta escuta implica que não haja conhecimento
prévio do que será produzido, mas que o terapeuta esteja pronto para ouvir, abrindo
espaço para a liberdade do humano.