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Imagens para pensar o Outro

Módulo I – O mito do bom selvagem

A descoberta das diferenças pelos viajantes do século XVI e a dupla resposta


ideológica dada daquela época até os nossos dias
1) O mau selvagem

O imaginário europeu, nutrido com dados científicos, relatados em cartas


náuticas e experiências descritas em relatos de viagens, abre-se para as Américas,
enriquecido pelas ideias do Renascimento. Imensa quantidade de gravuras e
desenhos revela um outro ser humano, bem diferente do europeu: índios em contato
direto com a natureza pródiga, de corpos saudáveis e bem torneados, bem
alimentados de carnes e frutas, adornados com joias e plumas. Uma concepção
distante do imaginário anterior dos homens primitivos, deslocando-se em bandos
miseráveis, vestidos com peles de animais, acocorados em volta do fogo, em
paisagens áridas, sofrendo uma vida de pobreza e perigos, apenas sobrevivendo
tristemente. Era a visão de um mundo onde não existia prazer, nem alegria, nem
conforto.

Quanta diferença da indolência sensual e contagiante dos índios, com sua


fartura e diversidade de alimentos, a beleza dos corpos, os risos e as brincadeiras
de seus passatempos! Espantaram-se os descobridores com a variedade e
diversidade dos povos na América, ricos e particulares, suas línguas, culturas e
costumes.

Quantas maneiras e modos diferenciados no que tocava o simples cotidiano;


não somente a linguagem, a alimentação, o habitat, e também aspectos de grande
sofisticação, requintes até, nas pinturas corporais, nos adornos com plumas
coloridas, nos objetos de palha trançada e nas ferramentas finamente esculpidas.
Mas a eles lhes era ainda vetada, e assim o seria durante vários séculos, a noção de
cultura, a qual na época só poderia pertencer ao vocabulário da civilização, isto é do
Velho Mundo.

Nos seus relacionamentos, nas suas formas extensas e codificadas de se


comunicar, dentro da mesma tribo ou não, dentro da mesma etnia ou não, tudo isto
surpreendia os europeus que nunca poderiam imaginar encontrar em terras
desconhecidas tantos povos com tantas variantes. As crenças e religiões, os tipos
físicos, os níveis de desenvolvimento, eram muitas as informações e complexas as
suas interpretações.

Muitos povos eram pobres, mas alguns possuíam riquezas fartas, ostentavam
artefatos luxuosos e acumulavam tesouros de ouro e pedras preciosas. A mais
completa ausência de tecnologias “modernas”, tais como ferro, arado ou pólvora não
impedia um estilo de vida gerador de riquezas capazes de despertar sanguinárias
ganâncias nos sonhos dos conquistadores que varreram as Américas do México ao
Peru.

Nas mentes europeias, a descoberta de sociedades humanas pagãs e


primitivas, vivendo em aparentes paraísos, teve um impacto surpreendente. Na
Europa cristã, a esperança de uma pessoa ser aceita no paraíso, anteriormente
estava indissoluvelmente associada aos cristãos tementes a Deus e merecedores da
escolha divina. Não podemos esquecer que se vivia na Europa Ocidental da
Inquisição. O conceito de ser primitivo implicaria obrigatoriamente uma vida
miserável. As revelações do Novo Mundo chocavam-se e desmentiam as
concepções religiosas e as tradições filosóficas medievais.

Do século XVI ao XVIII se consolidará esse imaginário do poder, junto às


descrições apelativas de Eldorados e de terras paradisíacas, ficções, ensaios,
teatro, poesia, polêmicas, debates em torno da monarquia e liberdade, da cidadania,
ou seja, da subjetividade moderna nascente. Shakespeare, Montaigne, Ronsard,
Rabelais, Rousseau, Diderot, Voltaire, La Fayette alimentaram, cada um à sua
maneira, o imaginário europeu sobre a América.

Surgiram mais tarde também teses de tipo romântico, que defendiam o


contrário da visão tradicional: todo o homem primitivo seria bom, apenas se tornando
mau quando corrompido pela sociedade. Era a “teoria do bom selvagem”
imortalizada por um filósofo, nascido em Genebra, Jean Jacques Rousseau (1712-
1778), que vamos referir adiante.

Porém, não era possível dissociar a ideia do índio primitivo das suas práticas
de canibalismo, o que estava presente em muitos relatos de viajantes. As opiniões
sobre o tema divergiam: tratava-se de canibalismo ritual ou de antropofagismo
alimentar?

Na prática, o canibalismo representou uma ruptura radical entre os indígenas


e os conquistadores. A ingestão de pedaços de carne humana aparecia no
imaginário europeu ora como forma de vingança dos inimigos vencidos, ora como
prática ritual para adquirir as características das pessoas sacrificadas, mas sempre
como um traço cultural abominável.

Theodor de Bry, 1528-1598.


Cena de canibalismo, a partir de “Americae Tertia Pars”, 1592. Gravura colorida. Service Historique de La Marine, Vincennes, France.

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HANS STADEN1 DE HOMBERG NA TERRA BRASILIS: um aventureiro na
América e o mau selvagem

Em 20 de junho de 1556 um alemão aventureiro e viajante compulsivo,


dedicou ao “glorioso” príncipe de Hessen um fantástico relato de suas aventuras,
decorridas principalmente em terras brasileiras: A História Verídica que descreve
uma terra de selvagens nus e comedores de seres humanos, que se situa no Novo
Mundo da América, etc. Seus escritos estão mais de acordo com a visão pessimista
europeia do Novo Continente: índios em que ninguém pode confiar, torturadores,
traiçoeiros e canibais. Era uma descrição tão insólita para os europeus daquele
tempo, que por muitos foi considerada um amontoado de mentiras. Após muitas
peripécias, contadas em tom de tragédia, mas que frequentemente deixam o leitor
atual à beira do riso, os escritos de Staden nos dão informações interessantes sobre
as relações entre nativos, portugueses e franceses.

Capturado pelos tupinambás perto de Bertioga, logo entendeu que eles o


queriam maltratar. “Nisto me levaram para a cabana onde tive de deitar numa rede e
mais uma vez vieram as mulheres e bateram em mim, arrancaram meus cabelos e
mostraram-me como pretendiam me comer...com os pés atados desta maneira tive
de pular pela cabana. Eles riam e gritavam: lá vem a nossa comida pulando...Deram
voltas em torno de mim ...um deles disse que o couro da cabeça era dele, um outro
que a minha coxa lhe pertencia...(eles) preparam uma bebida de raízes que chamam
de cauim... Somente depois da festa é que matam (os prisioneiros, para os
devorar) ...”

Não satisfeitos em ameaçar devorá-lo, mantendo-no sobre forte tensão, os


índios levaram-no para Ubatuba onde tinham estabelecido sua aldeia. Com
frequência obrigando-o a assistir a rituais antropofágicos. Em determinada
oportunidade, sem que se saiba o porquê de tal decisão, fizeram-no ir à aldeia de
Tiquaripe, nos arredores de Angra dos Reis, obrigando-no a assistir a uma cerimônia
no qual o ibirapema, o mestre das execuções, escolheu um dos inimigos
aprisionados para ter a sua cabeça por ele esmagada. Os membros da tribo, já meio
embriagados e muito exaltados, cercaram o cadáver, despedaçando-o e o
devoraram em seguida.

1
As aventuras de Hans Staden renderam no Brasil um filme longa metragem (dirigido por Luiz Alberto Pereira) e algumas
edições de livros, entre as quais sugerimos Hans Staden, tradução de Angel Bojadsen, introdução de Fernando A. Novais,
Editora Terceiro Nome, São Paulo, 1999.

Módulo I – O mito do bom selvagem


Imagens para pensar o Outro
Theodor de Bry, 1528-1598.
Cena de canibalismo, a partir de “Americae Tertia Pars”, 1592. Gravura colorida. Service Historique de La Marine, Vincennes, France.

Após inúmeras aventuras, que lembram as narrativas dos romances da Idade


Média, o viajante alemão acaba por escapar, voltando à terra natal para contar suas
aventuras aos incrédulos compatriotas.

Interessa, porém, observar, no que toca ao livro de Staden, as precauções


que ele tomou na Alemanha para que acreditassem nele. A Europa do século XVI, o
grande século das navegações, estava cansada de ler ou ouvir relatos cravejados
de mentiras e absurdos diversos.

A tal ponto tinham chegado as coisas, que Rabelais, o grande satírico francês,
fazendo mofa do livro do padre cosmógrafo André Thévet (Singularitez de la France
Antarctique, 1558), decidiu-se inserir na sua obra (Gargantua e Pantagruel, 1564,
Livro V), dois capítulos denunciando, pelo riso, o disparate das visões mentirosas
que alguns viajantes tiveram no inexistente “País de Cetim”. Criou, também, como
símbolo desses mitômanos, um personagem-caricatura, o “Ouvi-dizer”, que, apesar
de ser um velho, corcunda e paralítico, tendo a língua esfacelada em sete pedaços,
narrava, com um mapa-múndi aberto à sua frente, as suas impossíveis aventuras
para uma multidão de crédulos. Eram histórias de unicórnios, de mantichoros com
corpo de leão e cara humana, de cabeçudíssimos catoblepos de olhos venenosos,
de hidras com sete cabeças, de onocrotalos que imitavam gritos de asno, de
pégasos, e de tribos de seres com cabeças de pássaros, ou até mesmo com duas
cabeças, de povos fabulosos que andavam apoiados nas mãos, com as pernas
balançando no ar!

Querendo, pois, evitar ser chamado de embusteiro, Staden, além de banir do


seu relato qualquer menção à zoologia fantástica, pediu a um conhecido seu do
Hesse, um tal Dryander, que assegurasse a veracidade do conteúdo do livro. Staden,
“ébrio de um sonho heróico e brutal”, viera a dar com os costados no Brasil para
satisfazer seu gosto pela aventura, para ver de perto as maravilhas que escutara na
Europa sobre o Novo Mundo descoberto. Foi na sua segunda viagem ao Brasil (na
primeira ele conhecera Pernambuco) que Staden naufragou nas costas do litoral
fluminense. Por saber lidar com canhões, os portugueses, que o acolheram muito
bem, promoveram-no a artilheiro do Forte de Bertioga.

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JEAN-JACQUES ROUSSEAU2, O ESTADO DE NATUREZA E O BOM SELVAGEM

2) O bom selvagem

Rousseau foi um típico intelectual do seu tempo, do mais alto quilate, que o
fez merecer o título de filósofo e precursor dos românticos.

Suas preocupações o levaram a muitos campos da cultura, mas neste caso nos
interessam apenas os seus pontos de vista sobre os povos primitivos. Mostrou-se
original e sensível ao aproximar o “estado de natureza” de sua teoria sobre o “bom
selvagem”. Assim fazendo, nascia, como afirmou Claude Lévi-Strauss, a etnologia
um século antes que ela fizesse a sua aparição.

A filosofia clássica afirmava que o “estado de natureza” representava uma era


de barbárie na qual a formação e o usufruto da vida em grupo estariam
definitivamente derrotados. Este “estado de natureza” posicionava-se somente como
ponto de partida para o grande projeto da humanidade através de civilização.

Rousseau, por sua vez, revelou e valorizou as qualidades do “bom selvagem”,


o qual desfrutava de um ambiente natural generoso e acolhedor ao ponto de poder
satisfazer suas módicas necessidades ligadas à subsistência. Por outro lado, gozava
de uma índole pacífica e pura, desprovida de desejos de riqueza, glória e poder,
próprios de cidadãos civilizados.

José Teófilo de Jesus


América
Óleo sobre tela
Museu de Arte da Bahia, Salvador.

Levando esta ideia além, ele considerava que através do raciocínio lógico
chegaríamos a descobrir o estado natural: em primeiro lugar impõe-se o
conhecimento do ser humano, o mais importante de todos. Por aí chegamos à

2
Os escritos de Rousseau, provocaram influências variadas, vastas e profundas no pensamento ocidental. Para o tema do
“bom selvagem” o leitor encontrará facilmente inúmeras páginas de divulgação cultural em nossas enciclopédias. Poderá
consultar, entre essas fontes: Rousseau, em tradução de Lourdes Santos Machado, enriquecida com as contribuições de Paul
Arbousse-Bastide e Lourival Gomes Machado, Editora Nova Cultural, São Paulo, 1999.

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conclusão que o selvagem primitivo era um ser robusto e preparado para o seu
ambiente, sabia enfrentar os animais e viver em harmonia com a natureza.

Ao contrário, o homem civilizado é um ser viciado e cheio de defeitos.


Olhemos para o exemplo dos animais, que em seu estado selvagem são
autossuficientes e cheios de beleza e, quando domesticados, perdem estes
predicados, ficando dependentes do homem.

Os instintos dos selvagens primitivos eram poucos e simples: receavam a dor


(física, claro, que outra qualquer eles ignoravam); suas paixões eram a nutrição, o
repouso e a reprodução. Como nunca tinham refletido sobre a morte, logicamente
não a temiam.

O homem natural não é bom nem mau, não faz juízos de valor sobre o que é
vício ou virtude. Entretanto, no estado da natureza, as paixões (instintivas) são mais
exacerbadas. O selvagem está com fome, alimenta-se e sua paixão se extingue.

Resumia Rousseau estas dualidades expressando que “a maioria dos nossos


males é obra nossa”. Falando de amor, existem dois tipos, um que pode chamar-se
de moral, mas que na verdade é uma forma fictícia de amor. Foi criado pela
sociedade, “inventado pelas mulheres”; é muito diferente do amor físico, esse sim,
verdadeiramente autêntico. Ao selvagem qualquer mulher lhe serve, como acontece
com os animais. A educação, os hábitos e as culturas sociais, na verdade
depravaram o homem e lhe roubaram sua autêntica natureza.

Deixando de lado os comentários absurdos - e desatualizados - sobre o amor


e a condição feminina, nesta teoria do bom selvagem de Rousseau podemos
verificar a visão otimista e idílica que os europeus passaram a ter dos povos
primitivos - agora completamente separada do preconceito medieval que os
considerava como seres inexoravelmente condenados às penas dos infernos.

Os humanistas foram criando novos símbolos, metáforas e alegorias. Um dos


temas prediletos passou a ser Os Quatro Continentes. É que aos Três Continentes,
representados desde a Antiguidade e com muita influência dos cânones greco-
romanos, os europeus acrescentaram outro, com a representação alegórica do Novo
Mundo: uma mulher mostrada em sua nudez e sensualidade, com traços guerreiros,
adornos de plumas e carregando arco e flecha. Era a América Índia.

Neste campo cada artista exerceu sua sensibilidade em conceitos e imagens


que muito variaram e se tornaram patentes em suas pinturas. Há numerosos
quadros e gravuras privilegiando temas simbólicos como animais exóticos, frutas
tropicais, grande diversidade e riqueza de roupas. Outros sublinhavam os pendores
guerreiros e referiam-se ao canibalismo, às qualidades maternais das índias, à
interação com a natureza exuberante, o espírito comunitário, a vida indolente e
pacífica.

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Imagens para pensar o Outro
Victor Meirelles
Moema, 1866.
Óleo sobre tela, 129 x 190 cm
Acervo do Museu de Arte de São Paulo Assis
Chateaubriand/MASP.

Muitas pinturas apresentam algumas destas características combinadas,


tentando representar equilibradamente a visão do Novo Mundo. Entretanto, de
pinturas com alegorias especificamente relacionadas ao Brasil, só se tem notícia no
Século XVII. Devemos mencionar que no século anterior o principal suporte
pictográfico tinha sido a gravura em diversas formas. A xilogravura (entalhada em
madeira), foi aos poucos cedendo espaço para outro processo de mais recursos
artísticos, a gravura sobre cobre, praticada por muitos grandes mestres da época,
sobretudo na Itália, Alemanha, Flandres e França.

O fascínio europeu pelas Américas promoveu uma mobilização ampla e


profunda em todos os domínios da atividade humana. As conquistas, a constituição
de impérios ultramarinos e o consequente enriquecimento dos países europeus,
sobretudo de Portugal, Espanha, Inglaterra e Holanda, também motivaram os
artistas, que foram progressivamente se libertando dos limites impostos pelos
motivos religiosos, para se expressarem com mais liberdade.

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