Normal-Patolégico, Satide-Doenga:
Revisitando Canguilhem *
MARIA THEREZA AVILA DANTAS COELHO **
NAOMAR DE ALMEIDA FILHO ***
RESUMO
Este artigo pretende reavaliar a obra de G. Canguilhem sobre a normalidade,
a sade, a doenca e a patologia, Discute inicialmente a critica canguilhemiana
da abordagem positivista da dicotomia normal-patol6gico, avaliando-a como
insatisfat6ria porque reafirma a disjungSo qualitativo-quantitativo. Analisa ainda
a distingdo entre normalidade ¢ saiide, juntamente com a proposigao da saiide
como capacidade normativa. Por fim, apresenta a reflexio ética pioneira de
Canguilhem sobre a engenharia genética e a sua proposta de distingao entre
saiide privada (subjetiva) ¢ savide péblica, apontando para a necessidade de
investigagées epistemoldgicas sobre o conceito de satide.
Palavras-chave: Saiide, normalidade; epistemologia; Canguilhem.
* Trabalho realizado com apoio do Consetha Nacional de Desenvolvimento Cientifico ¢ Tecnolégico (CNPq),
sob a forma de Bolsa de Mestrado para o primeiro autor ¢ de Bolsa de Produtividade para o segundo (Proc.
'520573/95-1), Os autores agradecem a valiosa colaboragao de Jairnilson Silva Paim, Lfgia Vicira da Silva e
‘anénimos revisores de Physis, cuja leitura erftica tigorosa muito contribuiu para 2 versio final do presente
texto.
++ PsicSloga, membro do Colegiado Diretivo do Colégio de Psicanélise da Babia, doutoranda no Programa de
Pés-Graduagfo em Satide Coletiva - Instituto de Satide Coletiva da Universidade Federal da Bahia.
«#4 Ph.D, Ditetor do Instituto de Satide Coletiva da Universidade Federal da Rahia, Pesquisador I-A do Conse-
tho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecaolégico (CNPq).
PHYSIS: Rev. Saiide Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 13-36, 1999 13Maria Thereza Avila Dantas Coelho / Naomar de Almeida Filho
ABSTRACT
Normal-Pathological, Health-Disease: Revisiting Canguilhem
This paper evaluates the work of the French philosopher G. Canguilhem on
the relationship of the concepts of health, normality, disease and pathology.
Canguilhem’s critique of the positivistic approach on the dichotomy normal-
pathological is considered unsatisfactory, because it reinforces the disjunction
uantitative-qualitative, The distinction between normality and health, as well
as the conception of health as normative capacity, is analysed. Finally, his
pioneer ethical reflection on genetic engineering and his distinction between
private, subjective health and public health are presented, pointing to the need
for epistemological researches on the health concept.
Keywords: Health; normality; epistemology; Canguilhem.
RESUME,
Normal-Pathologique, Santé-Maladie: En Revisitant Canguilhem
Ce texte analyse ’ocuvre du philosophe ftangais G. Canguilhem sur les rapports
entre les concepts de santé, normalité, maladie et pathologie. La critique de
Canguilhem sur Papproche positiviste de la dichotomie normal-pathologique
y est considerée comme insatisfaisante, parce qu'elle réaffirme la disjonction
quantitatif-qualilatif, La distinction entre normalité et santé, ct également la
conception de santé en tant que capacité normative, y sont analysées. A Ia fin,
il présente la réflexion éthique pionnigre de Canguilhem sur le génie génétique
et sa proposition de distinction entre santé privé subjective et santé publique,
en soulignant la nécessité de recherches épistémologiques concernant le concept
de santé.
Mots-cli
Santé; normalité; épistémologie; Canguilhem.
Recebido em 19/10/98.
Aprovado em 20/05/99.
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PHYSIS: Rev. Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1); 13-36, 1999Normal-Patolégico, Saiide-Doenga: Revisitando Canguilhern
Introdugio
A obra de Georges Canguilhem (filésofo francés contemporaneo, nascido
em Castelnauday, em 1904) desempenhou imporiante papel na etapa inicial
de construgio da Satide Coletiva no Brasil. Os estudos pioneiros de Sérgio
Arouca (1975), Anamaria Tambellini (1976) e Cecilia Donnangelo (1976),
entre outros, buscaram estabelecer uma critica filosdfica do pensamento
sanitério tradicional, com base numa perspectiva marxista, porém referindo-
se principalmente as obras de Bachelard, Canguilhem ¢ Foucault'. Certa-
mente que tal movimento foi bastante facilitado pelo fato de que dois desses
autores efetivamente haviam analisado temas da drea de satide: Foucault e
a histéria da loucura, da clinica e dos hospitais, Canguilhem e os modelos
da explicagao biolégica ¢ 0 bindmio normal/patol6gico.
Uma interessante hipdtese de histéria das ciéncias, a ser devidamente
considerada, pelo menos para alguns desses autores, € que essa referéncia
teria funcionado, dentre outros motivos, como uma camuflagem da base
tedrica marxista das andlises propostas, num momento de intensa represséo
politica e censura ideolégica. Faz, parte do anedotario da época que 0 capi-
tulo metodolégico da tese de Sérgio Arouca (1975) sobre o “Dilema
Preventivista” (alias, o inédito paradoxalmente mais difundido de que temos
noticia) havia sido escrito de modo hermético ¢ propositalmente pouco
compreensfvel, justamente para desencorajar censores € outros leitores
indesejados. Desse modo, tanto Foucault como Canguilhem inadvertidamen-
te vieram a adquirir, na literatura sanitarista latino-americana, uma respei-
tosa consideragio como expoentes tedricos de um pensamento epistemolégico
de esquerda.
Da parte de Foucault, essa aura foi rapidamente revisada, por iniciativa
principalmente do préprio autor, com sua guinada genealégica nietzschiana,
no inicio da década de citenta (Rabinow, 1984). O mesmo nao ocorreu com
a epistemologia de Canguilhem, que, protegido de andlises criticas mais
ptofundas, talvez pelo desconhecimento do conjunto da sua obra”, continuou
a ser referida como base conceitual para importantes empreendimentos ted-
ricos fundamentados no marxismo no campo da Satide Coletiva. O exemplo
mais marcante desse cfeito talvez seja a teoria do “processo de trabalho ¢
1 Para Machado (1981), tais autores constituem uma Tinhagem da filosofia da ciéneia enquanto histéria
epistemolégica.
2 No campo da Saiide Coletiva, os trabalhos de Mendes-Gongalves (1984) € Ayres (1995) constituern
talvez importante excegdo a esse “siténcio analitico”.
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