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A Singularidade da Intervenção do

Treinador como a sua

«Impressão Digital» na…


… Justificação da Periodização Táctica como uma
«fenomenotécnica».

Carlos César Araújo Campos

Porto, 2007
.
A Singularidade da Intervenção do
Treinador como a sua

«Impressão Digital» na…


… Justificação da Periodização Táctica como
uma «fenomenotécnica».

Monografia de Licenciatura realizada no


âmbito da disciplina de Seminário do 5º
ano da licenciatura em Desporto e
Educação Física, na opção de Futebol,
da Faculdade de Desporto da
Universidade do Porto

Orientador: Professor Vítor Frade

Autor: Carlos César Araújo Campos

Porto, Dezembro 2007


Provas de Licenciatura

Campos, C. (2007). A Singularidade da Intervenção do Treinador como a sua


«Impressão Digital» na… Justificação da Periodização Táctica como uma
«fenomenotécnica». Porto: C. Campos. Dissertação de Licenciatura
apresentada à Faculdade de Desporto da Universidade do Porto.

Palavras-chave: FUTEBOL, TREINO, PRINCÍPIOS DE JOGO,


INTERVENÇÃO e INTER(ACÇÃO).
Dedicatória

A todos aqueles que vieram antes de mim, planaram o terreno à custa da


escavação de densas pedreiras e da devastação de mato robusto, permitindo
que agora eu apenas tenha que procurar contribuir para uma pavimentação
cada vez mais bela e rica.

“… havia a ciência Newtoniana. E, Ludwig von Bertalanffy disse: «deixe o


sistema todo ser maior do que a soma das suas partes». Norbert Wiener
acrescentou: «deixe o feedback positivo e negativo fluírem por todo o sistema.»
Ross Ashby postulou: «deixe o sistema ter a quantidade de variedade
necessária para interagir com o seu ambiente.» E nasceu a teoria geral dos
sistemas.”

Ward (cit. por Tani e Corrêa, 2006, p. 15)

III
_____________________________________________________________________________
.:
Agradecimentos

Ao Professor Vítor Frade pelo seu saber contagiante e estimulante,


pela paixão que transborda na transmissão do seu conhecimento e das suas
dúvidas emergentes, pelas aulas e pela disponibilidade simultaneamente
motivada e motivadora. Sinto-me verdadeiramente um privilegiado!

Aos meus entrevistados: Professora Marisa Gomes, Mestre José


Guilherme Oliveira e Professor Rui Faria pelo enorme contributo para o
enriquecimento deste trabalho. A vossa humildade em atenderem o meu
pedido jamais será esquecida!

Ao meu primo Joca e aos meus amigos José, Madalena e Sara pelo
contributo efectivo para a realização deste trabalho numa altura em que o
tempo escasseava.

Aos meus pais e irmã pela simples razão de os quatro sermos um só!
Nenhum de nós se reduz a si próprio!

À Gabi por estar sempre presente, por acreditar em mim, por partilhar
comigo todo este caminho com um sorriso terno e encorajador! Sem ti nada
seria igual…

Aos meus amigos e colegas que comigo viveram estes curtos e


intensos anos de Faculdade, especialmente ao Ângelo, ao Guisande, ao Daniel
Pinho, ao Daniel Pinto e à Andreia entre outros que comigo partilharam
vivências duradouras, marcantes e irrepetíveis. Reencontrámo-nos na
“Premiership”!

V
_____________________________________________________________________________
.
Índice Geral

Dedicatória III
Agradecimentos V
Índice Geral VII
Índice de Figuras X
Índice de Anexos XI
Resumo XIII
Abstract XV
Résumé XVII
1. Introdução 1
2. Revisão da Literatura 7
2.1. Existência de um Modelo de Jogo como condição
7
impreterível para dele se ter consciência …
2.2. … constituindo-se a prática como princípio e fim da sua
10
transmissão …
2.3. … que vai condicionar a espontaneidade decisional do “aqui
13
e agora” …
2.4. … com permanente subordinação aos Princípios de Jogo
20
como “objectos mentais” …
2.5. … que passam a fazer parte da memória de modo a serem
24
evocados sempre que necessário …
2.6. … para haver a manifestação de um padrão de
28
comportamento regular que se pretende eficaz …
2.7. …graças à evolução individual de cada jogador sustentada
34
em referenciais eminentemente colectivos…
2.8. … que vai permitir a eclosão da desordem desequilibradora
37
sustentada numa ordem implícita…
2.9. … determinada previamente pelo treino 42
3. Material e métodos 49
3.1. Caracterização da Amostra 49
3.2. Metodologia de Investigação 49

VII
_____________________________________________________________________________
3.3. Recolha de Dados 50
4. Análise e discussão dos resultados 51
4.1. A Especificidade da repetição sistemática dos Princípios de
51
Jogo…
4.1.1. …necessita de um profundo conhecimento do
51
Modelo de Jogo…
4.1.2. …e está na interacção dos princípios da alternância
horizontal, da progressão complexa e das propensões 52
devidamente contextualizados
4.2. A mesma abordagem com diferente grau de complexidade
como fulcro do processo de assimilação dos Princípios de 55
Jogo…
4.2.1. …que nunca esgotam a sua riqueza impedindo o
56
uso do conceito de “manutenção do princípio de jogo”
4.3. A focalização no comportamento que se pretende treinar
58
advém da configuração do exercício…
4.3.1. …e de uma intervenção do treinador centrada
60
precisamente nesses aspectos.
4.4. A auto-hetero-superação está no limiar entre sucesso e
61
insucesso…
4.4.1. …e depende em grande medida da intervenção
62
adequada do Treinador
4.5. A antecipação permitida pela existência de uma lógica de
64
resolução dos problemas
4.6. A desmontagem do jogo referenciada ao plano macro como
66
chave do plano micro…
4.6.1. …o que implica uma fractalidade no plano
67
transversal…
4.6.2. …e uma fractalidade em profundidade… 68
4.6.3. …geridas por um tipo de intervenção anti-
70
determinista
4.7. A qualidade individual apenas pode ser manifestada
72
quando está subjugada a algo hierarquicamente superior…

VIII
_____________________________________________________________________________
4.7.1. …havendo que actuar sobre o(s) jogador(es) em
75
causa…
4.7.2. …e simultaneamente sobre o Modelo de Jogo,
78
reajustando-o sem perda do Padrão Global
4.8. A criatividade Específica como um desvio treinado, previsto
80
internamente e enriquecedor…
4.8.1. …apenas possibilitada por uma intervenção
84
amplamente competente por parte do treinador
4.9. A preponderância da prática na aquisição de hábitos
85
enquanto “capacidade organizante”…
4.9.1. …que deve estar associada a uma identificação
87
teórica consciente dos comportamentos a manifestar…
4.9.1.1. …possibilitada por uma transmissão verbal e
88
pelo uso de imagens
4.10. A necessidade de uma SUPRA-ESPECIFICIDADE face à
90
escassez de tempo para treinar quando se está a top
5. Conclusões 93
6. Referências Bibliográficas 97
7. Anexos 103

IX
_____________________________________________________________________________
Índice de Figuras

Figura 1 - Sistema de roldanas representativo da Fractalidade


68
Transversal
Figura 2 - Puzzle representativo da Fractalidade em Profundidade 70
Figura 3 – Interacção imaginada pelo Treinador para um
77
determinado momento do jogo
Figura 4 – Formato da interacção global segundo as limitações do
77
jogador (4) antes de qualquer reajuste
Figura 5 – Configuração do contributo idealizado pelo Treinador
78
para o jogador (4)
Figura 6 – Configuração do contributo possibilitado pelas
78
capacidades do jogador (4)
Figura 7 – Configuração das interacções resultante dos reajustes
80
do Modelo e da intervenção específica sobre o jogador (4)
Figura 8 – Configuração da interacção do jogador (4) após treino
80
direccionado para a sua melhoria contextualizada
Figura 9 – Contemplação da criatividade no Modelo de Jogo 83

X
_____________________________________________________________________________
Índice de Anexos

Anexo 1 – Entrevista à Professora Marisa Gomes I


Anexo 2 – Entrevista ao Mestre José Guilherme Oliveira XXI
Anexo 3 – Entrevista ao Professor Rui Faria XXXIV

XI
_____________________________________________________________________________
.
Resumo
Considerando que o processo de treino é único e que deve ter em vista o
jogo que se procura, este deverá então, ter por base o Modelo de Jogo
consubstanciado num conjunto de princípios de acção que servirão de
referência à condução do processo e que permitirão alcançar o objectivo de
organização da equipa.
As decisões dos jogadores devem ter como base determinados princípios
que constituirão, no seu conjunto, a lógica interna de funcionamento da equipa.
Para que isto aconteça tem que se treinar tendo como principal prioridade a
aquisição de hábitos referentes a uma determinada forma de jogar futebol, que
no nosso entender e de acordo com a pesquisa efectuada é mormente
facilitado e promovido pela Periodização Táctica. À consecução deste objectivo
não é alheia uma intervenção competente e adequada do treinador ao longo do
processo pois permite um direccionamento mais concreto e eficaz.
Para perceber melhor as entrelinhas destas questões definimos os
seguintes objectivos: descrever os mecanismos inerentes ao processo de
cumprimento dos princípios de jogo; indagar acerca das formas de perspectivar
este processo por parte dos treinadores no que se refere à sua intervenção
específica; possibilitar uma maximização da transferência dos conteúdos
essenciais do treino para o jogo.
De forma a atingir estes objectivos entrevistamos três treinadores de
Futebol, a Professora Marisa Gomes, o Mestre José Guilherme Oliveira e o
Professor Rui Faria.
Na análise e discussão dos resultados foram tidas em conta as
entrevistas bem como a revisão bibliográfica efectuada sendo possível no final
extrair algumas conclusões das quais se destacam: a necessidade de uma
perfeita congruência entre aquilo que o treinador idealiza e o modo como
sistematiza e operacionaliza isso; a relevância de uma intervenção competente
do treinador que permita um permanente acréscimo de Especificidade no
treino; a necessidade de construir uma lógica comum de resolução dos
problemas que permita a antecipação da decisão por parte dos colegas; a
promoção da criatividade inscrita numa matriz comportamental Específica; a
imprescindibilidade de dominar bem os objectivos referentes ao plano macro
para a partir daí actuar sobre o plano micro; a premência de condicionar a
evolução individual a referenciais colectivos e o auxílio que a identificação
teórica com o padrão comportamental tem na prática.
Palavras-chave: FUTEBOL, TREINO, PRINCÍPIOS DE JOGO,
INTERVENÇÃO e INTER(ACÇÃO).
XIII
_____________________________________________________________________________
..
Abstract

Considering that the training process is unique and must keep in mind the
pursuited game, it should have as base the Game Model consubstantiated in a
group of principles of action that will serve as reference for the conduction of the
process and will allow us to reach the objective of the team organization.
The players decisions should have as base certain principles that will
constitute, as a whole, the internal logic of the teams functioning. For this to
happen the trainings principal aim has to be the acquisition of habits necessary
to a certain way of playing football that, in our point of view, and according to
the conducted research, is mainly facilitated and promoted by the Tactical
Periodization. In the way of achieving this objective the coach’s competence
and proper intervention during the process is not lost in thought, because it
allows a more concrete and effective conduction.
To read between the lines of these questions we defined the following
objectives: describe the mechanisms inherent to the following of the game
principles; to enquire the coaches about their perspective of the process,
referring to their specific intervention; optimise the transference of the essential
content of the training to the game.
In order to achieve these objectives three Football coaches were
interviewed, the Professor Marisa Gomes, the Master José Guilherme Oliveira e
the Professor Rui Faria.
In the analysis and discussion of the results the interviews were taken into
account as well as the bibliographic revision effectuated allowing us to extract,
in the end, some conclusions among which we stand out: the necessity of a
perfect congruence between the things that the coach idealizes and the way he
systematises and operates it; the relevance of a competent intervention of the
coach that allows a permanent raise of the training Specificity; the need to
construct a common logic of problem resolution that allows an anticipated
decision on the part of the colleagues; the creativity promotion inscribed in a
Specific behavioural matrix; the necessity to well dominate the objectives
referring the macro plan in order to act on the micro plan; the urgency to
regulate the individual evolution regarding collective referentials and the
assistance that the theorical identification with the behavioural padron has in
practice.
Key Words: FOOTBALL, TRAINING, GAME PRINCIPLES,
INTERVENTION and INTER(ACCTIONS).

XV
_____________________________________________________________________________
..
Résumé
Considérant que le processus d'entraînement est unique et qu'il doit avoir en
vue le jeu qui se cherche, celui-ci devra alors, avoir par base le Modèle de Jeu
consolidé dans un ensemble de principes d'action qui serviront de référence à la
conduction du processus et permettront d'atteindre l'objectif de l’organisation de
l'équipe.
Les décisions des joueurs doivent avoir comme base déterminés principes
qui constitueront, dans leur ensemble, la logique interne de fonctionnement de
l'équipe. Pour que ceci arrive a il faut s’ entraîner ayant comme principale priorité
l'acquisition d'habitudes afférentes à une certaine forme de jouer football, qui à
nôtre avis et conformément à la recherche effectuée ceci est facilité et promu par la
Périodisation Tactique. Comme consequence de cet objectif une intervention
compétente et ajustée de l'entraîneur au long du processus n'est pas écarter,
permetant un direccionement plus concret et efficace.
Pour percevoir mieux les entrelignes de ces questions nous avons défini les
suivants objectifs: décrire les mécanismes inhérents au processus
d'accomplissement des principes de jeu; enquêter concernant les formes de mettre
en perspective ce processus de la part des entraîneurs en ce qui concerne son
intervention spécifique; rendre possible une maximisation du transfert des contenus
essentiels de l'entraînement pour le jeu.
De manière à atteindre ces objectifs nous avons interviewé trois entraîneurs
de Football, la Professeur Marisa Gomes, le Maître José Guilherme Oliveira et le
Professeur Rui Faria.
Dans l'analyse et la discussion des résultats ont été tenues en compte les
entrevues ainsi que la révision bibliographique effectuée à fin d´être possible
êxtraire quelques conclusions desquelles ils se détachent: la nécessité d'une
parfaite congruence entre ce qui l'entraîneur idéalise et la manière comme il
systématise et opére cela; l'importance d'une intervention compétente de
l'entraîneur qui permet une permanente addition de Spécificité dans l'entraînement;
la nécessité de construire une logique commune de résolution des problèmes qui
permette l'anticipation de la décision de la part des collègues; la promotion de la
créativité inscrite dans une matrice comportemental spécifique; l’extreme
importance de dominer bien les objectifs afférents au champ macro pour à partir de
là agir sur le champ micron; l'urgence de conditionner l'évolution individuelle à des
référentiels collectifs et l'aide que l'identification théorique avec la norme
comportementale a dans la pratique.
Mots-clés: FOOTBALL, ENTRAÎNEMENT, PRINCIPES DE JEU,
INTERVENTION et INTER (ACTION).

XVII
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Introdução
_____________________________________________________________________________

1. Introdução

Williamas e Hodges (2004, p. 637) referem que nos últimos anos têm
sido levadas a cabo inúmeras pesquisas com o objectivo de se identificar os
factores mais importantes que levam a bons desempenhos no desporto.
Lembram que a importância das ciências do desporto é apreciada por todos
aqueles que estão envolvidos em equipas profissionais e que a grande maioria
dos trabalhos nesta área é pertença dos fisiologistas do exercício sendo que
disciplinas como a psicologia desportiva ou a aprendizagem motora são
relegadas para segundo plano no que à produção científica diz respeito. Estes
autores chegam mesmo a dizer que “o futebol adoptou as ciências biológicas
com muito maior entusiasmo que o revelado no interesse da compreensão do
comportamento ou das ciências sociais.”
Da mesma forma que fazem a constatação destes factos, Williams e
Hodges (2004, p. 637) encontram explicações para eles: “É muito mais fácil
avaliar a efectividade de um programa de condição física do que monitorizar
intervenções que visam alterar comportamentos. Mudanças nas capacidades
aeróbia e anaeróbia ou nas características antropométricas como a massa ou
composição corporal, podem ser facilmente determinadas usando testes
laboratoriais padronizados. Por outro lado, constructos como a ansiedade,
auto-confiança, antecipação e tomada de decisão são difíceis de medir
directamente e podem apenas ser inferidos através de mudanças
comportamentais ao longo do tempo.” Estas explicações servem-nos também a
nós, pois a realização deste trabalho visa compreender melhor a forma como o
Treino conduz a uma determinada forma de jogar futebol, isto é, tratamos o
comportamento, as interacções, a vivenciação de decisões dentro duma matriz
específica que caracteriza uma equipa e isso exige um profundo conhecimento
daquilo que estamos a falar, no nosso caso do “jogar” que pretendemos, pois
só assim poderemos direccionar o treino nesse sentido, promovendo as
interacções adequadas ao surgimento efectivo da nossa ideia de jogo.

1
_____________________________________________________________________________
Introdução
_____________________________________________________________________________

Ao abordarmos um assunto, seja ele de que índole for, convirá logo à


partida tornar claros alguns pressupostos que, de forma velada ou não,
condicionarão vincadamente o modo como trataremos esse mesmo tema.
Num mundo descentrado como o nosso, cada um torna-se responsável
pela experimentação de novas práticas sintonizadas com o pensamento
sistémico. Todos os caminhos são válidos pois tudo depende daquilo com que
nos deparamos e daquilo que está no centro da nossa busca. Esta é uma das
ideias básicas do pensamento complexo: tendo em conta a multiplicidade de
caminhos que se abrem à investigação, é fundamental a existência de um
centro comum a todas as áreas interligadas, assumindo a articulação um papel
fulcral. Esta ideia sistémica deita por terra as “receitas”, descendentes directas
da causalidade linear, e apela de uma forma racional, à individualização, à
necessidade de atentar e analisar cada caso como diferente de todos os outros.
A este propósito Morin (1986) diz que paradoxalmente são as ciências
humanas que, actualmente, oferecem a mais fraca contribuição ao estudo da
condição humana, precisamente porque estão desligadas, fragmentadas e
compartimentadas. Estabeleçamos uma analogia com Morin (1986, p. 42)
quando este diz: “Imaginemos uma tapeçaria contemporânea. Ela comporta
fios de linho, seda, algodão, lã, de cores variadas. Para conhecê-la, seria
interessante conhecer as leis e princípios relativos a cada uma dessas
espécies de fio. Contudo, a soma dos conhecimentos sobre cada tipo de fio
que compõe a tapeçaria é insuficiente para conhecer essa nova realidade que
é o tecido (ou seja, as suas qualidades e propriedades). É também incapaz de
nos auxiliar no conhecimento da sua forma e configuração.” Ora o mesmo se
aplica em relação ao Futebol, isto é, até podemos tentar decompô-lo nas suas
mais ínfimas partes mas não é menos verdade que isso é manifestamente
insuficiente no tratamento duma configuração em que as relações situacionais
estabelecidas variam de forma vertiginosa. Se acreditamos que o nosso “jogar”
com tudo aquilo que o caracteriza é aquilo que nos pode levar ao sucesso
então é sobre ele que devemos actuar. Aquilo que é alvo da preocupação
central de um treinador é também aquilo que o distingue enquadrando-o numa
ou noutra concepção metodológica.

2
_____________________________________________________________________________
Introdução
_____________________________________________________________________________

“A primeira etapa da complexidade indica que conhecimentos simples


não ajudam a conhecer as propriedades do conjunto. Trata-se de uma
constatação banal, que no entanto tem consequências bem relevantes: a
tapeçaria é mais do que a soma dos fios que a constituem. O todo é mais do
que a soma de suas partes.” Este postulado de Morin (1986, p. 43) desacredita
aqueles que insistem em fragmentar, decompor e reduzir. A fragmentação
reduz na medida em que são sonegadas as correlações que se estabelecem
com tudo aquilo que envolve determinada situação. Ao perspectivarmos
determinada componente de forma isolada do seu contexto real estamos a
adulterá-la pois ela é parte de um todo sem o qual deixa de fazer sentido.
“A segunda etapa da complexidade revela que o facto de existir uma
tapeçaria faz com que as qualidades deste ou daquele fio não possam, todas
elas, expressar-se na sua plenitude, pois estão inibidas ou virtualizadas. Assim,
o todo é menor do que a soma de suas partes” (Morin, 1986, p. 43). Com isto o
autor adverte que ao darmos o primado à globalidade teremos de relativizar
cada uma das suas partes. O relativizar aqui poderá ser entendido como uma
contextualização, ou seja, um enquadramento na realidade a que pertence
dentro do todo.
“A terceira etapa da complexidade é a mais difícil de entender pela
nossa estrutura mental. Ela diz que o todo é ao mesmo tempo maior e menor
do que a soma de suas partes.” Esta aparente contradição de Morin encerra
uma verdade que é a chave do entendimento de todas as questões
relacionadas com este assunto. O todo é maior que a soma das partes quando
o entendemos como uma estrutura extremamente complexa fruto de inúmeras
interacções das partes umas com as outras e com o meio envolvente. Nesta
perspectiva o todo é sempre tratado considerando a sua essência global
surgindo daqui a necessidade de se criarem processos que conduzam a esse
mesmo tratamento holístico, isto é, definir as prioridades e actuar sobre elas de
modo a que se obtenham incrementos nos mecanismos gerais. Por outro lado
o todo é menor que a soma das partes se entendermos cada uma delas como
relevante em si, ou seja, se atribuirmos significado contextual a algo
descontextualizado. Por exemplo a periodização convencional atomiza o já
atomizado treino aeróbio em treino de recuperação, treino aeróbio de baixa

3
_____________________________________________________________________________
Introdução
_____________________________________________________________________________

intensidade e treino aeróbio de alta intensidade. Cada uma destas


componentes é, segundo esta concepção metodológica do treino de futebol,
tratada isoladamente esperando-se depois um transfer adequado para a
realidade competitiva. Constatando esta realidade, Tani e Corrêa (2006, p. 16)
certificam que “… a noção de que um sistema pode ser separado em
componentes sem perder as suas características essenciais está ainda muito
presente no campo dos desportos colectivos, por exemplo, quando se dá muita
ênfase à prática de fundamentos técnicos na aprendizagem ou no treino de
certas modalidades desportivas colectivas.”
Changeux (2002) segue na mesma linha de pensamento afirmando que
para compreender bem como se construíam as catedrais, não chega a
descrição minuciosa das pedras assumidas uma a uma: é preciso ter também
uma representação das suas relações mútuas e do plano de organização geral
dos pilares, das abóbadas, dos tímpanos. Para tentar reconstruir uma função, e
no final, um comportamento, a partir dos constituintes elementares do cérebro
recenseados no decurso das décadas recentes, temos de compreender as
regras de organização que determinam uma arquitectura geral das redes de
neurónios que caracterizam o cérebro do Homem.
Assim, assumir o pensamento sistémico como base para o entendimento
do futebol implica um acréscimo de complexidade pois as redes de relações
que se estabelecem são incontáveis o que nos conduz a um crescente esforço
de compreensão que nunca será finalizado. Isto poderá ser tido como
estimulante para uns mas fastidioso para outros, razão pela qual são mais os
que perspectivam a fenomenologia do “jogar” de forma estanque. No nosso
caso inserimo-nos no primeiro grupo e mesmo conscientes da impossibilidade
de compreender tudo do todo, caminharemos no sentido se perceber cada vez
melhor os princípios que regem a aplicação do “jogar” imaginado pelo
treinador.
Surgrue, Corrado e Newsome (2005, p. 363) dizem-nos que “o interesse
na tomada de decisão resultou da emergência de novas áreas interdisciplinares
de pesquisa que expressam o objectivo de perceber as bases neuronais da
escolha do comportamento.” Ainda no mesmo artigo vemos que “as decisões -
última expressão da vontade - podem ser dissociadas das acções sob as quais

4
_____________________________________________________________________________
Introdução
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são normalmente manifestadas, e devem a sua verdadeira existência a


processos escondidos dentro do cérebro” (Surgrue et al., 2005, p. 363).
Estes factos tornam-se tanto mais importantes quando se conhece a
constante modificação – transitoriedade das situações de jogo - onde o
sucesso depende, fundamentalmente da capacidade de julgamento do meio
envolvente bem como da decisão e ajustamento dos movimentos de acordo
com as exigências dos eventos ambientais (Tani, cit. por Barbosa, 2003).
Embora aqui ainda não se perceba de forma clara a importância do treino no
condicionamento dessas decisões, já se antecipa que terá que existir um fio
condutor em direcção a algo que buscamos.
Gomes (2006) complementa dizendo que o «jogar» é uma totalidade que
resulta das interacções dos jogadores e por isso, não deve ser interpretado
como um somatório de acontecimentos aleatórios porque se inscreve num
contexto colectivo. Através desta premissa, a tomada de decisão não é
abstracta porque tem repercussões no contexto onde se inscreve. A decisão do
jogador não se reduz a si mesma, tem influência na dinâmica das relações com
os seus colegas, adversários e portanto, no contexto da dinâmica colectiva, ou
seja, no jogo.
Tendo por base a Periodização Táctica e sua forma particular de
operacionalizar o treino no sentido de transmitir a Ideia de Jogo do treinador,
pareceu-nos vital abordar a problemática das adaptações que o treino induz no
sentido de se evidenciar um determinado “jogar”, um determinado “futebol” em
detrimento de outro “jogar”, de outro “futebol” tendo particular atenção na
intervenção do treinador que permanentemente reconfigura e reajusta
pormenores(maiores) visando a maximização disso mesmo.

Posto isto, parece-nos pertinente colocar os seguintes objectivos ao


nosso trabalho:
Descrever os mecanismos inerentes ao processo de
entendimento/cumprimento dos princípios de jogo pretendidos pelo treinador
por parte do jogador de futebol;
Indagar acerca das formas de perspectivar este processo por parte dos
treinadores no que se refere à sua intervenção específica;

5
_____________________________________________________________________________
Introdução
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Possibilitar uma maximização da transferência dos conteúdos essenciais


do treino para o jogo através da compreensão do funcionamento dos
mecanismos de aprendizagem do jogador.

Buscando a concretização destes objectivos entrevistamos três


treinadores de Futebol, a Professora Marisa Gomes, o Mestre José Guilherme
Oliveira e o Professor Rui Faria, todos eles sintonizados com a Periodização
Táctica enquanto corrente metodológica para o Treino no Futebol. A partir
daqui fizemos a sistematização das suas ideias relativamente a alguns pontos
estruturantes relacionados com os objectivos traçados.
Tendo por base esta metodologia estruturamos o trabalho em sete
pontos. Iniciámos com a “Introdução” na qual expomos e delimitamos o tema e
sua pertinência bem como procedemos à delimitação dos objectivos propostos.
No segundo ponto fazemos a revisão bibliográfica onde articulamos um
conjunto de informação relevante sobre o tema em estudo procurando
percorrer os aspectos mais relevantes que conduzem à indução do
cumprimento dos Princípios de Jogo no Futebol.
No terceiro ponto fazemos a apresentação do material e métodos a partir
dos quais desenvolvemos o nosso trabalho.
No quarto ponto fazemos a análise e discussão dos dados sustentando
e confrontando os conceitos desenvolvidos na revisão bibliográfica com os
dados provenientes das entrevistas.
No quinto ponto apresentamos as conclusões mais relevantes de uma
forma directa e sintética.
O sexto ponto reporta-se às referências bibliográficas que nos serviram
de base à realização deste estudo.
No sétimo e último ponto estão as três entrevistas realizadas na íntegra
constituindo-se como anexos disponíveis para consulta.

6
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Revisão da Literatura
_____________________________________________________________________________

2. Revisão da Literatura

2.1. Existência de um Modelo de Jogo como condição impreterível


para dele se ter consciência…

“Há uma necessidade permanente do modelo estar sempre presente em


todo o instante de forma a que as coisas se direccionem sempre como eu
pretendo que aconteçam”. (Guilherme Oliveira, 2006)

“Exercitamos o nosso Modelo de Jogo, exercitamos os nossos princípios


e sub-princípios de jogo, adaptamos os jogadores a ideias comuns a todos, de
forma a estabelecer a mesma linguagem comportamental. Trabalhamos
exclusivamente as situações de jogo que me interessam, fazemos a sua
distribuição semanal de acordo com a nossa lógica de recuperação, treino e
competição, progressividade e alternância. Criamos hábitos com vista à
manutenção da forma desportiva da equipa, que se traduz por um frequente
«jogar bem»” (Mourinho, 2005)
Guilherme Oliveira (2004), aponta o Modelo de Jogo como aspecto
nuclear do processo de treino, assumindo-se mesmo como um aspecto
fundamental do referido processo, ao ponto de deixar de ter sentido sem a sua
existência, já que será a partir dele que tudo se irá gerir, organizar, desenvolver
e criar. Assim pensa também Faria (1999, p. 49) para quem “o Modelo de Jogo
condiciona um modelo de treino, um modelo de exercícios e, necessariamente,
um modelo de jogador.” A sua existência torna-se assim a base
fundamentadora de tudo e a sua aprendizagem constitui-se como algo de
relevância inquestionável. A presença do Modelo de Jogo no
imaginário/consciência dos jogadores constitui-se portanto um processo que
importa perceber.

7
_____________________________________________________________________________
Revisão da Literatura
_____________________________________________________________________________

Frade (2004a) lembra que o “Jogo” pré-existe à ideia que dele se tem.
Este “Jogo” é sempre subdeterminado ao “jogo” referente à ideia de jogo de
cada um, àquilo que cada um quer que aconteça que será sempre diferente
das demais ideias. Estes “jogos” todos juntos, com a sua variedade mandam
no “Jogo” pois definem grosseiramente os seus traços gerais. O que nos
interessa é o “jogo” pois é sobre este que vamos actuar e assim condicioná-lo à
ideia que dele temos. Assim, quando falamos em modelo de jogo referimo-nos
precisamente ao nosso jogo particular sendo por isso um conceito Específico
para cada treinador.
A tomada de decisão não é algo aleatório ou seja, apesar das
particularidades do contexto, o jogador é sobrecondicionado a decidir em
função do projecto de jogo da equipa e portanto, dos seus princípios. Assim, o
modelo de jogo permite condicionar as escolhas dos jogadores para um padrão
de possibilidades ou seja, orienta as decisões dos jogadores (Gomes, 2006).
Logicamente que não basta a mera existência de um modelo de jogo para que
os comportamentos sejam condicionados nesse sentido pois há que treiná-lo
de forma a enraíza-lo no imaginário dos jogadores e da equipa, torná-lo
presente de forma consciente e seguidamente subconsciente.
Edelman (cit. por Souza, Halfpap, Min & Lopes, 2007, p. 145) afirma que
“a consciência é corpórea, isto é, somente seres corporais podem experimentar
a consciência como indivíduos pois ela é o resultado de funções corporais e da
organização e funcionamento do cérebro de cada indivíduo, um processo que
engloba de forma vincada a história das interacções com o ambiente deste
indivíduo.” Exprimimos em primeiro lugar uma emoção, antes de sentirmos
eventualmente no fundo de nós mesmos um sentimento que lhe estaria
associado como o rosto mais íntimo de uma manifestação essencialmente
corporal (Revoy, s/d). Daqui inferimos que a consciência de algo depende
também da “história das interacções com o ambiente”, ou seja, para
promovermos e facilitarmos a possibilidade da consecução de algo que
pretendemos, devemos proporcionar uma história de interacções nesse sentido
concreto e isso no futebol só poderá ser conseguido através do treino
Específico dos comportamentos tácticos que consubstanciam o modelo de jogo
criado para que isso facilite a tomada de consciência e execução daquilo que

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Revisão da Literatura
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temos como ideia de jogo e assim pensa também Faria (2002, p. VIII) quando
opina da seguinte forma: “se tu queres instalar uma linguagem comum com
regras, princípios, uma cultura de jogo, um modelo de jogo (…) é fundamental
que isso seja feito através do jogo” referindo que para isso é necessário no
treino situações que permitam os jogadores estarem identificados com aquilo
que se quer que seja a competição (o jogar), ou seja, consegue-se através do
treino específico desse modelo de jogo. Acresça-se o que diz Damásio (2000)
quando refere que padrão neural ou mapa neural é algo que acontece no
cérebro, um conjunto de actividades neurais que pode ser encontrada nos
córtices sensoriais quando eles estão activos (por exemplo nos córtices visuais
em correspondência com uma percepção visual). Só temos acesso aos
padrões neurais na perspectiva da terceira pessoa (não “sinto” padrões
neurais). Isto indica-nos que os comportamentos tácticos congruentes com o
modelo de jogo poderão aparecer “apenas” no devido contexto do jogo sem
que deles haja uma apropriação permanente, ou seja, isso permite um uso
ecológico daquilo que pretendemos pois apenas aparece quando é realmente
necessário.
A consciência nuclear é um conceito fundamental no entendimento das
decisões em contextos como o Jogo de Futebol. Por que é que numa
determinada situação com todos os detalhes inerentes ao “aqui e agora” o
jogador age num determinado sentido? “A consciência nuclear constitui ela
própria o conhecimento, directo e sem qualquer verniz inferencial, do nosso
organismo individual no acto de conhecer e, por sua vez, esse conhecimento
nasce da representação do proto-si não consciente no processo de ser
modificado. Este imediatismo ainda não inferencial assiste à transição de
dados, de padrões neurais a imagens, e, porque estas últimas emergem em
plena espontaneidade – nesta que é uma consciência do pertinente
instantâneo – não podem ainda considerar-se em pleno jogo semiótico”
(Carmelo 2001 p. 4). O treino terá de alguma forma que ser o condicionador
desse imediatismo que acontecerá no jogo constituindo-se as imagens e os
padrões neurais como os princípios que queremos estabelecer na equipa
devendo por isso emergir no jogo em “plena espontaneidade”.

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Revisão da Literatura
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Relativamente à consciência alargada é definida por Damásio (2000, pp.


228-229) como “a preciosa consequência de duas contribuições que
possibilitam: primeiro a capacidade de aprender e, consequentemente, de reter
miríades de experiências previamente conhecidas através da consciência
nuclear. Segundo, a capacidade de reactivar esses registos de tal modo que,
enquanto objectos, também eles possam gerar um sentido de si e
consequentemente ser conhecidos.” Digamos que a consciência alargada
engloba o passado, o futuro antecipado e o aqui e agora.
Nash (1999) relata uma lesão cerebral ocorrida especificamente ao nível
do hipocampo sendo essa a causa de extinção da consciência alargada que
levou uma doente a deixar de formar novas memórias ou antever o futuro
passando a flutuar livremente num presente descontextualizado. Ora a
formação de novas memórias é um dos objectivos primordiais do treino, local
onde devem assentar as memórias do jogo.
Analisemos o seguinte exemplo que nos é trazido por Revoy (s/d):
“Suponhamos que Simone é uma pianista profissional. Quando dá um
concerto, as suas acções são essencialmente automáticas, não sendo nem
precedidas nem acompanhadas de intenções conscientes específicas.
Podemos pensar que ela não age livremente? É aí que negligenciamos todo o
seu trabalho meticuloso de preparação, as horas infindáveis que ela passou
para ter estes automatismos. Era da sua parte um sacrifício feito livremente e
deliberadamente consentido." Por aqui vemos que o treino é o fulcro de tudo,
mesmo daquilo que fazemos de forma automática a aparentemente
inconsciente.

2.2. … constituindo-se a prática, como princípio e fim da sua


transmissão …

“Escreveram-se tratados sobre estratégias e tácticas mas o jogador não


é um estudante universitário, é sobretudo um prático e só passa a acreditar
nesta estratégia ou naquela táctica se ela se lhe demonstra em campo.”
(Bella Gutman)

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A repetição sistemática dos princípios é, numa determinada concepção


metodológica assumida em todo este trabalho, o caminho para a devida
consecução do modelo de jogo criado, sendo este efectivamente um modelo
abstracto na medida em que cada treinador deve elaborar o seu de acordo com
aquilo que pretende ver implementado e com aquilo que tem em mãos. Esta
caracterização abstracta sustenta-se numa causalidade não linear que confere
grande dinâmica a todo o processo, contudo, segundo Frade (2004a) existem
três princípios que devem ser cumpridos nesta repetição sistemática: o
principio da progressão complexa diz-nos que o modo como se passa de uns
dias para os outros é diverso sendo que isso tem consequências evidentes.
Isto resulta do facto de nos diferentes dias se trabalharem diferentes coisas, ou
seja, há uma alternância, mas uma alternância horizontal em especificidade,
isto é, em cada dia trabalham-se coisas diferentes. Conforme se sabe as
contracções musculares são fundamentalmente definidas por três parâmetros:
velocidade de contracção, duração da contracção e tensão da contracção. Ora
a alternância horizontal tem isso em conta pois privilegia a dominância de
diferentes parâmetros nos diferentes dias. O princípio das propensões refere-
se ao facto de se contextualizar as coisas para que aquilo que se quer que
aconteça, aconteça mais vezes, ou seja, este princípio de jogo ou a articulação
de um princípio com outro, e isto está tudo balizado pela ideia de jogo que é
inicialmente uma configuração mental lata porque o próprio processo gerido por
uma determinada intervenção é que vai possibilitar o concretizar da sua
existência.
“Algumas intenções resultam de uma intenção consciente anterior à
acção e outras há que nascem no calor da acção sem que sejam
necessariamente premeditadas” (Oliveira, Amieiro, Resende & Barreto 2006, p.
201). Estas últimas adquirem no contexto do Futebol uma relevância tremenda
pois se muitas vezes a consciência chega já depois da intenção, então há que
criar hábitos de acordo com aquilo que queremos para que mesmo a decisão
inconsciente vá na maioria das vezes de encontro aos princípios estabelecidos.
Nesta perspectiva vemos que a comunicação não substitui de forma alguma a

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acção pois é nela que se criam os hábitos que queremos implementar. A


identificação verbal com os princípios não é portanto suficiente!
A este respeito, Ferraz (2005) dá-nos algumas ideias importantes para o
tema que queremos desbravar:
É necessário um “espaço” onde os comportamentos pretendidos possam
aparecer.
Os sujeitos da aprendizagem têm que estar conscientes dos
comportamentos em causa nas situações de aprendizagem (exercícios)
para poderem direccionar o “foco” do seu cérebro e regular as possíveis
emoções conflituantes.
Eles devem manter o “foco” do cérebro nesse comportamento durante a
exercitação e são necessários “lembretes” para auxiliar a manutenção
dessa focalização.
Até que esses comportamentos sejam aprendidos, se tornem hábitos,
tem que haver uma repetição sistemática que exige bastante tempo.
Quanto maior a sistematização mais eficiente se tornará o processo.
Os “mecanismos” inconscientes, entre os quais as emoções, quando
modelados por essa repetição sistemática tornam as decisões mais
eficazes e mais rápidas.
As emoções têm um papel decisivo na concentração e por consequência
na aprendizagem, devido aos marcadores somáticos, mas também na
formação das intenções inconscientes condicionando fortemente as
tomadas de decisão.
Depois de aprendidos os princípios, a exercitação deve ser mantida para
evitar que esse hábito regrida e a nova modelação emocional (cultura)
possa continuar a jogar a favor dos novos comportamentos.

A forma como se deve treinar para poder maximizar essa “transição de


dados, de padrões neurais a imagens” é outro dos objectivos deste trabalho e
aí parece-nos claro que a melhor forma de o fazer é incidir tanto quanto
possível na exercitação dos princípios a estabelecer, ou seja, o discurso oral e
a exercitação de outros factores que não os comportamentos tácticos
pretendidos, não sortirão efeitos na evolução qualitativa da organização

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colectiva pretendida se não forem acompanhados por uma prática devidamente


configurada para isso. Com Williams e Hodges (2005, p. 645) pensamos: “As
novas abordagens prescritivas devem-se em grande parte ao desenvolvimento
de teorias alternativas baseadas na psicologia ecológica e na teoria dos
sistemas dinâmicos. Estas perspectivas vêem o sujeito como um sistema
dinâmico e complexo com o padrão de comportamento observado a constituir-
se como o produto de constrangimentos impostos ao aprendiz. De acordo com
esta visão, a coordenação do movimento é atingida como resultado da
adaptação do sujeito aos constrangimentos que lhe são impostos durante a
prática.” A importância da prática deve por isso ser convenientemente
sublinhada indo isto de encontro ao cumprimento do princípio da repetição
sistemática anteriormente referido. Só a presença sistemática e permanente do
“jogar” que se pretende é que pode conduzir á sua consecução. As articulações
entre partes (princípios) devem concorrer para a globalidade do processo na
certeza que não é uma disjunção absoluta que, somada no final, resulta em
algo tão articulado e complexo como o “jogar bem”.
Guilherme Oliveira (1991) sintetiza a relevância da prática defendendo
que os exercícios são o principal meio para provocar adaptações nas várias
dimensões do rendimento. O mesmo autor, mais recentemente (2006), refere
que para uma equipa jogar de determinada forma há interacções a promover
mas que para jogar de forma diferente, essas interacções são distintas dando
claramente a entender que a prática deve ter em conta aquilo que se pretende,
ou seja, não se trata de uma prática universal e inócua mas sim de uma prática
subjugada a algo hierarquicamente superior – o Modelo de Jogo.

2.3. …que vai condicionar a espontaneidade decisional do “aqui


e agora”…

“Há várias formas de resolver os problemas e nós queremos que eles


sejam resolvidos com uma determinada lógica” (Guilherme Oliveira)

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Para ilustrar de uma forma algo genérica aquilo que pensamos sobre os
condicionalismos da espontaneidade decisional vejamos o que diz Gomes
(2007): “Não sei se por exemplo o lateral direito ao receber a bola vai jogar no
extremo ou vai jogar no central porque isso é que é variabilidade, é o aqui e
agora, a decisão do jogador. Mas está sobre-condicionada àquilo que
desejamos, portanto, nós queremos ter a posse de bola e o pivot esta a ser
marcado, ele não vai arriscar um passe para o pivot e então vai jogar para o
central. E está sobre-condicionado a quê? Ao querermos jogar em segurança
para mantermos a posse de bola. Não sei o que vai acontecer no aqui e agora
mas sei que a minha equipa vai ter determinados comportamentos pelo que
construo no processo de treino.” Este exemplo revela a presença de uma lógica
que sugere determinadas possibilidades de acção tendo em conta algo e o
facto de isso ser edificado no processo de treino vem de encontro à nossa
crença, importando agora perceber alguns mecanismos que permitem isso.
Durante um jogo de Futebol, os jogadores são constantemente
chamados a tomar decisões e quanto mais rapidamente o fizerem tanto melhor
pois o jogo está crescentemente mais rápido sendo que a velocidade de
execução distingue os melhores dos medianos. Se nos fiássemos no sentido
comum e nas imagens tradicionais, o “espírito” deveria transmitir as ideias com
uma rapidez que desafiava todas as leis da matéria. Na verdade, fenómeno
espantoso é que segundo nos diz Changeux (2002) é quase o contrário que
sucede pois o cérebro é lento, demasiado lento mesmo em relação a certos
fenómenos físicos de base. E acrescenta: “Com efeito, o sistema nervoso de
todos os organismos vivos, incluído o homem, propaga os sinais eléctricos a
uma velocidade bem menor que a da luz. Isso significa que os sinais neuronais
não exploram as ondas electromagnéticas que provêm das forças
fundamentais do mundo físico. Esta limitação física é uma herança que nos foi
legada através da evolução das espécies, os organismos primitivos”
(Changeux, 2002, pp. 23-24).
Num jogo de Futebol entre equipas de topo assistimos a movimentos
velozes, execuções em que parece que os jogadores adivinham as
movimentações dos companheiros e as decisões têm de ser tomadas de forma

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Revisão da Literatura
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espontânea e de acordo com o modelo de jogo estabelecido e treinado. Ora, a


estas exigências contrapõe-se a lentidão dos processos cerebrais daí que algo
tenha que estar por trás desta rapidez que caracteriza o Jogo de Futebol.
Treinar para criar pré-representações e assim aumentar a velocidade dos
acontecimentos fazendo-os depender de algo já previamente definido e não
somente da solução que o cérebro teria que encontrar e realizar para cada
momento do jogo é uma resposta que, de acordo com alguns autores,
explanaremos de seguida.
Changeux (2002, p. 57) afirma que a “capacidade de antecipar
representa um recurso essencial de predisposição para adquirir
conhecimentos.” Também Gomes (2006) refere que a realização regular dos
princípios de acção faz com que os jogadores criem uma familiaridade com
uma lógica de funcionamento que os leva a antecipar com maior eficácia e
menor esforço os efeitos dos comportamentos.
Segundo Changeux (2002) esta capacidade de antecipação da
recompensa foi registada por métodos electrofisiológicos ao nível dos
neurónios de dopamina do tronco cerebral no macaco. Estes estudos
revelaram que a activação dos neurónios dopaminérgicos não coincide com a
recompensa, mas antecipa-se na sequência da aprendizagem. Esta conclusão
vem de encontro às respostas que procuramos para explicar a rapidez de
processos que as grandes equipas de futebol evidenciam no seu “jogar”
contrariando a lentidão dos mecanismos cerebrais pois perante determinadas
situações de jogo, o jogador age, activando os neurónios dopaminergéticos, o
que lhe permite uma antecipação na sequência da aprendizagem garantida
pelo treino exaustivo desse “jogar” almejado. Gomes (2006) refere que essa
antecipação congruente com aquilo que se pretende só acontece quando já se
experimentou a mesma situação e esta se gravou como um hábito - como um
automatismo. Fica aqui bem explícita a importância do treino para que este
mecanismo que visa contrariar a lentidão do cérebro possa realmente
acontecer. Jacob e Lafargue (2005) contribuem também para uma melhor
compreensão da antecipação quando lembram que quando se produz um acto
voluntário, o cérebro produz uma cópia eferente que prediz instantaneamente
os efeitos da acção e pelo contrário quando o acto é realizado de forma

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involuntária, o cérebro não antecipa e é preciso algum tempo de latência para o


perceber. O treino adquire aqui relevância capital pois apenas podemos
predizer aquilo que já fizemos e conhecemos o resultado. Estas experiências
devem ter sede no processo de treino se este for Específico em relação aos
comportamentos tácticos desejados, ou seja, se treinamos os comportamentos
tácticos, conhecemos os seus efeitos e isso é um aspecto a ter em conta na
consecução do jogar pretendido.
Changeux (2002, p. 58) prossegue alargando esta explicação ás
decisões espontâneas (muito frequentes no Futebol) e ás mais ponderadas
afirmando que “se a dopamina contribui para a antecipação de uma
recompensa e para o tratamento do erro, ela pode também intervir na
adaptação das estruturas corticais superiores em condições novas pois os
neurónios dopaminergéticos (entre outros) ajudam-nos não apenas a motivar-
nos no caso de situações já conhecidas, mas também a resolver os problemas
e situações novas e a elaborar novos conceitos que as levam em conta.” Se
concordarmos que o Modelo de Jogo engloba tudo - vejamos o jornalista
António Tadeia (cit. por Pacheco 2005, p. 26) sobre o treinador José Mourinho:
“o modelo de jogo é a base de referência de todo o trabalho a desenvolver
desde o início da época até a data de entrada para férias” - facilmente nos
apercebemos que tudo se vai basear nele daí que mesmo situações
absolutamente novas encontrem uma resposta que de alguma forma se vai
basear nesse mesmo modelo de jogo, ou seja, existe uma diminuição da
margem de variabilidade da actividade espontânea. A este propósito, Gomes
(2006) lembra que adequabilidade da decisão é fundamental para resolver as
dificuldades impostas pelo adversário e por isso, as exigências colectivas e
individuais que se colocam são táctico-técnicas, isto é, reportam-se ao modelo
de jogo criado e treinado. Mais tarde, a mesma autora complementa aludindo à
natureza táctica do «jogar» que compreende uma organização colectiva que
por sua vez se repercute em cada intenção e decisão do jogador e portanto,
nas interacções.
Jacob e Lafargue (2005) mostraram que a consciência da intenção
imediata de executar um acto, precede sempre o acto cerca de 200 mseg.
sendo que nestas condições a única forma de salvaguardar o livre arbítrio é a

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de admitir que, este pequeno intervalo de tempo deixa a possibilidade à


vontade consciente de opor a sua recusa a esta acção preparada e de proibir
em última instância a sua realização material sendo que existem mesmo casos
em que o potencial de acção motriz não é seguido de acção, ou seja, se a
decisão do cérebro não é estritamente conforme as intenções prévias do
sujeito, resta-lhe a possibilidade de não agir. Isto leva-nos a crer que teremos
que treinar o cérebro a decidir de determinada forma, de acordo com os
princípios estabelecidos, ou seja, condicionar as intenções prévias que surgem
de forma inconsciente para que estas sejam congruentes com o modelo de
jogo criado. Esta necessidade é bem evidente quando sabemos que o tempo
que medeia a consciência da intenção e a acção propriamente dita se cifra
nuns escassos 200 mseg., o que nos indica de forma bem clara a relevância
das intenções prévias dos jogadores serem concordantes com a ideia de jogo
do treinador, caso contrário a tarefa em conseguir tal desiderato estará
condenada ao insucesso.
O cérebro comporta-se naturalmente como um sistema autónomo que
projecta em permanência informação em direcção ao mundo exterior em vez
de receber passivamente a sua marca. Changeux (2002) aponta que a
actividade intrínseca espontânea do cérebro é um dos seus componentes
principais, levando-nos a crer que ele não funciona como uma máquina que
trata passivamente informações vindas do exterior. O mesmo autor explicita,
num outro capítulo da mesma obra, que a actividade espontânea de conjuntos
de neurónios leva o organismo a continuamente explorar e testar o meio
ambiente físico, social e cultural, a apoderar-se de respostas e a confronta-las
com o que ele possui em memória e em consequência disso desenvolve
espantosas capacidades de auto-activação e logo de auto-organização. Da
mesma forma, dizemos nós que, tendo isto em conta, o jogador de futebol
recebe a toda a hora informação do “aqui e agora” momentâneo do jogo e
responde-lhe mais ou menos espontaneamente de acordo com aquilo que
treinou usando para tal as armas da actividade intrínseca e espontânea que o
seu sistema nervoso permite, indo buscar o comportamento adequado para
cada situação específica ás tais “respostas” e ”memórias” que nos fala
Changeux.

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Esta orgânica cerebral caracterizada pelo dinamismo leva Changeux


(2002, p. 43) a dizer que “as representações internas do cérebro, a sua
externalização e a sua vulgarização entre cérebros individuais no seio do grupo
social e o seu eventual armazenamento nas memórias não cerebrais estariam
na origem da evolução cultural.” Reportando-nos ao Futebol cremos que esta
evolução dirá respeito a uma ideia de jogo que será cada vez mais rica sendo
que vai ser crescentemente apreendida e armazenada pelos jogadores da
equipa pois tal como afirma Faria (2006, p. 17) “a filosofia de treino e de jogo
será sempre um processo impar de identidade própria. Munida de
conhecimentos, cresce e desenvolve-se de acordo com as necessidades que a
própria imprevisibilidade do processo exige. Torna-se complexa e cada vez
mais à imagem dos seus mentores. A necessidade obriga a pensar, reflectir e
divagar incansavelmente sobre uma esfera de novas ideias, problemas e
possíveis soluções. Sabendo, contudo, que a situação é provisória.
Rapidamente o processo fica mais rico, mais exigente e mais complexo, mas
sempre inacabado.”
Pensemos agora no paradigma de Thorndike que contrasta em absoluto
com concepções empiristas e mecanicistas pois postula que existe uma
relação causal entre o comportamento espontâneo, a acção do organismo
sobre o seu meio-ambiente e um dado acontecimento. Ora o comportamento
espontâneo que ocorre no jogo de Futebol deve provir realmente de “um dado
acontecimento” que terá que ser o Treino. Changeux (2002, p. 74) dá
seguimento a este raciocínio dizendo que a organização e o reforço da acção
estão sob o controlo de uma recompensa recebida do mundo exterior e
prossegue afirmando que “uma tal aprendizagem por tentativa e erro, em favor
de uma interacção activa com o ambiente, desenvolve-se a partir de um largo
repertório de impulsos instintivos ou de reflexos endógenos próprios da
espécie.” Desta forma temos que criar exercícios que “compensem” os
comportamentos desejados. Na mesma linha de pensamento segue Guilherme
Oliveira (2006) quando afirma que o jogador só consegue fazer determinado
comportamento bem se primeiro o compreender e depois, se achar que
realmente esse comportamento é benéfico, tanto para a equipa como para ele.
Será este o caminho para conseguirmos implementar a nosso ideia de jogo, ou

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seja, se criarmos exercícios com um grau de dificuldade tal que seja difícil,
arriscado ou não seja evidentemente vantajoso cumprir o estipulado, isso terá
um efeito contraproducente no enraizamento desse comportamento no cérebro
do jogador. Digamos que o jogador deve ver e sentir na prática a validade e
utilidade daquilo que lhe é requisitado. Jacob e Lafargue (2005) explicam a
importância da obtenção de sucesso na repetição dos comportamentos pois
quando há a intenção de agir, o córtex frontal tem, antes de mais, uma intenção
prévia e consciente da acção a cumprir, depois, o córtex parietal tem uma
intenção em acção não consciente, a área motriz suplementar cria uma cópia
de intenção e em função dos resultados do acto a esta cópia, a intenção acede
mais ou menos depressa à consciência. Quando se toma consciência do facto
que a intenção não se adapta à situação, isso conduz à criação de uma
estratégia melhor adaptada e esta adaptação é de capital importância no
processo de treino pois proporciona uma adequação e aproximação crescente
àquilo que se pretende.
Bechara, Damásio, Tranel e Anderson (1998) procuraram testar uma
tese onde a memória e a tomada de decisão estariam dissociadas dentro do
córtex pré-frontal do ser humano. O trabalho exaustivo destes investigadores
induziria muitas interrogações na cabeça dos treinadores se a sua tese fosse
absolutamente confirmada. Para que serviria o Treino se assim fosse? Na
verdade se a função cognitiva da memória estivesse completamente dissociada
da função cognitiva da tomada de decisão importaria questionar a relevância
do processo de treino na aquisição de um padrão de jogo regular: “Este
mecanismo, contudo, não explica como é que estas representações são
seleccionadas para a acção. Por isso foi proposto que um outro mecanismo
marca as várias opções e cenários guardados temporariamente na memória
atribuindo-lhes uma conotação positiva ou negativa, sendo que depois se dá a
ordenação e avaliação das várias opções sendo a mais vantajosa escolhida
para a acção. Este mecanismo que sublinha a selecção das boas e más
opções é aquilo a que nos referimos como a tomada de decisão” (Bechara et
al., 1998, p. 429). Felizmente a tese proposta não foi confirmada chegando-se
à conclusão que problemas na área do cérebro relacionada com a memória
afectam directamente a tomada de decisão o que vem de encontro aquilo que

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pretendemos mostrar e explicar neste trabalho. “A memória de trabalho não


está dependente de eventuais falhas na tomada de decisão, ou seja, os
sujeitos podem agir normalmente na presença ou ausência de falhas na
tomada de decisão. Por outro lado, a tomada de decisão parece ser
influenciada pelo funcionamento da memória de trabalho, isto é, a tomada de
decisão é afectada por uma memória de trabalho danificada” (Bechara et al.,
1998, p. 434).
Gaiteiro (2006) diz-nos que a finalidade do modelo (referindo-se aos
modelos mentais que nos ajudam a desenvolver a acção) é a de produzir
esquemas de acção substancialmente pertinentes sobre o futuro, no sentido de
conduzir as acções presentes. É precisamente sobre isto que falaremos no
próximo ponto.

2.4. …com permanente subordinação aos Princípios de Jogo


como “objectos mentais”…

“A acção do meio ambiente sobre o cérebro não se resume a dar ao


cérebro instruções de maneira passiva e directa através da actividade evocada,
como se supunha no esquema empírico e associacionista clássico. Pelo
contrário, a hipótese proposta é que a aquisição de conhecimentos é indirecta
e resulta da selecção de pré-representações.” (Jean-Pierre Changeux)

Como ponto prévio afigurasse-nos importante lembrar que a aplicação


prática dos princípios de jogo é feita por pessoas, ou seja, o treinador em
conjunto com os jogadores levam a efeito a ideia de jogo do treinador que se
consubstancia em determinados princípios, sub-princípios e sub-sub-princípios.
Sem as pessoas isto não existe sendo por isso um conceito eminentemente
prático (Frade, 2005).
Castelo (1994) faz um resumo daquilo que são princípios de jogo para
alguns autores:

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- “os princípios tácticos de base, são durante o jogo as ligações comuns


a todos os espíritos, estabelecendo os pontos de referência sobre os quais a
imaginação, o génio, se deverão apoiar para elevar o nível de jogo” (Poulain cit.
por Castelo, 1994, p. 155).
- “os princípios são bases comuns para que os jogadores “falem” a
mesma língua, permitindo exprimirem-se num estilo diferente” (Franz cit. por
Castelo, 1994, p. 155).
- “os princípios são regras de acção representadas pelo pensamento e o
meio de os jogadores explicarem racionalmente os seus comportamentos”
(Mialaret cit. por Castelo, 1994, p. 155).
- “os princípios são as condições a respeitar e os elementos a tomar em
consideração para que o comportamento seja eficaz” (Grehaigne cit. por
Castelo, 1994, p. 155).
Em todas estas definições encontramos um tronco comum referente a
uma base de referência que deve orientar de forma “aberta” o comportamento
táctico dos jogadores, ou seja, os princípios de jogo são vistos por estes
autores como guias de acção.
A propósito da definição de princípios de jogo, Guilherme Oliveira (2006)
opina que o princípio é o início de um comportamento que um treinador quer
que a equipa assuma em termos colectivos e os jogadores em termos
individuais. Importa assim dissecar que mecanismos estarão eventualmente
por detrás deste potenciamento de determinados comportamentos.
Damásio (2000) alerta para a importância da codificação de sentimentos
através das emoções pois estas seriam um conjunto de reacções corporais
face a certos estímulos enquanto que os sentimentos nascem quando se tem
consciência dessas emoções corporais, quando estas são transferidas para
certas zonas do cérebro onde são codificadas sob a forma de uma actividade
neuronal. Analogamente os princípios de jogo devem enraizar-se no imaginário
dos jogadores através da vivenciação dos comportamentos desejados no
treino, criando-se assim as emoções ajustadas para que isso surja de uma
forma natural.
Changeux (2002, p. 58) traz-nos uma noção que se revela importante no
âmbito do nosso estudo, o conceito de objectos mentais: “Estes referem-se às

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representações internas que indicam que um certo objecto do mundo exterior


deve ser a causa do mesmo efeito comportamental - ou acção - sobre o
mundo, em todo o indivíduo que possua esta representação. Uma
representação definir-se-ia assim pela sua acção causal sobre o
comportamento e mesmo sobre os estados mentais internos.” Daqui podemos
inferir que a ideia de jogo que o treinador tem para a sua equipa pode
equiparar-se a um objecto mental. Essa ideia consubstancia-se no modelo de
jogo e é transmitida através de exercícios que visam dotar todos os jogadores
com os comportamentos concordantes com esse modelo estabelecido. Ora se
todos os indivíduos possuírem essa “representação” terão os “efeitos
comportamentais” congruentes com aquilo que o treinador pretende.
O mesmo autor prossegue afirmando que “a actividade espontânea
desempenha um papel central, contribuindo para uma espécie de «gerador de
diversidade» de tipo darwinista onde as pré-representações corresponderiam
aos estados de actividade dinâmicas, espontâneas e transitórias de populações
de neurónios capazes de formar combinações múltiplas” (Changeux, 2002, p.
70). A importância do treino na aquisição da ideia de jogo por parte dos
jogadores está bem patente quando Changeux remata dizendo que “a
variabilidade intrínseca das redes neuronais resulta em parte das modalidades
do seu desenvolvimento”, ou seja, o resultado do tal “gerador de diversidade” é
fortemente condicionado pelo regulador externo que constitui o treino
conjuntamente com o treinador senão vejamos: “as pré-representações
mobilizariam, de maneira combinatória, estruturas inatas (com as diversas
modalidades sensórias e/ou zonas motoras) bem como distribuições neuronais
saídas de experiências anteriores” (Changeux, 2002, p. 72). Importa sublinhar
a noção de “sistema regulado” e para que o sistema seja realmente regulado
por algo é preciso regulá-lo e isso não está ao alcance de todos. Uma equipa
de futebol (entenda-se sistema) é exteriormente regulada pelo treinador que,
como regulador externo, deve fazer surgir uma identidade comportamental na
equipa de modo a que esta se reja por princípios comuns sendo essa a sua
principal função. Barbosa (2003), vem ao encontro do que está até aqui
descrito quando lembra que o conceito de Modelo arrasta consigo a existência
de um responsável pela sua construção, a intenção de conjecturar possíveis

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Revisão da Literatura
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realidades, a relevância dada a determinados aspectos que o modelizador


aspira e o estabelecimento de relações entre os elementos de um conjunto.
A definição de princípios de acção para os quatro momentos de jogo
conduzirá a um determinado padrão de jogo mas para tal há que haver uma
perfeita articulação e congruência entre esses mesmos princípios. A este
propósito, Kelso (1995, p. 5) refere algo que nos parece pertinente, quando diz
que qualquer princípio relativo à formação de um padrão dinâmico situa-se
entre dois problemas básicos. O primeiro refere-se à forma como um padrão é
construído a partir de um enormíssimo leque de opções. O segundo diz-nos
que qualquer princípio para a formação de um padrão deve ter em conta, não
só o próprio princípio, mas sim como vários princípios são produzidos para o
padrão final se acomodar às diferentes circunstâncias. Ora o primeiro problema
é fulcral para o treinador de futebol pois a criação de um modelo de jogo deve
ter em conta um sem número de factores como o conhecimento do clube, da
equipa e do respectivo nível de jogo, as características dos jogadores
individualmente ou mesmo os objectivos a atingir daí que a tomada de opções
na definição do modelo de jogo seja logo à partida problemática e como tal
deve ser muito bem ponderada. Já no que respeita ao segundo problema,
também ele se revela pertinente na medida em que os diversos princípios de
jogo estão articulados entre si e como tal dependem-se mutuamente. Os sub e
sub-sub-princípios que dão corpo aos grandes princípios devem reger-se por
regras de continuidade daí que na definição de cada um deles devam estar
presentes os demais.
Tendo isto em conta surge-nos o conceito de Especificidade como algo
nuclear para que o modelo de jogo criado pelo treinador seja espelhado em
campo no “jogar” da sua equipa, ou seja, para isso acontecer há que trabalhar
especificamente. Oliveira et al. (2006) abordam o conceito de Especificidade
afirmando que tem a ver com a necessidade da melhoria de todos os princípios
de jogo e isso só se consegue quando o processo acontece tendo como
preocupações as melhorias singulares relativas a cada princípio de jogo. O
treino sobre os princípios de jogo respectivamente desintegrados (integrados)
daquilo (naquilo) que é o “jogar” que se pretende, é que é o cumprir
operacional da especificidade. A especificidade é a incidência repetida no

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Revisão da Literatura
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treinar de todos os princípios que o jogar contém. De todos, cada um a seu


tempo. Daí a necessidade da vivenciação hierarquizada (Frade, 2004a). Esta
definição de Especificidade mostra de forma bem clara o entendimento que se
tem deste termo sob a perspectiva da Periodização Táctica. Ressalve-se assim
a confusão entre Especificidade e reprodução do jogo num exercício de jogo
formal 11x11 pois sendo esta a forma de jogo que temos em competição não
implica que esse seja o caminho para fazer surgir aquilo que queremos nesse
11x11 pois para isso e segundo vários autores (Faria, 1999; Oliveira et al.,
2006; Oliveira, 2004) temos que ver a Especificidade como o acima exposto, ou
seja, tem que haver desintegração dos princípios como partes do “jogar”
pretendido. Digamos que as interacções do jogo resultam das relações dos
jogadores e que devem ser modeladas para fazer emergir a dinâmica colectiva
que pretende. Assim, as relações e interacções dos jogadores inscrevem-se
numa organização colectiva ou seja, numa lógica que contextualiza esses
comportamentos.

2.5. … que passam a fazer parte da memória de modo a serem


evocados sempre que necessário…

“O processo de categorização pode ser espontâneo, resultando de uma


experiência desorganizada do individuo, ou ser cultural e organizado de acordo
com regras aprendidas formalmente, através do treino.” (Alexandre Caldas)

A memória é a capacidade de reter, recuperar, armazenar e evocar


informações disponíveis, seja internamente, no cérebro (memória humana),
seja externamente, em dispositivos artificiais (memória artificial). A memória
humana focaliza coisas específicas, requer grande quantidade de energia
mental e deteriora-se com a idade. É um processo que conecta pedaços de
memória e conhecimentos a fim de gerar novas ideias, ajudando a tomar
decisões diárias. Memória é a base do conhecimento e como tal, deve ser

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Revisão da Literatura
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trabalhada e estimulada pois é através dela que damos significado ao


quotidiano e acumulamos experiências para utilizar durante a vida (Dicionário
Enciclopédico Larouse, 1990). Acreditamos que o mesmo se passa no treino
em relação ao jogo, ou seja, aquilo que se vivencia no treino será utilizado no
jogo sendo que para tal a memória terá que exercer o seu poder de retenção
para que as experiências vividas não se diluam.
A acção adaptada ao contexto, apta a reagir segundo os imprevistos,
necessita de apelar à memória e à planificação (Jacob, 2005). Vejamos o que
nos diz Caldas (1999, p. 131) a este propósito: “O que julgamos saber hoje é
que a aprendizagem parece ter por base biológica, mecanismos de facilitação
da transmissão sináptica. Este processo pode ser facilitado pelo uso repetido
da transmissão, que criando hipersensibilidade dos receptores, que passam a
responder a doses menores de mediador, quer pela própria criação de novos
receptores ou, ainda, através da maior produção de mediador.” Fica assim
evidente que o mecanismo da codificação de algo está directamente
relacionado com a repetição sistemática que já falamos anteriormente aquando
do tratamento da importância da prática.
O mesmo autor continua referindo que “quando o cérebro processa uma
determinada informação, activa sequencialmente, e em paralelo, um complexo
arranjo de células nervosas ligadas entre si. Existe pois um componente
temporal de sequenciação de entrada em actividade de operadores, e um
componente espacial de ocupação topográfica que tem a ver com a localização
desses operadores no cérebro. Podemos aceitar que quando um indivíduo se
confronta duas vezes com uma situação idêntica, nas duas vezes activará as
mesmas estruturas, já que a activação das células nervosas é um processo
desencadeado pelas ocorrências do mundo exterior que podemos quase
considerar um processo adaptativo automático. É precisamente esse percorrer
do mesmo padrão de activação que dá ao indivíduo o sentido da familiaridade,
isto é, o reconhecimento. Por outro lado o cérebro humano tem capacidade
para, por vontade própria, pôr em actividade as regiões que correspondem ao
evento anteriormente vivido e dar origem assim ao processo de evocação”
(Caldas, 1999, p. 132). Fica aqui evidenciada a relevância primordial do Treino
naquilo que será o “jogar” de uma equipa pois será ele o responsável pelo

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“sentido da familiaridade e reconhecimento” que conduzem aos mesmos


padrões de activação no que às decisões diz respeito.
Caldas (1999, p. 133) prossegue, reforçando o interesse do treino na
aquisição de memórias apontando a importância do processo de categorização
e segmentação da informação processada para que esta possa ser arquivada
da forma mais conveniente e salientando que “o processo de categorização
pode ser espontâneo, resultando de uma experiência desorganizada do
individuo, ou ser cultural e organizado de acordo com regras aprendidas
formalmente, através do treino.” Reportando-nos ao Futebol estas regras dirão
respeito aos princípios de jogo sendo que esta lógica se demarca claramente
de um funcionamento mecânico. Frade (2005) sustenta que os
comportamentos que queremos que aconteçam são condicionados à existência
anterior de uma forma que vai dar origem a esses comportamentos. Esta
definição quase elementar de treino, encerra em si muitas particularidades que
uma modelação sistémica e atenta não pode sonegar. Uma dessas
particularidades refere-se ao facto de a estrutura de acção não dever ser
mecânica. Se a sujeição duma equipa a determinados princípios vai gerar uma
dinâmica específica é porque estamos perante um mecanismo. Só que o
mecanismo não pode ser mecânico, não deve ter uma estrutura absolutamente
funcional, desconsiderando a variabilidade das circunstâncias que a vai
sustentar.
Passando agora à descrição dos vários processos que têm sido
relacionados com a memória, trataremos os três mecanismos básicos que a
compõem segundo Caldas (1999, p. 133): “O primeiro designa-se por
“codificação” e corresponde ao arranjo da informação à medida que entra no
sistema, de forma a adequar-se à sua experiência prévia e com ela passar a
interagir. Trata-se de um processo muito dependente da experiência prévia de
cada indivíduo. O hipocampo tem um papel determinante como porta de
entrada e manutenção da informação em espera à medida que se vão
activando as regiões do cérebro que têm analogias com a informação recebida
e que com ela vão emparceirar.” A experiência individual torna-se assim o
fulcro da codificação da informação e o exemplo que nos é dado ajuda a
ilustrar isso mesmo: “Imaginemos que damos a dois indivíduos um número de

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telefone para decorar. Imaginemos que esse número só difere no algarismo


final do número de telefone do primeiro indivíduo, mas que não tem nada de
familiar para o segundo. O processo de codificação vai ser claramente diferente
para cada um deles. O primeiro codificará a diferença, enquanto o segundo
codificará todo o número.” Logicamente que codificar apenas a alteração de
algo que já conhecemos a matriz é bem mais fácil que codificar algo que é do
nosso absoluto desconhecimento. Isto pode-nos ajudar a compreender o
porquê de jogadores de topo por vezes chegarem a novos clubes e
encontrarem dificuldades em se impor, sendo uma explicação possível a
dificuldade em codificar um modelo novo com poucas semelhanças
relativamente ao anterior. As tão propaladas dificuldades de adaptação podem
ser causadas por diferenças culturais no que aos diferentes “jogares” diz
respeito (o bom jogador em Itália pode não o ser em Inglaterra porque pode
demorar muito tempo a codificar um estilo de jogo e fazer desaparecer o antigo
que já estava enraizado). Por outro lado compreendemos agora melhor, o facto
de alguns treinadores terem a preocupação de ir buscar jogadores a países
culturalmente próximos (ou até ao mesmo país) pois isso permitirá uma
codificação do modelo de jogo mais fácil e rápida.
O mesmo autor que nos tem guiado neste capítulo da memória faz
referência à precocidade das aprendizagens como factor relevante na sua
utilização na idade adulta dizendo que “o suporte biológico da aprendizagem
nos primeiros anos de vida é provavelmente mais estável e talvez estruturante
para o que vier a ser apreendido depois. Por outro lado, variáveis como a
frequência de utilização também se têm revelado de importância para o arquivo
cerebral da informação. O que é mais frequentemente utilizado tem mais
suporte que aquilo que raramente se usa.” Se fizermos uma reflexão sobre isto
aplicado ao futebol percebemos a importância da formação naquilo que deve
ser o entendimento do Jogo na sua essência. O sucesso de escolas de
formação como a do Ajax encaixa nesta lógica de estimulação precoce duma
ideia de jogo própria treinada desde bem cedo pois isso facilitará a sua
evocação na idade adulta.
Quanto à evocação “corresponde ao processo que nos permite ir buscar
a informação de que dispomos sendo que é o contexto da situação que nos

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permite fazer a evocação” (Caldas, 1999, p. 134). Logicamente que o “aqui e


agora” do jogo é que vai indicar a evocação do comportamento congruente
com o modelo de jogo.
Finalmente, pode considerar-se o processo de reconhecimento que
consiste em confrontar um evento com a experiência prévia e considerá-lo
familiar, ou não. Daqui inferimos que as situações de treino (exercícios) devem
ser tão ricas quanto possível para que ao longo do jogo, todos os
comportamentos possam considerar a “experiência prévia”, isto é, o modelo de
jogo treinado.
Ainda Caldas (1999, p. 139) refere sumariamente um conceito de
memória já abordado por nós, o conceito de priming tratando-se da
“conservação da informação em memória inconsciente de forma a condicionar
o comportamento seguinte.” Por seu turno, Gomes (2006) fala nos mesmos
termos mas de uma forma mais específica relativamente ao nosso estudo
lembrando que a prática de determinados princípios de acção faz com que os
jogadores e equipa adquiram uma memória que os direcciona nas escolhas,
ainda que seja inconscientemente.

2.6. … para haver a manifestação de um padrão de


comportamento regular que se pretende eficaz…

“Quando falamos sobre padrões, recuamos das coisas em si mesmas e


concentramo-nos nas relações entre elas.” (Scott Kelso)

A dinâmica comportamental de uma equipa deve assentar num padrão


de jogo consubstanciado pelos princípios e respectivas relações pois segundo
Pinto (1996, p. 53) “ é a existência de uma idêntica cultura organizacional que
distingue onze jogadores de uma equipa, e é uma cultura organizacional
específica que distingue duas equipas diferentes.” A organização dos
jogadores configura as interacções da equipa e por isso, leva a determinadas

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regularidades que a identificam. Deste modo, um sistema sem organização


resulta numa agregação aleatória de acontecimentos sobre os quais os
jogadores e treinador têm maiores dificuldades em interagir (Garganta & Cunha
e Silva, 2000).
Vejamos o que nos diz Faria (2006, p. 17) sobre as diversas vertentes
da operacionalização: “Operacionalizar uma filosofia é dar corpo à inteligência,
à imaginação e à criatividade. É a responsabilidade de uma ligação umbilical
entre o exercício, a referência ideológica e o seu inventor. A evolução dá-se ao
ritmo de cada exercício, de cada treino, de cada jogo e de cada competição.
Percorre-se à medida que se constrói. O objectivo será sempre o mesmo:
tornar cerebral a dinâmica comportamental que é a organização, que é a
filosofia, que é a emoção. Criar intenções e hábitos. Tornar consciente e depois
subconsciente um conjunto de princípios de forma a exponenciar naturalmente
uma determinada forma de jogar”, ou seja, conforme recorda Guilherme
Oliveira (2004) o comportamento do jogador tem que se inserir dentro de um
determinado padrão de jogo isto é, dentro de uma organização pré-definida.
Stacey (2005) define fractal como a propriedade de fracturar e
representar um modelo caótico em sub-modelos, existentes em várias escalas
que sejam representativos desse modelo, isto é, um fractal é uma parte
invariante ou regular de um sistema caótico que pela sua estrutura e
funcionalidade consegue representar o todo, independentemente da escala
onde possa ser encontrado. Os fractais são sempre representativos do todo
pois têm uma constituição “genética” semelhante ao todo onde foi observado
(Guilherme Oliveira, 2004). Apesar da variabilidade que podem mostrar,
possuem uma grande regularidade estrutural e funcional ao longo das escalas,
ou seja, detêm uma “invariância de escala” (Stacey, 1995). “A “invariância de
escala” acontece porque nos sistemas caóticos com organização fractal, existe
uma “homotetia interna” que faz com que as formas desse sistema ao longo
das diferentes escalas, tenham morfologia igual, ou seja, é uma característica
que permite reconhecer que os jogos de diferentes equipas assumem
características também diferentes, isto porque cada equipa, através de
processos de auto-organização e da sua organização fractal, vai criando
invariantes, que lhes são próprias dentro do contexto de variabilidade e

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aleatoriedade do jogo (Cunha e Silva, 1999; Guilherme Oliveira, 2004). A


alusão à importância do processo de treino nisto que é a manifestação regular
de um padrão de jogo é-nos trazida por Guilherme Oliveira (2004, p. 146)
quando afirma que “o processo de treino deve ser construído através de uma
organização fractal no sentido de se manifestarem através de
invariâncias/padrões fractais nas diferentes escalas de manifestação –
invariância de escala – tanto ao nível dos padrões de comportamento como ao
nível da produção do processo.” O padrão de comportamento diz respeito ao
modelo da Equipa, o padrão dos comportamentos colectivos, o padrão dos
comportamentos sectoriais, o padrão dos comportamentos intersectoriais, o
padrão dos comportamentos individuais e o padrão das respectivas
interacções. Quanto à produção do processo Guilherme Oliveira (2004, p. 130)
realça o padrão semanal, o padrão diário e o padrão dos exercícios propostos
sendo que é a conjugação de todos estes padrões que vai permitir que o
carácter caótico do jogo seja organizado, reconhecido e transformado o mais
possível nas invariâncias/padrões Específicos da equipa. Do mesmo modo,
Weiss (cit. por Tani & Corrêa, 2006 p. 15) lembram que “um sistema tende a
manifestar propriedades emergentes, isto é, a interacção pode resultar no
aparecimento de características não preditíveis com base no conhecimento das
partes individualmente.”
Qualquer que seja o modelo de jogo criado, este será sempre
constituído por princípios, sub-princípios e sub-sub-princípios para cada um
dos 4 momentos do jogo o que implica a existência de um sem número de pré-
representações respeitantes á globalidade do modelo. Assim torna-se
pertinente perceber como é que é feita a avaliação da situação em cada
instante do jogo para a partir daí surgir o comportamento adequado. A este
respeito Changeux (2002, p. 74) diz-nos que a adequação da pré-
representação face ao meio ambiente pode basear-se em dois mecanismos
plausíveis:
“O primeiro é a selecção pela recompensa. Este mecanismo seria
utilizado de preferência para a avaliação das acções.” Segundo este
mecanismo os sinais recebidos do meio ambiente mobilizam certas vias
neuronais que intervêm na motivação e/ou no prazer da recompensa. “As

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recompensas recebidas do mundo exterior desencadeiam a libertação de


substâncias neuromoduladoras como a dopamina ou a acetilcolina ou mesmo
as duas ao mesmo tempo. A coincidência no tempo da pré-representação
provocada de maneira interna e da resposta positiva evocada de maneira
externa levaria a estabilizar a hipótese adequada.” Ao nível molecular poder-
se-á dizer que estas moléculas (receptores de neurotransmissores post-
sináticos) detectam o sucesso ou fracasso de uma dada estratégia motora.
Aqui encontramos uma evidente analogia com os marcadores somáticos de
que nos fala Damásio (1996) mas dele falaremos mais adiante. O mesmo
Damásio (2006, p. 14) diz que as emoções relacionadas com a recompensa
como “espanto, admiração e virtude” “alimentam os tecidos neurobiológicos –
e, metaforicamente, os tecidos mentais – e por isso mesmo ajudam a manter a
vida e a dar-lhe significado.” Na mesma linha de pensamento seguem Surgrue
et. al. (2005, p. 365) quando nos recordam que “os psicólogos há muito que
apreciam a influência das recompensas na tomada de decisão dos mamíferos
mais elevados.”
Prosseguindo com Changeux (2002, p. 75) vemos que “o segundo
mecanismo é a selecção por ressonância e baseia-se na correspondência
entre a actividade perceptiva suscitada pelos estímulos sensoriais e a pré-
representação existente no momento da experiência sensorial”
Para o proponente destes dois mecanismos eles “provocariam a
estabilização – o armazenamento – de significações ou de conhecimentos sob
a forma de mapas de relações funcionais materializadas por uma rede neuronal
distribuída e variável. Um modelo reduzido e simplificado, neuronal e logo
físico, da realidade exterior seria assim seleccionado e memorizado no cérebro.
Estes objectos de memória existiram realmente no nosso cérebro sob formas
latentes compostas por traços neuronais estáveis. De qualquer forma, devido à
selecção, o número de pré-representações deveria diminuir ao longo da
experiência sobre o mundo” (Changeux, 2002, p. 75). Transportando isto para
a realidade específica que nos interessa temos que um Modelo de Jogo como
um objecto de memória que existe realmente no cérebro dos jogadores de
forma latente composto por traços neuronais estáveis afigura-se-nos como algo
que faz todo o sentido e explica o porquê de conseguirmos distinguir diferentes

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“jogares” das diferentes equipas. Este “jogar” refere-se ao plano macro pois
conforme diz Stacey (1995), a antecipação do plano micro será uma tarefa
jamais possível de coincidir com o que na realidade acontecerá no futuro. Note-
se também que quando Changeux (2002) diz que o número de pré-
representações deveria diminuir ao longo da experiência sobre o mundo e isso
remete-nos para a melhoria gradual da consecução do modelo ao longo da
época daí que o factor temporal também deva ser tomado em consideração.
Voltando a Damásio, ele ajuda-nos a perceber a importância da prática e
o porquê desta adquirir tanta importância na aquisição de um padrão de jogo
regular e eficaz. Por que será que ao repetir sistematicamente um
comportamento (entenda-se princípio) desejado, ele se vai enraizar e aparecer
devidamente enquadrado na organização colectiva da equipa? Uma das
respostas é-nos dada por Damásio (1996) com a teoria dos marcadores
somáticos onde podemos encontrar muitas pontes com Changeux (2002). Este
autor desenvolveu a hipótese do marcador somático, na qual emoções e
sentimentos desempenham papel preponderante na tomada de decisões, não
perturbando-as, como na visão tradicional, mas, em vez disso, favorecendo –
ainda que, na maioria das vezes, de modo inconsciente – a obtenção de
resultados favoráveis, mesmo diante de algumas daquelas decisões que nos
parecem, à primeira vista, estritamente racionais. "Essas emoções e
sentimentos foram ligados, pela aprendizagem, a resultados futuros previstos
de determinados cenários. Quando um marcador somático negativo é
associado a um determinado resultado futuro, a combinação funciona como
uma campainha de alarme. Quando, ao contrário, é justaposto um marcador
somático positivo, o resultado é um incentivo" (Oliveira et al. 2006, p. 205-206).
A base funcional para este "sistema de preferências" forma-se pela
modificação de padrões neurais inatos que têm por objectivo garantir a
sobrevivência. Da mesma forma como o organismo tende a procurar o prazer e
evitar a dor, tentará atingir esses fins em situações sociais. Os marcadores
somáticos dependem da aprendizagem, associando determinados tipos de
entidades ou fenómenos a sensações agradáveis ou desagradáveis. "Os
marcadores somáticos não tomam decisões por nós. Ajudam o processo de
decisão dando destaque a algumas opções, tanto adversas como favoráveis, e

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eliminando-as rapidamente da análise subsequente" (Damásio, 1994, p.186).


Por outras palavras, reduzem o leque de opções, sem o que estaríamos
condenados a uma interminável e infrutífera - embora estritamente racional -
análise de prós e contras diante da mais simples das escolhas, o que, no jogo
de futebol não seria de modo algum possível. Ainda o mesmo autor afirma que
a maioria dos marcadores somáticos foi criada nos nossos cérebros durante o
processo de educação e socialização, pela associação de estímulos a estados
emocionais. Mas para que se constituam em mecanismos adaptativos, os
marcadores somáticos requerem que tanto o cérebro como a cultura sejam
minimamente saudáveis; quando isso não ocorre podemo-nos deparar com
efeitos contrários aos desejáveis. A analogia com o mecanismo da recompensa
(Changeux, 2002) é inevitável o que reforça ainda mais a aceitação desta
teoria.
Para sumariar o entendimento que temos daquilo que é a manifestação
de um padrão de comportamento regular por parte de uma equipa de futebol,
citámos Gomes (2007, p. 16) que nos dá uma perspectiva eminentemente
prática daquilo que sustentamos até aqui: “O facto do jogo ser um sistema
caótico é porque é uma dinâmica singular que tem determinadas
características. Falámos em princípios porque cada jogo é um jogo mas se
você tiver determinadas características a jogar elas representam-se me
regularidades que identificam a equipa. O jogo acontece independentemente
de se criarem rotinas. Imagine-se um treinador que reúne 10 jogadores e
coloca-os a jogar. Se não disser nada, eles passado um tempo criam as suas
próprias rotinas, há um entrosamento natural que com o tempo e a
regularidade desse entrosamento, a equipa passa a ter uma determinada
configuração, digamos que uma identidade. Agora essa identidade natural
pode não ser natural, isto é, o treinador pode fazer com que eles criem uma
identidade o mais cedo possível. Esse é o trabalho de um treinador!”

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2.7. …graças à evolução individual de cada jogador


sustentada em referenciais eminentemente colectivos…

“O mais importante é uma filosofia que todos os jogadores têm que


conhecer, saber como têm que jogar, e que cada jogador tenha a sua própria
ideia de jogo” (Van Gall)

“Os princípios de jogo estão perfeitamente definidos e todos os


jogadores sabem como reagir em simultâneo.” Mourinho (2003). Isto remete-
nos para uma lógica de resolução dos problemas que, individualmente deve
existir e ser perspectivada em termos colectivos respeitando algo
hierarquicamente superior. Será isto que tentaremos perceber neste capítulo
sempre sob as influências do processo de treino.
Sendo o Futebol um jogo desportivo colectivo, uma equipa é constituída
por vários jogadores mas o modelo de jogo criado não depende dos eleitos
para o pôr em prática de jogo para jogo uma vez que ele é único e todos
devem estar dotados com os mecanismos necessários à sua consecução. Este
é um aspecto que colhe a atenção de Damásio (2006, p. 12) quando afirma
que o que o intriga no funcionamento de uma equipa de Futebol “tem a ver com
a forma como múltiplos executantes se comportam em torno de um projecto
singular como se fossem uma entidade única, embora mantenham as suas
individualidades.” Também Guilherme Oliveira (2004) nos dá o seu contributo
sobre esta temática dizendo que a definição do modelo de jogo de uma equipa,
dos respectivos princípios e sub-princípios configuram comportamentos e
padrões de jogo que devem ser assumidos em cada um dos momentos de jogo
e na sua inter-relação. De uma forma mais abstracta mas nem por isso menos
rica, Tani e Corrêa (2006) abordam este assunto com grande clarividência
definindo um sistema como um conjunto de elementos em interacção ou ainda
como uma unidade complexa constituída de subunidades que cooperam e
preservam a sua configuração de estrutura sendo esse o caso do Futebol uma
vez que envolve os vários jogadores em interacção.

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O filósofo Jonh Locke (cit. por Changeux 2002, p. 76) já afirmava que “o
nosso conhecimento só é verdadeiro na medida em que há conformidade entre
as nossas ideias e a realidade das coisas.” De um ponto de vista teórico e
segundo Changeux (2002) “isto fornece uma primeira resposta a um problema
difícil: como explicar a constância dos conhecimentos armazenados, apesar da
diversidade e da variabilidade das redes neuronais de indivíduo para indivíduo.”
Araújo (2003, p. 90) caracteriza o jogo de Futebol como “um sistema
constituído pelos aspectos ambientais, constituído também pela tarefa a
desempenhar com as suas estratégias e com as suas regras e constituído
pelos jogadores que funcionam autonomamente (com a sua morfologia,
fisiologia, cognição, emoção, etc.), apesar de coordenados entre si.” As
características de cada um devem convergir para um objectivo comum daí que
a coordenação entre todos seja imprescindível para levar a cabo o Modelo de
Jogo.
A ênfase dada ao indivíduo deve sempre ter um referencial colectivo
senão veja-se o que diz Frade (2004b, p. XXVII): “Não há treino mais
individualizado ou repercussões do treino mais individualizadas do que aquelas
que permite a Periodização Táctica. Porque a primeira preocupação que tem é
eleger os princípios e os princípios são levados a efeito pelos jogadores, os
jogadores em determinadas posições e determinadas funções. Portanto se são
posições e funções diversas, embora complementares, o que se repercute em
cada uma dessas posições ou funções é diverso das demais portanto é
individualizado. De facto eu até uso um termo... para a equipa aparecer, de
facto, é fundamental que a alteração individual se registe e a alteração
individual face à natureza do fenómeno tem que ser autónoma.” E mais à frente
remata dizendo “...essa individualização faz-se também por compromisso com
referências que são colectivas e que as pessoas assumem na sua
vivenciação.” Ainda na mesma entrevista, Frade sublinha a importância de
perspectivar o rendimento de uma equipa como produto de um sistema
dinâmico e não como a soma de individualidades afirmando que um dos
grandes males das ciências ditas do desporto é que elas são perspectivadas
enquanto ciências do individual. Hoje em dia, o Futebol apoia-se melhor nas
ciências que se preocupam, não com o individual atomístico, mas com os

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dinamismos, com os sistemas, com as coisas que são um “todo”, que carecem
de um processo para funcionar e portanto já há muitas ciências que se
preocupam com isso e que não são ciências do individual, pois pese embora os
“todos” sejam feitos de individualidades, aquando no “todo” perdem qualquer
coisa de si mas também ganham qualquer coisa.
Duas das premissas que segundo Frade (2004a) servem de referencial à
modelação segundo a Periodização Táctica tratam precisamente deste
equilíbrio entre a evolução individual e colectiva com a primeira inteiramente
subjugada à segunda: A primeira diz-nos que a percentagem dominante dos
conteúdos de treino da equipa impõem a direcção da adaptabilidade do
processo a realizar, isto é, se queremos a equipa a jogar bem teremos de ter
uma grande percentagem de conteúdos de treino que visem isso mesmo. Esta
premissa tem mais a ver com o aspecto global do processo (pôr a equipa a
jogar como queremos) estando por isso mais ligada à dimensão “hetero”. A
segunda refere que a evolução individualizada deve estar sujeita à selecção de
conteúdos identificados com a correspondência à dinâmica anterior. Esta
preocupação regista-se exactamente no mesmo comprimento de onda que a
primeira mas agora no individual, isto é, subjugada à dimensão “auto”.
Concorrendo para a mesma linha de pensamento, Gomes (2006) afirma
que a equipa tem um conjunto de jogadores com diferentes funções, que
condicionam as propriedades do todo. Então, a função que o jogador
desempenha no seio da equipa resulta das referências colectivas. A mesma
autora, (comunicação pessoal, 20 Out 2007), a propósito das interacções
posicionais entre o ponta de lança e um extremo (numa estrutura de 4.3.3.) que
num determinado jogo da sua equipa não ocorreram da forma pretendida,
produziu a seguinte reflexão: “Em vez de solicitar que ele (ponta de lança)
deixe de cair para a zona dos colegas, devemos gerir isso, ou seja,
desenvolver um conjunto de interacções dos extremos e dos médios interiores
em que nas situações em que ele descai para a zona do extremo, este entre no
meio para lhe conceder espaço de realização, ou seja, viver a sua escolha de
forma congruente. Trata-se de fazer com que a equipa se adapte ás suas
decisões e não de restringir as suas escolhas!! Investir e apostar nos graus de
liberdade (pela dinâmica congruente) em detrimento da inibição de escolhas ou

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Revisão da Literatura
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decisões. Só assim estimularemos a criatividade dos artistas, pela


espontaneidade, pelas necessidades e num crescimento auto-hetero-
sustentado.” A partir daqui percebemos na prática a importância que o
processo de treino tem para que este tipo de coisas possam aparecer, para
que a “dinâmica congruente” o seja efectivamente e não apenas num plano
teórico. O individual é sempre tido em conta dentro do contexto de um melhor
funcionamento colectivo e as repercussões dos comportamentos de cada
elemento são a nível de toda a equipa e devem por isso ser vividas com igual
intensidade e dentro de uma matriz conhecida e treinada por todos.
A construção de uma equipa na verdadeira acepção da palavra em que
todos participem da mesma linguagem comportamental deve-se em grande
parte à liderança do treinador e ao modo como este transmite a sua ideia de
jogo. Damásio (2006, p. 13) refere “a capacidade de conhecer um projecto de
acção e de transmitir a um grupo de executantes, nas grandes linhas e nos
pormenores da sua organização, e imaginam as variações possíveis do seu
desenrolar. Mas levam também os seus executantes a co-imaginarem esse
projecto e a anteciparem o seu futuro desenvolvimento, ou seja, o processo
não se confina a uma transmissão de informação, por mais valiosos que sejam
os esquemas de organização e as estratégias da abordagem. O processo
requer também que a transmissão inspire um imaginário ao mesmo tempo
disciplinado pelas metas do projecto mas suficientemente flexível para que
permita, em certas circunstâncias, desvios criadores.” É sobre esta flexibilidade
condicionada que trata o próximo capítulo.

2.8. … que vai permitir a eclosão da desordem


desequilibradora sustentada numa ordem implícita…

“O comportamento caótico é determinista e padronizado, e os atractores


estranhos permitem transformar uma realidade aparentemente aleatória em
formas visíveis distintas” (Fritjof Capra)

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Revisão da Literatura
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“Feliz ou infelizmente, o Universo é um cocktail de ordem, desordem e


organização. Estamos num Universo no qual não é possível afastar o
imprevisto, o incerto, a desordem. Devemos viver e lidar com a desordem. E a
ordem? Consiste em tudo aquilo que é repetição, constância, invariância, tudo
o que pode ser posto sob a égide de uma relação altamente provável, colocado
sob a dependência de uma lei. E a desordem? É tudo que representa
irregularidade, com desvio em relação a uma determinada estrutura; tudo o que
é imprevisível e aleatório. Num Universo de ordem pura não haveria inovação,
criação, evolução. Não existiriam seres vivos, inclusive humanos. Da mesma
forma, num Universo de desordem pura não seria possível nenhum tipo de
existência, pois não haveria nenhum elemento de estabilidade para que nela se
baseasse uma organização” (Morin, 1986, pp. 44-45). A presença destes
“ingredientes” pode ser mais ou menos visível consoante a acuidade de
entendimento do jogo que cada um tem mas facto é que todos eles existem em
sistemas dinâmicos complexos.
As organizações precisam de ordem e de desordem. Num universo em
que os sistemas sofrem o aumento da desordem e tendem a desintegrar-se, a
sua organização permite que eles captem, reprimam e utilizem a desordem
(Morin, 1990). É precisamente esta “utilização da desordem” que importa
perceber pois o “jogar” de cada equipa pretende-se simultaneamente regular e
ímpar, ordenado e imprevisível. A aparente desorganização tem que ser muito
trabalhada para dar frutos. Em última análise Mourinho (2003) diz mesmo que
“tem que haver 100% de ordem para poder haver desordem.”
No seguimento desta afirmação parece-me importante lembrar Cunha e
Silva (1999, p. 159) quando diz “...é claro que não existe treinador (pelo menos
treinador determinista) que no seu íntimo não pretenda ser o «deus de
Laplace» - conseguir prever com uma certeza infinitesimal a evolução do jogo,
controlar esse sistema multivariável.” Ser determinista no sentido de Laplace, é
ter como previsível, no mínimo detalhe, de forma unívoca e com uma certeza
absoluta no futuro do universo inteiro e de cada partícula que contém. Stacey
(1995) desmistifica contudo este possível desejo de prever o detalhe
explicando que simular o comportamento a longo prazo de um sistema sob os

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Revisão da Literatura
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efeitos de uma dinâmica caótica, gerando assim uma série de cenários


possíveis, é um exercício sem sentido uma vez que quando a dinâmica é
caótica, o número de resultados comportamentais é infinito. O mesmo autor
sintetiza o seu raciocínio afirmando que a antecipação do plano micro será uma
tarefa jamais possível de coincidir com o que na realidade acontecerá no
futuro. Conforme já vimos aquilo que é cientificável é o “Jogar” e esse refere-se
ao plano macro, o detalhe é inatingível e para ele não existe equação.
“Ao admitirmos um jogo como um sistema dinâmico não linear, ou seja,
um sistema cujo comportamento varia não linearmente com o tempo,
admitimos facilmente que o resultado depende da forma como se joga, como
vai jogando. Mas esta dependência altera por vezes as regras do jogo porque o
contributo da incerteza, do acaso, se incompatibiliza crescentemente com
qualquer regra.” (Cunha e Silva, 1999, p. 158). Se todas as equipas jogassem
da mesma forma deixaria de haver diversidade e a previsibilidade seria
absoluta mas o que vemos na prática é que a previsibilidade é incalculável pois
uns princípios vão aparecer mais do que outros embora a resolução das
situações vá ser sempre de acordo com os nossos princípios estabelecidos.
Daqui advém o conceito de imprevisibilidade potencial pois ela está sempre
ligada ao Modelo de Jogo criado e manifesta-se de uma forma específica
relativamente a este.
A abordagem da Teoria do Caos assume-se aqui como pertinente pois
responde de forma diferente às questões que se colocam aos inúmeros
sistemas dinâmicos não lineares que povoam o nosso mundo em geral e o
Futebol em particular. Clarke (cit por Gaiteiro, 2006) assume acreditar no
contributo do acaso para um desempenho qualitativo dos sistemas que se
caracterizam pela evolução temporal imponderável e imprevisível. Este acaso
que nos é trazido por Clarke não deve ser entendido como algo sem
referências, fruto exclusivo da casualidade. A este respeito Stacey (1995) diz
que também se encontram traços de regularidade e mesmo de universalidade
neste tipo de comportamento. O mesmo autor prossegue o seu caminho
reforçando que a surpresa provocada pela Teoria do Caos não é tanto a
imprevisibilidade, mas sim a razão para ela indo de encontro a Mourinho (2003)
quando diz que em última análise tudo é ordem.

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Revisão da Literatura
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Cunha e Silva (1999) dá-nos um auxílio muito considerável neste


capítulo referindo a passagem do “caos termodinâmico” onde a matéria
caminhava inexoravelmente para um estado de energia nula, ou seja, de
desordem total com efeitos desintegradores para o conceito mais recente de
“caos determinístico” caracterizado como novo caos despido do catastrofismo
incontornável do primeiro, e que diz respeito ao comportamento não periódico
de sistemas dinâmicos, isto é, de sistemas capazes de evoluir a partir de
condições iniciais às quais são extremamente sensíveis.
Daqui percebemos que o caos pode ser de alguma forma determinado e
que tem uma ordem subjacente o que regozijará aqueles treinadores que
querem ver a influência daquilo que treinam presente em tudo… mesmo na
suposta desordem.
Este caos científico cuja explicação e justificação tem sido nossa
preocupação encontra, segundo Gaiteiro (2006, p. 31), algumas características
que importa referir: A primeira diz respeito ao facto dos “movimentos simples
de controlo de feedback não linear produzirem padrões de comportamento
surpreendentemente complexos, sendo alguns inerentemente aleatórios.” Esta
característica remete-nos para as implicações que acarreta ter o futuro como
elemento causal pois isso aumentará muito a complexidade do processo. As
regras podem ser muito simples mas, desde que se relacione causa e efeito de
uma forma não proporcional e desde que o resultado dessa regra seja
retransmitido à regra para determinar o resultado seguinte, obtém-se como
resultado um comportamento complexo, apesar da simplicidade da regra. No
treino do “jogar” que queremos, este deve ser sempre a referência mor, daí que
o resultado pretendido esteja constantemente a influenciar de forma vincada o
processo que decorre nesse sentido.
A segunda característica do caos cientifico referida por Gaiteiro (2006)
respeita à sensibilidade às condições iniciais e pretende evidenciar que
pequenas alterações podem induzir grandes mudanças a longo prazo, ou seja,
diferenças que parecem à partida insignificantes podem adquirir extrema
relevância no resultado final de um sistema caótico fruto das implicações que
essas modificações terão em todo o sistema uma vez que, como já vimos, tudo
interage a todo o instante o que leva a que qualquer pequena alteração seja

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Revisão da Literatura
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difundida e exponenciada por todo o sistema. Quando Guilherme Oliveira


(2006, p. II) nos diz que “para uma equipa jogar de determinada forma há
interacções mas para uma equipa jogar de forma diferente, essas interacções
são diferentes” leva-nos a crer de uma forma prática nesta característica uma
vez que as interacções promovidas pelos exercícios propostos com vista á
aprendizagem do modelo de jogo são diversas consoante o objectivo final daí
que as duas primeiras condições até agora referidas adquiram sentido prático
nesta frase do actual treinador da equipa de juniores B do Futebol Clube do
Porto. Se por um lado o objectivo final é tido em conta e influencia a todo o
instante o processo, há também que dar grande atenção às interacções
promovidas por determinado exercício pois isso conduzirá a um resultado
Específico.
A terceira característica diz respeito a uma ordem oculta presente nos
sistemas caóticos contrariando a aparente desordem absoluta. Gaiteiro (2006,
p. 34) refere que “variados fenómenos da natureza apresentam, pela
reprodução de certas regras, sequências de comportamento estáveis,
regulares, podendo desenvolver o caos caso sejam intensificadas
determinadas condições causais.” Conforme vimos no capítulo que trata o
“jogar” como um padrão dinâmico, podem-se encontrar regularidades na
aparente confusão, regularidades escondidas por trás de uma aparente
aleatoriedade que esconde um determinado futebol. Gaiteiro (2006) explica que
tais padrões são reconhecidos ainda que não se adivinhe quando os
comportamentos emergirão e a manifestação comportamental ao nível micro,
do pormenor. A frase feita “não há dois jogos iguais” baseia-se num
pressuposto rudimentar assente no detalhe. Obviamente que não há dois jogos
em que os 22 jogadores executem o mesmo movimento ao mesmo milésimo
de segundo. A pertinência descentra-se destas questões acessórias e está
naquilo que nos permite identificar determinada equipa através da sua forma de
jogar. Isto sim é identificável e indicia que há coisas que realmente são iguais:
os princípios que em conjunto e articulados constituem o “jogar” de cada
equipa. A partir deles identificam-se padrões que nos dizem se quem está a
jogar é a equipa A, B ou C. Falamos do “jogar” enquanto objecto de estudo no
sentido objectivável, caracterizável, cientificável, isto é, passível de ser

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Revisão da Literatura
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abordado em termos científicos (Oliveira et al. 2006). Em suma é a isto que


reporta a ordem oculta o que, mais uma vez, enaltece a importância do treino
na medida em que essa ordem constrói-se no treino de uma determinada forma
de jogar futebol.

2.9. … determinada previamente pelo treino…

“A aprendizagem e exercitação de um comportamento faz com que a


sua realização solicite cada vez menos recursos ao cérebro através da
adaptação. E é esse o objectivo do treino ou seja, criar e desenvolver a
adaptação dos jogadores no desenvolvimento de um jogar e portanto, de uma
Organização Colectiva.” (Marisa Gomes)

Apesar deste ser o capítulo mais vincada e especificamente


direccionado para o treino, muito já foi dito sobre aquele que é um dos
conceitos centrais deste trabalho. Deste modo, servirá este capítulo para
reforçar o entendimento da importância do treino como síntese e reforço
daquilo que já foi sendo dito até aqui.
Filogeneticamente é conhecida a evolução do Homem quadrúpede até
ao Homem bípede. O facto do apoio de locomoção passar para apenas dois
membros implicou grandes mudanças na típica movimentação humana. A partir
deste momento estabeleceu-se claramente uma divisão entre membros
superiores e membros inferiores com tarefas específicas para cada. Neste
contexto os membros inferiores estão exclusivamente destinados à locomoção
sendo que todas as restantes tarefas (aquelas que exigem uma motricidade
mais fina) estão a cargo dos membros superiores razão pela qual o indivíduo,
na sua ontogénese, dê clara primazia ao trem superior (Massada, 2001).
Porém, no Futebol, esta lógica é invertida pois são os membros inferiores que
coordenam de forma mais vincada todas as acções daí que esse tipo de treino
adquira importância capital desde bem cedo de forma a ir dotando os

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Revisão da Literatura
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mecanismos nervosos com uma boa capacidade de resposta a estímulos


produzidos nesta zona. Ainda assim, o nosso trabalho centra-se na relevância
do treino a nível do comportamento táctico da equipa daí que enveredemos
mormente por este lado da questão sem contudo olvidar duas premissas vitais:
que a qualidade técnica dos jogadores é a base para se poder criar e
operacionalizar um Modelo de Jogo rico e que o organismo humano tem uma
enorme capacidade de adaptação (Frisancho, 1981) que deve ser aproveitada
pelo treinador para identificar o jogador com o “jogar” que pretende, tanto
quanto o possível.
Williams e Hodges (2004) apontam que a compilação dos dados
empíricos existentes, indicam que a aquisição da inteligência específica de
cada modalidade resulta duma intervenção apropriada que será certamente o
treino. Isto afasta desde logo a possibilidade de um aparecimento por “geração
espontânea” mas Gomes (2006) vai mais longe transportando consigo um grau
superior de Especificidade no que à tal intervenção diz respeito pois segundo
ela as decisões dos jogadores resultam dos dados contextuais mas são
sobreconfiguradas por “regras” colectivas que os levam a optar por
determinadas escolhas em detrimento de outras. Estas regras não são mais
que os princípios de jogo e é o treino destes que condiciona as escolhas dos
jogadores no sentido pretendido. Damásio (2003) complementa estas ideias
afirmando que os sentimentos que caracterizam a nossa existência são uma
“experiência de vida condensada”. No caso do Futebol essa experiência não
será mais que o treinar os comportamentos pretendidos pois dessa forma
criam-se os tais sentimentos Específicos de cada forma de jogar. Acresça-se
ainda o papel central das emoções na tomada de decisão pois segundo Revoy
(s/d) este é o domínio em que se exprimem por excelência o julgamento, a
inteligência e a deliberação. Ainda Revoy (s/d) reforça a importância das
emoções aludindo às experiências de Markus Junghofer em que há um
diferente tratamento cerebral de imagens com forte conotação emocional e o
tratamento cerebral de imagens pouco carregadas de emoções pois mal
passados 200 mseg. depois da apresentação de imagens com um forte
conteúdo emocional, estas geram um sinal eléctrico enquanto que as imagens
neutras geram um sinal mais tardio o que evidencia que o sistema límbico

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Revisão da Literatura
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reage a certos estímulos-chave antes mesmo que a informação tenha atingido


o córtex visual. Assim há uma inteligência das emoções pois estas ajudam-nos
a tomar boas decisões. Ora isto indica-nos que no treino devemos deixar
acontecer a emoção pois assim estaremos a dotar a equipa e os jogadores de
um crescente património decisional de qualidade.
Segundo Frade (2004a) uma das grandes dificuldades que se põe desde
logo no processo de controlo do treino diz respeito à selecção de meios e
princípios. Esta selecção é inicialmente abstracta pois situa-se à priori sendo
este um aspecto de ruptura com a periodização convencional que apenas
considera no seu controlo o à posteriori. Os meios serão os exercícios com os
quais se pretende criar dinâmicas para levar a efeito os princípios. A repetição
sistemática é que nos permite chegar à sobrecompensação daquilo que se
pretende, isto é direcciona o processo de adaptabilidade.
Neste enquadramento não é de todo descabido falar em quantificação
da qualidade na medida em que a caracterização à priori determina claramente
os parâmetros (princípios) que definem a existência ou não dessa mesma
qualidade, ou seja, aspira-se que a equipa jogue de determinada forma e é a
partir daí que se efectua o controlo, analisando se aquilo que acontece em
termos regulares é compatível com aquilo que aconteceu antes. O à posteriori
é causado por aquilo que direcciona o processo (à priori) - futuro como
elemento causal - daí a necessidade de tê-lo em conta. Isto vem de encontro
ao que diz Frade (cit. por Faria, 1999) segundo o qual é o treino que cria a
competição.
Para Frade (2004a) a grande condição da Periodização Táctica é ser
uma “fenomenotécnica” na operacionalização do treino. Isto quer dizer que não
é suficiente dizer-se que a natureza desta realidade é caracterizada pela
extrema sensibilidade ás condições iniciais e depois deixar correr o processo
sem qualquer intervenção. A causalidade não linear consiste precisamente no
facto da intervenção ter o poder de alterar muita coisa, o que, aplicado ao
treino no Futebol faz todo o sentido e tem enorme pertinência dando a clara
indicação que a intervenção do treinador durante os exercícios será um factor
fundamental para o seu correcto direccionamento em função do modelo de
jogo. Gomes (2007) alerta para a complexidade deste tipo de intervenção

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Revisão da Literatura
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havendo a necessidade de um excelente entendimento do jogo e sobretudo de


se saber o que se está a pedir no exercício, porque as pequenas coisas fazem
a diferença. Para que tudo isto possa acontecer é necessário que o treinador
saiba muito bem aquilo que pretende da equipa e do jogo, que tenha ideias
muito concretas relativamente ás invariantes/padrões que pretende que a sua
equipa e os respectivos jogadores manifestem (Guilherme Oliveira, 2004).
Gomes (2007) referindo-se á intervenção do treinador durante o jogo, defende
que esta não muda os hábitos pois isso tem que ser incorporado, vivido e
sentido pelos jogadores no processo de treino. Se é no treino que devemos
modelar o jogo que queremos, fará pouco sentido intervir de forma sistemática
quando o jogo está a decorrer pois isso será sintoma evidente que o processo
de treino fracassou uma vez que não condicionou o “jogar” idealizado.
Guilherme Oliveira (2004, p. 165) sintetiza de forma eloquente a
conformidade entre treino e jogo subordinando o segundo ao primeiro sem com
isso estabelecer uma relação deterministicamente fechada quando afirma que
“apesar do vínculo à acção compreender a interacção de reciprocidade entre o
jogo e o jogador, essa interacção dever ser construída e direccionada pelo
processo de ensino-aprendizagem/treino em função de um conjunto de ideias,
colectivas e individuais, de jogo, isto é, pela singularidade do Modelo de Jogo
da equipa.”
Já Araújo (2003, p. 91), diz que “se o comportamento fosse determinado
previamente a nível cognitivo, a adaptabilidade ao contexto seria impossível,
uma vez que o contexto está em constante mudança. No entanto, apesar de
toda a variabilidade contextual e motora, os peritos mantêm constantes as suas
relações funcionais com o meio. Dito de outro modo, a sua afinação, aos
objectivos relevantes do jogo mantém-se constante, apesar dos processos que
lhe estão subjacentes serem altamente adaptáveis àquilo que o contexto
proporciona. Esta adaptabilidade ao contexto não seria possível se as acções
fossem determinadas previamente pelos registos em memória pois não seria
adaptação mas uma réplica de movimentos anteriores”. Cremos que este
pensamento baseia-se em alguns pressupostos diferentes daqueles que
assumimos no nosso trabalho pois, na verdade, o treino perspectivado pela
Periodização Táctica deve exercer efeito sobre princípios de acção e não

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Revisão da Literatura
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taxativamente sobre os movimentos a serem executados pois esses inserem-


se na dinâmica imprevisível do “aqui e agora” e para isso não há equação
Guilherme Oliveira (2004) justifica isso defendendo que o processo de treino
deve fomentar a criação de possibilidades de acção e não de certezas de
acção, repercutindo-se na dinâmica de criação, solidificação e recriação dos
conhecimentos dos jogadores e na dinâmica do próprio jogo. Ora “se o jogo é o
espelho exequível do treino, então para ser JOGO o treino não pode ser outra
coisa senão jogo” (Guilherme Oliveira, 1991, p. 13), pois tal como afirma Frade
(cit. por Costa 2002), é necessário que o treino reflicta a representação do real,
possibilitando através dos exercícios um conjunto de estímulos que permitam
agir em condições aleatórias e adversas, ou seja, no Jogo. Gomes (2006) dá
também o seu contributo explicitando que a Organização sistémica refere-se a
princípios de acção que configuram as interacções dos jogadores nos vários
momentos de jogo. Aqui fica bem evidente a importância que a assunção do
paradigma sistémico assume!
Isto só é possível através do treino que tenha como um dos princípios
estruturantes o princípio das propensões (já anteriormente abordado mas que
aqui readquire importância capital) que, em articulação com os demais,
consiste na contextualização de determinadas coisas para que aquilo que se
quer que aconteça, aconteça mais vezes, isto é, concebe-se determinado
contexto com o intuito que ele conduza a determinado comportamento
desejado. Isto é diferente de apresentar “receitas” ou exigir réplicas de
movimentos anteriores pois aqui são os próprios jogadores que vão descobrir,
vão eles próprios sentir a necessidade de… para chegar até…
O processo de treino devidamente configurado e orientado para uma
abordagem deste género não se pode reter num fraccionamento analítico das
diversas componentes que concorrem para o rendimento e a justificar isto
temos Tani e Corrêa (2006 p. 16) que circunscrevem as duas condições que
permitem um procedimento analítico: “(a) a ausência de interacções entre os
componentes do sistema ou, caso existam, serem suficientemente fracas para
que possam ser desprezadas, e (b) as razões que descrevem o
comportamento das partes sejam lineares, o que possibilitaria a condição de
aditividade (1 + 1 = 2)” Ora o Jogo de Futebol não respeita nenhuma das

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Revisão da Literatura
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condições identificadas visto que, enquanto sistema aberto, obtém utiliza e


troca energia e informação com o seu meio ambiente permitindo isso que o
sistema altere a sua organização interna, ou seja, somos levados a crer que a
abordagem sistémica permitida pela Periodização Táctica responde de forma
mais concreta e eficaz ás exigências impostas pelo Jogo.
O processo de treino constitui-se assim como o cerne do meio através
do qual se pretendem atingir todos os objectivos respeitantes à consecução do
Modelo de Jogo. Assim pensa Frade (cit. por Rocha, 2000 p.1 do anexo 12)
quando afirma que “o treino não é dividido porque tem consciência que o
crescimento táctico, tendo em conta a proposta de jogo (modelo de jogo) a que
se aspira, ao realizar-se, ao operacionalizar-se, vai implicar alterações a nível
técnico, psicológico e físico” e Barbosa (2003) que sintetiza ideia análoga
afiançando que o treino possui uma importância de especial destaque, uma vez
que é nele, e a partir dele, que se possibilita aos jogadores a apreensão e
assimilação de determinados comportamentos pretendidos em Jogo.
Reclamando maior importância para este tipo de preocupações no treino, Tani
e Corrêa (2006, p. 17) relembra as características de sistema aberto que
possui o Jogo de Futebol e coloca dúvidas na relevância tantas vezes dada à
preparação física: “O facto de o desporto colectivo caracterizar um sistema
dinâmico e complexo implica que os jogadores não somente necessitam de ter
energia para manter a sua estabilidade ou restabelecê-la após instabilidade,
mas também saber como utilizá-la. Esse é o papel da informação. Por outras
palavras, não adianta ter uma equipa com jogadores bem condicionados
fisicamente se eles não conseguirem lidar com a informação, isto é, criar
incerteza no sistema adversário e reduzir as incertezas por ele criadas no seu
sistema.”
Ainda Tani e Corrêa (2006, p.21) avançam com uma alternativa com a
qual corroboramos de acordo com o acima anteriormente discutido: “… a
prática de estruturas funcionais possibilita aos indivíduos uma proximidade das
acções e situações reais, que, por sua vez, possibilita-os relacionar
capacidades técnicas e tácticas. Em outras palavras, a interacção de «como
fazer» com «o que fazer».”

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Material e Métodos
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3. Material e Métodos

3.1. Caracterização da Amostra

A amostra é constituída por três entrevistados, todos eles treinadores de


futebol, a saber: José Guilherme Oliveira (treinador da equipa de juvenis do
Futebol Clube do Porto), Marisa Gomes (treinadora da equipa de infantis do
Futebol Clube do Porto) e Rui Faria (actualmente sem clube desde que deixou
o Chelsea F.C. em Setembro de 2007).

3.2. Metodologia de Investigação

Ao nível teórico foi efectuada uma pesquisa bibliográfica e documental,


seleccionando a informação disponível que mais se enquadrava com o tema
em questão, através da análise de conteúdo. Com base na mesma e de acordo
com as nossas preocupações fundamentais, elaboramos uma série de
questões guia, que serviram de suporte às entrevistas realizadas.
Ao nível prático, a metodologia utilizada na recolha dos dados foi a
observação directa extensiva, sob a forma de inquérito oral, por meio de
entrevista, com base em questões previamente elaboradas e registadas num
gravador “Creative”. Essas questões foram abertas, para que os intervenientes
pudessem expor os seus pontos de vista de uma forma clara e o mais
aprofundada possível. Todas as entrevistas foram gravadas com o
conhecimento e autorização dos entrevistados. Posteriormente as entrevistas
foram transcritas para papel.

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Material e Métodos
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3.3 Recolha de Dados

A recolha de dados ocorreu entre o dia 6 de Outubro de 2007 e o dia 3


de Novembro de 2007. As entrevistas foram realizadas na Faculdade de
Desporto da Universidade do Porto.

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Análise e Discussão dos Resultados
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4. Análise e Discussão dos Resultados

Depois de realizadas a revisão bibliográfica e as entrevistas, passou-se


à análise das respostas dos entrevistados, no sentido de comparar e discutir o
conteúdo das mesmas, cruzando-o com a informação proveniente da revisão
bibliográfica.

4.1. A Especificidade da repetição sistemática dos Princípios de


Jogo…

Quando, na operacionalização do treino, queremos ter presente a


Especificidade temos que repetir sistematicamente os comportamentos que
queremos implementar. Essa repetição sistemática está envolta em regras que
permitem que os seus efeitos sejam os desejados, ou seja, não é uma
repetição abstracta sem um fio condutor que conduzirá à manifestação do
padrão de jogo idealizado.

4.1.1. …necessita de um profundo conhecimento do Modelo de


Jogo…

Antes de mais é fulcral conhecer muito bem o “jogar” que se quer


implementar pois só um intenso domínio disto é que permite que se “jogue”
com todos os factores em causa com a devida fluidez e sempre com metas
específicas bem delineadas. Gomes (Anexo 1) diz taxativamente que “para se
conseguir um determinado jogar é preciso conhecê-lo e conhecer é ter um
Modelo de Jogo que vai direccionar a Intencionalidade daquilo que nós
pretendemos.”
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Análise e Discussão dos Resultados
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A importância deste conhecimento é bem evidente pois se apenas


possuirmos uma ideia vaga ou genérica do modo como queremos que a equipa
jogue, isso castrará e limitará de sobremaneira a intervenção a ter durante a
exercitação pois tal como lembra Gomes (Anexo 1) “o sentido da progressão
do menos complexo para o mais complexo tem uma ordem e essa ordem só
tem Sentido quando conhecemos bem o jogar e percebemos o que é mais
difícil”. Conhecer bem o Modelo de Jogo, a sua ideia mais geral e os
comportamentos mais específicos permite redireccionamentos e
reajustamentos constantes de acordo com as necessidades contextuais tendo
em vista a Especificidade. Só partindo deste pressuposto é que é possível
perceber o que é mais e menos complexo e a partir daí gerir o processo de
treino com elevado grau de qualidade.

4.1.2. …e está na interacção dos princípios da alternância


horizontal, da progressão complexa e das propensões devidamente
contextualizados

Os princípios da alternância horizontal em Especificidade, da progressão


complexa e das propensões, são os pilares da repetição sistemática e só uma
interacção bem contextualizada entre os três permitirá que se treine em
Especificidade. Segundo Gomes (Anexo 1) “para se conseguir um determinado
jogar são precisos esses três princípios mas o mais difícil é a ligação entre
eles”. Esta ideia é partilhada por Guilherme Oliveira (Anexo 2) para quem “a
maior dificuldade e a maior complexidade surge dessa interacção uma vez que
são os três extremamente importantes em termos de evolução do jogo, tanto
em termos colectivos como em termos individuais e quando se treina como nós
treinamos há a necessidade de ter os três permanentemente em
consideração”. A alusão a uma determinada forma de treinar é relevante na
medida em que apenas os treinadores que direccionam mormente a sua
atenção para a Organização Colectiva subjacente a uma Ideia de Jogo têm
este tipo de preocupações, isto é, quando a prioridade está no

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Análise e Discussão dos Resultados
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condicionamento físico, o fulcro desvia-se daquilo que estamos aqui a tratar


pois as preocupações são de outro nível, daí o sublinhar dessa forma de
treinar, a Periodização Táctica, que é a metodologia de treino seguida por
todos os entrevistados.
Os três princípios pelos quais se rege a repetição sistemática sujeitam-
se às condicionantes uns dos outros no intuito de cumprir o requisito da
Especificidade. Guilherme Oliveira (Anexo 2) aponta precisamente isso quando
dá o seguinte exemplo: “Se dermos grande importância ao princípio das
propensões e não estivermos a dar tanta importância ao princípio da
alternância horizontal aquilo que pode acontecer é ter jogadores lesionados, ter
a equipa cansada e a equipa não estar a jogar com os comportamentos que
nós desejamos por um cansaço acumulado.” Faria (Anexo 3) corrobora em
absoluto quando aborda a relação entre o princípio da progressão complexa e
da alternância horizontal em Especificidade alertando para a impossibilidade da
exigência da manifestação de comportamentos muito complexos quando os
jogadores ainda estão em processo de recuperação do jogo anterior.
A Especificidade deve também respeitar ao contexto e, na
hierarquização dos princípios, este aspecto adquire particular importância.
Gomes (Anexo 1) dá-nos como exemplo uma equipa cujos objectivos passam
por não descer de divisão e neste contexto fará eventualmente mais sentido
dar prioridade (no que aos quatro momentos de jogo diz respeito) à
organização defensiva no sentido de, em termos aquisitivos, ser mais fácil para
a equipa perceber aquilo que se pretende, visto que não tem bola, sendo por
isso mais simples construir uma identidade comum sem bola, não ter que tratar
dela, embora jogando em função dela, sendo mais fácil para uma primeira
assimilação. No entanto a mesma autora ressalva que “isso depende dos
contextos, do próprio modelo e do próprio jogar”. Daqui se percebe a
importância do contexto para se desenvolver o princípio da progressão
complexa em Especificidade e só assim ele terá a devida qualidade.
“É através da alternância horizontal em Especificidade que se varia o
registo das solicitações específicas em cada dia, porque se num dia
promovermos situações onde predominam as contracções excêntricas e no dia
seguinte funcionarmos nesse mesmo padrão (registo), de certeza que não vai

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Análise e Discussão dos Resultados
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ter as mesmas condições de realização pelo desgaste (assimilação) do dia


anterior. Reconhecendo isto, – desgaste do que se faz – alternamos e para
isso fraccionamos o jogar para que em cada dia estejamos a desenvolver esse
mesmo jogar gerindo esses aspectos” Gomes (Anexo 1). Tendo sempre como
principal preocupação o “jogar bem” relativizado ao Modelo de Jogo, procuram-
se e criam-se contextos no treino para haver desempenhos máximos e tendo
em consideração que quer mental quer fisicamente isso é desgastante há que
encontrar soluções para resolver o problema daí que variar o registo (parte) do
jogar seja de importância capital. Variando o grau de complexidade e por
consequência o tipo de exigências (padrão de contracções que a concretização
desenvolve) permite responder à necessidade de adquirir sempre algo
referente à evolução do jogar de uns dias para os outros e à necessidade de
recuperar. Espelhando esta preocupação num sentido eminentemente prático,
Gomes (Anexo 1) declara o seguinte: “Costumo desenvolver o nível de
organização completo no dia que está mais distanciado das competições
porque em termos de complexidade é muito exigente (fadiga central) e para
além disso predominam contracções de menor tensão, maior duração e menor
velocidade conduzindo a um grande desgaste, sendo portanto preciso tempo
para recuperar.”
O princípio das propensões refere-se à criação de contextos propícios a
determinadas aquisições mas para tal e segundo Gomes (Anexo 1) “tem que
haver um Sentido associado, pois só é aquisitivo quando ao fazermos,
soubermos minimamente aquilo que estamos a fazer.” Daqui entende-se
claramente que o Sentido atribuído na exercitação desempenha um papel
muito relevante naquilo a que a criação do próprio contexto conduz. Gomes
(Anexo 1) distingue duas dimensões relativas à operacionalização das
propensões: “Primeiro numa dimensão maior que é a dimensão do Sentido
porque temos que desenvolver o jogar por níveis de organização e temos que
articular os sentidos e hierarquizar; Segundo numa dimensão mais reduzida,
que é saber nesse mesmo Sentido que contexto é que vamos proporcionar.”
São portanto duas preocupações a ter em conta, uma decorrente da outra,
sempre em busca da Especificidade.

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Análise e Discussão dos Resultados
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Em suma, os três princípios metodológicos estão todos interligados não


sendo possível dar primazia a nenhum deles. Referindo-se a esta articulação e
em jeito de síntese, Gomes (Anexo 1) diz que “não podem deixar de estar
interligados pelo jogar, por isso é que o Modelo é extremamente importante,
porque é uma coisa que se vai desenvolvendo e é o que vai dar Sentido à
articulação destes princípios todos: da especificidade, da alternância horizontal
em Especificidade, da progressão complexa em Especificidade e propensão
em Especificidade.” Saliente-se que a “âncora” desta questão não deve ser
esquecida, ou seja, tudo isto é pensado, ponderado e reflectido com o objectivo
claro de facilitar a aquisição dos comportamentos inerentes a uma determinada
forma de jogar futebol e é precisamente isso que Faria (Anexo 3) faz questão
de acentuar: “Não podemos pensar num destes três princípios sem pensar nos
outros uma vez que o padrão de exigências tem que ser enquadrado na sua
organização semanal no melhor momento para que haja sucesso na aquisição
desse mesmo princípio.”

4.2. A mesma abordagem com diferente grau de complexidade


como fulcro do processo de assimilação dos Princípios de Jogo…

Tal como vimos anteriormente quando tratamos o princípio da


progressão complexa em especificidade, há um aumento da complexidade
pedida em cada comportamento à medida que este vai sendo crescentemente
assimilado. É sobretudo neste aspecto, isto é, no aumento da complexidade,
que reside a diferença na configuração dada à prática entre uma fase mais
prematura da aprendizagem e uma fase mais adiantada. Vejamos Guilherme
Oliveira (Anexo 2) que a este propósito diz o seguinte: “Numa fase inicial a
complexidade é mais reduzida, em fases posteriores a complexidade é maior e
é sobretudo a esse nível que está a diferença.” Gomes (Anexo 1) explicita ideia
análoga com o seguinte caso prático: “Imaginemos a organização defensiva em
que eu quero que a minha equipa defenda em bloco, à zona. Inicialmente dou o
esboço para ver se a equipa sabe o que é um bloco, se sabe posicionar-se

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num determinado espaço em função da posição da bola etc. Isso é o esboço,


são os pilares do objectivo. Numa fase posterior, eu já quero que a equipa para
além disso, reconheça por exemplo os momentos e locais de pressão para que
o bloco tenha algum sentido e eficácia. Assim o esboço num plano mais micro
já é mais exigente…”
Temos assim a evolução em termos de complexidade como condição
para que aquilo que se treina se constitua efectivamente como uma aquisição
no que diz respeito aos comportamentos a manifestar e a par disto, Faria
(Anexo 3) chama a atenção para a importância de uma familiarização tão
grande quanto possível com aquilo que é a cultura de jogo própria da equipa:
“É decisivo fazer uma avaliação do que é a nossa equipa, os nossos jogadores
e do que é o conhecimento do jogo por parte da equipa e portanto a
antecipação é tão mais facilitada quanto maior for a cultura de jogo da equipa.”
O aumento de complexidade constitui-se assim como o fulcro do
processo de assimilação dos princípios de jogo sendo esta a solução
encontrada para dotar os jogadores e a equipa com as ferramentas
necessárias à consecução do Modelo de Jogo em cada etapa do seu
desenvolvimento.

4.2.1. …que nunca esgotam a sua riqueza impedindo o uso do


conceito de “manutenção do princípio de jogo”

Em fases mais adiantadas do processo de treino, é normal as equipas


terem maior identificação com os Princípios de Jogo e se a isso aliarmos o
sucesso desportivo seria possível pensarmos que haveria apenas que manter
aquilo que já fora adquirido. Ideia diferente defendem os nossos entrevistados
para quem se deve sempre buscar uma evolução permanente do jogar,
havendo ininterruptamente algo a desenvolver, a recriar, a melhorar, a inovar…
Guilherme Oliveira (Anexo 2) refere, a propósito deste assunto, o
seguinte: “Há um aumento de complexidade de forma a eles adquirirem,
primeiro de uma forma mais facilitadora para que as coisas aconteçam de uma

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forma regular, depois uma evolução permanente de forma a que eles consigam
ter comportamentos extremamente complexos.” É sobejamente perceptível que
a complexidade dos comportamentos é inesgotável quando se tem uma Ideia
de Jogo rica. Nesse sentido o mesmo entrevistado complementa dizendo que
“numa fase inicial há exercícios mais introdutórios com complexidade menor e
à medida que eles vão adquirindo esse comportamento nós vamos criando
complexidade para que esse comportamento seja mais complexo e mais
evoluído.”
Partilhando esta convicção que o Modelo de Jogo é algo sempre
inacabado, passível de ser enriquecido e melhorado encontra-se Gomes
(Anexo 1) deixando isso bem evidente quando afirma “a manutenção do
princípio é uma coisa dinâmica em evolução constante.”
Um exemplo prático que nos é dado por Guilherme Oliveira (Anexo 2)
ajuda-nos a perceber que tipos de estratégias se podem delinear para
operacionalizar esta ideia de evolução permanente: “Eu já treinei uma equipa
com uma capacidade de circulação de bola de tal ordem grande e evoluída,
que para treinar essa circulação e arranjar problemas tinha que treinar em 8x10
e eram os 8 que estavam a treinar, fundamentalmente porque a qualidade de
posse de bola daqueles que eram a equipa titular - chamemos-lhe assim - era
de tal forma grande que os outros em igualdade numérica não lhes conseguiam
criar problemas e a solução que encontrei foi pô-los em inferioridade numérica.
Nós temos que arranjar esse tipo de estratégias.”
A top esta questão é tratada em moldes idênticos, mantendo-se a
necessidade de evoluir sempre, de crescer diariamente, sendo que para tal as
metas comportamentais vão sendo revistas em função daquilo que se atinge e
daquilo que se pode vir a atingir com maior riqueza: “nós estamos
constantemente a criar novos exercícios embora os objectivos por vezes se
mantenham, criamos exercícios para que haja uma mudança, uma evolução de
algo que crie algum estorvo à execução de um determinado princípio para que
haja uma readaptação estrutural e mental para que não seja um processo
sempre idêntico, para que exista um enriquecimento em termos de trabalho”
(Faria, Anexo 3). A pertinência desta constatação merece especial destaque
por vir de alguém que viveu o sucesso a top bem de perto, materializado em

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inúmeros títulos a nível nacional e europeu1 o que mostra bem a necessidade


de permanente evolução mesmo quando se atingem patamares elevados de
rendimento superior.
Aumento de complexidade, dinamismo, evolução permanente e
necessidade de readaptação constante são ideias relativas ao treino dos
Princípios de Jogo o que nos leva a deixar de lado a possibilidade de acreditar
na manutenção estática de determinado comportamento havendo sempre lugar
para um acréscimo de riqueza sendo precisamente isto que nos diz Guilherme
Oliveira (Anexo 2): “Por vezes há momentos em que solidificámos determinada
forma de jogar e pensámos que essa forma de jogar se deve manter, mas não!
Do meu ponto de vista e tendo em consideração a minha experiência, devemos
logo criar mais complexidade caso contrário não há evolução nem da equipa
nem dos jogadores.”

4.3. A focalização no comportamento que se pretende treinar advém


da configuração do exercício…

Quando os jogadores estão em plena acção no exercício é importante


perceberem qual o objectivo daquilo que estão a fazer e em que contexto do
jogar aquilo se insere, para desta forma evitar abstracções inócuas. Entenda-se
que os exercícios surgem sempre em função de algo, para promover e
melhorar determinado comportamento e nesse contexto Guilherme Oliveira
(Anexo 2) explicita o seguinte: “quando apresento um exercício aos jogadores
digo qual é o objectivo do exercício e aquilo que pretendo treinar com esse
exercício e ao fazer isso já direccionei o exercício, já lhes dei um foco de
atenção para eles estarem a fazer aquele exercício em função de determinado
comportamento.” A respeito do aspecto específico que se pretende treinar em
determinado exercício, Gomes (Anexo 1) crê que “a operacionalização micro
desse objectivo não tem que ser consciente por parte dos sujeitos porque

1
Rui Faria teve um papel preponderante nas equipas técnicas lideradas por José Mourinho nas últimas 5
épocas onde conquistaram 13 títulos no F.C. do Porto e no Chelsea F. C.
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muitas vezes eles não têm consciência que fazem aquilo e só os fazemos
tomar consciência através da própria prática, fazendo com que aconteçam
determinadas coisas. No próprio exercício eles direccionam o foco do cérebro
se determinada coisa estiver a acontecer muitas vezes e a partir daí surge esse
direccionamento”.
Vemos que o direccionamento advém não só do alerta verbal que
precede o exercício propriamente dito mas também, e sobretudo, da realização
efectiva do comportamento em causa pois só aí é que é possível condicionar o
lado subconsciente. Vejamos como Gomes (Anexo 1) sintetiza isto quando
lembra que o lado subconsciente só é conseguido com o acontecer muitas
vezes de algo “porque num jogo 4x4 eles têm consciência que o objectivo é a
circulação e manutenção da posse de bola se estiverem a fazer isso muito
tempo, porque se estiverem a maior parte do tempo em organização defensiva
não vão ter essa consciência por mais que eu tenha dito antes do exercício.
Eles podem ter isso em termos conscientes mas depois em termos
subconscientes não têm. A consciência é estarmos alerta para qualquer coisa
mas se o exercício em termos de subconsciente não nos direccionar para lá
não vale a pena, não é Específico, não é adequado!”
Somos assim remetidos para a superior importância da configuração do
exercício de forma a que este conduza, pela sua forma, ao aparecimento do
comportamento desejado e isso levará à focalização no objectivo pretendido
por inerência. É precisamente assim que Faria (Anexo 3) operacionaliza o
direccionamento da atenção dos jogadores naquilo que é hierarquicamente
superior em cada exercício realizado: “Fundamentalmente temos que perceber
que o exercício, quando surge, já tem que estar configurado de modo a que os
comportamentos que pretendemos em termos de princípio, de objectivo, se
evidenciem, ou seja, quando o estruturamos já críamos condições para que o
que pretendemos surja com frequência. Isto é o mais importante, é a
Especificidade do exercício e nós, como treinadores, em função das nossas
necessidades é que vamos elaborar o exercício de acordo com determinado
objectivo.”

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Análise e Discussão dos Resultados
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4.3.1. …e de uma intervenção do treinador centrada precisamente


nesses aspectos.

Um aspecto importante e que tem enorme influência no direccionamento


do “foco” do cérebro, da atenção, está relacionado com a intervenção que o
treinador tem no exercício. Esta deve ter enfoque nos comportamentos para os
quais o exercício é dirigido pois caso contrário estaremos a desviar a atenção
dos jogadores para outros aspectos, ou seja, promoveremos um efeito
contraproducente àquele que havíamos delineado.
Durante a exercitação somos frequentemente confrontados com
situações que nos conduzem ao procedimento de ajustes relativamente àquilo
que está a acontecer no sentido de mais especificamente direccionar a prática
ou de adaptar o nível de complexidade e, como já anteriormente referimos
(capítulo 4.1.), a qualidade dessa intervenção está dependente de um perfeito
conhecimento do Modelo de Jogo. Faria (Anexo 3) aponta estas preocupações
como nucleares quando diz o seguinte: “Durante a execução do exercício, a
intervenção em função da relação jogador-exercício-treinador, leva a que por
vezes sintamos a necessidade de criar ainda mais qualquer acrescento para
que o que pretendemos se manifeste de forma ainda mais vincada e este tipo
de intervenção é apenas possível se soubermos muito bem onde estamos e
para onde queremos ir, isto é, exige-se um conhecimento muito bem
estruturado do Modelo de Jogo que nos permita reajustar a intervenção sempre
no sentido de um direccionamento específico.”
Guilherme Oliveira (Anexo 2) exalta a importância da intervenção do
treinador durante o exercício para orientar os jogadores no sentido destes
perceberem em que contexto da dinâmica colectiva pretendida se situa aquela
solicitação comportamental: “Imaginemos que eu quero privilegiar a minha
circulação de bola e que para treinar isso crio uma situação em que o
fundamental é o jogo de posições dos jogadores, é eles estarem sempre em
diagonais de forma a que a bola possa circular por todos os jogadores e haver
uma certa eficácia. Então, o jogo está a decorrer e como lhes transmiti
exactamente esses comportamentos que queria que eles tivessem, vou intervir

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Análise e Discussão dos Resultados
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precisamente nesses aspectos que estão a ser contemplados ou não. Portanto


é assim que eu faço o direccionamento para que aquilo que eu quero treinar
seja realmente treinado”.
Percebemos assim, a importância da adequação da intervenção do
treinador sendo esta de vincada importância para o correcto direccionamento
da atenção dos jogadores.

4.4. A auto-hetero-superação está no limiar entre sucesso e


insucesso…

Qualquer exercício deve ter uma componente de sucesso e outra de


dificuldade pois “a aprendizagem consiste em adaptarmo-nos para resolver as
situações e se não houver uma condição que nos obrigue a fazer isso nós não
fazemos” (Gomes, Anexo 1). Esta nuance da condição que “obriga a…” é de
extrema importância pois leva a que a construção dos exercícios tendo em
conta qualquer fracção do jogar, tenha que ter presente aspectos evolutivos
concretos que condicionem determinado comportamento que nós queremos
treinar. Assim, não podemos elaborar um exercício sem esta preocupação, ou
seja, ele tem que, pela sua própria configuração, pelo seu próprio contexto,
conduzir ao aparecimento “natural” de um determinado comportamento que por
sua vez tem que constituir uma solução de sucesso para o problema em causa.
Depois há que complexificar, melhorar, aprimorar…
Dentro da mesma linha de pensamento, Gomes (Anexo 1) fala-nos do
conceito de auto-hetero-superação como sendo a melhor maneira de se exigir
solicitações no treino. Esta ideia remete-nos para uma melhoria permanente,
quer colectiva quer individualmente, ou seja, o grau de dificuldade adequado
terá sempre que estar próximo do limiar daquilo que é possível os jogadores
(equipa) fazerem tendo em conta o seu estado de maturação relativamente ao
Modelo de Jogo. Logicamente que este limiar vai sendo crescentemente
superior e daí a necessidade imperiosa de o treinador ir sempre
complexificando o padrão de solicitações de modo a obrigar os jogadores

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Análise e Discussão dos Resultados
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(equipa) a procurar soluções cada vez mais complexas e ajustadas de modo a


conseguirem ter sucesso. Gomes (Anexo 1), auxilia-nos na compreensão disto
com um exemplo advindo da sua realidade prática: “Por exemplo estamos a
fazer um exercício de circulação de bola 11x11 e a equipa tem que ter sucesso
no que está a fazer. Mas se tiver uma oposição de cinco defesas na zona
central estamos a criar uma certa dificuldade pois eles vão ter que superar
esses defesas para conseguirem fazer a circulação de bola. O grau de sucesso
que eles vão ter é o mesmo que iriam ter se fizessem sem oposição mas o
grau de dificuldade não é o mesmo. O grau de dificuldade adequado é aquele
que vai exigir que eles estejam sempre em auto-hetero-superação.”
Este desiderato de uma exercitação em “auto-hetero-superação” exige
um permanente “elevar de fasquia” na medida em que a melhoria de qualidade
é sempre o objectivo a atingir e para isso há que criar problemas novos, mais
difíceis, que exijam um esforço adicional na sua resolução, isto é, só um
aumento da complexidade comportamental exigida conduzirá a uma evolução e
isso consubstancia-se no incremento do grau de dificuldade que se vai
baseando na consolidação dos patamares de complexidade comportamental
inferiores sendo desta forma que Faria (Anexo 3) gere este aspecto particular
da operacionalização do treino: “No início temos que reduzir a complexidade
para que numa primeira fase, a repetição sistemática dos princípios ocorra sem
grandes entraves e depois, numa fase mais avançada onde sabemos que
esses princípios já se consubstanciaram em hábito, a complexidade do
exercício é maior e como tal devemos centrar a nossa preocupação em
perceber de que forma é possível aumentar a qualidade do nosso jogo partindo
de patamares de complexidade cada vez maiores.”

4.4.1. …e depende em grande medida da intervenção adequada do


Treinador

A intervenção do treinador é de extrema importância pois é ele que


regula o processo e nesse sentido tem que perceber em que momentos deve

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Análise e Discussão dos Resultados
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efectuar reajustes entre o grau de dificuldade do exercício e a promoção do


sucesso. É relevante termos em conta que, para haver evolução têm que existir
problemas, mas também é fundamental a presença do sucesso e todo este
sistema dinâmico precisa de ser comandado com sabedoria e perspicácia por
parte do treinador. Gomes (Anexo 1) afiança ideia análoga nos seguintes
termos: “…o exercício que exteriormente é igual, já não é a mesma coisa
passados três meses. Só assim é que os jogadores trabalham em auto-hetero-
superação e daqui a um determinado tempo, consoante a evolução e as
dificuldades da própria equipa, vou actuando sempre.” Este tipo de intervenção
naturalmente que exige um profundo conhecimento daquilo que se pretende
em cada momento do jogo pois só a partir dessa base é que é possível
perceber quando determinado comportamento está bem assimilado e a partir
daí avançar para patamares superiores de complexidade.
Esta aversão à estagnação é amplamente defendida por Guilherme
Oliveira (Anexo 2) que se vê “obrigado” a um tipo de intervenção
particularmente activa neste contexto pois como treinador do Futebol Clube do
Porto, as suas equipas, normalmente, são superiores às outras, daí que a
tendência natural para a estagnação seria até maior: “…se eu não crio ali
determinado tipo de desequilíbrios, complexificando mais o nosso jogo, criando
outro tipo de problemas, mudando de estruturas para que eles tenham uma
cultura maior de compreensão do jogo, adoptando determinado tipo de
estratégias para que a complexidade do nosso jogo seja maior, os princípios a
nível comportamental também mais complexos, acontece uma estagnação, um
certo “deixar andar” e isso é mau em termos evolutivos porque a qualquer
momento aparecem problemas que nós não conseguimos resolver. Assim nós
tentamos ser sempre cada vez melhores, mais complexos e essa procura de
maior complexidade vai provocar permanentemente uma evolução.”
Faria (Anexo 3) sublinha a necessidade de se encontrar um equilíbrio
entre as vertentes em análise (sucesso e dificuldade) e refere-se à importância
da intervenção do treinador para que esse equilíbrio seja promovido: “…cria-se
a maior ou menor complexidade do exercício e reajusta-se nesse sentido para
que as coisas aconteçam com sucesso e, naturalmente, se a situação for muito
facilitada também não tiramos o melhor rendimento, porque percebemos

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Análise e Discussão dos Resultados
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facilmente que os jogadores executaram com a maior das facilidades e, por


outro lado, se for muito complexo não é importante porque a aquisição do que
pretendemos também não está a acontecer. É este equilíbrio que é
fundamental mesmo na nossa relação directa com os exercícios e com a nossa
intervenção na liderança do próprio trabalho…”
Caso não se intervenha nestes moldes surge uma paralisação ou
mesmo o retrocesso de aquisições anteriores na medida em que “isto está
relacionado com a dinâmica dos próprios sistemas complexos em que quando
há um momento de equilíbrio, se não houver desequilíbrio desse equilíbrio, ele
vai manter-se, estagnar, não há evolução nem do sistema nem dos elementos
do sistema…” (Guilherme Oliveira, Anexo 2).
Fica aqui bem patente que a intervenção do treinador neste aspecto do
equilíbrio entre sucesso e grau de dificuldade é de grande complexidade e
exige enorme competência prática do “modelizador”!

4.5. A antecipação permitida pela existência de uma lógica de


resolução dos problemas

Sendo um dos objectivos do treino contrariar a lentidão fisiológica dos


mecanismos cerebrais relacionados com a tomada de decisão, a antecipação
adquire neste contexto uma relevância capital.
A configuração a dar à prática de modo a tornar possível a antecipação
é algo que importa aqui tratar e segundo Gomes (Anexo 1) esse desiderato é
conseguido à custa “de uma prática Específica, isto é, desde o início do
processo, temos que criar um contexto macro que nos vai direccionar sempre
no mesmo sentido e, seja num exercício mais particular, seja num exercício
mais complexo, isso tem que estar sempre presente.” Esta sujeição a um
contexto macro revela-se assim como a chave para cada jogador perceber
antecipadamente o que vai ser decidido pelo colega, sendo esta a premissa
base para se poder antecipar tornando o jogo mais rápido.

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Análise e Discussão dos Resultados
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Guilherme Oliveira (Anexo 2), refere que “o treino pretende, dentro de


determinado padrão de comportamentos, criar uma cultura de forma a que eles
consigam jogar e resolver os problemas que as outras equipas colocam em
função dessa cultura de jogo que eles vão adquirindo.” Mais uma vez é bem
vincada a importância da criação de uma lógica comum de resolução dos
problemas para que a antecipação possa ser uma realidade, isto é, todo o
trabalho efectuado deve estar subjugado a algo hierarquicamente superior,
desde o exercício mais particular, até à exercitação da dimensão completa do
jogar.
Necessidade idêntica de aceleração dos processos de jogo à custa de
uma antecipação permitida por uma determinada forma de treinar, sente Faria
(Anexo 3) para quem a Especificidade que se coloca no treino “vai permitir que
o jogador se adapte a uma determinada forma de jogar e que, em
consequência disso, na competição ele se antecipe num conjunto de situações
permitindo uma resposta bastante mais rápida.”
Esta capacidade de antecipação que se desenvolve no treino está
intimamente relacionada com a criação de hábitos que permitem uma
familiarização com o Modelo de Jogo fomentadora do decréscimo da
necessidade de se pensar muito sobre a decisão a tomar em cada
circunstância do jogo, ou seja, verifica-se o princípio da Estabilidade
(sustentado na supracitada lógica comum de resolução dos problemas) que é,
também ele, uma necessidade pois refere-se a um padrão regular com
constâncias previsíveis e como tal antecipáveis refutando assim a
aleatoriedade total e a ausência de princípios de acção, ou seja, trata-se duma
Estabilidade com um Sentido próprio, bem definido e promovido por uma
congruência de solicitações, isto é, oriundo do treino em Especificidade!
Gomes (Anexo 1) fala-nos de uma antecipação conseguida não só ao
nível do cérebro mas também ao nível do corpo pois muitas vezes o lado
consciente nem chega a estar presente na própria situação. A antecipação
conseguida em termos subconscientes é vista como resultado do “mapa das
experiências anteriores que o corpo vai absorvendo e remodelando” o que nos
leva a crer num protagonismo interaccional cérebro-corpo pois “a antecipação é

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Análise e Discussão dos Resultados
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sobretudo acelerar a rapidez do corpo na leitura do contexto e na sua


participação no mesmo.”

4.6. A desmontagem do jogo referenciada ao plano macro como


chave do plano micro…

A decomposição do jogar em diferentes partes constitui-se como um


aspecto fundamental para o tratamento de algo tão complexo. Esta
desmontagem engloba partes de diferentes tamanhos e diferentes
complexidades mas todas elas têm que estar necessariamente referenciadas
ao todo de onde são temporariamente extraídas. Assim, vemos que o plano
micro do jogar advém do macro daí que não faça sentido falar de um sem o
outro. Gomes (Anexo 1) afirma a este respeito que “quando falamos na
perspectiva macro do jogar temos primeiro de criar um contexto num sentido
lato para que esse lado micro seja sempre direccionado para o mesmo
objectivo.” Do mesmo modo, Guilherme Oliveira (Anexo 2) desmonta o jogo em
“níveis de complexidade diferenciados para depois poder treinar de forma a
que o nível de complexidade superior, o tal macro, seja muito mais evoluído.”
Esta subordinação do micro ao macro é algo que deve estar presente
em todas as situações pois a riqueza que deve surgir no detalhe deve ter
sempre como pano de fundo os Princípios de Jogo. Para dar um exemplo
ilustrativo desta interdependência vejamos o que diz Guilherme Oliveira (Anexo
2): “Mesmo em situações de 1x1 eu peço comportamentos que estejam
relacionados com os comportamentos ao nível dos grandes princípios.” De
igual modo, Faria (Anexo 3) reforça a mesma tese dizendo que “tudo é
subordinado ao macro, o individual está sujeito àquilo que é a linguagem
comportamental comum, o individual tem que estar identificado com isto,
quando o erro ocorre e quando um determinado detalhe, sob o ponto de vista
individual, vai prejudicar o comportamento colectivo, esses equilíbrios
colectivos da equipa têm que se ajustar de imediato.”

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Análise e Discussão dos Resultados
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4.6.1. …o que implica uma fractalidade no plano transversal…

Os diversos momentos do jogo (ataque, defesa, transição para ataque e


transição para defesa) não podem ser vistos como estanques em si mesmos,
isto é, eles dependem-se mutuamente e na construção dos princípios de cada
um deles temos de ter em conta a ligação com os restantes sob pena de haver
uma desarticulação comprometedora da qualidade do jogo.
Neste contexto, Guilherme Oliveira (Anexo 1) fala-nos de uma
fractalidade transversal relacionada com todos os momentos do jogo, ou seja,
os comportamentos pedidos, por exemplo no momento de organização
ofensiva, têm em consideração o momento de perda da bola e por conseguinte
os momentos de transição para defesa e posteriormente de organização
defensiva. Assim há uma interacção entre os diferentes momentos e o que está
a acontecer num determinado momento está a ter uma resposta baseada não
só no sucesso do momento em causa mas também dos momentos
subsequentes tal como um sistema de roldanas (Figura 1) em que a inversão
do sentido de uma delas implica uma resposta das demais visto que estão em
interacção permanente.

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Análise e Discussão dos Resultados
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Organização
Ofensiva

Organização
Defensiva

Transições
(Defensiva e
Ofensiva)

Figura 1 – Sistema de roldanas representativo da


Fractalidade Transversal

No que diz respeito à inter-relação dos diferentes momentos, é


importante que, em qualquer circunstância, seja possível através dele
identificar a singularidade do todo em causa, ou seja, “independentemente da
inter-relação dos momentos e da escala em que se possam evidenciar, eles
devem manifestar as invariâncias que caracterizam os respectivos momentos,
as suas interacções e serem representativos da forma de jogar da Equipa”
(Guilherme Oliveira, 2004, p. 148).

4.6.2. …e uma fractalidade em profundidade…

Todo o comportamento individual deve ser referenciado ao contexto


macro, ou seja, a um comportamento geral que a equipa deve fazer aparecer.

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Análise e Discussão dos Resultados
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Assim, todas as decisões de cada jogador devem ter sempre uma referência
comportamental colectiva pois caso contrário estaremos a treinar aspectos que
não têm sentido para a globalidade, para o padrão mais geral do jogo. Segundo
Guilherme Oliveira (Anexo 2) isto representa uma fractalidade em profundidade
“que está presente na medida em que, por exemplo, eu peço um
comportamento mais geral no momento de organização ofensiva e o
comportamento mais individual tem a ver com esse comportamento mais
geral”.
Para o comportamento geral aparecer, o colectivo, cada um dos
jogadores têm que agir em congruência e isso exige treino, como tal há que
treinar essa sincronização para que todos confluam para o mesmo objectivo.
Imagine-se uma grande peça de um puzzle que para se manifestar na sua
plenitude necessita de ser completada e para isso acontecer são precisas
todas as peças sem excepção (os onze jogadores), cada uma no seu lugar,
desempenhando a sua função específica nesse todo ao qual pertence e
subordina a sua acção (Figura 2). Naturalmente que a influência que cada
jogador tem em determinado momento para o surgimento desse
comportamento geral pretendido não é a mesma no que à magnitude diz
respeito mas todos eles contribuem em confluência para permitir esse objectivo
final. Se pensarmos por exemplo num momento de organização ofensiva, é
aceitável que se dê mais relevância ao portador da bola ou àqueles que se
encontram nas linhas de passe mais próximas (peças maiores), contudo,
mesmo os colegas mais afastados ou com menor probabilidade de receber a
bola (peças menores) devem estar a agir numa participação consonante com o
comportamento almejado, isto é, contribuem (encaixam) para o aparecimento
do comportamento geral pretendido.

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Análise e Discussão dos Resultados
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1 2 3
11 4
Comportamento

9 Geral

Pretendido
5
10 6
8 7
Figura 2 – Puzzle representativo da
Fractalidade em Profundidade

4.6.3. …geridas por um tipo de intervenção anti-determinista

A intervenção do treinador tem que, também ela, ser baseada no plano


macro do seu jogar Específico, ou seja, mediante os princípios de acção
estabelecidos e treinados, há que deixar ao jogador a liberdade de saber agir
de acordo com isso.

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Análise e Discussão dos Resultados
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Uma intervenção determinista que indique de forma fechada o caminho


a seguir é castradora e nega a realidade do Jogo enquanto sistema dinâmico
aberto. Embora este tipo de intervenção seja muito utilizado, a explicação para
tal facto encontra-se na realidade de ser mais simples indicar apenas um
caminho pois assim o treinador tem a possibilidade de saber o que vai
acontecer e permitir-lhe-á conceber apenas uma resposta.
A dificuldade está na complexidade pois os problemas que o Jogo
apresenta são de variadíssima ordem e como tal, dotar a equipa com um único
tipo de solução afigura-se-nos muito limitador. Connosco, Gomes (Anexo 1)
opina neste sentido da seguinte forma: “É claro que é muito mais fácil para um
treinador dizer que o lateral tem que passar sempre porque sabe aquilo que vai
acontecer e a equipa só tem uma resposta. Mas se for um lateral que passa,
dribla ou se calhar simula e vai pelo meio, as interacções têm que ser
diferentes por isso é que falámos em princípio. Depois o lado micro tem que ser
rico nesse sentido, independentemente de, em termos de controlo, isso ser
mais difícil para o treinador.”
Ao enveredar pela explicação daquilo que é um princípio de acção, Faria
(Anexo 3) justifica de que modo contempla a criatividade no seu jogar, isto é, a
partir do cumprimento do princípio surgem muitas formas de lhe dar
continuidade e é precisamente nessa variedade de respostas possíveis que
surge a possibilidade de inovar sendo isto apenas assegurado por uma
intervenção que compreenda em que medida isso é, ou não, enriquecedor:
“quando elaboramos um exercício elaboramos um princípio que não é um fim.
Não é um fim porque permitimos que a partir dali as coisas evoluam em função
da criatividade dos jogadores, subordinadas àquilo que nós pretendemos em
termos globais da equipa, mas damos também liberdade de um mecanismo
não mecânico, isto é, no fundo nós atribuímos o principio, organizamos esse
principio mas ele não se esgota naquilo que nós estabelecemos no
cumprimento do objectivo que queremos que aconteça, mas a partir dai temos
que perceber que tudo tem uma evolução e essa evolução também faz pensar
em novas coisas.”
Pelo acima exposto é importante desenvolver princípios de acção que se
consubstanciem numa lógica de resolução dos problemas e a partir daí

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Análise e Discussão dos Resultados
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enriquecer esse plano macro através de uma riqueza tão grande quanto
possível do plano micro e isso apenas será possível se o treinador tiver a
capacidade de perceber isto e não se deixar absorver pela “vertigem” da
previsão do detalhe.

4.7. A qualidade individual apenas pode ser manifestada quando


está subjugada a algo hierarquicamente superior…

A evolução do todo assenta na melhoria individual de cada um dos seus


constituintes (no caso do futebol são os jogadores que condicionam as
propriedades da equipa), porém essa melhoria tem que ser sobre-condicionada
a referências eminentemente colectivas tendo em consideração que aquilo que
é fundamental é o “como”.
A adaptação de um novo jogador a uma equipa já com os Princípios de
Jogo bem assimilados pode constituir um problema na medida em que o grau
de complexidade vai sempre aumentando e o jogador novo encontra o
processo de treino numa fase já avançada, isto é, as solicitações que estão a
ser feitas no treino partem de uma base que ele ainda não tem. Nestes casos,
a intervenção do treinador assume contornos de enorme importância pois há
que tentar perceber muito bem as características e capacidades desse jogador
para conceber uma solução de integração segundo o modelo de jogo vigente.
Guilherme Oliveira (Anexo 2) refere como exemplo, um jogador que tenha boa
capacidade de drible no 1x1 pois passa com muita frequência pelo adversário e
que está habituado a fazer sempre isso, porém, a ideia de jogo do treinador
assenta na posse e circulação de bola, ou seja, há ali uma incongruência que
tem que ser solucionada pois se por um lado a ideia de jogo não pode ceder na
sua essência, por outro há que aproveitar essa excelente capacidade do
jogador em causa como forma de melhorar o jogo. “Então nós temos que
permitir que ele faça isso porque são as características e capacidades que ele
tem, mas temos que lhe fazer entender que isso pode ser feito sob
determinadas circunstâncias do nosso jogo, por exemplo em determinadas

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Análise e Discussão dos Resultados
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zonas do terreno que de acordo com o nosso jogo são as adequadas para
fazer isso, em determinadas circunstâncias quando o adversário está
desequilibrado e não tem dobras (cobertura defensiva), ou seja, temos que dar
uma cultura de jogo que é o nosso jogo de forma a que ele compreenda
quando é que pode usar as características que tem e dessa forma nós
reajustamos a codificação que ele tem de jogo àquilo que é a codificação do
nosso jogo enquanto equipa e é este «dou aqui, recebo ali» que permite que
por um lado ele entre no nosso jogo, ele evolua como jogador e enriqueça o
nosso jogo”.
Além de existir uma adaptação do jogador, possibilitada pelo treino,
àquilo que é a Ideia de Jogo do treinador, há também que reajustar esse
Modelo de modo a permitir que seja enriquecido por esse elemento mas tudo
isto é muito complexo e exige tempo. A este respeito Guilherme Oliveira
(Anexo 2) diz o seguinte: “Não é possível chegar lá e simplesmente dizer «tu
agora jogas assim porque é assim que eu quero que tu jogues!». Isto é
complexo e verifica-se um «jogo» entre treinador, equipa e jogador em que nós
temos que perceber muito bem quais são as características e capacidades dos
jogadores, depois, tendo em consideração aquilo que nós queremos para o
nosso jogo, conseguindo aqui uma dialéctica entre ideias do treinador e os
comportamentos e características desses jogadores. Aos poucos ele vai
ajustando a nós e nós vamos fazendo com que algumas coisas do jogo dele se
alterem consoante aquilo que são as nossas ideias.”
Muitos são os casos de jogadores cuja qualidade individual é deveras
evidente mas as dificuldades que sentem em pôr as suas capacidades ao
serviço do colectivo impedem-nos de atingirem patamares de rendimento
superior pois essa qualidade constitui-se como um fim em si mesma. Outros há
que, apesar de terem características muito boas em determinados aspectos,
sentem dificuldades comprometedoras noutros, limitando assim o seu
desempenho. A confirmar a existência efectiva desta realidade mesmo a top
temos Faria (Anexo 3) quando lembra que existem jogadores possuidores de
fantásticas qualidades mas “por vezes acontece que as suas características,
apesar de serem interessantes e de nós até acharmos que podem contribuir de
forma positiva para a equipa, ele não se insere na nossa forma de jogar.” Como

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Análise e Discussão dos Resultados
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tratar este problema no treino é algo que nos diz respeito e logo à partida há a
considerar cada caso como único e como tal deve ser tratado com a
particularidade que merece.
A propósito dos diversos motivos que podem estar na origem da
incapacidade em atingir os referenciais colectivos, Guilherme Oliveira (Anexo
2) opina o seguinte: “Uns porque não compreendem o jogo da forma como nós
queremos, outros porque tecnicamente são fracos e nós exigimos, para o
nosso jogo, determinados comportamentos que em termos individuais são
complexos e eles não atingem, outros porque têm características
completamente diferentes daquilo que nós pretendemos para o nosso jogo e
não servem para jogar da forma que nós queremos, ou seja, há muitas
circunstâncias e nós temos que analisar cada caso, perceber os porquês e
depois actuar nesse jogador em função daquilo que são as nossas
características a nível comportamental. Muitas vezes aquilo que acontece é
nós termos que reformular alguns dos nossos princípios precisamente em
função disso.”
O mesmo autor dá-nos um exemplo prático que ilustra de forma
eloquente o tipo de direccionamento a ter nestes casos: “Na equipa onde eu
treino, os defesas centrais são jogadores muito importantes em posse de bola
porque são apoios recuados da equipa quando a equipa precisa, é por eles que
se sai quase sempre a jogar na primeira fase de construção, é por ali que se
sai a jogar quando o guarda-redes repõem a bola, quando a equipa já está
numa fase de construção mais adiantada muitas vezes são eles que recebem a
bola porque não há possibilidade de progressão e há a necessidade de manter
a posse de bola e isto leva a que os centrais, além das qualidades defensivas
que têm que ter enquanto centrais, tenham que ter uma boa qualidade de
passe, de jogo posicional ofensivo, de circulação de bola, saber onde é que a
bola deve entrar em determinadas circunstâncias, resumindo, têm que ter uma
boa qualidade ofensiva e muitas vezes não têm…” Vemos assim que há um
jogo de cedências com o objectivo que isso resulte num enriquecimento
possibilitado por algo que aparece de novo sendo isso vantajoso para ambas
as partes pois evoluem simultaneamente. Perante isto há que saber gerir a
situação e encontrar solução para o problema que estará na confluência de

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Análise e Discussão dos Resultados
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dois aspectos: por um lado actuar sobre o(s) jogador(es) em causa e por outro
reajustar o modelo de forma a tornar menos visíveis os problemas causados
por essa limitação/incapacidade.

4.7.1. …havendo que actuar sobre o(s) jogador(es) em causa…

As limitações de um jogador, sejam elas quais forem, têm que ser


tratadas no treino, sendo obrigação do treinador zelar para que deixem de o
ser, num processo específico e muitas vezes individualizado.
Mediante a Ideia de Jogo do treinador, este deve perceber o porquê de
determinado jogador não conseguir atingir esse padrão comportamental
almejado e a partir daí centrar a sua atenção em dotá-lo das “armas”
necessárias para que no futuro ele esteja mais próximo do perfil desejado.
Tendo como base o último exemplo de Guilherme Oliveira (Anexo 2) a respeito
dos defesas centrais, ele diz o seguinte: “Por um lado temos que melhorar o
mais possível a qualidade ofensiva deles, qualidade de passe, qualidade
posicional, qualidade de escolha etc.”
Ora a interacção (sobre-determinada ao Modelo de Jogo) idealizada pelo
treinador (Figura 3) necessita dos 11 jogadores em total congruência em cada
momento do jogo sendo que cada um tem a sua função específica de modo a
permitir a evidenciação do padrão global, a forma, no caso da figura, o
hexágono. Contudo, imaginemos que o jogador (4) por uma incapacidade de
qualquer ordem não está disponível para dar aquele tipo de contributo,
situando-se noutro registo que adultera o padrão desejado, ou seja, a sua
limitação condena o padrão comportamental (Figura 4). A diferença que vai
daquilo que é o idealizado para o jogador (4) (Figura 5) àquilo que é a realidade
das suas possibilidades actuais (Figura 6) tem que ser esbatida no treino, indo
isto de encontro ao que diz Guilherme Oliveira (Anexo 2): “…problemas que por
vezes surgem obrigando-nos a um trabalho com um nível de complexidade
inferior, situações mais individualizadas, mais sectoriais ou mais grupais para
resolver esse tipo de problemas que vão surgindo permanentemente.”

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Análise e Discussão dos Resultados
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A propósito da adaptação do jogador à equipa, Faria (Anexo 3) diz o


seguinte: “no fundo temos de encontrar um equilíbrio de forma a que se
identifique o jogador com os comportamentos, linguagem grupal e cultura de
jogo da equipa, e tentar fazê-lo como a melhor forma de facilitar a
compreensão da informação dada, seja teórica ou visual e ao mesmo tempo
fazer experimentação prática de um conjunto de exercícios que permitam que
ele vivencie esses mesmos comportamentos de jogo que pretendemos.”
Constata-se assim como algo de importância capital, perceber que há que criar
condições que promovam uma integração progressiva por parte de jogadores
que por qualquer motivo se distanciam daquilo que se pretende em termos de
cultura comportamental colectiva. Logicamente que tudo isto está em boa
medida condicionado à cultura de jogo do jogador pois disso dependerá uma
melhor e mais rápida apoderação daquilo que são os comportamentos
pretendidos pelo treinador permitindo-lhe ter condições para jogar na equipa.

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Análise e Discussão dos Resultados
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1 2

5 7
9
6
4 3
8
10 11

Figura 3 – Interacção imaginada pelo treinador


para um determinado momento do jogo

1 2

5 7
9
6
44 3 8
10 11
3
Figura 4 – Formato da interacção global segundo as
limitações do jogador (4) antes de qualquer reajuste
Jogador
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Análise e Discussão dos Resultados
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Aproximar aquilo que é o estado real (Figura 6) daquilo que é o


idealizado (Figura 5) só é possível através do treino e a referência é sempre o
global (Figura 3) de modo a que o treinador tenha o menor número de entraves
à consecução do seu modelo de jogo, ou seja, para que ele se possa
desenvolver na sua plenitude.

4
4
Figura 5 – Configuração do
contributo idealizado pelo
treinador para o jogador (4) Figura 6 – Configuração do
contributo possibilitado pelas
capacidades do jogador (4)

4.7.2. …e simultaneamente sobre o Modelo de Jogo, reajustando-o


sem perda do Padrão Global

Além do condicionamento das partes para que estas se aproximem do


Modelo idealizado, há também que reajustar o Modelo de modo a que o
esforço convergente dos dois lados resulte num solucionamento mais rápido e
eficaz do problema. Assim há que perceber aquilo que pode reajustar de modo
a que as incapacidades de determinado(s) jogador(es) sejam menos visíveis e
por conseguinte menos problemáticas. A propósito do seu exemplo prático que
temos vindo a seguir, Guilherme Oliveira (Anexo 2) diz que, para além da
melhoria individual há que trabalhar no reajuste do Modelo: “…temos também
de reajustar alguns dos nossos comportamentos colectivos de forma a tornar
menos visíveis essas limitações e incapacidades recuando-os um pouco de
forma a permitir-lhes terem mais tempo e espaço.” Digamos que a equipa é

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Análise e Discussão dos Resultados
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“obrigada” a adaptar-se a essa circunstância e face a isso alteram-se alguns


dos sub-princípios.
Partilhando a sua rica experiência de sucesso a top mundial, Faria
(Anexo 3) refere esta adaptação dialéctica jogador-equipa como um processo
complexo mas exequível mediante determinadas condições. No que diz
respeito à intervenção no Modelo no sentido de o reconfigurar para facilitar a
integração do jogador, Faria (Anexo 3) sublinha a importância da submissão à
sua forma global: "são pequenos reajustes comportamentais em termos de
equipa de acordo com aquilo que é a realidade de um novo elemento que é
introduzido e que vem fazer parte do grupo. São pequenos reajustes mas
nunca é uma alteração drástica da forma de jogar”.
Voltando à analogia de imagens que ilustra a forma como os nossos
entrevistados lidam com este problema, vemos que todas as interacções foram
mais ou menos alteradas (reajustadas) em função do reajuste que aconteceu
devido ao jogador (4). Assim, da interacção idealizada (Figura 3) para a
interacção reajustada (Figura 7) vemos que as interacções foram readaptadas
face à realidade das limitações do jogador (4), que por sua vez já se aproxima
mais do ideal (Figuras 3 e 5) e já se afastou do seu estado inicial (Figuras 4 e
6) conseguindo uma configuração mais consentânea com aquilo que se
pretende (Figura 8). O resultado é uma interacção global diferente mas muito
próxima da originalmente idealizada visto que a forma (o hexágono) não foi
adulterada, isto é, deu-se apenas um reajuste contextual de acordo com a
realidade existente e fruto do treino nesse sentido. A enfatizar a relevância
capital daquilo que é a cultura comportamental estabelecida
independentemente de eventuais reajustes pontuais, Faria (Anexo 3) sintetiza o
seguinte: “O nosso trabalho é criar condições para inserir um jogador no
contexto de grupo sem que ele prejudique a nossa dinâmica colectiva, pois em
nenhum momento ele pode criar perturbação à dinâmica colectiva e para isso
nós promovemos a criação de alguns mecanismos de forma a que ele seja
suportado pela equipa…”

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Análise e Discussão dos Resultados
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1 2

5 7
9
6
4 3
8 4
10 11
Figura 8 – Configuração
da interacção do jogador
Figura 7 – Configuração das interacções (4) após treino
resultante dos reajustes do Modelo e da direccionado para a sua
intervenção específica sobre o jogador (4) melhoria contextualizada

Tal como Guilherme Oliveira (Anexo 2) e em forma de síntese “vemos


que há aqui um jogo de conhecimento das características que eles têm e das
capacidades que eles não têm e que são importantes para o nosso jogo. Face
a isso alteramos alguns dos nossos sub-princípios e treinamos mais
determinados comportamentos deles, tanto a nível individual como a nível
sectorial de forma a apetrechá-los dessas armas que eles não têm e que seria
importante que tivessem. O objectivo é potenciar tanto quanto possível a nossa
forma de jogar tendo consciência desses problemas que por vezes surgem…”

4.8. A criatividade Específica como um desvio treinado, previsto


internamente e enriquecedor…

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Análise e Discussão dos Resultados
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Os desvios criadores, os desequilíbrios, surgem-nos como algo que de


alguma forma tem que estar ligado ao Modelo de Jogo e a forma como isso é
perspectivado, treinado e potenciado é algo que nos interessa de
sobremaneira. Tani e Corrêa (2006, p.17) colocam-se diante de idêntica busca
quando põem a possibilidade de ser o sistema a aproveitar-se da perturbação
para gerar uma nova forma de interacção sendo esse um processo auto-
organizativo: “O desafio é como dotar o sistema com essa capacidade durante
a prática ou o treino. Muitas vezes a solução emerge da habilidade motora
individual de determinados componentes do sistema.”
Quando falamos em Especificidade da criatividade referimo-nos a uma
criatividade assente numa organização Específica, ou seja, como diz
Guilherme Oliveira (Anexo 2) “não pode haver criatividade sem organização
pois isso seria uma criatividade abstracta. A criatividade deve surgir em função
de padrões comportamentais muito concretos e muito específicos.” Assim a
promoção da criatividade apenas faz sentido nestes moldes deixando de ser
específica “quando aparece no abstracto, como forma de recreação, quando
aparece sem haver uma lógica.”
Assim para a criatividade se poder manifestar dentro de uma
organização, há que criar as condições necessárias para isso e dentro desta
lógica surge a modelação do jogar tendo isso em consideração, isto é,
podemos dizer que o aparecimento da criatividade, dos desvios criadores, são
treinados na medida em que se deve ajustar a equipa a isso, à possibilidade da
emergência desse tipo de comportamentos dentro de determinado contexto.
Guilherme Oliveira (Anexo 2) trata este assunto da seguinte forma: “Nós,
sabendo que existem alguns jogadores criativos na equipa, podemos criar uma
dinâmica no nosso jogo para que em determinados momentos, esses
jogadores tenham liberdade para fazerem tudo porque a equipa está
equilibrada, porque a equipa criou condições para eles serem criativos em
determinadas circunstâncias e sabendo a equipa que eles são criativos, está
aberta à espera que eles tenham criatividade tanto em termos ofensivos como
defensivos porque há jogadores que também são criativos a defender pela sua
capacidade de antecipação, pela sua capacidade de leitura de jogo etc. Nós

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Análise e Discussão dos Resultados
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temos que perceber e criar condições para que essa criatividade possa surgir
sem pôr em causa a equipa e, esses jogadores, também têm que perceber
que, em determinadas circunstâncias podem ser criativos porque são as
circunstâncias ideais mas que noutras circunstâncias têm que respeitar a
ordem da equipa e não podem ser criativos porque põem a causa a equipa
porque está desequilibrada ou porque pode ser prejudicial por motivos de
variada ordem.” De acordo com isto é evidente que a criatividade é prevista e
treinada o que lhe confere uma ordem à qual responde sempre em congruência
com os Princípios de Jogo estabelecidos.
Defendendo idêntica perspectiva daquilo em que se deve consubstanciar
a criatividade desequilibradora, Faria (Anexo3) sustenta a importância de não
se castrar esta “arma” de um jogar rico: “Digamos que é fundamental não inibir
a criatividade mas é fulcral que isso esteja inserido na perspectiva do todo pois
tem que existir sempre esse suporte, isto é, não pode ser aleatória nem
desinserida de um contexto pois aí estamos a desequilibrar a nossa equipa em
vez de desequilibrar o adversário.” Esvanece-se assim a ideia duma
criatividade marginal, ao sabor dos apetites individuais e muitas vezes
contrariada pelo treinador com receio dos riscos.
O objectivo de se promover a criatividade é o de melhorar o nosso jogo.
Nunca se pode perspectivá-la como um adorno inconsequente que apenas faz
as delícias do olhar pois isso conduzirá a uma situação em que cada jogador
se recreará consigo próprio desvirtuando-se assim a tal premissa da
criatividade específica subjugada hierarquicamente aos interesses colectivos e
tal como diz Guilherme Oliveira (Anexo 2) “a criatividade insere-se num
contexto que vem enriquecer esse macro, esse modelo de jogo em termos
mais gerais e nesse sentido é extremamente importante.”
Na esquematização da presença da criatividade no Modelo de Jogo
(Figura 9) é visível a comunicação/articulação entre os princípios de cada
momento sendo também identificável o facto de todos eles “beberem” de uma
ordem implícita, ou seja, há uma relação simbiótica entre os princípios dos
quatro momentos e outros, que não estando circunscritos de forma tão
evidente, fazem parte do tal “potencial aberto”.

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Análise e Discussão dos Resultados
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9.g)

9.b) 9.d) 9.e) 9.c)

9.f

9.a)

Figura 9 – Contemplação da criatividade no


Modelo de Jogo

O modelo é algo que se cria, que se define e como tal está balizado por
algo, ou seja, está circunscrito (9.a). Ainda assim está sempre inacabado e
aberto (9.g) a novas nuances que muitas vezes surgem da prática e o fazem
evoluir, que o melhoram…
Numa equipa que privilegie o ataque, o momento de posse de bola é o
mais importante, é aquele hierarquicamente superior e como tal, aquele que
merece mais relevância, daí o cinzento-escuro (menos escuro que o modelo de
uma forma geral que é preto) para os princípios de jogo referentes a este
momento (9.b).
Um cinzento menos escuro que o anterior representa os princípios
referentes ao momento defensivo uma vez que a equipa hipotética a que se
refere privilegia a posse de bola daí que a cor seja um cinzento mais claro pois
é uma parte menos relevante do modelo global (afasta-se mais do preto), (9.c).
Entre os dois momentos anteriores situam-se as transições: transição
para ataque (9.d) e transição para defesa (9.e). A transição para ataque é
menos escura que o ataque pois ainda não é ataque propriamente dito mas é
mais escuro que o momento defensivo pois os princípios que lhe estão

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Análise e Discussão dos Resultados
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subjacentes já são a pensar no momento ofensivo. A mesma lógica foi pensada


para a transição para defesa.
A abertura existente (9.f) configura as articulações entre todos os
momentos e a inter-dependência que os caracteriza. Estes predicados referem-
se não só aos Princípios dos diferentes momentos mas também àquilo que
mesmo não estando definido de forma evidente também é Modelo, Modelo
esse que está aberto (9.g) e como tal também os princípios que o caracterizam
“bebem” algo do exterior que os influencia e os direcciona para uma riqueza
crescente. Poderá inserir-se aqui o conceito de aparente desordem que mais
não será que uma ordem oculta, característica dos sistemas caóticos, o tal
“potencial aberto” que possibilita o aparecimento de inovações sustentadas por
regras de funcionamento colectivo.

4.8.1. …apenas possibilitada por uma intervenção amplamente


competente por parte do treinador

Antes de mais e de acordo com Gomes (Anexo 1) há que ter como


premissa básica o desenvolvimento da dimensão macro do jogar no sentido
dos Princípios de Jogo, do Modelo de Jogo para a partir daí ser possível deixar
um “potencial aberto” que constituirá o cerne da criatividade de cada um
devidamente contextualizada no seio colectivo. Este potencial aberto deve ser
permitido de acordo com uma lógica de rigor e respeito absoluto a algo que é
sempre hierarquicamente superior - o Modelo de Jogo - o que pode até
afigurar-se como um paradoxo. Se por um lado a configuração geral do
comportamento colectivo pretendido para cada momento nunca pode ser posta
em causa, por outro há que desenvolver interacções que possibilitem a
emergência de “desvios criadores” no sentido de enriquecer ainda mais o
nosso jogo.
Esta ideia de “potencial aberto” implica um controlo por parte do
treinador com características particulares, ou seja, exige-se que se deixe o
jogador decidir livremente, mas condicionado a um Sentido comum que todos

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Análise e Discussão dos Resultados
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devem partilhar, e perceber isto é diferente de cada um fazer o que entende


sem estar sob a alçada que qualquer critério ou lógica de funcionamento
colectivo. Sobre isto Gomes (Anexo 1) diz o seguinte: “Acha que você é
treinador se estiver sempre a dizer: «faz isto, leva para a direita e leva para a
esquerda…»? Não é treinador nenhum porque você não está a deixar decidir,
não está a deixar que eles criem um sentido comum porque quem está a dar
isso é o treinador e depois chega-se ao jogo e o treinador não está lá para
fazer isso. No jogo é o próprio contexto que orienta e exige uma resposta e se
não houver uma lógica comum criada entre os 11 jogadores é mais difícil.” Há a
considerar que treinar desta forma exige enorme competência por parte do
treinador uma vez que é bem mais complexo descortinar padrões com
variabilidade do que optar pelo lado mecanicista onde sabemos sempre que se
fará a mesma coisa, porém, há que contrariar a tendência facilitista e procurar
responder à realidade do jogo com um direccionamento tão específico quanto
possível.

4.9. A preponderância da prática na aquisição de hábitos enquanto


“capacidade organizante”…

Naquilo que é a aquisição de hábitos comportamentais por parte dos


jogadores, há a ter em consideração um plano mais teórico relacionado com a
identificação verbal e aquele ao qual é dada a primazia, o plano da prática por
excelência. Gomes (Anexo 1) não tem dúvidas ao afirmar que a aquisição de
hábitos surge “90% pela interacção - nem é pela acção mas sim pela
interacção entre os jogadores - e 10% pode ser pela identificação verbal.”
O “saber sobre um saber fazer” e o “ saber fazer” são duas faces da
mesma moeda mas aquilo que é decisivo é o saber fazer no momento do jogo
independentemente de estar conscientemente subordinado a um “saber sobre
esse saber fazer” pois tal como diz Gomes (Anexo 1) “para que aquilo aconteça
no jogo e para que seja realmente prática, no interagir, é determinante que seja
sobretudo no domínio da acção.”

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Análise e Discussão dos Resultados
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Esta superior importância da prática refere-se a uma prática de


qualidade pois a aquisição de hábitos é potenciada através da vivenciação dos
contextos de exercitação especificamente direccionados. Gomes (Anexo 1)
fornece-nos um exemplo prático eloquentemente ilustrativo desta ideia: “a sua
equipa está a circular mal a bola no sector médio, porque os dois médios
interiores estão muito afastados, você tem que comunicar isso aos jogadores:
«vocês estão muito afastados». Mas mais importante do que isso, é comunicar-
lhes isso através do exercício e fazer com que a bola circule nesse espaço
fazendo com que haja insucesso ali. Eles estão muito afastados e você
reconhece isso mas eles conseguem ter sucesso na mesma e por isso apesar
de lhe dizer que estão muito afastados, eles não vão mudar, porque não
sentem necessidade disso na prática. E então, você tem é que provocar o
insucesso com a equipa adversária a explorar isso: «eles estão muito
afastados: então vão posicionar-se aqui.» Se não houver um contexto da
própria acção, para fazer com que as coisas mudem elas não mudam porque
não é ao dizer que estamos afastados que as coisas mudam!” Este
condicionamento que “obriga” a criar soluções é algo muitíssimo importante,
daí que a competitividade seja um factor a ter em consideração para uma
prática de qualidade pois só com a sua presença é que podemos falar na tal
“necessidade que obriga a…”.
Pelo exposto vemos que há uma determinada configuração a dar à
prática para que esta potencie no máximo o aparecimento dos comportamentos
desejados e para que estes se transformem em hábitos abertos que
solucionem efectivamente os problemas do jogo. É neste sentido que Gomes
(Anexo 1) refere o conceito de capacidade organizante para caracterizar os
hábitos que pretende implementar: “O hábito não é uma coisa estanque por
isso é que falamos em capacidade organizante… Organizante porque se trata
de organizar as coisas de uma determinada lógica mas não sempre da mesma
coisa ou da mesma forma.”

86
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Análise e Discussão dos Resultados
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4.9.1. …que deve estar associada a uma identificação teórica


consciente dos comportamentos a manifestar…

O plano relacionado com uma identificação mais teórica sobre aquilo


que se pretende no plano da interacção prática reveste-se de alguma
importância, e como tal, não devemos descurar este aspecto. Guilherme
Oliveira (Anexo 2) chega mesmo a afirmar que dá muita importância a este
plano na medida em que faz parte do processo que auxilia à transformação dos
comportamentos pretendidos em hábitos abertos. Esta plasticidade que se
deseja, fundamenta-se no cariz aberto e dinâmico do Jogo de forma a que os
hábitos sejam adaptáveis às circunstâncias freneticamente variáveis do
mesmo. É neste contexto que uma correcta identificação verbal com aquilo que
são os comportamentos a manifestar adquire importância pois constitui um
incremento da cultura de jogo específica que auxiliará o processo de análise
contextual a que são constantemente submetidos. Corroborando, Guilherme
Oliveira (Anexo 2) expõe a seguinte situação: “muitas vezes aquilo que
acontece é que, no treino, estão a acontecer determinado tipo de problemas
que eles não resolvem e nós parámos e perguntamos aquilo que está a
acontecer. Se eles conseguirem responder por que é que estão a fazer mal,
por que é que tomaram determinadas opções em função daquilo que
aconteceu e não tomaram outras, eles têm consciência daquilo que aconteceu,
eles estão a ler o jogo, estão a analisar aquilo que se está a passar, estão a
agir em função dessa análise.”
A complexidade de determinada exigência faz aumentar a necessidade
de um apoio teórico, ou seja, este constitui-se como um auxílio do processo
aquisitivo sendo isso atestado por Faria (Anexo 3) que aponta também essa
necessidade quando se pretende dar um esboço do padrão comportamental
desejado a um grupo novo que ainda tem pouca identificação com as ideias do
treinador. Um outro contexto referido por Faria (Anexo 3) onde o recurso a um
tipo de informação menos prática pode ser utilizado refere-se à correcção de
erros repetidamente frequentes: “Também se pode tornar importante quando
vemos que acontece algo que não é congruente com o que pretendemos e que

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Análise e Discussão dos Resultados
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em consequência disso tem que ser corrigido para não se repetir, isto é,
quando na prática não se consegue resolver é uma possibilidade recorrer a um
apoio visual que facilite o aparecimento daquilo que pretendemos.” A utilização
destes recursos constitui-se assim como uma realidade também a top, o que
diz bem da sua utilidade naquilo que é a aquisição/consolidação de
determinados comportamentos.

4.9.1.1. …possibilitada por uma transmissão verbal e pelo uso de


imagens

Justificado que está o porquê da importância da identificação teórica


com o padrão comportamental, importa agora perceber em que moldes isso é
feito para além da dimensão prática anteriormente abordada (capítulo 4.9.).
Guilherme Oliveira (Anexo 2) refere a transmissão verbal e recurso a imagens
como os meios preferenciais para a operacionalização deste objectivo: “Aquilo
que eu faço é apresentar os comportamentos de uma forma verbal e de uma
forma visual para eles terem uma noção muito exacta daquilo que eu quero que
eles depois façam, pois embora eu pretenda que os comportamentos se
transformem em hábitos, também pretendo que, antes de se transformarem em
hábito, eles percebem aquilo que estão a fazer, para actuarem no Jogo em
função das necessidades que o próprio Jogo pede mas sempre dentro de
padrões comportamentais que nós acharmos que são os ideais para a nossa
equipa. Por isso é extremamente importante nós explicarmos bem aquilo que
queremos para eles perceberem e a visualização de vídeos com esse tipo de
comportamentos é fundamental para essa mesma compreensão.”
Torna-se particularmente importante perceber de que modo é que a
visualização de vídeos se deve processar, isto é, em que contextos deve
ocorrer em que momentos se torna pertinente e em que aspectos deve incidir.
Guilherme Oliveira (Anexo 2) desenvolve a ideia que quando
percepcionámos o que quer que seja, fazemos uma interpretação baseada no
historial de experiências que temos, ou seja, existe sempre um grau de

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Análise e Discussão dos Resultados
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subjectividade inerente a qualquer interpretação e, a que se refere ao


entendimento e assimilação do modelo de jogo não foge à regra. Neste sentido
há que encontrar estratégias que diminuam este grau de subjectividade que se
pretende tão reduzido quanto possível de modo a permitir a construção de um
padrão comportamental que todos dominem e a visualização de vídeos
promove uma “identificação e uma interpretação muito mais ajustadas.” A título
de exemplo ilustrativo o mesmo autor propõem o seguinte: “Imaginemos que eu
digo que quero a minha equipa com uma boa posse de bola, muita circulação
com o objectivo de desorganizar a equipa adversária e aproveitar essa
desorganização para depois dar profundidade. Para uns a circulação é uma
coisa, para outros é outra, dar profundidade para uns é meter logo a bola nos
jogadores mais ofensivos por trajectórias aéreas, para outros não, e então,
para definir o padrão de jogo que pretendo, mostro um filme com isso e eles
vêm e ficam com uma ideia muito mais concreta daquilo que eu pretendo. Sem
dúvida alguma que a visualização de imagens é extremamente importante para
eles perceberem aquilo que nós queremos.” Este intuito da eliminação da
subjectividade associado ao incremento da cultura específica do jogo a
implementar, são portanto, os pilares que justificam a utilização dos meios
audiovisuais.
Afigura-se agora importante sublinhar, em forma de síntese deste
assunto, que esta identificação teórica está presente na concretização do
próprio Modelo de Jogo não sendo portanto um corpo estranho a este
constructo hierarquicamente condicionador de tudo. Em total harmonia com
esta perspectiva, Gomes (Anexo 1) lembra que “A configuração do modelo de
jogo não se pode restringir ao lado do exercício em si, passa muito pelo antes,
após, a interacção, passa por tudo isso.”

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Análise e Discussão dos Resultados
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4.10. A necessidade de uma SUPRA-ESPECIFICIDADE face à


escassez de tempo para treinar quando se está a top

Quando se trabalha a top, o nível de exigência é máximo e isso reflecte-


se também num calendário competitivo sobrecarregado de jogos onde
competições nacionais, internacionais e mesmo a nível de selecções,
preenchem uma época desportiva com jogos duas vezes por semana ao longo
de quase todo o período competitivo. Face a esta realidade o processo de
treino tem que ser gerido com cuidados muito particulares pois à necessidade
de vencer, junta-se a necessidade de treinar para que isso seja possível o que
faz emergir um paradoxo: Ganhar exige que se treine mas não existe muito
tempo para isso!
O facto de existir a necessidade de ganhar obriga a que haja qualidade
no jogo da equipa mas o tempo que separa os jogos é o mínimo necessário
para se poder recuperar, ou seja, a promoção dessa qualidade que conduz às
vitórias terá que ter uma configuração muito particular. Faria (Anexo 3) fala-nos
numa SUPRA-ESPECIFICIDADE como o caminho a seguir e os resultados
conseguidos atestam a possibilidade de se conceber a realidade desta forma:
“Numa época extremamente competitiva onde por vezes a falta de tempo para
treinar obriga-nos a fazê-lo numa supra-especificidade relativamente ao
Modelo, a única preocupação que temos é treinar comportamentos de jogo, é
treinar princípios, é atender ao lado estratégico em função do adversário numa
perspectiva de antecipar o que vai acontecer no próximo jogo, corrigir
comportamentos do jogo anterior, ou seja, temos que rentabilizar ao máximo o
tempo que temos para treinar, para potenciar ao máximo o padrão
comportamental que queremos e não pensamos em mais nada!”
Desta forma, a prioridade é dada a aspectos relacionados com a
organização colectiva que terão que ser tratados de acordo com a lógica de
recuperação subjacente a cada caso específico mas, o que há a ressalvar, é o
primado atribuído à Especificidade da repetição sistemática dos Princípios de
Jogo como chave do sucesso quando se trabalha a top sendo esse o modo de
operacionalização de Faria (Anexo 3) que chega mesmo a afirmar

90
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Análise e Discussão dos Resultados
_____________________________________________________________________________

peremptoriamente: “Eu não vejo outra possibilidade que não seja essa
repetição sistemática em Especificidade dos Princípios de Jogo porque é
FUNDAMENTAL perceber que a organização é o sucesso e quanto mais
organizada for a equipa mais probabilidade de sucesso haverá.”
Assim sendo fica provada a possibilidade de não utilização de meios
“auxiliares” como a musculação, o treino aquático ou o personal-training sendo
isso justificado por Faria (Anexo 3) com a necessidade de evolução do jogo, o
que nos leva a concluir que esses meios alternativos em nada contribuem para
essa evolução almejada: “A nossa perspectiva de trabalho não fomenta isso
porque não acredita que isso se possa privilegiar em termos de rendimento e
como o que nós queremos é rendimento e este passa por organização…” A
perspectiva proposta por Faria (Anexo 3) e operacionalizada na prática com
resultados avassaladores, opta antes por uma centralização na organização de
jogo sustentada na anteriormente referida SUPRA-ESPECIFICIDADE que se
constitui como uma demanda fundamental em virtude da limitação temporal
para treinar. No intuito de vincar bem a não contemplação dos meios
alternativos antes abordados, o mesmo autor acentua essa falta de tempo
como mais uma evidência que sustenta a sua metodologia de
operacionalização: “nós não temos tempo para treinar aquilo que é
fundamental para nós, quanto mais para treinar coisas que não fazem parte da
nossa forma de pensar o treino… e que fique bem claro que elas não existem
na nossa forma de treinar!”
Esta incursão por aquilo que são as exigências num patamar de top, são
a nosso ver muito proveitosas pois deve ser sempre este o farol indicador do
caminho a seguir, mesmo considerando que quando o nível de exigência não é
tão acentuado, a possibilidade de sucesso mantém-se quase inalterada
independentemente de alguns “exageros”, mas se ambicionamos desenvolver
uma cultura de exigência que permita um transfer para patamares superiores
de competitividade há que ter sempre como referência a realidade que
enfrentam os melhores.

91
_____________________________________________________________________________
:
Conclusões
_____________________________________________________________________________

5. Conclusões

A Periodização Táctica é uma «fenomenotécnica» na operacionalização


do Treino na medida em que a intervenção do treinador durante os
exercícios é um factor fundamental para o seu correcto
(re)direccionamento em função do Modelo de Jogo estando portanto
sempre presente.
A mera existência de um Modelo de Jogo não é suficiente para que os
comportamentos sejam condicionados nesse sentido pois há que treiná-lo
de forma a enraíza-lo no imaginário dos jogadores e da equipa, torná-lo
presente de forma consciente e seguidamente subconsciente.
O Treino deve exercer efeito sobre princípios de acção e não
taxativamente sobre os movimentos a serem executados pois esses
inserem-se na dinâmica imprevisível do “aqui e agora” e para isso não há
equação.
O Treino é o condicionador do imediatismo decisional que caracteriza o
jogo, constituindo-se as imagens e os padrões neurais como os princípios
que queremos estabelecer na equipa e que nele emergem em “plena
espontaneidade”.
O jogador de futebol actua, mais ou menos espontaneamente, de acordo
com aquilo que treinou usando para tal as armas da actividade intrínseca
e espontânea que o seu sistema nervoso permite, indo buscar o
comportamento adequado para cada situação específica ás memórias
apreendidas no treino.
Uma equipa de futebol é exteriormente regulada pelo treinador que, como
regulador externo, deve fazer surgir uma identidade comportamental na
equipa de modo a que esta se reja por princípios comuns.
O treino em Especificidade é o máximo director do “jogar” de uma equipa
pois será ele o responsável pelo sentido da familiaridade e
reconhecimento que conduzem aos mesmos padrões de activação no que
às decisões diz respeito.

93
_____________________________________________________________________________
Conclusões
_____________________________________________________________________________

O jogador deve ver e sentir na prática a validade e utilidade daquilo que


lhe é requisitado, ou seja, a organização e o reforço da acção estão sob o
controlo de uma recompensa recebida do mundo exterior.
A Especificidade na repetição sistemática dos Princípios de Jogo está na
interacção dos princípios da alternância horizontal, da progressão
complexa e das propensões devidamente contextualizados.
Na crescente assimilação dos Princípios de Jogo, o aumento de
complexidade desempenha um papel fulcral.
O aumento de complexidade é uma necessidade permanente uma vez
que a riqueza do “jogar” nunca se esgota.
A focalização da atenção dos jogadores é direccionada pela configuração
prática do exercício e por uma intervenção do treinador centrada nos
aspectos hierarquicamente mais importantes.
O grau de dificuldade adequado de um exercício é aquele que exige
aplicação para alcançar sucesso.
A intervenção do treinador é de extrema importância no constante
reajuste que permita que os jogadores se exercitem em auto-hetero-
superação.
A rapidez de processos deve-se ao desenvolvimento de uma lógica
comum de resolução dos problemas que permite que perante
determinadas situações de jogo, o jogador aja, activando os neurónios
dopaminergéticos, o que lhe permite uma antecipação na sequência da
aprendizagem garantida pelo treino exaustivo desse “jogar” almejado.
A desmontagem do jogo referenciada ao plano macro do “jogar”, constitui-
se como a chave de actuação sobre o plano micro.
A ênfase dada ao indivíduo deve ter um referencial colectivo, isto é, o
direccionamento do processo de evolução individual tem como “farol” uma
crescente identificação com a matriz comportamental colectiva idealizada.
A imprevisibilidade enriquecedora do “jogar” é fornecida por uma aparente
desordem que deve, ainda assim, estar sustentada pelo Modelo de Jogo
exigindo uma intervenção amplamente competente por parte do treinador.
O discurso oral e a exercitação de outros factores que não os
comportamentos tácticos pretendidos, não sortirão efeitos na evolução
94
_____________________________________________________________________________
Conclusões
_____________________________________________________________________________

qualitativa da organização colectiva pretendida se não forem


acompanhados por uma prática devidamente configurada para isso.
A top, a necessidade de se trabalhar exclusivamente sobre a evolução do
“jogar”, é incrementada pelas limitações temporais impostas pela
densidade do calendário competitivo.

95
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.
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102
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Anexo 1 – Entrevista à Professora Marisa Gomes
_____________________________________________________________________________

7. Anexos

Anexo 1:

Entrevista à Professora Marisa Gomes


(Treinadora dos quadros do Futebol de Formação do Futebol Clube do Porto)

Carlos Campos: A repetição sistemática dos princípios assenta em


três pilares fundamentais: o princípio da progressão complexa, o
princípio da alternância horizontal em especificidade e o princípio das
propensões. De acordo com a sua experiência concorda que este último é
o mais complexo, o que exige melhor conhecimento do jogo, o que
contribui de forma mais efectiva para o “jogar” específico que pretende?

Marisa Gomes: Para conseguir um determinado jogar são precisos


esses três princípios mas mais difícil que esses três princípios é a ligação entre
eles. O que é que eu quero dizer com isto? É que em primeiro lugar para se
conseguir um determinado jogar é preciso conhecê-lo e conhecer é ter um
modelo de jogo que vai direccionar a Intencionalidade daquilo que nós
pretendemos. A partir daí é que surge o Sentido ou a Especificidade que
depois nos vai permitir cumprir os princípios da progressão, da alternância
horizontal e o princípio das propensões. Repare que o princípio das
propensões, se não respeitar os outros dois, será Específico? Digamos que a
ligação destes três princípios metodológicos tem que partir da mesma base,
que é o Sentido da Especificidade, no sentido da Intencionalidade. Para
esclarecer um pouco melhor isto, uma vez que se trata de três princípios
metodológicos bastante complexos, vamos detalhá-los para melhor os
compreender.
Partimos de um jogar que é a nossa Intencionalidade e a daí vamos
desenvolver um modelo que é a adaptação dessa Intencionalidade à realidade.
I
_____________________________________________________________________________
Anexo 1 – Entrevista à Professora Marisa Gomes
_____________________________________________________________________________

Posso ter um modelo em que quero a minha equipa a circular a bola, em


posse, a fazer golos mas encontro-me numa realidade em que a equipa que
me vai concretizar essa ideia não tem a qualidade que eu gostaria que eles
tivessem para concretizar esses princípios, como por exemplo num contexto
em que a equipa luta para não descer. Então terá algum sentido, para uma
equipa que luta para não descer, dar primazia, no sentido da hierarquização
dos quatro momentos, à circulação e manutenção bola? Talvez o ideal seja
começar com uma organização defensiva que me permita depois chegar a
isso. Se está a lutar para não descer é porque em termos de organização
ofensiva e da ligação dos quatro momentos deve ter algumas debilidades.
Portanto partimos da ideia do jogar e desenvolvemos o modelo que é a
contextualização dessa ideia. Referimo-nos à operacionalização e esta apenas
é Específica se nós, em todos os momentos, tivermos em conta aquilo a que
ela se subjuga: o modelo. Imaginemos que o jogar complexo é o mapa de
Portugal que pode ser dividido em regiões, mas todas fazem parte de Portugal.
A Especificidade é Portugal, o país, e todas as coisas que aí existam não
deixam de ser do país (a cidade, a aldeia, um bocadinho de terra) e tudo isto é
o jogar, é o modelo. Ora o princípio da progressão passa exactamente por aí:
como é que vamos chegar ao jogar que pretendemos? Temos que começar de
acordo com o contexto, a partir da organização defensiva uma vez que em
termos aquisitivos é mais fácil para a equipa perceber aquilo que se pretende,
porque não temos a bola. Por isso, é muito mais fácil desenvolvermos uma
interacção se estivermos ligados perante o mesmo objectivo do que
desenvolver uma interacção onde para além disso ainda tenhamos a bola em
nosso poder. O facto de construirmos uma identidade comum sem bola, isto é,
não termos que estar a tratar dela e estarmos todos a jogar em função da
mesma, é mais fácil para uma primeira assimilação.
No entanto, também posso começar por uma organização ofensiva, isso
depende dos contextos, do próprio modelo, do próprio jogar. A progressão
passa, começando pelo aspecto mais geral, por saberem que estão em
Portugal e depois partirem para as regiões, em que um sector da defesa é uma
região, o defesa lateral é outra mais reduzida e o defesa central é uma mais
próxima e por isso é que se fala em fractais porque são bocados dentro do

II
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Anexo 1 – Entrevista à Professora Marisa Gomes
_____________________________________________________________________________

todo. O sentido da progressão é exactamente isso porque a progressão do


menos complexo para o mais complexo tem uma ordem e essa ordem só tem
Sentido quando conhecemos bem o jogar e percebemos o que é mais difícil.
Imagine que tem uma equipa que luta para ser campeã, tem uma boa
organização ofensiva e está habituada a ter determinado padrão de jogo. Se
calhar, para esta equipa, começar pela organização defensiva é pior e por isso
é que eu digo que tem que haver uma contextualização. Está tudo relacionado
com o Sentido porque é que vai dar o conceito da progressão complexa.
Vemos então que a progressão é um princípio mas que se não houver a
Especificidade que falei, a contextualização do modelo e da nossa ideia, não
tem qualidade nenhuma. Agora, se queremos concretizar este princípio da
progressão vamos ter que construir o jogar e isso não passa por treinar todos
os dias da mesma forma, isto é, voltando ao exemplo de há pouco, para
conhecermos Portugal não podemos andar todos os dias no mesmo sítio,
temos que andar hoje num local, amanhã noutro e assim sucessivamente. Isto
em termos de alternância horizontal permite-nos trabalhar o jogar em registos
diferentes, para que haja adaptabilidade. Note que, em termos aquisitivos, o
treino ideal seria competir todos os dias porque é o mais exigente mas se
fizermos isso quatro dias seguidos com certeza que não obteremos o
rendimento desejado. Os princípios de adaptabilidade exigem que haja uma
gestão e esta gestão em alternância horizontal tem que ser uma alternância do
jogar. Dentro de Portugal percorremos regiões diferentes de modo a que,
chegados á competição consigamos ser Portugal, um todo, uma dinâmica
colectiva desenvolvida. Para fazer isso temos que pegar nas partes do jogar,
mas estas partes não podem ser todas do mesmo tamanho porque se
comermos a mesma quantidade ou a mesma coisa todos os dias acabamos
por enjoar! No desenvolvimento do padrão semanal temos de ter em conta as
exigências Específicas do processo e fazer com que hajam condições para se
treinar em intensidades (desempenhos) máximos. Por isso é que falámos do
princípio da alternância horizontal em Especificidade, através do qual se varia o
registo de solicitações Específicas em cada dia porque se você num dia
promove situações onde predominam as contracções excêntricas e no dia
seguinte vai funcionar nesse mesmo padrão (ou registo), de certeza que não

III
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Anexo 1 – Entrevista à Professora Marisa Gomes
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vai ter as mesmas condições de realização pelo desgaste (assimilação) do dia


anterior. Reconhecendo isto, as consequências – desgaste do que se faz –
devemos alternar o registo e para isso fraccionamos o jogar para que em cada
dia estejamos a desenvolver esse mesmo jogar gerindo esses aspectos.
Sabemos que se trabalharmos numa dimensão complexa (completa) do
jogar, as exigências serão maiores do que numa pequena fracção devido ao
grau de complexidade e do tipo de exigências (padrão de contracções que a
concretização desenvolve) que isso implica. Por exemplo, se eu tenho jogo ao
domingo, não vou trabalhar numa dimensão complexa à segunda-feira porque
o lado aquisitivo do jogo ainda está a ser assimilado pelos próprios jogadores.
A necessidade de recuperação passa por dar tempo ao corpo (quando falo em
corpo incluo também a mente) em assimilar aquilo que foi conseguido. Imagine
que vai andar de bicicleta. Não é só no tempo em que está a andar que a
adaptação decorre pois a assimilação perdura e no jogar é exactamente a
mesma coisa. Neste sentido costumo desenvolver o nível de organização
complexo no dia que está mais distanciado das competições porque em termos
de complexidade é muito exigente (fadiga central) e para além disso
predominam contracções de menor tensão, maior duração e menor velocidade,
de grande desgaste e vou precisar de tempo para recuperar.
Comecemos do ponto zero (do padrão semanal): a competição ao
domingo. Face ao desgaste que este momento comporta em termos de fadiga
central e periférica temos de dar tempo de recuperação para que possamos ter
condições para desempenhos máximos. Então, à segunda-feira dá-se a folga e
por isso não colorimos este dia no morfociclo-padrão porque cada um faz neste
dia o que lhe apetece. No dia seguinte, na terça-feira, os jogadores ainda não
estão recuperados e portanto o objectivo assenta na recuperação activa. Para
isso abordamos uma pequena fracção do Jogar (reduzido grau de
complexidade) uma vez que em termos centrais, os jogadores ainda estão
fatigados a não vamos agravar esse estado com situações muito exigentes
(pela sua densidade) onde não vão ter o máximo desempenho e precisarão de
mais tempo para o conseguir. Podemos desenvolver situações onde
abordamos partes do jogar, onde o tempo de recuperação entre as realizações
é grande, o tipo de contracção dominante é de tensão reduzida, de menor

IV
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Anexo 1 – Entrevista à Professora Marisa Gomes
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densidade e maior e maior velocidade. No dia seguinte, na quarta-feira, já


podemos promover situações onde as exigências serão noutro registo, onde
predominam as contracções de maior tensão, menor duração e mais
velocidade. Em virtude desta configuração, desenvolvemos uma fracção
intermédia do jogar ao nível dos sub-princípios. Na quinta-feira, já têm
capacidade aquisitiva e portanto podemos desenvolver a dimensão completa
do jogar onde predominam as contracções de menor tensão, maior duração e
menor velocidade. Na sexta-feira, não podemos funcionar no mesmo registo,
portanto criamos situações onde predominam contracções de menor tensão,
menor duração e maior velocidade. Então, neste registo, podemos desenvolver
pequenas fracções do jogar ao nível dos sub-sub-princípios ou articulação
entre eles.
Esta alternância horizontal permite-nos adquirir sempre qualquer
coisinha do jogar de uns dias para os outros. Temos que conseguir que haja
sempre aquisição e por isso é que falamos em Periodização Táctica, no sentido
de ser aquisitivo, não ser uma coisa abstracta, e daí haver a absoluta
necessidade de haver condições de trabalhar ao nível de desempenhos
máximos.
Em relação ao princípio das propensões, está ligado aos outros dois
porque se fizermos um exercício à segunda-feira para o qual eles não estão
preparados, não adianta, mesmo que ele seja propício ao aparecimento de
algo. Por isso é que eu digo que o difícil e complexo neste tipo de metodologia
é gestão entre estes três princípios metodológicos.
O princípio das propensões chama-se assim porque queremos criar um
contexto que seja propenso a determinada aquisição e eu digo contexto
porquê? Porque tem que ter um sentido associado pois só é aquisitivo quando
ao fazermos, soubermos minimamente aquilo que estamos a fazer. Por
exemplo, se estivermos a fazer um exercício completamente abstracto ou
descontextualizado, os jogadores fazem-no e estão no exercício mas…
Imagine que fazemos um exercício de passe numa estrutura triangular e os
jogadores podem estar a fazê-lo uns com os outros e se eu disser que a
estrutura triangular é o pivot e os dois médios, aí a configuração do passe é
diferente. Portanto, a propensão desse acontecimento é diferente pelo Sentido

V
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Anexo 1 – Entrevista à Professora Marisa Gomes
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que é dado às coisas. A operacionalização destas propensões decorre em


duas dimensões: primeiro, numa dimensão maior que é a dimensão do Sentido
porque temos que desenvolver o jogar por níveis de organização e temos que
articular os sentidos e hierarquizar; segundo, numa dimensão mais reduzida, é
saber nesse mesmo sentido, que contexto é que você proporciona. Por
exemplo: se queremos desenvolver o princípio da posse de bola e trabalha-lo
numa dimensão inter-sectorial entre os 4 defesas e dois médios numa estrutura
de 4.3.3. Em termos de Sentido, a propensão vai ser para que desenvolvam a
circulação de bola através do guarda-redes, defesas e médios. Mas que
contexto vamos proporcionar para acontecer isto? Em espaço largo ou espaço
comprido? Com oposição ou sem oposição? Fazendo com que a bola saia
sempre para um lado ou se bola sai noutro lado? Se têm que ganhá-la e depois
circulá-la? Posso colocar a bola em condições facilitadoras, isto é, um
bocadinho já de transição em que ganham a bola em condições propícias à
circulação e a partir daí fazer aparecer aquilo que queremos. Mas que
contexto, em termos do aqui e agora, é que vamos proporcionar? Vamos
desenvolver aquilo mas como? E isso já é numa dimensão diferente pois você
tem o objectivo e depois tem que ver como ele decorre na prática, ao nível
destas coisas próprias da configuração do exercício.
Assim, os três princípios metodológicos estão todos inter-ligados e não
posso dar mais importância a nenhum deles. Se não houver inter-ligação, que
é a Especificidade, é muito difícil de se conseguir sobretudo se tivermos em
conta o lado do Sentido e depois como é que ele se vai concretizar, em termos
de contexto de exercitação e como é que acontece, é algo muito difícil. Agora,
não podem deixar de estar inter-ligados pelo jogar, por isso é que o modelo é
extremamente importante porque é uma coisa que se vai desenvolvendo e é o
que vai dar Sentido á articulação destes princípios todos: da especificidade, da
alternância horizontal em especificidade, da progressão complexa em
especificidade e propensão em especificidade.

VI
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Anexo 1 – Entrevista à Professora Marisa Gomes
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P: Tomando sempre a acção como primordial naquilo que é a


aquisição de hábitos que queremos implementar, que importância dá à
identificação teórica com os princípios de jogo?

R: Tal como você diz a acção é primordial na aquisição dos hábitos


porque o jogo acontece no plano da acção. Se temos de hierarquizar, não
tenho dúvidas nenhumas em dizer que 90% é pela aquisição da interacção -
nem é acção é interacção entre jogadores - e 10% pode ser pela identificação
verbal. Porque repare: os jogadores podem receber e circular a bola, virar o
jogo, dar ritmo, e se lhes perguntarmos eles sabem tudo. Mas o difícil é no
momento do jogo, o saber fazer. Temos muitos jogadores que não sabem
dizer, não sabem responder, mas jogam e repare que os miúdos de 5, 6, 7 e 8
ou 9 anos, não sabem dizer nada disso e eles jogam, circulam a bola, mantêm-
na na sua posse apesar de não saberem dizer o que é isso (em termos
conceptuais). Não têm capacidade verbal, ou digamos, em termos conscientes
que isto é circular a bola ou posse de bola ou virar o jogo, os conceitos que nós
normalmente utilizamos. É importante perceberem e tomarem consciência
daquilo que podem estar a fazer mal. Mas, para que aquilo aconteça no jogo e
para que seja realmente prática, no interagir, é determinante que seja
sobretudo no domínio da acção. Porque sabe perfeitamente que existem
muitos jogadores que lhes perguntar se sabem os conceitos do que fazem, eles
não sabem mas que jogam, jogam! Se você pedisse ao Zidane ou ao Makelele
para dizerem tudo aquilo que faziam (mudar o corredor, alterar o ritmo, variar o
jogo etc.), ou se lhes falasse em ritmos, transições, momentos entre outras
coisas, eles podiam não ter uma noção tão clara como tinham no momento de
realização no jogo. Este domínio da aquisição de hábitos só é conseguido com
a prática, através da vivenciação dos contextos de exercitação que lhe falei há
bocado. Porque o facto de você falar em princípios de jogo ou de princípios de
interacção ajuda-o a pegar no treino para desenvolver determinados aspectos.
Por exemplo: a sua equipa está a circular mal a bola no sector médio, porque
os dois médios interiores estão muito afastados, você tem que comunicar isso
aos jogadores: “vocês estão muito afastados”. Mas mais do que isso, é
comunicar-lhes isso através do exercício e fazer com que a bola circule nesse

VII
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Anexo 1 – Entrevista à Professora Marisa Gomes
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espaço fazendo com que haja insucesso ali. Eles estão muito afastados e você
reconhece isso mas eles conseguem ter sucesso na mesma e por isso apesar
de lhe dizer que estão muito afastados, eles não vão mudar, porque não
sentem necessidade disso na prática. E então, você tem é que provocar o
insucesso com a equipa adversária a explorar isso: “eles estão muito
afastados: então vão posicionar-se aqui.” Se não houver um contexto da
própria acção, para fazer com que as coisas mudem elas não mudam porque
não é ao dizer que estamos afastados que as coisas mudam! Por isso é que a
competitividade é determinante no treino porque havendo competitividade esse
tipo de erros que se cometem por “forças”, digamos que semelhantes,
condicionam essas interacções adversárias. E esse condicionamento obriga-os
a arranjar algumas soluções, a desenvolver a capacidade de resolver os
problemas e isso é que é treino, é que é aquisitivo e isso é que tem de ser o
hábito. O hábito não é uma coisa estanque por isso é que falamos em
capacidade organizante. O hábito é exactamente isso: uma capacidade
organizante. Organizante porque se trata de organizar as coisas de uma
determinada lógica mas não sempre da mesma coisa ou da mesma forma.

P: Sabendo que os sujeitos da aprendizagem têm que estar


conscientes dos comportamentos em causa nas situações de
aprendizagem (exercícios) para poderem direccionar o “foco” do seu
cérebro, como toma isto em consideração na operacionalização do
treino?

R: Penso que os sujeitos da aprendizagem não têm que estar


conscientes do comportamento em causa. Quero com isto dizer que, por
exemplo, num exercício de 8x8 o objectivo de uma equipa é desenvolver a
organização ofensiva, isto é, o trocar a bola, manter a sua posse e chegar ao
golo. A operacionalização micro desse objectivo não tem que ser consciente
por parte dos sujeitos porque muitas vezes eles não têm consciência que
fazem aquilo e só os fazemos tomar consciência através da própria prática,
fazendo com que aconteçam determinadas coisas. No próprio exercício eles

VIII
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Anexo 1 – Entrevista à Professora Marisa Gomes
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direccionam o foco do cérebro se determinada coisa estiver a acontecer muitas


vezes e a partir daí surge esse direccionamento. Aparece assim a necessidade
de diversificar o que se fez e por isso é que é importante o princípio da
Estabilidade. Se estivermos muito tempo a fazer a mesma coisa sentimos a
necessidade de fazer essa coisa já com uma pequena alteração e o mesmo
acontece num exercício pois se disser para circularem a bola sempre da
mesma maneira eles não gostam! Se pedirmos para circularem naturalmente,
se não houver regras rígidas, eles vão diversificando essa circulação.
Pensemos no exemplo: se numa situação de circulação de bola 10xGR disser:
“a bola do central tem que ir para o lateral” ou “o pivot deve jogar nos médios
interiores e “ligar” ao extremo” durante 5’ – repetições sucessivas – verifica que
existe sempre a mesma situação e os jogadores até facilitam após as primeiras
vezes. No entanto, imagine a mesma situação e diz apenas que a bola deve
progredir e só “entra” para finalizar quando tiver percorrido os três corredores e
com isto vai ver os jogadores envolvidos (ou concentrados) na situação porque
o que vem a seguir depende da decisão do jogador que pode jogar nos laterais,
nos extremos, no ponta e lança… E vê que nesse tempo de circulação existe
variabilidade. Dentro do lado “consciente” em que a bola tem que circular pela
estrutura para chegar ao golo, centramos a atenção na velocidade da bola, na
mudança de corredores mas se isso acontecer. Este lado subconsciente só é
conseguido com o acontecer muitas vezes disso porque num jogo 4x4 eles têm
consciência que o objectivo é a circulação e manutenção da posse de bola se
estiverem a fazer isso muito tempo porque se estiverem a maior parte do
tempo em organização defensiva não vão ter essa consciência por mais que eu
tenha dito antes do exercício. Eles podem ter isso em termos conscientes mas
depois em termos subconscientes não têm.
A consciência é estarmos alerta para qualquer coisa mas se o exercício
em termos de subconsciente não nos direccionar para lá não vale a pena, não
é Específico, não é adequado! Esta necessidade de criar exercícios para eles
direccionarem o foco do cérebro está relacionado com o que disse há pouco.
Imagine aquele exemplo do lateral direito que joga muito por dentro e o jogador
tem tido algum insucesso graças a isso. Como é que eu faço para que ele
direccione? Não me adianta parar o treino e dizer que ele tem que abrir cada

IX
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Anexo 1 – Entrevista à Professora Marisa Gomes
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vez que ele recebe a bola pois, quando muito. fará isso uma vez. Por exemplo,
num exercício de 5x5 pego na equipa adversária e jogo com 2 alas em vez de
jogar com 3 médios e um avançado e jogo com 2 alas para lhe criar oposição
em que cada vez que ele vem pelo meio a percentagem de sucesso vai ser
muito menor e aí eu posso intervir mostrando-lhe como é que ele pode ter mais
sucesso porque o papel do treinador é exactamente esse, é mostrar como ele
pode ter sucesso fazendo acontecer determinadas coisas. É o tal princípio da
propensão que o vai levar a mudar.

P: Um dos objectivos do treino é contrariar a lentidão do cérebro


através do desenvolvimento da capacidade de antecipação. Que
configuração dá à prática para que isto surja com a maior brevidade
possível?

R: Através de uma prática Específica, isto é, desde o início do processo


que tenho que criar um contexto macro que me vai direccionar sempre no
mesmo sentido e seja num exercício mais particular, seja um exercício mais
complexo isso tem que estar sempre presente. Vou-lhe dar um exemplo muito
concreto: nós queremos ter uma posse com uma circulação de bola rica onde
haja um grande domínio técnico por parte dos nossos jogadores porque
achamos que a circulação deve ser mesmo assim e não uma circulação
mecanizada. Como tal, no início do treino, críamos situações propícias ao
desenvolvimento técnico, com contactos frequentes em que os miúdos estão ali
a dar toques, estão a fazer simulações. Isto é: mesmo a situação mais
particular tem sentido perante o meu jogar. Daí que, por exemplo, à quinta-
feira, na dimensão mais complexa, num exercício de 11xGr não posso pedir
aos jogadores para fazerem a circulação a um toque porque não tem sentido!
Posso é dizer aos jogadores que não precisam de dar três toques para haver
riqueza técnica porque muitas vezes essa riqueza passa por simular que vai
receber ali, deixar a bola rolar e num toque fazer a bola girar para o outro lado,
o antes de tocar na bola, enfim… a riqueza passa exactamente por aí.
Portanto, desde o mais pequenino pontinho até a dimensão completa tem que

X
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Anexo 1 – Entrevista à Professora Marisa Gomes
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estar tudo congruente com aquilo que eu quero e só assim é que é possível
desenvolver a antecipação. Por exemplo: você vai na rua e vê um carro, já não
atravessa porque você antecipa o que lhe vai acontecer se for, ou seja, é
atropelado. Mas imagine uma pessoa que nunca tenha visto carros, ela mete-
se à frente porque não antecipa aquilo que lhe vai acontecer mas se tiver
hipótese de sobreviver, provavelmente já não cairá no mesmo erro!
No treino é exactamente a mesma coisa, ou seja, a aprendizagem é
antecipar aquilo que conhecemos e daí a necessidade da estabilidade com o
Sentido, com aquilo que a gente quer e sobretudo com a congruência das
solicitações que vamos fazendo a todos os níveis.
No entanto, a antecipação ocorre não só ao nível do cérebro mas ao
nível do corpo também e, no jogar competitivo (e por isso é que eu falo no lado
subconsciente) muitas vezes o lado consciente nem chega a estar presente na
própria situação. Imagine que um jogador marca um golo após ter feito uma
simulação e se lhe perguntar como é que ele fez aquilo em (termos
conscientes) ele não sabe mas em termos subconscientes esta antecipação foi
conseguida não pelo só cérebro mas pelo corpo, pelo mapa das experiências
anteriores que vai absorvendo e remodelando. Portanto, esta antecipação é
sobretudo acelerar a rapidez do corpo na leitura do contexto e na sua
participação no mesmo.

P: A obtenção de sucesso para que algo seja aprendido mais


facilmente é um dado adquirido. Na operacionalização do treino como
encontra o equilíbrio entre a promoção do sucesso como facilitador da
aprendizagem e a criação de exercícios com um grau de dificuldade
adequado?

R: Um exercício, para ter um grau de dificuldade adequado, tem quer ter


uma componente de sucesso e tem que ter uma componente de dificuldade.
Repare que a aprendizagem consiste em adaptarmo-nos para resolver as
situações e se você não tiver uma condição que o obrigue a fazer isso você
não faz! Por isso é que eu digo que a melhor maneira de se trabalhar é fazê-lo

XI
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Anexo 1 – Entrevista à Professora Marisa Gomes
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em auto-hetero-superação porque, por exemplo, estamos a fazer um exercício


de circulação de bola de 11x11 e a equipa tem que ter sucesso no que está a
fazer. Mas se tiver uma oposição de 5 defesas na zona central estamos a criar
uma certa dificuldade pois eles vão ter que superar esses defesas para
conseguir fazer essa circulação de bola. O grau de sucesso que eles vão ter é
o mesmo que iriam ter se fizessem até sem oposição mas o grau de dificuldade
não é o mesmo. O grau de dificuldade adequado é aquele que vai exigir que
eles estejam sempre em auto-hetero-superação.
Imagine que está a fazer passe em estrutura com a equipa a circular a
bola. Será que este passe em estrutura no início da época deve ser o mesmo
passados três meses? Eu penso que não! Por isso é que falo no princípio da
progressão complexa. Você faz 10x0 no princípio da época dando a ideia geral
etc., três meses depois se você estiver a fazer exactamente a mesma
configuração, na mesma solicitação, os jogadores já não estão a trabalhar em
auto-hetero-superação. Dou-lhe um exemplo que se passou comigo no início
da época: o primeiro requisito que pedia na circulação de bola era que esta
circulasse rápido e eles faziam-no mais à base da simulação antes da bola
chegar, sempre com alguma riqueza. E neste momento tenho outras duas
condicionantes: A bola não pode passar por quatro jogadores do mesmo
sector, ou seja, têm que mudar de sector e eles percebem claramente isso,
pois não quero a bola só a circular em largura, quero que haja também uma
ligação intersectorial para promover a tal riqueza; Outra condicionante é que a
equipa vá progredindo posicionalmente no terreno, circula a bola no meio
campo ofensivo até dentro da grande área fazendo a bola progredir em
circulação até à baliza. São conceitos que actualmente estão inerentes à nossa
circulação e o exercício que exteriormente é a mesma coisa já não é a mesma
coisa passados três meses. Só assim é que eles trabalham em auto-hetero-
superação e daqui a um determinado tempo, consoante a evolução e as
dificuldades da própria equipa, vou actuando sempre.

P: Aquilo que é aprendido tem que ficar de alguma forma retido


para poder ser evocado no devido contexto. Na operacionalização do

XII
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Anexo 1 – Entrevista à Professora Marisa Gomes
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treino que diferenças descreve entre os exercícios maioritariamente de


aprendizagem e aqueles mais direccionados para a manutenção de algum
princípio?

R: As grandes diferenças passam essencialmente por isto: quando


queremos transmitir uma ideia temos que fazer o esboço. Imaginemos a
organização defensiva em que quero que a minha equipa defenda em bloco,
defenda à zona. Inicialmente dou o esboço para ver se a equipa sabe o que é
um bloco, se sabe posicionar-se num determinado espaço em função da
posição da bola etc. Isso é o esboço, são os pilares do objectivo. Numa fase
posterior, já quero que a equipa, para além disso reconheça, por exemplo, os
momentos e locais de pressão para que o bloco tenha algum sentido e eficácia.
Assim, o esboço, num plano mais micro já é mais exigente, isto é, se calhar o
extremo que está do lado da bola já tem que reconhecer que se o lateral
receber mal vamos pressionar, se o lateral não receber mal o extremo já tem
que retardar para que ele jogue no extremo adversário e aí sim, nós “asfixiamo-
lo”. Dentro do mesmo objectivo, do princípio, passamos a incidir de uma forma
mais particular neste contexto mas tendo em atenção que o facto destes dois
jogadores conduzirem camufladamente o lateral a jogar no extremo para aí
pressionarmos. Mas isto não passa só por estes dois jogadores pois se isto
acontecer do lado direito, o lateral do lado esquerdo tem que estar envolvido
nessa decisão! Portanto, se inicialmente ele não estiver muito bem posicionado
até poderei não dar grande importância a isso pois é ainda num momento
prematuro porque é o esboço geral que quero desenvolver e que me interessa
que assimilem.
A manutenção do princípio é uma coisa dinâmica, é uma coisa rica pelo
exemplo referido. Na organização defensiva estou actualmente a incidir nisso
e, se calhar, daqui a uns tempos vou fazer com que a equipa induza a equipa
adversária a jogar pelo meio porque sei que aí vou ganhar a bola. A
manutenção do princípio é uma coisa dinâmica em evolução constante!

XIII
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Anexo 1 – Entrevista à Professora Marisa Gomes
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P: É sabido que na codificação da informação, o pré-conhecimento


da matriz é facilitador da aprendizagem pois apenas há a necessidade de
re-codificar aquilo que muda relativamente àquilo que já era conhecido.
Como lida com este facto na prática sabendo que existem diferentes
ritmos de aprendizagem para diferentes indivíduos, que há jogadores que
chegam de novo e têm que codificar todo um conjunto de informação que
a maioria já domina?

R: Começando por dar um esboço onde toda a gente vai perceber o


objectivo geral e depois vamos criando um conjunto de interacções nesse
registo, isto é, primeiro faz-se a paisagem comum a todos através desse
esboço e depois, ao longo do processo, vai-se fazendo com que a decisão do
jogador mais longe da bola seja vivida da mesma forma por isso é falamos em
interacção ou inter-decisão. Eles têm ritmos diferentes de aprendizagem mas
eles estão sintonizados e tem que haver uma lógica comum que lhes permita
perante determinado acontecimento conhecer a lógica de resolução.
Vou dar-lhe um exemplo concreto: o meu ponta de lança recebe a bola
do extremo e, por princípio, queremos que haja uma aproximação da linha
média para apoiar e a bola continuar a progredir. Nesse sentido, há uma lógica
de resolução do problema e muitas vezes, nem se joga nos médios para
manter a posse e bola e joga-se para trás no lateral e isto, apesar de eles
terem diferentes ritmos de aprendizagem, tem que ser conseguido.
O grau de complexidade, a riqueza das decisões de todos eles, pode
não ser evolutiva no mesmo registo, isto é, uns podem evoluir mais que outros
mas o esboço nunca pode ficar comprometido.

P: Conhecendo a sua forma de perspectivar o treino sabemos que a


sua acção se direcciona mormente para o condicionamento do plano
macro do “jogar”. Quais os traços gerais das características da sua
intervenção no plano micro?

XIV
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Anexo 1 – Entrevista à Professora Marisa Gomes
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R: Quando falamos na perspectiva macro do jogar temos que primeiro


criar um contexto num sentido lato para que esse lado micro seja sempre
direccionado para o mesmo objectivo. Imagine: você para ter uma casa tem
que fazer os pilares, que são o esboço, é o plano macro do jogar. Imagine que
você vende a casa com esses pilares. A casa que estava projectada mas pode
ser totalmente diferente se eu lá chegar e quiser fazer algo distinto e aí, é que é
o plano micro. Eu posso tirar esta parede, inverter aquelas escadas etc. e a
casa fica diferente. Com o mesmo esboço, o plano micro é totalmente
diferente. Não sendo descontextualizado, há um desenvolvimento consequente
do lado micro a partir do esboço e no jogar é exactamente a mesma coisa. Se
eu quero que a minha equipa faça o bloco e tenho os laterais sempre abertos,
esse bloco vai ficar comprometido e é claro que em termos micro, que é um
bocadinho do todo, tenho que lhes fazer compreender a matriz mas se, por
exemplo, o extremo decidir ir pressionar o central (mesmo que não seja
exactamente isso que quero que ele faça), o facto de ele ir faz com que a
minha equipa tenha que reorganizar-se, viver essa decisão que ele tomou e
formar na mesma o bloco. Se o extremo vai lá, provavelmente o ponta de lança
deverá ir ocupar o espaço deixado por ele para que o bloco não seja
comprometido. Nós falamos em princípios para gerar riqueza em termos de
detalhe. Temos o esboço, em termos de detalhe posso ter as paredes todas
coloridas, posso não pôr paredes, posso fazer o que entender.
Quero a equipa a fazer um bloco com duas linhas, três linhas, quatro
linhas, bascula lateralmente, bascula na profundidade como é que queremos
que isto se faça? Isto vai condicionar todas as decisões que se tomam. Imagine
que queremos a equipa a fazer bloco em duas linhas apenas. Neste caso a
oscilação lateral se calhar já não acontece porque não há necessidade porque
em termos estruturais a equipa está configurada para fechar esse espaço. A
equipa vai ter que fazer essa basculação mais em profundidade subindo e
descendo um pouco mais e isso em termos de decisão micro do jogador faz
toda a diferença. O lado micro é consequente do macro, agora a decisão do
jogador em termos de ir aqui, ir acolá, fechar o meio ou não, só é condicionável
com aquele tipo de intervenção que falei há pouco de colocar a bola, por
exemplo, no lateral com o extremo a pressiona-lo, para o obrigar a vir um

XV
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Anexo 1 – Entrevista à Professora Marisa Gomes
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bocadinho mais para trás para lhe ganhar mais espaço, mesmo que seja para
fazer a condução da bola. Mas eu não posso obrigar o lateral a fazer sempre
passe porque aí estou a castrar, seja um jogador jovem seja até um jogador
sénior. A riqueza do jogo passa exactamente pela capacidade variável de dar
resposta com sucesso e tem tanto mais sucesso se independentemente da
decisão que eu tome e equipa saiba viver essa decisão, ou seja, o lateral se
fizer passe, a equipa tem que viver essa decisão, se fizer condução tem que
viver essa decisão com o mesmo sucesso. Agora é claro que é muito mais fácil
para um treinador dizer que o lateral tem que passar sempre porque sabe
aquilo que vai acontecer e a equipa só tem uma resposta. Mas se for um lateral
que passa, dribla, simula e vai pelo meio, as interacções têm que ser diferentes
por isso é que falámos em princípio. Depois, o lado micro tem que ser rico
nesse sentido, independentemente de, em termos de controlo, isso ser mais
difícil para o treinador.

P: Admitindo uma equipa como um conjunto de jogadores com


diferentes funções que condicionam as propriedades do todo, é esse todo
que baliza a consecução ou não dos comportamentos pretendidos.
Porém, a evolução desse todo assenta na melhoria individual de cada um
dos seus constituintes, melhoria essa sobre-condicionada a referências
eminentemente colectivas. Sendo dada total primazia a esse objectivo
colectivo, como trata na prática casos individuais que por algum motivo
não atingem esses referenciais colectivos impedindo a sua melhoria
contextualizada?

R: Você não pode pensar no colectivo e nas partes como duas coisas
diferentes porque são a mesma coisa. Nos só falamos no todo se tivermos
conhecimento da matriz. Vamos para a parte prática que é mais fácil. Num
exercício de jogo 4x4 você diz a uma equipa que o objectivo é a organização
defensiva e à outra diz que é a organização ofensiva e as transições. Com este
objectivo colectivo vamos jogar e se a equipa na qual quer trabalhar a
organização defensiva estiver sempre em posse, está a desvirtuar o próprio

XVI
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Anexo 1 – Entrevista à Professora Marisa Gomes
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exercício, o todo. Mas imagine que a equipa não está a fazer isso porque um
jogador está sistematicamente mal posicionado, a decidir mal. Então, o todo
está a resultar também disto porque esse todo expressa as interacções
individuais entre eles porque se nós os dois estivéssemos aqui calados e de
olhos fechados não estávamos a interagir. Estou a falar consigo, estou a olhar
para si e estamos a interagir, há uma interacção, há uma ligação. No jogo é
igual porque você toma uma decisão e eu vivo a sua decisão (se estiver a jogar
porque se estiver a ver jogar já não é assim…).
O todo é como que se vive essa decisão por isso é que é um conjunto
de interacções e o facto do individual, ás vezes, não compreender passa por aí.
Por exemplo: sou lateral e o meu colega, que é central, está a receber a bola e
eu não estou a viver a decisão dele e o todo vai expressar isso porque o todo
(o jogar) é a manifestação concreta de como toda a gente vive essa decisão e
esse conjunto de decisões. Portanto, não podemos falar em todo e partes pois
o todo e as partes têm que ser a mesma coisa por isso é que falamos em
fractais porque um fractal é uma migalha do todo e o jogador também faz parte
desse todo que está sobrecondicionado para viver essa decisão porque se ele
está a ver o jogo é menos um porque não interage com os outros, ele age, é
uma acção isolada. Por isso é que temos de dar o Sentido ás coisas e temos
que falar em contextos de exercitação, temos que fazer com que determinadas
coisas aconteçam porque isso é que vai fazer com que as coisas se liguem.
Quando trabalhava nas escolinhas do Futebol Clube do Porto tinha
miúdos de 6 e 7 anos e aparecem muitos daqueles que estão menos
apaixonados pelo jogo ou que têm menos capacidades e passam ao lado do
jogo. Eles vêem jogar, não jogam, não vivem a decisão do colega
desmarcando-se ou pedindo a bola ou chutando, defendendo, atacando, eles
não vivem! Então, temos que, por exemplo, na parte do jogo, meter a bola nele
e ele decide (de preferência em condições facilitadoras para ele ter sucesso)
fazendo com que ele deixe de ver o filme do jogo e que faça parte também. Só
assim é que há jogo, caso contrário, ele está desligado, não interage, ele age e
aí não há jogo, não há colectivo, não há parte sequer!

XVII
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Anexo 1 – Entrevista à Professora Marisa Gomes
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P: Os desvios criadores, os desequilíbrios, surgem-nos como algo


que de alguma forma tem que estar ligado ao Modelo de Jogo. Como os
perspectiva na dimensão macro, isto é, como os potencia sabendo que
dizem respeito a uma ordem oculta?

R: Dizendo-lhe aquilo que lhe disse há bocado da dimensão macro. A


dimensão macro como modelo de jogo tem que ser um esboço. Imagine que eu
vou comprar a sua casa que está em plena construção com o esboço já
definido e eu chego lá e ainda tenho capacidade para alterar aquilo tudo. Se eu
vou lá altero aquilo duma maneira e se vai lá outro altera de outra. Os
princípios de jogo são uma coisa aberta pois a abertura é isto e por isso é que
é difícil porque repare: eu vivo a decisão do meu colega se tiver capacidade
para tal e normalmente nos mais pequeninos e os mais fracos não entram no
jogo porque não têm capacidade para viver a decisão do colega. No jogo é
exactamente a mesma coisa, para desenvolvermos uma dimensão macro no
sentido dos princípios de jogo, do modelo de jogo, temos que deixar este
potencial aberto porque este potencial aberto é que permite realmente
desenvolver o jogo. Acha que você é treinador se estiver sempre a: “faz isto,
leva para a direita e leva para a esquerda…”? Não é treinador nenhum porque
você não está a deixar decidir, não está a deixar que eles criem um sentido
comum porque quem está a dar isso é o treinador e depois chega-se ao jogo e
o treinador não está lá para fazer isso. No jogo é o próprio contexto que orienta
e exige uma resposta e se não houver uma lógica comum criada entre os 11
jogadores é mais difícil. Imagine que a minha equipa perdeu a bola e um
jogador vai logo pressionar mas se a equipa não vive a decisão desse colega
quer dizer que não entendem a lógica subjacente. Esse lado micro é
consequente, é o espaço aberto que temos que sobredominar mas não temos
que dominar. O que é que eu quero dizer com isto? Temos um lateral direito
que quer sempre puxar para dentro e temos outro que, pelas características
que tem, joga quase sempre por fora, recebe, entrega e muitas das vezes
também leva mas nós queremos fazer a circulação de bola pelos corredores
em segurança, pode ser pelo corredor lateral e pode ser pelo corredor central e
sei que com esse miúdo que joga quase sempre em passe vou conseguir essa

XVIII
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Anexo 1 – Entrevista à Professora Marisa Gomes
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circulação mais facilmente do que com o outro miúdo que usa mais vezes a
condução de bola devido às suas características. Conheço os jogadores e sei
como ele vive a decisão do central pois enquanto um vive abrindo para poder
fazer o passe para a lateral ou para o meio com mais espaço, o outro se calhar
já ataca a bola para sair em condução. Vivem a decisão de maneira diferente.
Este lado micro é como se vivencia a decisão do outro interagindo de
determinada forma e você só desenvolve isso se houver um esforço mental.
Repare que tenho estes dois jogadores e não digo a um “conduz a bola” e a
outro “joga em passe” porque esta riqueza resulta disso mesmo. Agora, no jogo
se vejo que o avançado pressiona ou o extremo não fecha e pressiona quase
sempre, tenho que ter o cuidado de perceber que aquele que conduz vai ter
menos sucesso que o outro que joga quase sempre em passe. Aqui aparece a
tal gestão pois não domino o aqui e agora mas tenho quase a certeza que um
vai ter mais sucesso que outro pela forma como vai viver as decisões dos
colegas. Perante isto, não sou treinadora nenhuma se coloco o jogador que
joga preferencialmente em condução que vai perder a bola duas vezes e uma
delas até dá golo. Devo, isso sim, durante a semana fazer com que o miúdo
melhore isso e tenha consciência disso e quando, daqui a uns tempos, ele
conseguir fazer isso com a mesma liberdade com que faz o outro já não tenho
dúvidas. Este lado macro e micro é isso mesmo, fazemos princípios não para
dizer que tem que virar o jogo daqui para ali ou para acolá. Por isso é que no
principio na circulação de bola digo que a bola não pode passar pelos 4
defesas pois quando a bola vem para o pivot ele tanto pode passar para a
frente, como para trás, o extremo pode jogar para o lateral, para o ponta de
lança ou para o médio ou seja o lado micro tem que ter graus de liberdade,
aliás nós desenvolvemos uma lógica comum para que todos vivam a decisão
do colega de modo a dar-lhe o maior número possível de soluções para haver
maior possibilidade de escolha.
Se eu for uma treinadora que não domine isto, seria muito mais fácil
dizer “o extremo recebe e vai sempre para o 1x1” pois dou logo uma solução e
muitas vezes o lado mecanicista do treino passa exactamente por aí porque há
muito maior dificuldade em descortinar padrões com variabilidade do que
fazermos sempre a mesma coisa.

XIX
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Anexo 1 – Entrevista à Professora Marisa Gomes
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P: Admite como potencialmente importantes para a consecução do


MJ outras coisas que não o processo de treino propriamente dito?
(palestras, visionamento de jogos, power-points…)

R: A concretização do próprio modelo contempla tudo isso. Por exemplo,


você vai para um determinado contexto onde todos têm ideias diametralmente
opostas aquilo que você quer, se calhar, mostrar imagens daquilo que você
quer é importante. Mas pode chegar a outro lado e isso não ser preciso. A
concretização do próprio modelo é exactamente isso.
Imagine que chega a um contexto onde há algumas dificuldades em
termos de ordem e disciplina. Se você não for convicto nas suas decisões isto
repercute-se na configuração do modelo de jogo. A configuração do modelo de
jogo não se pode restringir ao lado do exercício em si, passa muito pelo antes,
após, a interacção, passa por tudo isso. Eu não consigo hierarquizar porque
todos eles são importantes.
Você como líder, chega ao balneário antes do jogo e focaliza a sua
atenção em determinados pontos ou pode ser um treinador que não diz nada
ou diz mil e uma coisas, é tudo totalmente diferente. Daí que hierarquizar estas
coisas não é possível pois estão todas interligadas.

XX
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Anexo 2 – Entrevista ao Mestre Guilherme Oliveira
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Anexo 2:

Entrevista ao Mestre Guilherme Oliveira


(Treinador da equipa de juvenis do Futebol Clube do Porto)

Carlos Campos: A repetição sistemática dos princípios assenta em


três pilares fundamentais: o princípio da progressão complexa, o
princípio da alternância horizontal em especificidade e o princípio das
propensões. De acordo com a sua experiência concorda que este último é
o mais complexo, o que exige melhor conhecimento do jogo, o que
contribui de forma mais efectiva para o “jogar” específico que pretende?

Mestre Guilherme Oliveira: Penso que não! Penso que a complexidade


surge da interacção que tem que haver entre os três princípios. Penso que a
maior dificuldade e a maior complexidade surge dessa interacção uma vez que
são os três extremamente importantes em termos de evolução do jogo, tanto
em termos colectivos como em termos individuais e, quando se treina como
nós treinamos há a necessidade de ter os três permanentemente em
consideração, caso contrário poderá haver alguns problemas. Se nós, por
exemplo, dermos grande importância ao princípio das propensões e não
estivermos a dar tanta importância ao princípio da alternância horizontal, aquilo
que pode acontecer é ter jogadores lesionados, ter a equipa cansada e a
equipa não estar a jogar com os comportamentos que nós desejamos por um
cansaço acumulado. Se nós não dermos alternância por exemplo ao princípio
da progressão, aquilo que acontece muitas vezes é quase que um acomodar a
nível de comportamentos, não existe depois, por parte da equipa e dos
jogadores, uma evolução em termos de determinado comportamento geral.
Muitas das vezes aquilo que acontece é nós apresentarmos as nossas
ideias aos nossos jogadores, eles assimilarem algumas das nossas ideias e
nós não aproveitarmos a interacção entre aquilo que são as nossas ideias e
aquilo que são as capacidades, características e recriação dessas nossas
XXI
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Anexo 2 – Entrevista ao Mestre Guilherme Oliveira
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ideias e depois não existe muito a noção que nós podemos aproveitar essa
interacção entre jogador e ideias do treinador.
Por isso o que acho é que todos esses princípios metodológicos são de
extrema importância para o jogar como nós pretendemos e não há uns mais
complexos que outros. A complexidade surge da interacção dos três e temos
de os ter permanentemente em consideração.

P: Tomando sempre a acção como primordial naquilo que é a


aquisição de hábitos que queremos implementar, que importância dá à
identificação teórica com os princípios de jogo?

R: Dou muita importância a esse plano porque aquilo que nós


pretendemos com o treinar é criar adaptações por parte da equipa e por parte
dos jogadores de forma a que muitos dos comportamentos que nós queremos
que aconteçam, aconteçam muitas vezes e com naturalidade, ou seja, que se
transformem em hábitos. Pretendemos também que esses hábitos não sejam
fechados, que sejam abertos, isto é, queremos que sejam capazes de se
adaptarem aos problemas que o jogo apresenta aos jogadores e portanto há
necessidade de os hábitos terem uma certa plasticidade, que sejam adaptáveis
às circunstancias e nesse sentido, eles terem conhecimento daquilo que é o
jogo é extremamente importante porque, quando nós transmitimos aquilo que
pretendemos, eles passam a ter uma cultura de jogo que lhes vai permitir
depois, em jogo, analisar aquilo que pretendem e muitas vezes aquilo que
acontece é que, no treino, estão a acontecer determinado tipo de problemas
que eles não resolvem e nós parámos e perguntamos aquilo que está a
acontecer. Se eles conseguirem responder por que é que estão a fazer mal,
por que é que tomaram determinadas opções em função daquilo que
aconteceu e não tomaram outras, eles têm consciência daquilo que aconteceu,
eles estão a ler o jogo, estão a analisar aquilo que se está a passar, estão a
agir em função dessa análise. Agora muitas vezes, a leitura que eles fazem
não é a leitura que nós pretendemos que eles façam, pois nós queremos que
eles tenham outro tipo de comportamentos, por isso é muito importante nós

XXII
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Anexo 2 – Entrevista ao Mestre Guilherme Oliveira
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apresentarmos os nossos princípios, os nossos comportamentos, para eles


perceberem e quando os comportamentos estiverem em acção eles terem uma
identificação muito maior. Por isso aquilo que eu faço é apresentar os
comportamentos de uma forma verbal e de uma forma visual para eles terem
uma noção muito exacta daquilo que eu quero que eles depois façam, pois
embora eu pretenda que os comportamentos se transformem em hábitos,
também pretendo que antes de se transformarem em hábito eles percebem
aquilo que estão a fazer para actuarem no jogo em função das necessidades
que o próprio jogo pede, mas sempre dentro de padrões comportamentais que
nós acharmos que são os ideais para a nossa equipa por isso é extremamente
importante nós explicarmos bem aquilo que queremos para eles perceberem e
a visualização de vídeos com esse tipo de comportamentos são fundamentais
para essa mesma compreensão.

P: Sabendo que os sujeitos da aprendizagem têm que estar


conscientes dos comportamentos em causa nas situações de
aprendizagem (exercícios) para poderem direccionar o “foco” do seu
cérebro, como toma isto em consideração na operacionalização do
treino?

R: Cada exercício que eu faço não aparece por acaso, aparece em


função de determinado tipo de comportamentos que eu quero treinar, que eu
quero que aconteçam. Então, quando apresento um exercício aos jogadores
digo qual é o objectivo do exercício e aquilo que pretendo treinar com esse
exercício e ao fazer isso já direccionei o exercício, já lhes dei um foco de
atenção para eles estarem a fazer aquele exercício em função de determinado
comportamento. Depois a minha intervenção vai ser exactamente nesse tipo de
comportamentos que eu pedi. Imaginemos que eu quero privilegiar a minha
circulação de bola e que para treinar isso crio uma situação em que o
fundamental é o jogo de posições dos jogadores, é eles estarem sempre em
diagonais de forma a que a bola possa circular por todos os jogadores e haver
uma certa eficácia. Então, o jogo está a decorrer e como lhes transmiti

XXIII
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Anexo 2 – Entrevista ao Mestre Guilherme Oliveira
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exactamente esses comportamentos que queria que eles tivessem, vou intervir
precisamente nesses aspectos que estão a ser contemplados ou não. Portanto
é assim que eu faço o direccionamento para que aquilo que eu quero treinar
seja realmente treinado.

P: Um dos objectivos do treino é contrariar a lentidão do cérebro


através do desenvolvimento da capacidade de antecipação. Que
configuração dá à prática para que isto surja com a maior brevidade
possível?

R: Através da criação de exercícios que tenham os problemas que o


jogo vai ter de forma a que eles estejam preparados para resolver esses
mesmos problemas. No entanto, devido ao facto do jogo ser algo aberto, nós
não conseguimos, no treino, apresentar todos os problemas que vão surgir no
jogo, por isso as situações de treino devem ter uma abertura de tal ordem
grande que permita que os jogadores tenham a capacidade de se adaptarem
aos diferentes problemas que no jogo vão surgindo, ou seja, o treino pretende,
dentro de determinado padrão de comportamentos, criar uma cultura de forma
a que eles consigam jogar e resolver os problemas que as outras equipas
colocam em função dessa cultura de jogo que eles vão adquirindo.
Por isso aquilo que nós pretendemos com o treino é criar um conjunto de
comportamentos abertos, criando uma cultura comportamental de forma a
resolver os problemas que as outras equipas vão colocando à nossa.

P: A obtenção de sucesso para que algo seja aprendido mais


facilmente é um dado adquirido. Na operacionalização do treino como
encontra o equilíbrio entre a promoção do sucesso como facilitador da
aprendizagem e a criação de exercícios com um grau de dificuldade
adequado?

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Anexo 2 – Entrevista ao Mestre Guilherme Oliveira
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R: É evidente que a obtenção de sucesso no exercício é extremamente


importante para haver evolução e para se conseguir fazer as coisas. Mas
também quando o sucesso começa a ser permanente nós temos que criar uma
maior complexidade para que os problemas sejam maiores e para que o
sucesso deixe de se dar novamente, ou seja, há um permanente reajuste das
situações de forma a que se consiga jogar com o sucesso, por um lado, porque
eles já conseguem resolver os problemas que o adversário coloca e, por outro
lado, quando eles já conseguem resolver temos que colocar problemas ainda
mais complexos para eles deixarem de resolver e voltarem a procurar fazê-lo.
Este reajuste permanente é que vai provocar a evolução pois nós não podemos
criar situações em que eles tenham sucesso permanente e não saiam desse
sucesso porque se eles têm esse sucesso permanente é porque não se está a
colocar problemas suficientemente complexos àquela equipa. É preciso
reajustar tudo isso para que as coisas sejam mais complexas, para a evolução
poder existir, porque só existe evolução quando existem problemas, caso
contrário há estagnação e nesse sentido há a necessidade de reajustar
permanentemente os exercícios de forma a conseguirmos sucesso mas
conseguirmos logo momentos de insucesso para o sucesso voltar a aparecer e
a evolução ser constante, caso contrário, há uma estagnação ou mesmo
retrocesso porque isto também está relacionado com a dinâmica dos próprios
sistemas complexos em que quando há um momento de equilíbrio, se não
houver um desequilíbrio desse equilíbrio, esse equilíbrio vai-se manter,
estagna, não há evolução nem por parte do sistema nem dos elementos do
sistema, daí a necessidade constante de criar desequilíbrios porque esses
desequilíbrios é que vão fazer com que a evolução seja adquirida para
patamares de maior evolução e complexidade.
As equipas que eu treino são equipas normalmente superiores às outras
equipas e se eu não crio ali determinado tipo de desequilíbrios,
complexificando mais o nosso jogo, criando outro tipo de problemas, mudando
de estruturas para que eles tenham uma cultura maior de compreensão do
jogo, adoptando determinado tipo de estratégias para que a complexidade do
nosso jogo seja maior, os princípios a nível comportamental também mais
complexos, acontece uma estagnação, um certo “deixar andar” e isso é mau

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Anexo 2 – Entrevista ao Mestre Guilherme Oliveira
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em termos evolutivos porque a qualquer momento aparecem problemas que


nós não conseguimos resolver. Assim nós tentamos ser sempre cada vez
melhores, mais complexos e essa procura de maior complexidade vai provocar
permanentemente uma evolução. Por vezes há momentos em que
solidificamos determinada forma de jogar e pensamos que essa forma de jogar
se deve manter, mas não! Do meu ponto de vista e tendo em consideração a
minha experiência, devemos logo criar mais complexidade caso contrário não
há evolução nem da equipa nem dos jogadores.

P: Aquilo que é aprendido tem que ficar de alguma forma retido


para poder ser evocado no devido contexto. Na operacionalização do
treino que diferenças descreve entre os exercícios maioritariamente de
aprendizagem e aqueles mais direccionados para a manutenção de algum
princípio?

R: Sobretudo a complexidade que os exercícios têm. Numa fase inicial a


complexidade é mais reduzida e em fases posteriores a complexidade é maior
e é sobretudo a esse nível que está a diferença.
Suponhamos que eu quero treinar a minha organização ofensiva: numa
fase inicial quero por exemplo que eles façam 10x5, passado uns tempos já
fazem 10x8 e depois vão acabar por fazer o 10x10 e têm que ter os mesmos
comportamentos ou ainda melhores que aqueles que apresentaram no 10x5.
Há um aumento de complexidade de forma a eles adquirirem, primeiro de uma
forma mais facilitadora para que as coisas aconteçam de uma forma regular,
depois uma evolução permanente de forma a que eles consigam ter
comportamentos extremamente complexos. Eu já treinei uma equipa com uma
capacidade de circulação de bola de tal ordem grande e evoluída, que para
treinar essa circulação e arranjar problemas tinha que treinar em 8x10 e eram
os 8 que estavam a treinar fundamentalmente porque a qualidade de posse de
bola daqueles que eram a equipa titular – chamemos-lhe assim - era de tal
forma grande que os outros em igualdade numérica não lhes conseguiam criar
problemas e a solução que encontrei foi pô-los em inferioridade numérica e nós

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Anexo 2 – Entrevista ao Mestre Guilherme Oliveira
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temos que arranjar esse tipo de estratégias. Numa fase inicial há exercícios
mais introdutórios com complexidade menor, e à medida que eles vão
adquirindo esse comportamento nós vamos criando complexidade para que
esse comportamento seja mais complexo, mais evoluído.

P: É sabido que na codificação da informação, o pré-conhecimento


da matriz é facilitador da aprendizagem pois apenas há a necessidade de
re-codificar aquilo que muda relativamente àquilo que já era conhecido.
Como lida com este facto na prática sabendo que existem diferentes
ritmos de aprendizagem para diferentes indivíduos, que há jogadores que
chegam de novo e têm que codificar todo um conjunto de informação que
a maioria já domina?

R: Muitas vezes é bastante complexo porque os jogadores não são


máquinas a que nós facilmente tiramos aquilo que é o historial deles, que são
as experiências deles, que muitas vezes, sob determinadas circunstâncias, foi
o sucesso deles. Não é possível chegar lá e simplesmente dizer “tu agora jogas
assim porque é assim que eu quero que tu jogues!”. Isto é complexo e verifica-
se um “jogo” entre treinador, equipa e jogador em que nós temos que perceber
muito bem quais são as características e capacidades dos jogadores, depois,
tendo em consideração aquilo que nós queremos para o nosso jogo,
conseguindo aqui uma dialéctica entre ideias do treinador e os
comportamentos e características desses jogadores. Aos poucos ele vai-se
ajustando a nós e nós vamos fazendo com que algumas coisas do jogo dele se
alterem consoante aquilo que são as nossas ideias. No entanto, é importante
nós termos em consideração que algumas das capacidades e das
características deles não lhes podem ser retiradas sob o risco de estarmos a
castrar as suas maiores virtudes. Imaginemos um jogador cuja característica
fundamental é a capacidade de drible em situações de 1x1 pois passa com
uma certa frequência pelo adversário e nós queremos um jogo de posse e
circulação, um jogo em que isso acontece com relativa pouca frequência ou só
acontece em determinadas zonas do terreno sob determinadas circunstancias

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Anexo 2 – Entrevista ao Mestre Guilherme Oliveira
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que nós promovemos no nosso jogo mas noutras circunstâncias não o


promovemos e ele está habituado sempre a fazer esse tipo de acções. Então
nós temos que permitir que ele faça isso porque são as características e
capacidades que ele tem, mas temos que lhe fazer entender que isso pode ser
feito sob determinadas circunstância,s do nosso jogo, por exemplo em
determinadas zonas do terreno que de acordo com o nosso jogo, são as
adequadas para fazer isso, em determinadas circunstâncias quando o
adversário está desequilibrado e não tem dobras (cobertura defensiva), ou
seja, temos que dar uma cultura de jogo que é o nosso jogo de forma a que ele
compreenda quando é que pode usar as características que tem e dessa forma
nós reajustamos a codificação que ele tem de jogo àquilo que é a codificação
do nosso jogo enquanto equipa e é este “dou aqui, recebo ali” que permite que
por um lado ele entre no nosso jogo, ele evolua como jogador e enriqueça o
nosso jogo porque o modelo de jogo não é um modelo que se adopta. Eu tenho
a minha concepção de jogo muito concreta pois sei perfeitamente aquilo que
quero em todas as circunstancias, mas a treinar este ano uma equipa e a
treinar no próximo ano uma equipa com jogadores diferentes, o padrão é igual
mas em termos mais específicos as coisas vão ser diferentes porque os
jogadores têm características diferentes e isso leva a que o jogo se manifeste
de forma diversa e é este “dar, criar, recriar” do modelo de jogo que é
extremamente importante e para jogadores que têm características de jogo
diferentes daquilo que nós queremos, que têm entendimentos de jogo
diferentes, tem que haver reajustes permanentes de forma a que esses
jogadores nos tragam algo e entendam que entram no nosso jogo não como
castradores mas sim como enriquecedores do nosso modelo de jogo.

P: Conhecendo a sua forma de perspectivar o treino sabemos que a


sua acção se direcciona mormente para o condicionamento do plano
macro do “jogar”. Quais os traços gerais das características da sua
intervenção no plano micro?

XXVIII
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Anexo 2 – Entrevista ao Mestre Guilherme Oliveira
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R: Eu não me centro apenas nos aspectos colectivos, centro-me


também nos individuais, sectoriais, centro-me na globalidade. Agora sei que o
jogo não são 5x5, nem 4x4, nem 3x3, nem 1x1, sei que o jogo são 11x11 e
desmonto o jogo em níveis de complexidade diferenciados para depois poder
treinar de forma a que o nível de complexidade superior, o tal macro, seja muito
mais evoluído.
Sabendo muito bem aquilo que quero num plano mais macro, aquilo que
faço é desmontar o jogo perspectivando sempre isso. Mesmo em situações de
1x1 eu peço comportamentos que estejam relacionados com os
comportamentos a nível dos grandes princípios. Há uma desmontagem, aquilo
a que eu chamo uma desmontagem fractal, tanto num plano transversal como
num plano em profundidade. O plano transversal relacionado com todos os
momentos do jogo, ou seja, quando eu peço determinado comportamento em
organização ofensiva, esse comportamento está a ser pedido porque eu já
perspectivo defender de determinada forma, perspectivo transitar de
determinada forma tanto num sentido como noutro por isso há aqui uma
fractalidade transversal. A fractalidade em profundidade está presente na
medida em que, por exemplo, eu peço um comportamento mais geral no
momento de organização ofensiva e o comportamento mais individual tem a
ver com esse comportamento mais geral, ou seja, tem que haver uma
fractalidade em profundidade e tem que ser sempre desta forma, caso contrário
estou a treinar coisas que não têm sentido para a globalidade do meu jogo,
para o padrão mais geral do meu jogo.
É assim que eu lido com estas coisas, desmonto o jogo e torno a
montar, sempre tendo em conta estas fractalidades em que uma parte tem que
representar o todo tanto desse momento como da interacção dos diferentes
momentos.

P: Admitindo uma equipa como um conjunto de jogadores com


diferentes funções que condicionam as propriedades do todo, é esse todo
que baliza a consecução ou não dos comportamentos pretendidos.
Porém, a evolução desse todo assenta na melhoria individual de cada um

XXIX
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Anexo 2 – Entrevista ao Mestre Guilherme Oliveira
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dos seus constituintes, melhoria essa sobre-condicionada a referências


eminentemente colectivas. Sendo dada total primazia a esse objectivo
colectivo, como trata na prática casos individuais que por algum motivo
não atingem esses referenciais colectivos impedindo a sua melhoria
contextualizada?

R: Cada caso é um caso e muitas vezes esses comportamentos


individuais não atingem aquilo que nós queremos em termos colectivos por
diferentes razões que podem ser muito diferentes. Uns porque não
compreendem o jogo da forma como nós queremos, outros porque
tecnicamente são fracos e nós exigimos, para o nosso jogo, determinados
comportamentos que em termos individuais são complexos e eles não atingem,
outros porque têm características completamente diferentes daquilo que nós
pretendemos para o nosso jogo e não servem para jogar da forma que nós
queremos, ou seja, há muitas circunstâncias e nós temos que analisar cada
caso, perceber os porquês e depois actuar nesse jogador em função daquilo
que são as nossas características a nível comportamental. Muitas vezes aquilo
que acontece é nós termos que reformular alguns dos nossos princípios
precisamente em função disso. Por exemplo, na equipa onde eu treino os
defesas centrais são jogadores muito importantes em posse de bola porque
são apoios recuados da equipa quando a equipa precisa, é por eles que se sai
quase sempre a jogar na primeira fase de construção, é por ali que se sai a
jogar quando o guarda-redes repõem a bola, quando a equipa já está numa
fase de construção mais adiantada muitas vezes são eles que recebem a bola
porque não há possibilidade de progressão e há a necessidade de manter a
posse de bola e isto leva a os centrais, além das qualidades defensivas que
têm que ter enquanto centrais, tenham que ter uma boa qualidade de passe, de
jogo posicional ofensivo, de circulação de bola, saber onde é que a bola deve
entrar em determinadas circunstâncias, resumindo, têm que ter uma boa
qualidade ofensiva e muitas vezes não têm, obrigando a equipa a adaptar-se a
essa circunstância. Por um lado temos que melhorar o mais possível a
qualidade ofensiva deles, qualidade de passe, qualidade posicional, qualidade
de escolha etc., e temos também que reajustar alguns dos nossos

XXX
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Anexo 2 – Entrevista ao Mestre Guilherme Oliveira
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comportamentos colectivos de forma a tornar menos visíveis essas limitações e


incapacidades recuando-os um pouco de forma a permitir-lhes terem mais
tempo e espaço. Vemos que há aqui um jogo de conhecimento das
características que eles têm e das capacidades que eles não têm e que são
importantes para o nosso jogo. Face a isso alteramos alguns dos nossos sub-
princípios e treinamos mais determinados comportamentos deles, tanto a nível
individual como a nível sectorial de forma a apetrechá-los dessas armas que
eles não têm e que seria importante que tivessem. O objectivo é potenciar tanto
quanto possível a nossa forma de jogar tendo consciência desses problemas
que por vezes surgem obrigando-nos a um trabalho com um nível de
complexidade inferior, situações mais individualizadas, mais sectoriais ou mais
grupais para resolver esse tipo de problemas que vão surgindo
permanentemente.

P: Os desvios criadores, os desequilíbrios, surgem-nos como algo


que de alguma forma tem que estar ligado ao MJ. Como os perspectiva na
dimensão macro, isto é, como os potencia sabendo que dizem respeito a
uma ordem oculta?

R: Não pode haver criatividade sem haver organização pois isso seria
uma criatividade abstracta. A criatividade deve surgir em função de padrões
comportamentais muito concretos e muito específicos. A partir do momento em
que a equipa está organizada e contempla esses aspectos, a criatividade
insere-se num contexto que vem enriquecer esse macro, esse modelo de jogo
em termos mais gerais e nesse sentido é extremamente importante. Agora, não
é importante quando ela aparece no abstracto, como forma de recreação,
quando aparece sem haver uma lógica.
Nós, sabendo que existem alguns jogadores criativos na equipa,
podemos criar uma dinâmica no nosso jogo de forma a que em determinados
momentos, esses jogadores tenham liberdade para fazerem tudo porque a
equipa está equilibrada, porque a equipa criou condições para eles serem
criativos em determinadas circunstâncias e sabendo a equipa que eles são

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Anexo 2 – Entrevista ao Mestre Guilherme Oliveira
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criativos, está aberta à espera que eles tenham criatividade tanto em termos
ofensivos como defensivos, porque há jogadores que também são criativos a
defender pela sua capacidade de antecipação, pela sua capacidade de leitura
de jogo etc. Nós temos que perceber e criar condições para que essa
criatividade possa surgir sem pôr em causa a equipa e, esses jogadores,
também têm que perceber que em determinadas circunstâncias podem ser
criativos porque são as circunstâncias ideais mas que noutras circunstâncias
têm que respeitar a ordem da equipa e não podem ser criativos porque põem a
causa a equipa ou porque está desequilibrada ou porque pode ser prejudicial
por motivos de variada ordem.
A criatividade deve ser uma coisa fomentada pelo treinador mas em
determinadas circunstâncias!

P: Admite como potencialmente importantes para a consecução do


Modelo de Jogo outras coisas que não o processo de treino propriamente
dito? (palestras, visionamento de jogos, power-points…)

R: Aquilo que eu utilizo muito e que do meu ponto de vista cria mais
impacto de forma concreta é a visualização de vídeos daquilo que nós
pretendemos a nível de comportamentos. Quando nós dizemos alguma coisa
os jogadores percepcionam isso de acordo com aquilo que entendem do jogo e
quando estão a ver, as imagens estão lá, é algo concreto de acordo com aquilo
que nós pretendemos e então há uma identificação e uma interpretação muito
mais ajustada. Se eu disser a vinte pessoas que tenho um cão muito bonito e
lhes pedir para descrever o cão a partir daquilo que disse podem haver vinte
cães diferentes porque para um o cão bonito é o bulldog, para outro é o
caniche, para outro é o labrador, para outro poderá ser um serra da estrela e
por aí adiante. Mas se eu disser: “Eu tenho um cão muito bonito e o cão é este”
e apresentar a imagem, as pessoas olham e sabem qual é o cão bonito que eu
gosto, que é aquele! Podem até não concordar mas ficam a conhecer!
A nível de visualização dos comportamentos também funciona assim
pois imaginemos que eu digo que quero defender à zona para depois ser mais

XXXII
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Anexo 2 – Entrevista ao Mestre Guilherme Oliveira
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fácil nós nos organizarmos quando recuperamos a posse da bola e a queremos


circular beneficiando de um bom jogo posicional. Digo isto e depois mostro uma
imagem onde a equipa está a defender à zona, recupera a posse de bola e só
a abrir já está organizada em termos ofensivos. Esta imagem é logo facilitadora
do comportamento que eu pretendo que a minha equipa tenha.
Imaginemos que eu digo que quero a minha equipa com uma boa posse
de bola, muita circulação com o objectivo de desorganizar a equipa adversária
e aproveitar essa desorganização para depois dar profundidade. Para uns a
circulação é uma coisa, para outros é outra, dar profundidade para uns é meter
logo a bola nos jogadores mais ofensivos por trajectórias aéreas, para outros
não, e então para mostrar depois o padrão de jogo que pretendo mostro um
filme com isso e eles vêm e ficam com uma ideia muito mais concreta daquilo
que eu pretendo. Sem dúvida alguma que a visualização de imagens é
extremamente importante para eles perceberem aquilo que nós queremos.
Em determinadas ocasiões poder-se-ão utilizar outros instrumentos
como palestras ou imagens mais estáticas mas o mais importante é mesmo a
visualização de imagens em vídeo dos comportamentos que pretendemos!

XXXIII
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Anexo 3 – Entrevista ao Professor Rui Faria
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Anexo 3

Entrevista ao Professor Rui Faria


(Ex-treinador do F. C. do Porto e do Chelsea F. C.)

Carlos Campos: A repetição sistemática dos princípios assenta em


três pilares fundamentais: o princípio da progressão complexa, o
princípio da alternância horizontal em especificidade e o princípio das
propensões. De acordo com a sua experiência concorda que este último é
o mais complexo, o que exige melhor conhecimento do jogo, o que
contribui de forma mais efectiva para o “jogar” específico que pretende?

Rui Faria: É fundamental perceber a relação que existe entre os três


bem como a complexidade do exercício que se cria. No exercício vão aparecer
determinados princípios e sub-princípios que queremos evidenciar porque são
parte da nossa forma de jogar mas há que ter em conta que não podemos nem
queremos isolar esses aspectos de outros que surgem por inerência. O
importante é perceber a complexidade daquilo que se pede e enquadrar isso
numa lógica de trabalho semanal que permita que a aquisição seja facilitada.
Portanto, não podemos exigir a evidenciação de determinados princípios com
grande complexidade quando os jogadores estão ainda em processo de
recuperação mental e emocional, ou seja, é decisivo que a exigência do que
queremos seja feita em função da relação que existe entre o desempenho e a
recuperação.
Não podemos pensar num desses três princípios sem pensar nos outros
uma vez que o padrão de exigências tem que ser enquadrado na sua
organização semanal no melhor momento para que haja sucesso na aquisição
desse mesmo princípio.

XXXIV
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Anexo 3 – Entrevista ao Professor Rui Faria
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P: Tomando sempre a acção como primordial naquilo que é a


aquisição de hábitos que queremos implementar, que importância dá à
identificação teórica com os princípios de jogo?

R: Penso que isso está intimamente relacionado com a complexidade


daquilo que pretendemos pois quanto mais complexa for a informação que
queremos transmitir mais importante se torna o apoio teórico.
Quando estamos perante um grupo novo e queremos implementar um
determinado tipo de comportamentos, torna-se decisivo apoiar aquilo que
pretendemos com imagens e outros recursos teóricos. Também se pode tornar
importante quando vemos que acontece algo que não é congruente com o que
pretendemos e que, em consequência disso, tem que ser corrigido para não se
repetir, isto é, quando na prática não se consegue resolver é uma possibilidade
recorrer a um apoio visual que facilite o aparecimento daquilo que
pretendemos.

P: Sabendo que os sujeitos da aprendizagem têm que estar


conscientes dos comportamentos em causa nas situações de
aprendizagem (exercícios) para poderem direccionar o “foco” do seu
cérebro, como toma isto em consideração na operacionalização do
treino?

R: Fundamentalmente temos que perceber que o exercício quando


surge já tem que estar configurado de modo a que os comportamentos que
pretendemos em termos de princípio, de objectivo, se evidenciem, ou seja
quando o estruturamos já críamos condições para que o que pretendemos
surja com frequência. Isto é o mais importante, é a Especificidade do exercício
e nós como treinadores, em função das nossas necessidades é que vamos
elaborar o exercício de acordo com determinado objectivo.
Durante a execução do exercício, a intervenção em função da relação
jogador-exercício-treinador, faz que por vezes sintamos a necessidade de criar
ainda mais qualquer acrescento para que o que pretendemos se manifeste de

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Anexo 3 – Entrevista ao Professor Rui Faria
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forma ainda mais vincada e este tipo de intervenção é apenas possível se


soubermos muito bem onde estamos e para onde queremos ir, isto é, exige-se
um conhecimento muito bem estruturado do Modelo de Jogo que nos permita
reajustar a intervenção sempre no sentido de um direccionamento específico.
Quando criamos exercícios novos há a necessidade de os experimentar
de ver como resultam na prática e aí é frequente procedermos a correcções de
pequenos detalhes mas o fundamental é sabermos exactamente o que
queremos e criar o exercício mais adequado possível a essa necessidade de
forma a que quando o colocamos aos jogadores eles experimentem os
comportamentos e objectivos que queremos.

P: Um dos objectivos do treino é contrariar a lentidão do cérebro


através do desenvolvimento da capacidade de antecipação. Que
configuração dá á prática para que isto surja com a maior brevidade
possível?

R: A Especificidade em relação ao Modelo de Jogo é fundamental e a


partir dai temos que criar condições para que o jogador se confronte com o
máximo de situações possível para que consiga antecipar-se promovendo um
aparecimento natural das coisas sem que haja necessidade de um
processamento demorado da informação, ou seja, tem que haver uma lógica
de resolução dos problemas que seja subconsciente.
A Especificidade que colocamos no treino vai permitir que o jogador se
adapte a uma determinada forma de jogar e que, em consequência disso, na
competição ele se antecipe num conjunto de situações permitindo uma
resposta bastante mais rápida. Naturalmente que isto é também um processo
de habituação e a progressão do menos complexo para o mais complexo é
crucial para facilitar a aprendizagem.
A experimentação dos comportamentos desejados vai fazer com que se
tornem cada vez mais naturais e devido a isso vai decrescendo a necessidade
de pensarmos muito sobre eles, as coisas acontecem de uma forma
simplificada porque a partir da criação do hábito que é adquirido a partir da

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Anexo 3 – Entrevista ao Professor Rui Faria
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experimentação das realidades que pretendemos, o jogador não tem


problemas em encontrar a resposta pois é uma experiência já adquirida.

P: A obtenção de sucesso para que algo seja aprendido mais


facilmente é um dado adquirido. Na operacionalização do treino como
encontra o equilíbrio entre a promoção do sucesso como facilitador da
aprendizagem e a criação de exercícios com um grau de dificuldade
adequado?

R: Tocamos novamente no princípio da progressão do menos complexo


para o mais complexo. A necessidade de ir maturando cada vez mais os
nossos princípios e sub-princípios é uma evidência.
No início temos que reduzir a complexidade para que, numa primeira
fase, a repetição sistemática dos princípios ocorra com sem grandes entraves e
depois, numa fase mais avançada quando sabemos que esses princípios já se
consubstanciaram em hábito, a complexidade do exercício é maior e como tal
devemos centrar a nossa preocupação em perceber de que forma é possível
aumentar a qualidade do nosso jogo partindo de patamares de complexidade
cada vez maiores.

P: Aquilo que é aprendido tem que ficar de alguma forma retido


para poder ser evocado no devido contexto. Na operacionalização do
treino que diferenças descreve entre os exercícios maioritariamente de
aprendizagem e aqueles mais direccionados para a manutenção de algum
princípio?

R: Em primeiro lugar temos que perceber em que nível nos


encontramos. É decisivo percebermos o que é a cultura individual dos
jogadores em termos do jogo, é fundamental perceber as qualidades dos
jogadores e perceber isso em função do que se pretende. Se pretendemos que
haja sucesso em termos do que fazemos no treino e queremos que isso se

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Anexo 3 – Entrevista ao Professor Rui Faria
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constitua como uma aprendizagem em termos de cultura de jogo, em termos


de comportamentos colectivos é necessário que se compreenda esta evolução
em termos de complexidade. Isto é decisivo, mas também é decisivo fazer uma
avaliação do que é a nossa equipa, os nossos jogadores e do que é o
conhecimento do jogo por parte da equipa e portanto a antecipação é tão mais
facilitada quanto maior for a cultura de jogo da equipa. Fazemos uma avaliação
que, pela introdução dos sub-principios e dos princípios, pela complexidade
dos exercícios que se criam, por vezes, como é um processo e como foi
referido anteriormente, nós estamos constantemente a criar novos exercícios
embora os objectivos por vezes se mantenham, criamos exercícios para que
haja uma mudança, uma evolução de algo que crie algum estorvo, à execução
de um determinado princípio para que haja uma readaptação estrutural e
mental para que não seja um processo sempre idêntico, para que exista um
enriquecimento em termos de trabalho.
A par da a necessidade que temos de evoluir para novos exercícios,
também ficamos na expectativa de como irá ser a reacção dos jogadores no
que se refere á relação com exercício, com as regras e com os princípios que
queremos implementar. Sente-se a necessidade mesmo durante o próprio
exercício de o readaptar, reajustar para que a complexidade seja maior ou
menor, para que o objectivo que pretendemos, aconteça. Isto no fundo é um
trabalho muito importante por parte do treinador, pela necessidade e pela
relação que ele tem que ter com o próprio exercício no sentido de perceber o
nível dos jogadores, da equipa e da compreensão dos princípios e sub-
principios e o nível de cultura dos jogadores em termos de grupo para perceber
se a aquisição e o sucesso em termos de exercícios e a aquisição do princípio
está a acontecer. A partir daqui, cria-se a maior ou menor complexidade do
exercício e reajusta-se nesse sentido para que as coisas aconteçam com
sucesso e, naturalmente, se a situação for muito facilitada também não tiramos
o melhor rendimento, porque percebemos facilmente que os jogadores
executaram com a maior das facilidades e, por outro lado, se for muito
complexo não é importante porque a aquisição do que pretendemos também
não está a acontecer. É este equilíbrio que é fundamental mesmo na nossa
relação directa com os exercícios e com a nossa intervenção na liderança do

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Anexo 3 – Entrevista ao Professor Rui Faria
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próprio trabalho, o que é necessário perceber é: temos de partir de uma menor


complexidade para uma maior complexidade, identificar claramente qual é a
cultura dos jogadores e o nível de jogo da equipa e a partir daqui criar
exercícios no sentido de se ajustar ao máximo de sucesso na aquisição de
objectivos. Não podemos é trabalhar nos extremos, nem na maior
complexidade nem na menor complexidade porque não existe estorvo no
processamento do trabalho, do que se pretende à acção, também não existe
evolução, temos de criar situações em que o jogador tenha que se reajustar,
readaptar a algo novo para que essa evolução possa acontecer.

P: É sabido que na codificação da informação, o pré-conhecimento


da matriz é facilitador da aprendizagem pois apenas há a necessidade de
re-codificar aquilo que muda relativamente àquilo que já era conhecido.
Como lida com este facto na prática sabendo que existem diferentes
ritmos de aprendizagem para diferentes indivíduos, que há jogadores que
chegam de novo e têm que codificar todo um conjunto de informação que
a maioria já domina?

R: É tão mais fundamental apoio teórico quanto maior é o


desconhecimento do jogador ou da equipa em relação a um determinado tipo
de comportamentos que se pretende para a equipa, e quando se particulariza
um jogador que é novo na equipa e que precisamos de o introduzir numa
cultura grupal para ele jogar como queremos. Em primeiro lugar nós já o
seleccionamos para ele fazer parte da equipa porque ele tinha características
que interessavam no sentido do que se perspectiva (em termos de jogo),
depois existem comportamentos que são necessários e fundamentais dentro
da linguagem da equipa e normalmente o que nós fazemos aos jogadores
novos é criar condições facilitadas para que, sem prejudicar o grupo, eles
possam ter presente um conjunto de experiências que lhes permitam adquirir
mais rapidamente o conhecimento do que é a equipa. Por vezes, se lhe
podermos chamar assim, podia dizer que é feita uma “lavagem cerebral” no
sentido de dar apoio visual e teórico com que o jogador acompanha as

XXXIX
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Anexo 3 – Entrevista ao Professor Rui Faria
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reuniões individuais e colectivas, em exercícios tentamos criar situações onde


ele possa ter experiências ao nível do que nós pretendemos dele, mas é obvio
que há necessidade de uma maior intervenção e particularização dos
comportamentos em relação a este individuo especifico mas sem que isto
prejudique o contexto do que é a informação e a complexidade a que os outros
estão habituados, no fundo temos de encontrar um equilíbrio de forma a que se
identifique o jogador com os comportamentos, linguagem grupal e cultura de
jogo da equipa, e tentar fazê-lo como a melhor forma de facilitar a
compreensão da informação dada, seja teórica ou visual e ao mesmo tempo
fazer experimentação prática de um conjunto de exercícios que permitam que
ele vivencie esses mesmos comportamentos de jogo que pretendemos.
Naturalmente, temos de perceber que ele próprio necessita de uma evolução
em termos de complexidade e que é tanto maior quanto maior for a evolução e
a progressão do jogador. Depende muito do jogador, depende da inteligência
dele e da sua própria cultura de jogo para perceber mais rapidamente quais
são as ideias do treinador, quais sãos os comportamentos que o treinador
pretende para ele enquanto elemento de equipa e qual é a liberdade que ele
tem dentro da equipa.
Por vezes há necessidade, em termos de equipa, de reajustar
comportamentos de alguns jogadores em função da qualidade do jogador.
Podemos dar o exemplo de um jogador ala ou extremo em que se sabe que é
um jogador extremamente forte no um contra um, temos então de criar
mecanismos de equilíbrio na equipa para que no momento em que se sabe que
apesar dos comportamentos dele estarem subordinados àquilo que é o
colectivo temos de encontrar um equilíbrio comportamental dentro da equipa
para que estejamos preparados para quando o insucesso acontecer. No fundo
isto são os pequenos reajustes comportamentais em termos de equipa de
acordo com aquilo que é a realidade de um novo elemento que é introduzido e
que vem fazer parte do grupo. São pequenos reajustes mas nunca é uma
alteração drástica da forma de jogar, são reajustes específicos em função, por
vezes de um plano estratégico, e isto acontece frequentemente, é um processo
também evolutivo e, por vezes com o pequeno detalhe fazemos a diferença e
também a própria forma do jogador, que é importante para nós, e a própria

XL
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Anexo 3 – Entrevista ao Professor Rui Faria
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forma de estar deste jogador faz com que nós criemos mecanismos para
fomentar o sucesso em jogo. Por vezes temos de encontrar soluções
comportamentais noutros elementos do grupo que não prejudiquem a
linguagem comum da equipa mas que permitam facilitar o sucesso do elemento
em si. Há um conjunto de detalhes que não só ocorrem quando o elemento é
novo mas também durante a própria época e são fundamentais para que o
sucesso em termos de grupo aconteça.

P: Conhecendo a sua forma de perspectivar o treino sabemos que a


sua acção se direcciona mormente para o condicionamento do plano
macro do “jogar”. Quais os traços gerais das características da sua
intervenção no plano micro?

R: É tão mais importante quanto mais perturbador for para a resolução


do jogo para o sucesso da equipa. É tão mais importante a intervenção quanto
maior for o prejuízo da nossa forma de jogar pois apesar de ser micro, ou como
lhe quisermos chamar, é importante na medida em que pensamos que há
necessidade de intervenção em função do que isso possa influenciar a equipa
em termos de jogo. Portanto, essa intervenção por vezes pode ser feita porque
percebemos que algo acontece, mas podemos fazer uma intervenção quando
se faz a pausa do exercício e se chama à atenção de aspectos que são
importantes para o exercício, chamando à atenção particularmente para a
questão que é micro mas que pode ter alguma perturbação. Por vezes
sentimos a necessidade, durante o próprio exercício, de o interromper para que
esse comportamento ou esse detalhe em termos de comportamento não se
repita ou não aconteça, é tão maior a nossa intervenção imediata para parar
um exercício no sentido de interromper o que está a acontecer quanto maior for
a perturbação desse micro no macro do jogo. Podemos dar do exemplo do
lateral que perde a bola, do ala que perde bola, do pivot que perde bola ou o
médio interior que perde bola, é tanto maior a intervenção quando nós
percebemos que é mais prejudicial para a nossa equipa é esse
comportamento.

XLI
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Anexo 3 – Entrevista ao Professor Rui Faria
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Tudo é subordinado ao macro, o individual está sujeito àquilo que é a


linguagem comportamental comum, o individual tem que estar identificado com
isto, quando o erro ocorre e quando um determinado detalhe, sob o ponto de
vista individual, vai prejudicar o comportamento colectivo, esses equilíbrios
colectivos da equipa têm que se ajustar de imediato. Então é tão mais
importante a nossa intervenção quanto mais isso prejudicar a nossa equipa. Se
tivermos que fazer essa intervenção e parar imediatamente o exercício para
fazer perceber claramente que algo é errado, que algo não está correcto ou
que algo pode ser importante, também não é só quando as coisas acontecem
de negativo é também quando elas acontecem de positivo porque quando
elaboramos um exercício elaboramos um princípio que não é um fim. Não é um
fim porque permitimos que a partir dali as coisas evoluam em função da
criatividade dos jogadores subordinado àquilo que nós pretendemos em termos
globais do grupo, mas damos também liberdade de um mecanismo não
mecânico, isto é, no fundo nós atribuímos o principio, organizamos esse
principio mas ele não se esgota naquilo que nós estabelecemos no
cumprimento do objectivo que queremos que aconteça, mas a partir dai temos
que perceber que tudo tem uma evolução e essa evolução também faz pensar
em novas coisas.

P: Admitindo uma equipa como um conjunto de jogadores com


diferentes funções que condicionam as propriedades do todo, é esse todo
que baliza a consecução ou não dos comportamentos pretendidos.
Porém, a evolução desse todo assenta na melhoria individual de cada um
dos seus constituintes, melhoria essa sobre-condicionada a referências
eminentemente colectivas. Sendo dada total primazia a esse objectivo
colectivo, como trata na prática casos individuais que por algum motivo
não atingem esses referenciais colectivos impedindo a sua melhoria
contextualizada?

R: Em primeiro lugar temos de perceber que a equipa é mais importante


que o individual e se percebemos que há um jogador que tem qualidades e que

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Anexo 3 – Entrevista ao Professor Rui Faria
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essas qualidades também podem ser importantes para nós, por vezes
acontece que as suas características apesar de serem interessantes e de nós
até achamos que podem contribuir de forma positiva para a equipa ele não se
insere na nossa forma de jogar. Há pouco falamos um pouco disto, podemos
encontrar mecanismos dentro da própria equipa de forma a que possamos
suportar estas características individuais, porém não podemos fazer com que
essas características individuais sejam um estorvo àquilo que é a nossa forma
de jogar. Temos de encontrar um ponto de equilíbrio e também temos de
acreditar que é possível encontrá-lo dentro da equipa. Em nenhum momento
devemos fazer com que ele prejudique a nossa equipa e temos de tentar
encontrar o equilíbrio, o que também depende da inteligência dos jogadores. O
jogador também tem de perceber, na perspectiva do que é a equipa, e a equipa
tem que conhecer o jogador para permitir a sua integração, agora é
fundamental entender que às vezes os jogadores, por muito que queiramos,
não têm cultura nem inteligência táctica suficiente para poderem perceber o
nosso jogo, por vezes têm características individuais extremamente
interessantes mas não tem condições para jogar na nossa equipa. O nosso
trabalho é criar condições para inserir um jogador no contexto de grupo sem
que ele prejudique a nossa dinâmica colectiva pois em nenhum momento ele
pode criar perturbação à dinâmica colectiva e para isso nós promovemos a
criação de alguns mecanismos de forma a que ele seja suportado pela equipa
e isto é decisivo, tem que ser é bem estruturado de forma a que consigamos
perceber que por vezes os jogadores vêm habituados a uma determinada
posição e as suas características fazem com que se pense nele em posições
diferentes onde se possa explorar melhor certas capacidades e essas
características do jogador numa outra posição que não aquela a que o jogador
está habituado. Podemos dar o exemplo em que tivemos vários jogadores, no
último clube onde estivemos, que estavam referenciados para determinada
posição no terreno e que nós percebemos que, na nossa forma de jogar, esse
jogador não era o mais indicado ou não tinha as características mais indicadas
para aquilo que pretendíamos e encontramos soluções posicionais diferentes
para esses jogadores. Um exemplo concreto foi o Geremi que estava
referenciado como um jogador de meio campo onde podia jogar em qualquer

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Anexo 3 – Entrevista ao Professor Rui Faria
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uma das posições desse sector, isto é, pivot, interior direito ou médio interior
esquerdo e que jogou imensas vezes a lateral, chegou a jogar a ala, portanto
em função da necessidade e em função das características de outros
jogadores que estavam no terreno nós conseguimos criar um suporte de forma
a que este jogador pudesse dar uma contribuição à equipa. Temos de
conhecer muito bem os jogadores e é com o tempo que isso também acontece,
e assim conseguimos criar condições para que ele possa ser importante dentro
da equipa.

P: Os desvios criadores, os desequilíbrios, surgem-nos como algo


que de alguma forma tem que estar ligado ao MJ. Como os perspectiva na
dimensão macro, isto é, como os potencia sabendo que dizem respeito a
uma ordem oculta?

R: Nós não somos inibidores de criatividade. Temos uma linguagem


comum que é um ponto de partida pois o Jogo é uma dinâmica onde
constantemente surgem coisas novas que criam dificuldades aos jogadores e
criam constantemente a necessidade do jogador responder com sucesso a
essas situações.
Neste sentido, é importante percebermos que a linguagem que
introduzimos é um guia mas depois esse guia de organização colectiva permite
que a criatividade e a individualidade contextualizada surja sustentada nessa
linguagem comum. Em termos individuais as características de um jogador
fazem com que tu cries mecanismos de suporte a esse jogador de forma a que
o sucesso seja mais facilmente alcançado. Por exemplo os jogadores que são
muito fortes no 1x1 “exigem” que se criem formas de equilibrar a equipa
quando ocorre o insucesso. Digamos que é fundamental não inibir a
criatividade mas é fulcral que isso esteja inserido na perspectiva do todo pois
tem que existir sempre esse suporte, isto é, não pode ser aleatória nem
desinserida de um contexto pois aí estamos a desequilibrar a nossa equipa em
vez de desequilibrar o adversário.

XLIV
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Anexo 3 – Entrevista ao Professor Rui Faria
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O jogador tem que ser inteligente para perceber quando pode dar azo à
sua criatividade e tem que existir essa sensibilidade caso contrário a equipa
pode sentir efeitos negativos pondo-se em causa o sucesso da equipa,
portanto tem que existir este ponto de equilíbrio e isto é tão mais possível
quanto melhor os jogadores conhecerem a dinâmica comportamental da
equipa!

P: Admite como potencialmente importantes para a consecução do


Modelo de Jogo outras coisas que não a repetição sistemática em
especificidade dos Princípios de Jogo, isto tendo em conta a sua vasta
experiência a top? (musculação, personal-training, piscina…)

R: Eu não vejo outra possibilidade que não seja essa repetição


sistemática em especificidade dos Princípios de Jogo porque é
FUNDAMENTAL perceber que a organização é o sucesso e quanto mais
organizada for a equipa mais probabilidade de sucesso haverá.
Numa época extremamente competitiva onde por vezes a falta de tempo
para treinar obriga-nos a fazê-lo numa supra-especificidade relativamente ao
Modelo, a única preocupação que temos é treinar comportamentos de jogo, é
treinar princípios, é atender ao lado estratégico em função do adversário numa
perspectiva de antecipar o que vai acontecer no próximo jogo, corrigir
comportamentos do jogo anterior, ou seja, temos que rentabilizar ao máximo o
tempo que temos para treinar, para potenciar ao máximo o padrão
comportamental que queremos e não pensamos em mais nada!

Mas estando a top, onde qualquer detalhe é decisivo, não sente


necessidade de uma individualização do treino com recurso a máquinas
de musculação, piscina, personal-training… Insisto nisto porque somos
confrontados diversas vezes, mesmo dentro da nossa Faculdade, com o
facto de vocês no Chelsea, utilizarem este tipo de recursos? Confirma
isso? Em que moldes o faz?

XLV
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Anexo 3 – Entrevista ao Professor Rui Faria
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R: Só por idiotice e falta de rigor científico se pode afirmar uma coisa


dessas porque a necessidade em termos de evolução do jogo é de tal ordem
que não temos tempo para pensar nesse tipo de particularizações e nessas
questões. A nossa perspectiva de trabalho não fomenta isso porque não
acredita que isso se possa privilegiar em termos de rendimento e como o que
nós queremos é rendimento e isso passa por organização é de uma extrema
idiotice por em causa ou dizer-se - e eu não sei onde se foi buscar essa ideia-
que temos personal-trainers ou fazemos musculação. É uma falta de rigor
científico enorme fazer-se comentários desse género pois quando nós não
temos tempo para treinar aquilo que é fundamental para nós, quanto mais para
treinar coisas que não fazem parte da nossa forma de pensar o treino, portanto
elas não fazem parte da nossa natureza mesmo que tivéssemos tempo e que
fique bem claro que elas não existem na nossa forma de treinar! Volto a repetir
que só por idiotice e por falta de rigor científico é que as pessoas podem dizer
que nós tínhamos personal-training ou que fazíamos treinos na piscina!
Aliás queria-te pedir para que, quando fosses novamente confrontado
com essas afirmações, convidasses essas pessoas a fazer um estágio
connosco para saber qual é a nossa realidade e para terem maior rigor quando
fazem esse tipo de observações. Nós não temos que provar nada a ninguém
nem temos necessidade de dizer que fazemos coisas que depois na realidade
não fazemos, portanto até me dá vontade de rir quando me dizes que ouves
isso.
O principal responsável era o treinador e em seguida era eu e como
segundo responsável da estrutura técnica afirmo que é ridículo pessoas
dizerem que fazemos um determinado tipo de coisas que na realidade não
fazemos! Quem não acreditar pode vir observar e constatar o que estou a
dizer.
É fácil perceber que durante um processo de reabilitação médica,
existam jogadores que tenham, pela forma como o departamento médico se
organiza, responsáveis pelo seu processo de reabilitação, de superação da
lesão, e estes jogadores eram entregues a elementos do departamento médico
que tinham em determinadas horas o cuidado de tratar deles e actividades para
fazer com os jogadores sendo que aí sim, utilizavam os meios que eles

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Anexo 3 – Entrevista ao Professor Rui Faria
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consideravam serem importantes para a sua recuperação mas aqui os


jogadores não estavam a trabalhar no terreno, não estavam entregues à equipa
técnica pois estamos a falar do processo de recuperação onde iam ao ginásio,
faziam hidroginástica mas numa perspectiva de recuperação funcional e
biomecânica. A partir do momento em que os jogadores estavam recuperados
funcionalmente e voltavam para o terreno, todo o trabalho era
progressivamente específico em termos de modalidade e Modelo de Jogo.
Não temos necessidade de provar nada a ninguém, até pelo trajecto que
temos feito, nem temos necessidade de dizer que fazemos uma coisa e
fazermos outra só porque nos lembramos de dizer que somos diferentes. Nós
somos efectivamente diferentes e para as pessoas que não conseguem
perceber essa realidade é-lhes mais fácil dizer que nós somos iguais a eles do
que dizerem que trabalhamos duma forma diferente porque nós sabemos como
eles treinam mas eles desconhecem completamente a nossa forma de
operacionalizar o treino.

XLVII
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