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A Feitoria de Abul

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Vítor Caldeirinha

A Feitoria de Abul
© Vítor Caldeirinha

Todos os direitos reservados


Autorizada a reprodução desde que citada a fonte

Editora: Cargo Edições, Lda


ISBN: 978-972-98324-3-7
Depósito Legal:
Capa: Dodesign
1ª edição: Novembro de 2007
Impressão e acabamento:
Selenova
Rua Horta de Bacelos - Lote B R/C e 1º - Maceira
2692-390 Santa Iria de Azóia

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A Feitoria de Abul

Índice
Prefácio ................................................................................................ 7
Nota do Autor ....................................................................................... 9
Capítulo I A Frente Egípcia ........................................................ 13
Capítulo II Evenor II .................................................................. 17
Capítulo III Misterioso Vulto ........................................................ 21
Capítulo IV Ruínas de Tróia ......................................................... 25
Capítulo V Metro do Sul ............................................................. 29
Capítulo VI A Congregação Secreta ............................................... 31
Capítulo VII A Descoberta ............................................................ 33
Capítulo VIII Preparativos da Expedição............................................ 35
Capítulo IX A Hesitação de Andrade ............................................. 37
Capítulo X Conselho Atlante ........................................................ 39
Capítulo XI Despedidas ................................................................ 43
Capítulo XII Início da Expedição ................................................... 45
Capítulo XIII Dificuldades Inesperadas ............................................. 49
Capítulo XIV Encontro Indesejado ................................................... 53
Capítulo XV A Pirâmide Giratória ................................................. 57
Capítulo XVI Novo Mundo ............................................................. 61
Capítulo XVII A Aldeia de Chibanes ................................................. 65
Capítulo XVIII O Monte Sagrado ...................................................... 71
Capítulo XIX A Feitoria de Abul ..................................................... 75
Capítulo XX A Tragédia ................................................................. 77
Capítulo XXI A Cidade de Antília ................................................... 83
Capítulo XXII A Ilha de Aea ............................................................ 87
Capítulo XXIII A Expedição de Seden ................................................ 89
Capítulo XXIV Volta pela Cidade ....................................................... 91
Capítulo XXV A Ilha de Urz ............................................................ 93
Capítulo XXVI O Velho de Azaes ...................................................... 97
Capítulo XXVII A Civilização Antiga ................................................... 99
Capítulo XXVIII Os Homens Primitivos ............................................... 103
Capítulo XXIX O Templo dos Céus ................................................... 107
Capítulo XXX A fuga dos Atlantes .................................................... 109
Capítulo XXXI O Fim da Atlântida .................................................... 113
Capítulo XXXII Batalha Final ............................................................. 115
A Feitoria de Abul (Parte II) ................................................................... 119
Parte Final ............................................................................................. 121
Nomes da PB (anos 80/90 do século XX) ........................................... 123
Algumas Pequenas Histórias da PB .......................................................... 125
Poemas do Autor ................................................................................... 133
Bibliografia com interesse ....................................................................... 141
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Vítor Caldeirinha

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A Feitoria de Abul

Dedicado à minha querida esposa Sandra, que suportou horas e horas sem me ver,
enquanto escrevia, aos meus lindos filhos gémeos Pedro e Diogo, aos meus pais José
Caldeirinha e Maria de Lurdes Costa, ao meu irmão Luís e sua esposa Ana e aos meus
sobrinhos Sara, Tiago e Laura.`
À restante família e amigos da Praça do Brasil e colegas de trabalhos.

Vítor

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Vítor Caldeirinha

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A Feitoria de Abul

Prefácio

S er capaz de compreender algo, pode não servir de nada… Exemplo?


Após alguém capturar o conceito de infinitamente pequeno (um aparente
paradoxo), entendendo e aceitando que algo por mais pequeno que seja, é sempre
e ainda possível de se dividir, mais e mais, mesmo que a partir de certa altura,
"mais pequeno" seja já e apenas, um numero que se torna cada vez maior, do lado
direito da vírgula…
E então, após desfrutar deste saber, pensar de imediato que:
Alguém ao morrer se for capaz, de dividir o seu último segundo de vida, no
infinitamente possível, nunca vai deixar chegar o momento seguinte e com ele a
morte. Ficando eternamente preso num último segundo de vida, que se reduz sem
acabar. Uma pequena imortalidade, interessante, mas de pouco remédio.
Um pouco como na física quântica, onde a mesma matemática, que por mais
que eu tente não entendo, chega hoje a uma conclusão, essa sim que entendo bem:
"O universo não existe se ninguém o estiver a observar"
Agrada-me pois esta história, e a Atlântida…nada melhor que um sonho, uma
dúvida, um mito, se afinal até os cálculos mais elaborados nos dirigem sempre a
essas mesmas paragens.
Lembro-me agora (por efeito directo da palavra Atlântida) que, como
qualquer bom geólogo logo nos ensina: "… vivemos neste mundo por mera
concessão geológica…"
A verdade é que a força que o mundo encerra e paulatinamente aqui e
ali liberta, sempre nos consegue vencer, até no que de pior a humanidade
tem: Basta pensarmos como sempre nos parece desproporcional e total-
mente desnecessário, injusto, ignóbil, violento, enfim terrivelmente huma-
no, um qualquer tremor de terra, que em segundos mata e destrói, mais
que meses da pior guerra fratricida.
Agora lembro-me, para não ser simples, que há um velho ditado Japo-
nês que canta algo assim: "O tremor de terra não mata, o que nos mata são
os bens materiais que temos!"
Bem, então se a Atlântida existiu e no mar azul se afundou, como alguém que

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Vítor Caldeirinha

procura agarrar o céu num simples pedaço de espelho, então eu sei e tenho a
certeza que:
❖ Como Atlantes, e povo superior, nada podiam ou queriam ter!
❖ E por isso, e porquê o que nos mata é o que temos!
❖ Então cada Atlante teve que morrer, por nada mais possuir para além do
chão onde vivia!
E se… de entre todos eles, alguns sobreviveram, e em nós estão diluídos pelo
tempo?
O que os salvou, só pode ter sido, estarem entre os poucos desprezíveis que
possuíam algo.
Enfim, não serem verdadeiros Atlantes, serem como nós, porque só assim,
somos eles!

Obrigado por me fazeres magicar

Angelo Campos

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A Feitoria de Abul

Nota do Autor

E ste é um livro que comecei a idealizar no início de 2003, durante as minhas


viagens diárias entre Setúbal e Lisboa.
Pensei em como o Fado me fazia lembrar o som do mar. De onde viria esta
semelhança? Porque é que os portugueses são independentes de Espanha, voltados
para o mar? De onde vem este sentimento geral de saudade?
Quem éramos há milhares de anos? Quem foram as nossas raízes? O que faziam
e sentiam as pessoas que habitavam as actuais ruínas de castros, casas, povoações,
construções antigas da região de Setúbal e Lisboa? Sei que somos fruto de misturas
de vários povos e temos orgulho nisso, mas quem foi a nossa base? Que contributo
demos à Europa?
A canção sobre mil anos, "A Thousand Years", de Sting, misturada com o fado
de Mariza, ofereceram-me a beleza e a solução, depois de ter ouvido a música
muitas vezes na rádio RFM.

"A thousand years

Words by sting
Music by sting and kipper

A thousand years, a thousand more,


A thousand times a million doors to eternity
I may have lived a thousand lives, a thousand times
An endless turning stairway climbs
To a tower of souls
If it takes another thousand years, a thousand wars,
The towers rise to numberless floors in space
I could shed another million tears, a million breaths,
A million names but only one truth to face
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Vítor Caldeirinha

A million roads, a million fears


A million suns, ten million years of uncertainty
I could speak a million lies, a million songs,
A million rights, a million wrongs in this balance of time
But if there was a single truth, a single light
A single thought, a singular touch of grace
Then following this single point , this single flame,
The single haunted memory of your face

I still love you


I still want you
A thousand times the mysteries unfold themselves
Like galaxies in my head

I may be numberless, I may be innocent


I may know many things, I may be ignorant
Or I could ride with kings and conquer many lands
Or win this world at cards and let it slip my hands
I could be cannon food, destroyed a thousand times
Reborn as fortunes child to judge anothers crimes
Or wear this pilgrims cloak, or be a common thief
Ive kept this single faith, I have but one belief

I still love you


I still want you
A thousand times the mysteries unfold themselves
Like galaxies in my head
On and on the mysteries unwind themselves
Eternities still unsaid
til you love me"

A lenda da Atlântida encaixa perfeitamente neste cenário e é ideal a sua loca-


lização no Atlântico, junto ao Mar Mediterrâneo, conhecido da antiguidade, nos
grandes bancos submarinos do Atlântico, do Gorringe, que um dia poderão ter
sido ilhas que afundaram com a subida das águas do mar ou com a ocorrência de
alguma catástrofe.
Uma ligação milenar perdida entre Portugal, no continente, e as ilhas Atlântidas

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A Feitoria de Abul

poderia explicar tudo, a saudade, o som do mar, do fado e continuamos a amar o mar.
Logo que pudémos, saímos por ele fora à procura da nossa origem no mar e
achámos a América, a rota do Cabo Africano, a passagem Sul para o Pacífico. Está-
nos no sangue certamente. Mas porquê?
Este livro tem por base uma mistura salutar entre a realidade histórica, o
misticismo e a ficção científica. Não pretendo dizer que foi assim. Aliás, sei bem
que não foi. Mas sentir-me-ia bem se tivesse sido.
Os lugares históricos que refiro não estão, propositadamente, situados no tempo
correcto e no seu devido enquadramento dos povos que os habitaram. Os lugares
antigos foram utilizados de forma livre para terem lógica com o que se pretendia
contar.
Demorei o ano de 2003 a aprender como criar um enredo e escrever um guião
com interesse. Não é coisa simples.
Não posso negar que o estilo do livro de Dan Brown, "O Código Da Vinci",
foi uma inspiração, pela ligeireza dos seus capítulos, pelo suspense que mantém
no final de cada um deles e pela simplicidade com que prende e está escrito.
Depois tentei utilizar a mesma envolvente dos livros de Júlio Verne. O meu
guia espiritual foi mesmo o livro de banda desenhada "Raio U", que li muitas
vezes, quando jovem, e me fez sonhar com mundos em ilhas misteriosas e estra-
nhas, ideais para o meu enredo.
A ligação à região de Setúbal e Lisboa, ao rio Sado e ao rio Tejo e aos locais
com ruínas de antigos povoados era inevitável, devido ao meu interesse sobre a
região e sobre o tema da pré-história, que aumentou com as minhas viagens de
bicicleta de montanha pelo meio da Serra da Arrábida e com os fósseis e restos
de casas que encontrei.
A Feitoria de Abul foi um local de partida para todo o livro. A partir dela andei
para trás e para a frente. Tinha que passar por ela. É central em todo o livro. Mais
que a Atlântida, que provavelmente nunca terá existido. A Feitoria de Abul existiu.
Foi o primeiro porto de Setúbal no rio Sado, explorado pelos fenícios, no momen-
to posterior ao descrito neste livro, estando muito bem documentada e descrita
numa publicação à venda no Museu Arqueológico e Etnográfico do distrito de
Setúbal.
Ainda que a Atlântida não seja o verdadeiro elo de ligação que responde às
questões sobre Portugal e sobre a região de Setúbal, que coloquei de início, existe
certamente algum elo milenar, com características muito semelhantes. Algo nos
atrai para o mar. Viemos de lá certamente e por estas praias ficámos, sempre com
saudade de a ele voltar.
No final, o Códice do Conhecimento Antigo de Urz, motor de desenvolvimen-
to de todo o enredo deste livro e objectivo final das personagens, revela ao leitor
os mais recentes segredos sobre quem somos, de onde viemos e para onde vamos.
Recorrendo às mais recentes descobertas científicas da física, da cosmologia e da
arqueologia, procura-se uma solução imaginativa, mas não totalmente científica,
sobre a razão da existência do universo e do ser humano.

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Vítor Caldeirinha

Demorei o tempo que foi preciso e poderá não agradar a todos, mas deu-me
muito gosto e gozo escrever um livro não técnico desta vez e com alguma imagi-
nação. Espero que gostem. Aconselho-vos a colocarem também a vossa imagina-
ção a trabalhar e a escreverem sobre o que vos agrade, mas de forma organizada
e continuada.
No final, juntei algumas pequenas recordações sobre a Praça do Brasil, em
Setúbal, onde vivi a infância e a juventude.
E depois alguns versos que escrevi quando andava no Liceu de Setúbal, de 1985
a 1987.

Para compreender melhor o Livro:

Os anos em que decorre a história:

5050 a.C Nascimento de Cristo 2050 d.C


__________|______________________________|____________|___

Os locais em 5050 a.C. :


Ilhas Atlantes P. Ibérica
Região Seden Aea Urz futura Setúbal
Cidades Antília Atlas Azaes Feitoria de Abul
(capital) (capital) (aldeia)
Chefia Mestor I Evenor II Vice-rei
Localização 36,8N 11,0W 36,5N 11,5W 35,0N 12,0W 38.4284ºN
8.68164ºW

Localização da Atlântida
no Banco do Gorringe

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A Feitoria de Abul

Capítulo I
A Frente Egípcia

D ecorre o ano 2050 d.C., nas planícies intermináveis dos desertos do Egipto
profundo, junto às margens do rio Nilo, que corre azul, sem qualquer agitação,
num ritmo lento até ao Mar Mediterrâneo. Nas margens, um vento constante
arrasta grãos de areia fina, que ondulam nas dunas do rio. O Nilo é a única fonte
da vida nestas paragens secas e, há muito, motivo de disputa.
O corpo de intervenção internacional da União Europeia, constituído por alguns
milhões de soldados, apoiados por voluntários da Nato, americanos e asiáticos,
defrontam há vários anos as tropas da Liga Árabe, com sucessivos avanços e recuos
em torno do Nilo, sem que se vislumbre sinal de vitória para qualquer um dos
lados.
Após vinte anos de lutas, que dizimaram e mutilaram muitos homens, a União
Europeia conseguiu, progressivamente, expelir todos os seus inimigos árabes do
continente Europeu, mais uma vez na história, e entrou no Norte de África.
Ocupou as zonas do antigo Império Bizantino, onde pretende agora instalar
governos muçulmanos aliados, não radicais, que se integrem no espírito demo-
crático da Europa, ainda que com uma religião diferente. Trata-se de replicar o
modelo de sucesso da Turquia.
Apesar de já não possuir o poder que outrora o petróleo lhe concedia, a Liga
Árabe logrou acumular vastas riquezas durante dezenas de anos, fruto da venda do
seu ouro negro. Essa riqueza tem chegado para sustentar um longo esforço de
guerra santa com o resto do mundo e manter intactos os estados árabes no médio
oriente e os seus governos religiosos extremistas, mesmo com os regulares
bombardeamentos que as suas grandes cidades têm sofrido.

............................

Ao longe ouve-se o rebentar das granadas e bojardas, que parece entrar nos
ouvidos, e explosões luminosas que enchem o azul celeste de múltiplos pequenos
sóis e de pontos negros e fumo, gases e resíduos. Os aviões, jactos, balões, pro-
jécteis e naves rasgam o céu e compõem o cenário de horror.

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Vítor Caldeirinha

Por vezes, são disparados mísseis comandados à distância ou mesmo raios de


energia destruidora, última novidade neste confronto. Cada vez mais soldados têm
sido recrutados e mortos em vão nestas batalhas, que se seguiram à tentativa de
ocupação do Sul da Europa pelos países da Liga Árabe, com o intuito de refazer
o antigo império muçulmano de há vários séculos atrás.
O calor seca e esgota os corpos dos soldados, ajudado pelo efeito de estufa que
se intensificou nos primeiros cinquenta anos do século XXI, com o desenvolvi-
mento dos países africanos, que se industrializaram, aproveitando a mão-de-obra
barata, quase escrava, e fazendo frente ao crescimento da China e da Índia.
No cenário de guerra, os generais do exército europeu reorganizam as suas
tropas em grande frenesim, enquanto decorre o confronto. Cada soldado levando
o seu robot militar, acompanhante, para a luta corpo a corpo, controlado pelo
pensamento. É chamado o "anjo da guarda metálico". A batalha está a meio e os
soldados sobreviventes, meio perdidos, retiram para se juntarem às novas com-
panhias que partem para a frente, para voltar tudo a repetir-se.
Centenas de carros de combate flutuantes, a baixa altitude, carregados de
armamento que sobressai no seu desenho aerodinâmico, defrontam-se com disparos
de laser, mísseis, raios de plasma e bombas de todos os tipos e formatos, passando
uns entre os outros e voltando para se confrontarem de novo, num ribombar de
explosões e som cortante de raios mortais incandescentes, acompanhados de
constantes flashes e cinzas de morte e destruição dos veículos, que são eliminados
e caiem nas areias, sem vida. A confusão é total.
Uma novidade nesta guerra é a arma portátil de atracção de objectos e pessoas
a curta distância, que serve para puxar os soldados inimigos, armas ou robots pelo
ar, sendo então eliminados, ou para puxar e atirar qualquer pequeno objecto como
se fosse uma arma de arremesso. Por baixo dos carros flutuantes, soldados usam
abundantemente esta arma, criando uma paisagem de homens e objectos que são
puxados e atirados em arco entre as linhas de inimigos.
Enquanto se trava esta batalha pela ocupação de uma pequena fracção de terra
e rio, a cinco quilómetros, o Prof. Andrade, reconhecido arqueólogo português
e perito europeu em pré-história dos povos, aproveita para realizar pesquisas nas
terras do Egipto, recentemente conquistadas e visitadas pelos cientistas europeus
pela primeira vez, após dezenas de anos de isolamento.
- Prof. Andrade! Prof. Andrade! - gritou um estudante egípcio que surgiu
apressado, com vestes compridas e finas, de um branco lixívia, tipicamente ára-
bes, e chinelos de pele de cabra atados aos pés - penso que encontrámos o que
procurávamos.
- Mostra-me. Vai à frente - ordenou, ansioso, o Professor.
Correram de forma desenfreada e o mais que podiam, pelo meio de buracos na
terra, tábuas com pregos, rampas por cima dos buracos na areia, escavadoras
mecânicas, sob o calor do meio-dia que queimava a pele. Percorreram o pequeno
caminho sinuoso, desde a moderna tenda-iglu de campanha do Professor, com todas
as comodidades e automatismos da época, até ao local onde decorriam as escavações

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A Feitoria de Abul

arqueológicas, quarenta metros abaixo de uma antiga pirâmide egípcia.


Os últimos metros do percurso foram percorridos num elevador metálico com
grades de protecção até à cintura, que desceu rapidamente através de um túnel
quadrangular, vendo-se passar as várias camadas de areia e terra, resultado de
milhares de anos de inundações do Nilo.
- Descobrimos vestígios de um povoado importante e de material de combate,
com cerca de sete mil anos. Fizemos o teste químico. Já há muito que se travam
aqui batalhas - referiu com entusiasmo o responsável pela descoberta.
O local da descoberta estava rodeado de robots escavadores e de arqueólogos,
trajados de forma tradicional árabe, recrutados para esta acção de investigação e
cooperação entre a União Europeia e a universidade local do Cairo.
- O que ainda não percebemos, é quem terá criado aqui uma cidade há tanto
tempo, e aqui terá travado guerras, muito antes do império egípcio. Os objectos,
a forma de construção e os artefactos são de origem completamente desconhecida
para nós. Como será possível que ninguém tivesse descoberto estes povos antes?
- questionava-se um cientista local, falando alto.
Andrade olhava estupefacto, como quem não acredita no que vê, voltando a
cabeça, os olhos brilhantes, e a barbicha catedrática, em direcção aos arqueólogos
egípcios.
- Parecem objectos atlantes. Magnífico! Magnífico! Este pode ser o concretizar
da missão do meu avô, que tem sido prosseguida pela minha família: "a confir-
mação de que existiu a antiga civilização do Mediterrâneo, dominando o Sul da
Europa e o Norte de África, com base no império das ilhas desaparecidas da
Atlântida, no Atlântico, junto a Portugal e Marrocos.
Colocando o dedo indicador no centro dos seus óculos redondos e largos,
continuou - Esta parece ser, sem dúvida, a descoberta do século. Só teremos que
comparar estes utensílios com os descobertos recentemente em Marrocos, igual-
mente com sete mil anos, que ficaram a céu aberto com as grandes tempestades
de areia do último Inverno.
Mas o seu sonho era ainda mais ambicioso. Queria encontrar o grande tesouro
Atlante:

O Códice do Conhecimento Antigo


O Códice de Urz

Referido em vários manuscritos da antiguidade, mas nunca encontrado. O que


conteria esse códice? Uma pergunta que o Professor tem colocado, a si mesmo,
nos últimos anos, sempre sem resposta. Será que ainda existia? Onde estaria
enterrado?

Vamos para a antiguidade para percebermos o que aconteceu.

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Vítor Caldeirinha

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A Feitoria de Abul

Capítulo II
Evenor II

S ete mil e cem anos antes, em 5050 a.C, exactamente no mesmo local, o Rei
Evenor II, "O Poderoso", comandava os seus exércitos de milhares de soldados
atlantes e outros oriundos dos reinos aliados, que, de Ocidente - da Atlântida - para
Oriente, pretendiam alargar o império e dominar os povos do Mediterrâneo,
prosseguindo o velho sonho do Império Atlanto-Mediterrânico.
Enquanto o seu irmão, Mestor, conquistara a Europa mais a norte, Evenor II
e os seus exércitos apoderaram-se de África. Mas, após muitos anos de aliança
estratégica e tolerância mútua, os irmãos estavam agora desavindos e lutavam
pelos territórios orientais do Mediterrâneo, tentando entrar cada um nos domí-
nios do outro.
- Vamos vencer esta batalha contra o teu irmão e os seus aliados Sumers, do
oriente longínquo. Mesmo em menor número, estamos melhor armados, com o
moral elevado e o terreno e o tempo são favoráveis aos nossos homens, habituados
ao deserto.
- Vamos a ver general, vamos a ver - vociferou o Rei.
- Não podíamos estar melhor colocados no terreno para vencer, mas eles são
muitos - lembrou excitado, mas contido, o principal general de Evenor, mantendo
a sua postura erecta, da qual apenas dissonavam os seus cabelos brancos ao vento.
- Que os deuses do mar nos ajudem nesta luta pelo bem. O meu irmão enver-
gonhou a memória das nossas famílias. Dividiu o reino dos nossos antepassados
e levou o nosso povo para uma luta fratricida, que tem deixado muitas famílias
enlutadas e os campos por lavrar. Agora, apoia estes povos bárbaros do Leste. Mas
nós vamos vencer e fazer o império do bem, ocupando este deserto, depois o rio
Nilo e mais tarde conquistaremos as cidades portuárias ao Norte do grande mar
e na Elenia, da Etalia Tirrania.
Do alto de uma duna de areia gigantesca, prostrado no seu belo, mas pequeno,
cavalo castanho atlante, precursor do cavalo português lusitano e do cavalo árabe,
levantou a sua bandeira verde listada, fazendo sinal para que os exércitos avanças-
sem, conforme havia sido planeado com os generais, na tenda do Estado Maior.
Recorrendo às grandes jangadas de canas construídas no dia anterior, os exér-

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Vítor Caldeirinha

citos começaram a deslocar-se pesadamente, entrando grupos de trinta homens


para cada uma das embarcações improvisadas, sendo levados pelas lentas e calmas
águas azuis, até à outra margem, onde chegaram alagados em água do rio, suor
e lágrimas de emoção.
Após atravessarem o Nilo, o Rei mandou regressar as embarcações e o exército
ficou de costas para o rio e de frente para o exército inimigo. Ou avançavam e
matavam ou fugiam para o rio e seriam mortos pelo inimigo, pelos crocodilos
sagrados e pelos monstros marinhos pré-históricos, que ainda povoavam o fundo
das águas naquela altura.
A batalha começou, com o avanço do exército de Evenor II em formação de
flecha, na direcção ao inimigo, levantando poeira visível a longa distância.
Logo de seguida, os soldados bárbaros Sumers são apanhados desprevenidos
quando, repentinamente, se abre uma brecha nas hostes de Evenor II e dividindo-
se em dois, cercam uma das falanges Sumer, dizimando quase metade do inimigo.
Evenor II está no centro da batalha, lutando com a sua enorme espada luzente
que recorta habilmente os corpos, as armaduras, braços, cabeças e pernas dos
soldados Sumers que cruzam o seu caminho, de tal forma que fazia lembrar um
pêndulo ao contrário, cortando, rítmica e delicadamente, o ar e a carne, impondo-
se no cenário confuso da batalha.
- Evenor, estamos a derrotar esta falange dos Sumers. O resto do exército aliado
do teu irmão está a retirar - gritou o general.
- Vamos sair vitoriosos em direcção à cidade de Uenur e encher de festa aquele
porto do Mediterrâneo - referiu o Rei em tom solene, enquanto continuava a
matar, sem dó, os homens que corriam na sua direcção.
O Rei era um homem bom, forte e determinado. Era o líder mais admirado
na Atlântida. Mas era um guerreiro, como só se podia ser numa altura daquelas.
Já o seu irmão gémeo tinha mau carácter e estava dominado por um conselho de
homens da ordem religiosa mais antiga e extremista da Atlântida, que queria, há
muito, controlar os altos dignitários do reino de Atlântida, para impor um regime
ditatorial e religioso e acabar com o sistema de votação então existente.
Estes irmãos dividiram as terras e as gentes do reino da Atlântida e estavam
em guerra, levando os combates e as batalhas para todo o mundo conhecido,
formando e quebrando alianças com os povos indígenas, conforme a conveniência
de cada momento, como era o caso dos Sumers, no médio oriente.
O reino de Atlântida situava-se a Oeste das colunas de Heros e era composto
por três grandes ilhas atlânticas. A primeira a Norte, a principal, Aea, rica em
recursos naturais e dominada pelo irmão de Evenor II, Mestor I, "O Feroz", a
partir da sua capital, Atlas.
A segunda ilha, Seden, tinha muitos palácios e templos, embora fosse um
importante centro agrícola, e tinha sete cidades governadas por Evenor II, a partir
da sua capital Antilia.
A terceira, a ilha misteriosa de Urz, tinha apenas uma pequena aldeia de pes-
cadores, estranhos e avessos a contactos, chamada Azaes, sendo o resto da ilha
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A Feitoria de Abul

quase que inexpugnável, farta em perigos, criaturas e monstros, que davam azo
a longas e arrepiantes histórias contadas nas praças e portos do império. Ao centro
da ilha, para lá das áreas impenetráveis, existia um vulcão, onde se dizia estar
localizado o grande templo de Urz e onde provavelmente se escondia o segredo do

Códice de Urz.

As duas metades do exército começaram a aproximar-se ao centro, apertando


o cerco, deixando um rasto de sangue e de corpos retalhados, bandeiras caídas,
enquanto o vento soprava forte, como que anunciando a tragédia que, mais uma
vez, se repetia neste deserto quente, habituado a consumir e a alimentar-se dos
restos humanos e materiais de batalhas milenares.
No final do dia, os sobreviventes do exército de Evenor II reuniram-se e re-
gressaram animados à cidade de Uenur, imponente metrópole muralhada e con-
quistada, recentemente, ao Rei seu irmão e inimigo.
- Meu General! A bandeira está arreada e as portas da cidade trancadas. Não
se avista vivalma no porto - avisou bem alto o soldado que fizera o reconhecimento
do terreno a cavalo e que agora regressava, apressadamente, em pânico.
- Que dizes soldado?
- Meu Rei, o general-mor do seu irmão tomou a cidadela e está alojado entre
muralhas. Não será fácil vencer as suas tropas e as dos Sumers - explicou o soldado
enquanto tentava acalmar a voz e saltava do cavalo para se ajoelhar aos pés de
Evenor.
Mais tarde puderam confirmar, ao vislumbrarem a cidade, os seus muros
amarelos de areia e as altas torres, pejadas de soldados inimigos espalhados ao
longo da superfície irregular de defesa. As tropas de Evenor montaram acampa-
mento de cerco, tomando de imediato o porto e alguns navios que aí se encon-
travam.
- Encontrámos este homem no porto. É um sacerdote e sábio local, que prega
que só poderás vencer a guerra com o segredo do conhecimento antigo. Diz ainda
que as profecias referem a vinda de um ser Deus para resgatar o códice do conhe-
cimento da ilha misteriosa de Urz, que decifrará as mensagens e ajudará um dos
irmãos e os seus descendentes futuros por milhares de anos.
O sacerdote tinha aspecto de advinho, com olhos firmes, rosto austero e longas
barbas. A roupa indicava um posição hierárquica elevada nas religiões pagãs da
região.
- Levem-no daqui. Não quero ouvir mais - disse cansado o Rei, vamos levantar
o cerco e voltar às nossas anteriores linhas de defesa. Terminamos aqui esta ofen-
siva de Verão. Vou à ilha misteriosa de Urz procurar esse tal códice escrito pelos
deuses. Com ele vou vencer a guerra e fazer o Império - talvez o homem tivesse
razão.
Desde pequeno que ouvira falar neste códice. Mas será que agora que poderia

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Vítor Caldeirinha

decidir a guerra? Seria uma arma secreta? Na semana anterior, o mensageiro do


reino avisara sobre a missão que o seu irmão preparava, com o objectivo de ir em
busca do códice na ilha misteriosa de Urz, e ele não podia ficar atrás. Iria conseguir
com a ajuda dos deuses ou talvez de semi-deuses.
Mas a aventura de Urz começa em 2050 d.C.

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A Feitoria de Abul

Capítulo III
Misterioso Vulto

D e volta a 2050 d.C.


- João, traga-me uma cerveja do bar da entrada, por favor. O meu mini-bar está
vazio.
- É para já Sr. Barroso.
O segurança deixou rapidamente a porta do quarto de hotel e premiu o botão
do elevador de madeira escura, aguardando, imóvel e pacientemente, a sua che-
gada. O corredor era vermelho feltro, evidenciando a qualidade de um dos me-
lhores hotéis do centro de Dusseldorf.
Tinha por hábito quebrar o protocolo de segurança em pequenos momentos,
para servir as ordens do "Grande Chefe". Era português e que mal haveria? Isto
não era a América. Para manter o seu emprego bem pago, tinha que manter o seu
chefe satisfeito.
Barroso fechou a porta do quarto mal iluminado, mas bem aquecido, e ligou
a TV 3D, para conhecer as últimas notícias da "Euronews". Lá fora, a neve caía
em flocos flutuantes, preenchendo de branco os bocados de terreno mais arenosos
e frios.
Pensava, preocupado, no discurso político que iria proferir no dia seguinte na praça
principal, perante milhares de pessoas. Seria uma tentativa derradeira para convencer
o povo sobre o voto para a presidência da União Europeia, no Domingo seguinte.
Este povo fechado e trabalhador queria segurança, rigor, competência e paz.
Mas como convencer que a guerra tinha que acabar, sem deixar no ar um senti-
mento de insegurança e de incerteza em relação ao futuro?
Como garantir que acabariam os ataques bombistas atómicos a cidades e que
as forças árabes não voltariam a chegar às fronteiras da Floresta Negra?
Repentinamente, um vulto saiu das escadas de serviço e aproximou-se cuida-
doso da porta do quarto, utilizando um pequeno visor de calor para detectar a sua
vítima, no outro lado da parede.
Barroso lembrou-se da sua mulher em Lisboa e dos seus dois filhos gémeos,
que àquela hora já deveriam estar a dormir. Lembrou-se também dos seus apoiantes
e da grande missão que tinha pela frente. Libertar a Europa de uma guerra que
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Vítor Caldeirinha

durava há anos. Fazer a paz e lançar a prosperidade na Eurásia.


Porquê ocupar todos os países muçulmanos? Já tinham sido expulsos da Eu-
ropa. Para quê martirizá-los? Para os dominar?
O actual presidente da União Europeia fora eleito numa fase de ocupação árabe
da Europa e aproveitara para proclamar a guerra total aos estados inimigos, até
à sua aniquilação e integração.
Mas era tempo de acabar com a guerra, assinar a paz, acalmar, conversar e
formar um bloco económico euro-árabe-judaico, para fazer frente aos blocos
económicos americano, chinês, indiano, asiático e africano.
Tomou essa missão como a sua vida.
A cama estava aberta, deixando a descoberto os delicados lençóis brancos,
onde repousava e ensaiava o seu discurso mais uma vez, olhando por vezes para
a TV. Nem desconfiava o que estava para acontecer.
O elevador parou no andar de Barroso e as portas abriram-se com um forte
ruído e um tilintar habitual.
- Boa noite e obrigado - disse João.
- Tenha uma boa noite - respondeu, ao fecharem-se as portas do elevador, um
hóspede do hotel que partilhou a subida.
O vulto mexeu-se rapidamente e voltou a esconder-se na porta de serviço, que
dava acesso ao material de limpeza do andar.
Sem reparar no vulto, João caminhou calmamente para o quarto 321 e deu dois
toques na porta, sinal previamente combinado.
- Sr. Barroso?
- Sim!
- Já tenho aqui a cerveja.
- Obrigado. Estava mesmo com sede. Assim vou dormir melhor e estar pre-
parado para amanhã - disse abrindo um pouco a porta.
- Tenha uma boa noite Dr.
- És tu que ficas por aí hoje?
- Sim, a noite toda.
- Ok. Bom trabalho.
Fechou a porta e voltou aos seus pensamentos e preparativos, abrindo de uma
só vez a tampa da cerveja e dando um forte gole pelo gargalo.
O vulto entreabriu a porta da arrecadação e olhou para o segurança que ouvia
música sentado, com uns auscultadores nos ouvidos, e lia um livro de banda
desenhada.
Encaixou o silenciador na sua arma, sem ruído, e apontou. Não gostava de tirar
vidas inocentes, mas desta vez seria necessário. Com o seu anel grosso e dourado
no polegar, apontou e disparou sem ninguém ouvir, atingindo João na cabeça,
saltando de imediato um jorro de sangue para a alcatifa vermelha, reforçando a

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A Feitoria de Abul

sua cor. O corpo demorou alguns segundos a cair no chão fofo, quase sem ruído.
Aquela alcatifa era uma mais valia para qualquer criminoso.
Dirigiu-se calmamente para o cadáver, certificando-se da morte e retirando a
arma do casaco.
De seguida, deu dois toques na porta do quarto.
- João?
- Sim.
A porta destrancou-se e o vulto deu-lhe um firme pontapé para a frente, ati-
rando Barroso para o chão do interior do quarto, que partiu de imediato o osso
da bacia, já desgastado pelos seus sessenta e oito anos.
Barroso soltou um grito de dor agudo e o vulto entrou no quarto, disparando
três vezes para ter a certeza do sucesso da sua missão.
O mundo estava agora a salvo daquele fraco. A segurança da Europa estava
garantida. A guerra iria continuar.

No dia seguinte, para seu espanto, o Professor Andrade foi chamado à pressa
ao local do crime, tendo sido obrigado pela Europolice a abandonar os trabalhos
no Egipto.
- Afinal em que posso ajudar? - perguntou ao sargento da polícia alemã, enquan-
to subiam juntos o elevador do hotel.
- Já vai perceber.
- Mas como posso ajudar a desvendar o assassínio do futuro presidente da
União Europeia, três dias antes das eleições? Sabia que as sondagens lhe davam
cinquenta e cinco porcento ?
- Sim, sabia. Eu ia votar nele. Estou farto da guerra. Se querem ocupar os países
árabes, que o façam os chineses ou os americanos sozinhos.
O elevador parou no andar 32 e as portas abriram-se de uma só vez, com o
habitual tilintar.
Caminharam passo a passo, pelo corredor vermelho, até depararem com as
manchas de sangue já seco no local, onde tombara o corpo do guarda-costas, na
noite anterior.
- Que tenho eu a ver com isto? - tornou a questionar Andrade.
- Já vai ver. Já vai ver. Mais do que imagina. Deixe-se estar aí sossegado - disse
o polícia com o ar de quem faz troça, com um sorriso de orelha a orelha, deixando
o Professor boquiaberto.
- Está a ver este papel? - o polícia apontou para uma pequena folha branca que
saía da carteira de Barroso, no quarto onde fora assassinado.
O papel tinha duas frases enigmáticas:

" Império Atlante" e "Códice do Conhecimento de Urz".

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Vítor Caldeirinha

- O senhor não é especialista nos segredos da Atlântida?


- Modéstia à parte, posso afirmar que sou um dos maiores investigadores nesse
domínio - referiu.
- Então vai ter que nos explicar estas frases - ordenou o polícia, abanando a
cabeça afirmativamente.
- Sei do que se trata. Mas sei muito pouco. Vou contar-lhe o que se dizia na
Grécia antiga.
E contou tudo o que sabia durante as duas horas seguintes. Andrade sabia que
se dizia que a Atlântida tivera um império em redor do Mediterrâneo há milhares
de anos atrás, mas as provas ainda não eram consistentes. Havia desaparecido ou
tinha sido integrado nos impérios seguintes.
Já Urz é o nome de uma das ilhas míticas da Atlântida onde se dizia estar
escondido um dos maiores segredos da humanidade, nunca revelado e perdido
para sempre na história humana, o códice do conhecimento.
Mais tarde, depois de se libertar da polícia alemã, seguiu num avião para Setúbal.

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A Feitoria de Abul

Capítulo IV
Ruínas de Tróia

V indo do aeroporto do Alcochete, Andrade começou a desacelerar o veículo de


transporte público pessoal alugado, ao mesmo tempo que todos os veículos
desaceleravam ao entraram em percurso mais urbano, preenchendo as oito faixas
de auto-estrada, na chegada à cidade de Setúbal.
Ao fundo já se vislumbrava o azul do rio Sado, o castelo de Palmela, a serra da
Arrábida e a antiga estância balnear de Tróia dos anos vinte, abandonada entretanto
e classificada como património arqueológico protegido, após as últimas descobertas,
em 2040. As ruínas dos antigos hotéis ainda aguardavam a demolição.
À direita ficava o maior centro comercial da Europa, construído em cima dos
terrenos do antigo hipermercado Jumbo.
A entrada na cidade era realizada através de túnel, por baixo da zona urbana.
Andrade apreciava o compasso ritmado das luzes de presença e dos faróis dos
veículos que circulavam em sentido contrário.
As saídas do túnel iam-se sucedendo: Hospital, baixa, Luísa Tody, zona por-
tuária. Andrade seguiu em frente e após poucos minutos emergiu com a estrada,
já no outro lado do rio Sado, junto à Marina de Tróia, ainda em funcionamento.
O Professor saiu no desvio que estava referenciado como centro arqueológico
de Tróia. Ao virar o volante não se accionava a viragem das rodas do veículo, mas
era a própria estrada que era accionada e o direccionava para a saída, através da
rodas laterais que iam encostadas às paredes da via.
Passando a "direcção manual", parou o veículo numa zona de areia, junto a
alguns edifícios amarelos da Administração das ruínas de Tróia, autoridade que
geria os recursos desta importante fonte de receitas da região e local arqueológico
muito visitado em Portugal, após a descoberta dos vestígios do império Atlante
do Ocidente, com milhares de anos. Só a partir de 2020 se conseguira comprovar
mundialmente a existência da Atlântida, considerada apenas um mito, até então.
- Professor, como correram as escavações egípcias? - perguntou Pedro Filipe,
um dos alunos de Andrade.
- Ainda estou muito espantado com os estranhos artefactos de guerra que
descobrimos, claramente do período Atlante, com mais de sete mil anos.

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Vítor Caldeirinha

- Mas regressou mais cedo do que o previsto - constatou Pedro.


- Fui chamado à Alemanha por causa do assassinato do Sr. Barroso.
- Que tem a ver com isso? - Pedro estava espantado.
- Havia um papel na carteira de Barroso com umas inscrições que faziam alusão
à Atlântida, mas ainda não consegui perceber porquê. Assim aproveitei e voltei.
Já tinha saudades vossas e da nossa terra.
O Professor Andrade era conhecido mundialmente como uma das maiores
autoridades no estudo das civilizações Atlantes e na investigação dos escassos
vestígios que tinham legado. Mas nada estava muito bem explicado ainda e a
comunidade científica mais céptica tinha muitas dúvidas.
- Prof. Andrade, a Sara e eu temos estado a escavar a nova zona identificada
na semana passada. Os homens têm realizado um bom trabalho. Há muitas peças
para classificar.
As ruínas já ocupavam uma grande parte da península de Tróia. Parecia ter sido
um antigo centro de produção que alimentava a exportação de produtos agrícolas
e piscatórios conservados, recebendo em troca mercadorias de todo o mundo.
- Prof. - continuou Pedro - está cá um representante da Universidade de His-
tória de Bruxelas. O Dr. Francisco de Almeida está a realizar um estudo para a
Comissão Europeia sobre a validade científica das nossas investigações, para
decidirem se nos continuam a co-financiar ou não.
- Bolas, contrataram a universidade mais céptica? O Reitor é João Marin,
descendente dos Condes de Sagres. É um crítico da Atlântida e um forte apoiante
do actual presidente da União Europeia.
- Mas eu acredito nos atlantes, mais do que imaginam - gritou Francisco, surgindo
por detrás de uma vala da escavação nas imediações, onde ouvira toda a conversa.
- Tenham confiança em mim. Posso ajudar-vos. Quero saber mais. Quero saber
tudo o que descobriram.
- Porquê esse seu interesse? - Questionou Andrade desconfiado.
- É um interesse mais pessoal que outra coisa. Desde pequeno que esse segredo
me intriga. E tudo o que os antigos textos gregos têm dito sobre locais misteriosos,
se tem revelado verdade. Alexandria, Tróia - disse Francisco, rodando lentamente
o seu anel grosso e dourado no polegar - o Conde Marin não tem domínio sobre
o meu relatório para a Comissão Europeia. Podem confiar…
- Ok, Dr. Francisco. Vamos dar uma volta à estação arqueológica para conhe-
cermos o que tem sido descoberto nos últimos tempos - sugeriu Andrade ainda
desconfiado.
- Temos descoberto pentes, martelos, foices e outros utensílios feitos de ligas
metálicas que não existem na região, nem eram conhecidas na altura que a datação
aponta pertencerem, cinco a seis mil anos antes de Cristo - disse Sara, fortalecendo
o tom de voz e enrugando a testa - É uma impossibilidade. Só muito mais tarde
o Homem começou a usar estes materiais.
- A minha teoria aponta para a existência de uma grande civilização atlante,

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A Feitoria de Abul

antecessora das civilizações grega, suméria, minoíca e egípcia, que já fazia o comércio
global com o mundo então conhecido, até à África e Ásia, e quem sabe também
América, tendo um porto de base continental localizado nesta área entre Setúbal,
Tróia e Lisboa, e quem sabe à América, eventualmente na conjugação do delta dos
dois grandes rios, Sado e Tejo. A partir daqui, saíam as expedições comerciais para
o Norte da Europa, Mediterrâneo e África - teorizou Andrade.
Adorava esta teoria e os novos achados vinham confirmá-la. E continuou -
penso mesmo que o povo português é descendente dos atlantes, que restaram da
destruição das ilhas pelas forças naturais. Não percebem? A saudade normal no
povo português, não é mais do que a saudade das ilhas e das suas terras, sem as
pessoas saberem. E o fado é uma forma de a alma portuguesa cantar e recordar
o mar e a sua ligação milenar. O som do fado parece o som do mar e das ondas.
- É por isso que somos diferentes dos espanhóis. Por isso tivemos o chama-
mento para o descobrimento do mar em 1500. Por isso temos um futuro traçado
ligado aos oceanos.
Acabaram de contornar uma das ruínas, onde ainda decorriam trabalhos de
escavação, quando, de repente, surgiu um dos funcionários da estação arqueoló-
gica.
- Prof., já cá está afinal? - Disse Manuel - temos estado à sua espera. Tem uma
mensagem importante de Lisboa.
- O que se passa Manuel?
- Parece que descobriram vestígios muito estranhos no centro da cidade do
Pinhal Novo, a dez metros de profundidade, quando escavavam o túnel da linha
polvo do metro do Sul. Pedem para lá ir uma equipa imediatamente - gritou,
enquanto se afastava em direcção aos escritórios, caminhando por cima de uma
passadeira de madeira, localizada dois metros acima das ruínas, por onde circu-
lavam, habitualmente, as centenas de turistas que visitavam o empreendimento
todos os dias, provenientes dos sete cantos do mundo.
- Ainda agora cheguei - lamentou Andrade, caminhando com a equipa para
a área de estacionamento de veículos. Estava irritado. Queria ir a ver a mulher a
casa, mas isso teria que ficar para depois.

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A Feitoria de Abul

Capítulo V
Metro do Sul

D uas horas antes, no Pinhal Novo, a escavação do túnel da nova linha Polvo,
do metro do Sul, avançava continuamente. As escavações realizadas com uma
máquina afunilada, que ocupava toda a frente do túnel, com dez metros de diâ-
metro, progrediam milimetricamente, quando de repente se ouviu um estrondo.
- Bolas. Embateu numa rocha mais dura outra vez. Vou ter que ligar o perfu-
rador - gritou irritado o funcionário operador.
Ao olhar, verificou que a rocha em que tinha batido tinha colocado a desco-
berto um pequeno túnel que trespassava o túnel do metro perpendicularmente,
permitindo-lhe vislumbrar pinturas de embarcações, peixes, plantas e símbolos
desconhecidos:
- Ó Sr. Engº Bandeira, ó Sr. Engº Bandeira!
- Sim - a voz cansada do encarregado respondeu secamente, do outro lado do
telecomunicador. As obras deviam avançar depressa, para que os prazos estipu-
lados fossem cumpridos sem penalizações e o funcionário estava sempre a inter-
romper o trabalho. Quando não era por isto, era por aquilo.
Mais algumas interrupções e podia desaparecer a margem de lucro daquele dia.
- Encontrei algo muito estranho aqui no fundo.
- Deixe estar - retorquiu o encarregado - como vai a obra? Temos que acabar
este mês a ligação entre o Montijo e Setúbal.
- Pois temos. E estava tudo a ir muito bem. Mas isto é mesmo muito estranho.
Venha cá ver - pediu o funcionário. - Não me parece que os inspectores do Estado
permitam que avance a obra hoje. Descobri uma espécie de ruínas antigas. Um
túnel cheio de desenhos nas paredes e que avança para o interior da terra.
- Bolas. Bolas. Caraças.
- Os desenhos estão em muito bom estado… impressionam…
- Está bem. Acalme-se. Vou avisar as autoridades para mandarem cá a equipa
de arqueólogos, para avaliar a situação e vou avisar o dono da obra.
Decorridas três horas depois da descoberta, a equipa de Andrade chega ao
local.

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A Feitoria de Abul

Capítulo VI
A Congregação Secreta

B ruges, Bélgica.
No salão nobre da Câmara Municipal da cidade, decorre uma reunião secreta
com trinta pessoas encapuçadas, que não se conhecem, mas que possuem interes-
ses comuns e muito poder.
- ... Em conclusão, o mundo ocidental civilizado continua ameaçado pela
ignorância extremista religiosa e terrorista árabe - anunciava bem alto um dos
encapuçados que ocupava o lugar central da mesa rectangular do salão - temos que
ajudar a manter o actual presidente da União Europeia e aumentar-lhe os seus
poderes. Temos que combater o terrorismo.
Ouviu-se então uma forte salva de palmas ecoando pela sala e todos os encapuçados
vestidos de negro se levantaram abanando positivamente as cabeças.
- Agradeço a todos a presença nesta reunião - continuou o encapuçado - Agora,
vão para as vossas regiões, para os vossos países e continuem a apoiar financei-
ramente as campanhas do nosso futuro presidente da União. A nossa rede secreta
de empresas participadas possui uma longa existência e meios de financiamento
suficientes para continuarmos a ter uma palavra final sobre o poder na Europa,
como sempre aconteceu na história do mundo.
E continuou:
- Desde a descoberta da biblioteca de Alexandria, as nossas origens ficaram
visíveis. Depois, em consequência, descobriram-se os vestígios da verdadeira
civilização da Atlântida, da qual somos herdeiros. Mas, como sabem, ainda não
reencontrámos a bibliografia e a base fundamental da nossa civilização, que se
perdeu, e que pensamos terá estado na origem dos escritos do antigo testamento,
na época da antiga civilização Suméria, e que só mais tarde atingiu apogeu seme-
lhante.
- Temos vindo a financiar o centro português de arqueologia, do Prof. Andrade,
para que se descubram mais vestígios da nossa pátria. E talvez estejamos perto.
Acabámos com a concorrência ao nosso candidato à presidência da União Euro-
peia. Estamos no bom caminho. Depois, só temos que derrotar os árabes e alargar
a Europa democrática. É só uma questão de tempo. Pela paz.

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Vítor Caldeirinha

Em seu redor sobressaiam as paredes de madeira escura do edifício camarário,


com quatro metros de altura. Estavam num palácio antigo, decorado com tapetes
pintados, velhos e grandes quadros e brasões de todas as cortes da Europa medi-
eval. Estavam no centro da Europa. Num dos lados, as portas para gigantes e as
janelas davam acesso ao varandim dos paços do concelho, no outro as paredes
eram de madeira. O ambiente era húmido com um forte cheiro a mofo.
- Até à próxima. Serão todos contactados em breve - finalizou o homem.
Mal tinha acabado de dizer esta frase e já quase todos os participantes se le-
vantavam dos seus lugares em redor da mesa comprida e sólida de madeira, di-
rigindo-se, ordeiramente, para a saída, sem trocarem uma só palavra.
A saída ficava nas traseiras do palácio, onde Cadilacs luxuosos, com motorista,
faziam fila para recolherem os importantes encapuçadas, participantes da reunião.
O líder do grupo olhava triunfante para estas manobras, por detrás do capuz,
quando o seu telemóvel tocou.
- Sr. Conde de Sagres! Tudo se está a resolver como planeámos, não é verdade?
Estou muito ocupado. O que quer? Diga lá.
- Como está. Sei que venho incomodá-lo, mas é por uma razão importante.
- Sim?
O líder do grupo secreto mantinha regularmente contactos com o Conde de
Sagres, em Bruxelas, mas exclusivamente por telemóvel. Nunca lhe revelava a sua
identidade, assim como fazia com o grupo de empresários com que reunira. Ele
era o único herdeiro directo da realeza atlante, mas tinha organizado o seu grupo
de influência recrutando descendentes de atlantes, sem nunca lhes revelar quem
era verdadeiramente. Apenas doze pessoas conheciam a sua identidade e faziam
parte das famílias nobres, que estavam juntas há milhares de anos. Só os escolhidos
conheciam as suas verdadeiras intenções.
- O meu homem em Portugal, que está junto do Prof. Andrade, ligou-me muito
entusiasmado. Parece que descobriram uma entrada para uma das antigas casas
atlantes de ligação, a Sul do Tejo, que ficou subterrada no maremoto - anunciou
o conde aguardando a reacção.
- Fiquemos atentos. Pode ser que nos leve ao códice do conhecimento de Urz.
- Sem dúvida. Vou-lhe enviando informações sobre as novidades e avanços das
descobertas.
- Fico a aguardar.
Não confiava naquele conde que apenas queria dinheiro e poder. Mas a par-
ceria tinha vindo a revelar-se útil para a causa. Quando não precisasse mais dele,
seria "dispensado".

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A Feitoria de Abul

Capítulo VII
A descoberta

N o interior do túnel do metro, na cidade do Pinhal Novo, trinta quilómetros


a Sul de Lisboa.
- Venham. É já ali à frente - disse, nervoso, o encarregado da obra, enquanto
avançava, passo a passo e trémulo, por um pequeno túnel de acesso ao túnel principal.
Havia muitos anos que trabalhava a gerir grandes obras públicas e privadas, um
emprego duro que se sentia na sua face enrijecida.
O encarregado estava preocupado. Conhecia bem as implicações que a des-
coberta de plantas e animais fossilizados e de objectos do passado, com impor-
tância científica, poderiam ter no prazo e na rentabilidade das obras.
- Não deve ser nada de importante, mas como somos obrigados a reportar…
- tinha esperança que tudo aquilo terminasse rapidamente - é apenas um túnel
velho com alguns bonecos. Alguma brincadeira de namorados. Os vossos colegas
que aqui estiveram antes falaram de uma antiga civilização qualquer, mas deve ser
tudo treta, não é? Aqui em Portugal?
- Deixe-se de conversa fiada e diga-nos onde é exactamente - cortou brusca-
mente Andrade, enquanto o túnel alargava lentamente. Se fosse o que desconfiava,
o metro do Sul bem podia esperar sentado pelas investigações e escavações nos
próximos anos.
- É já ali. Avancemos.
- Professor, isto é espectacular. O que nos esperará? - disse Pedro entre os
dentes, quase a tremer.
Pedro sempre nutrira uma admiração muito forte por Andrade. Desde as aulas
na universidade, tinha ficado entusiasmado com a vivacidade, o entusiasmo e a
forma de falar do Professor, que gesticulava abundantemente com as mãos, com
os braços, com o corpo e a face, enquanto explicava a origem da humanidade de
forma simples e compreensível.
Mas os seus temas de interesse variavam entre a astronomia, a física, a história,
a biologia, o desporto, o corpo humano, ... Fazia os alunos sonhar que um dia
poderiam ser como ele.
De repente, já no túnel principal do metro, na parede esquerda, surgiu aos seus

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Vítor Caldeirinha

olhares a entrada de um pequeno túnel, que descia abruptamente até desaparecer


na escuridão absoluta.
A escavação destruíra parte do túnel, mostrando alguns desenhos claramente
atlantes. O coração de Andrade disparou de forma quase descontrolada. Francisco
e Pedro também não conseguiam conter a sua emoção.
- Vamos fazer uma pequena incursão. É o que nos permite o material que
trouxemos. Vamos perceber o que está em causa. Deixamos presa a ponta deste
cabo de aço com cento e cinquenta metros - ordenou o Professor, iniciando Pedro,
de imediato, os trabalhos de preparação.
- Vou descer primeiro - decidiu Andrade. Sempre fora um aventureiro toda a
sua vida. Apesar de temer a morte, estava sempre pronto para um bom desafio
físico, de preferência com adrenalina.
- O túnel tem uma pequena inclinação para a direita já na zona escura. E
depois, a dez metros, há uma pequena galeria com inscrições também. Mas não
percebi nada - adiantou o director da obra, enquanto Andrade já se preparava para
descer.
- Avancemos um a um, com cuidado - sussurrava o Professor, enquanto seguia
em primeiro lugar, desaparecendo no escuro - cheguei à galeria. É uma sala de um
edifício com inscrições. Magnífico. É atlante. É atlante. É atlaaaaaaante...

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A Feitoria de Abul

Capítulo VIII
Preparativos da Expedição

N a manhã seguinte, na Universidade de Lisboa, Pedro, Sara, Andrade e Fran-


cisco reencontram-se para debater o achado e preparar uma nova incursão ao local:
- Estou maravilhado e gostava de fazer uma nova expedição, o mais rapidamen-
te possível - começou o Professor, ainda não refeito dos acontecimentos do dia
anterior - Aquela sala possui toda a simbologia atlante conhecida e muita desco-
nhecida. Onde nos levará o túnel ? Precisamos estar preparados para tudo. Isto
pode mudar completamente a pré-história da humanidade.
- Não vai ser fácil - completou Pedro - Pareceu-me tratar-se de uma complexa
rede de túneis e acessos muito bem conservados, apesar dos milhares de anos que
devem ter.
- Não fazemos ideia das aventuras e descobertas que nos esperam.
A universidade era antiga, mas tinha sido remodelada recentemente, o que lhe
atribuía um aspecto novo e moderno no seu interior, com portas de vidro, com-
putadores, placas de informação, mas mantinha um aspecto antigo preservado no
exterior. A sala de reuniões branca estava preparada com equipamento para qual-
quer tipo de evento ou reunião. Lá dentro, dispostas em forma de quadrado,
estavam um conjunto de mesas para quarenta pessoas, dez em cada lado.
Os meios audiovisuais 3D com tecnologia de ponta sobressaíam num dos
cantos da sala. O grupo estava sentado no canto oposto do quadrado da mesa.
Pendurado numa das paredes, permanecia um mapa mundo gigante dos anos 50-60
do século anterior, parcialmente deteriorado no canto inferior, pelo tempo e pelo uso.
- Parece-me que somos suficientes para a exploração, apesar das dificuldades
expectáveis - arriscou Pedro. - O Professor é o "expert", o Francisco pode filmar,
sei que é especialista nisso, a Sara pode tirar apontamentos e fotografar detalhes
e eu posso fazer o trabalho mais pesado, como sempre.
Apesar de ser novo e de estilo intelectual, Pedro tinha uma boa preparação
física e estava pronto tanto para os trabalhos manuais mais pesados, como para
os de maior dificuldade técnica. Aspirava a ser o ideal da antiguidade clássica.
Mas a cara de Francisco estava tensa, não parecia muito satisfeito com a conversa.
- Não podemos fazer assim - tinha estado a ouvir, mas pensava noutros planos
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Vítor Caldeirinha

- Ontem falei com o Ministério da Arqueologia e Património. O chefe de gabinete


do Ministro pediu-me para o preservar destes trabalhos árduos, devido ao grande
valor que possui para o País e para o turismo histórico português, que tantas
receitas representa hoje em dia.
E continuou: A melhor solução é ser eu a chefiar a equipa de expedição aos
túneis e levar um colega da universidade. Aliás, já vem a caminho.
- Não pode ser! - gritou Andrade estupefacto. - Esta pode ser a maior desco-
berta arqueológica de sempre e pede-me para não ir? Que se passa ? Qual o seu
repentino interesse?
- Como já disse, apenas preservá-lo, conforme me pediram os membros do
Governo. Mas o Pedro e a Sara podem ir se quiserem.
- Nunca aceitarei - voltou a gritar o Professor. - Aliás, sou eu que chefio a
equipa e digo que você não vai.
- Não leve tão a peito, homem - pediu Francisco enquanto enviava, sem nin-
guém reparar, uma mensagem escrita através do telefone de pulso. - Não o conhe-
ço lá muito bem, mas sei que é importante para este País.
- Não tenho tempo para isto. Vou esclarecer tudo assim que sair daqui. Agora
ponha-se fora da minha universidade, que eu tenho que ir dar uma aula. Meninos,
amanhã na minha casa, na serra do Louro, em Palmela, para combinarmos e
prepararmos rapidamente a expedição. Despeçam-se das famílias. Serão alguns
dias de ausência, pois acamparemos lá em baixo.
Sem dizer mais uma palavra, saiu e dirigiu-se ao anfiteatro onde o aguardava
uma aula cheia de alunos, da cadeira de Civilizações Pré-históricas Avançadas II.
A confusão normal acalmou com a entrada do Professor e todos os alunos se
dirigiram para os seu lugares.
Repentinamente, uma das portas superiores do anfiteatro abriu-se com um
estrondo e um homem encapuçado entrou e disparou dois tiros de espingarda.
Todos os alunos se lançaram para debaixo das mesas, entrando em pânico, aos
gritos. O Professor caiu no chão, espalhando sangue pela parede e pela alcatifa.
Um aluno mais afoito correu na direcção do agressor, derrubando-o com um
forte encontrão, deitando a arma para perto de outros alunos, que a agarraram.
Seguidamente, correu na direcção do Professor e verificou a sua pulsação no
pescoço. Estava vivo.
- Depressa! Chamem uma ambulância - gritou enquanto rasgava a sua camisa,
utilizando-a para estancar o sangue.
Entretanto, o agressor encapuçado levantou-se e lançou-se pelas escadas exteriores
em fuga, como um louco, desaparecendo do recinto num ápice, sem deixar rasto.
- Professor, Professor! - gritaram os alunos.
- Estou bem. Mas dói-me um pouco a perna. Fui atingido de raspão!
- Professor ! - gritaram Pedro e Sara entrando na sala, atraídos pelo som invul-
gar do que lhes pareceu serem tiros de uma arma.
Francisco já tinha abandonado as instalações da universidade.
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A Feitoria de Abul

Capítulo IX
A Hesitação de Andrade

N a manhã seguinte, os dois alunos e o Professor passeavam no cimo da Serra


do Louro, entre o moinho recuperado e a casa de Andrade, percorrendo as passa-
deiras de madeira sobrelevadas da estância turístico-arqueológica da Serra da Louro,
de Chibanes.
Nesse local, podia-se avistar, em dias pouco nebulosos, toda a Península de Tróia
até ao grande centro logístico aéreo-portuário de Sines e, para o outro lado, toda a
Península de Setúbal até Lisboa e Sintra, o que permitia compreender que a zona
urbana de Lisboa se estendia sem interrupção até Setúbal, num complexo emaranha-
do de prédios, casas, ruas e jardins.
A zona urbana do Tejo e do Sado era ladeada por uma cintura de grandes indús-
trias robotizadas, com centro na grande cidade tecnológica de Vendas Novas.
Estava um dia azul e quente. A terra seca gretava e as ervas secavam amareladas,
deixando ver pedras e areia. Mas naquele cume do cretáceo, uma ligeira e confor-
tável brisa facilitava a caminhada dos três amigos.
- Não sei quem me poderia querer matar! - reflectia o Professor desolado e ainda
em choque, enquanto coxeava ligeiramente durante a sua caminhada - uma das balas
raspou a minha perna esquerda. Foi uma sorte.
- Desconfio muito de Francisco. Com todo aquele interesse - referiu Pedro, não
dizendo nada que Andrade não tivesse pensado a noite inteira passada no hospital.
- É mão daquele Conde de Sagres, o tal João Marin. De certeza. Sempre me
tentou prejudicar. Só não percebo o seu interesse repentino na Atlântica. Pensei que
fosse um crítico.
- Talvez não queira que remexam no passado e que se descubra a verdade sobre
a Atlântida. É só uma hipótese. Mas não sei quais as verdadeiras razões.
- Ainda por cima, soube que foi o Francisco e alguém muito influente a nível
internacional, que pediram ao Ministro para me substituírem na expedição. O
Francisco já montou a sua equipa expedicionária e entrou nos túneis ontem mesmo
- confessou Andrade apreensivo.
- Mas afinal o que se passa Professor?
- Não sei, mas apesar de todo o interesse científico que tenho no assunto, não
37
Vítor Caldeirinha

me agrada nada a violência. Não me parece que possamos fazer mais nada. O Ministro
decidiu quem era a equipa expedicionária. A equipa já partiu. Tentaram matar-me
por qualquer motivo relacionado com esta expedição. Não quero envolver-me mais.
Não quero.
- Mas Professor, penso que deveríamos ir, apesar de tudo. Para quê esse medo
todo? O senhor é o maior especialista na matéria. É quem pode interpretar e avaliar
melhor cada uma das descobertas. Há muito que quer descobrir todos os segredos
da Atlântida - argumentou Pedro.
- Não, não posso. Não me venhas com medos. Se te tivessem acertado com uma
bala, queria ver como estavas.
Sara ouvia tudo atentamente e estava a ficar muito preocupada. Tinha motivos,
que só ela sabia, para querer que o Professor não desistisse. Queria muito ir naquela
expedição. Talvez a salvação da Europa, ou mesmo do mundo, estivesse em jogo
naquela expedição...
- Professor ! - exclamou enquanto parava na frente dos dois colegas de passeio,
já perto da casa do Professor. - Tenho algo para lhe dizer...
- Sim ?
- Penso que tenho o argumento que o fará não desistir.
- Que quer dizer?
- O meu pai...
- Diga.
- O meu pai faz parte de um grupo secreto, que pratica o bem em todo o mundo.
- A Maçonaria?
- Não. Um grupo mais secreto, mais antigo e mais restrito. E pratica mesmo o
bem. Influencia a política mundial e é descendente de famílias muito antigas. Talvez
as mais antigas de que há memória.
- O quê? Que dizes? E que tem isso a ver com esta expedição? Não vou, já disse.
Detesto violência.
- Não posso dizer mais nada, mas gostaria que estivesse hoje, ao final da tarde,
no castelo de Palmela. Encontramo-nos no restaurante.
- Não gosto desses grupos secretos. Só servem os interesses económicos e po-
líticos de alguns. Mas vou, só porque o pedido vem da menina e confio em si. E já
nos conhecemos há muito tempo. Embora desconheça a sua família.
- Vai perceber tudo hoje à tarde.

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A Feitoria de Abul

Capítulo X
Conselho Atlante

O castelo de Palmela fica localizado no cimo de um monte, que fere abrupta-


mente a Península de Setúbal, quase toda plana, resultado de milhões de anos de
deposição de aluviões, dos rios Sado e Tejo, e de areias e pedras roliças formando
o delta entre os dois, durante o período Pré-Tejo.
Este delta estendia-se da Serra de Sinta, às colinas de Lisboa, passando pela Serra
da Arrábida, até às serras alentejanas.
A meio do antigo delta, surge imponente o monte da cidade e do castelo de
Palmela, onde se encontra em funcionamento uma pousada e um importante local
de turismo arqueológico.
No restaurante da requintada pousada...
- Senhor Prof. Andrade, faça o favor de se sentar na mesa.
Dois homens de idade aguardavam Andrade na mesa central do restaurante,
enquanto bebiam um aperitivo de entrada, o famoso Moscatel de Setúbal.
Estavam bem trajados, com aspecto cuidado e elegante. As roupas brancas ou
claras, as bengalas, os óculos e as barbas combinavam com as suas faces cheias de
rugas encrespadas, onde sobressaíam as olheiras negras.
Andrade agradeceu o convite, acenando com a cabeça, e ocupou o único lugar
vago na larga mesa redonda, preparada com pratos e talheres, de forma requintada,
todos alinhados, e copos para todas os tipos de bebidas.
- Obrigado por ter aceite ao nosso convite - disse pausadamente e em tom baixo
o homem sentado a meio, que parecia ser o líder. - É com muito prazer que o
recebemos e agradecemos que tenha acedido ao pedido da Sara.
- Queríamos colocá-lo ao corrente de certos factos e acontecimentos que desco-
nhece, mas que são fundamentais para nós, para a Europa e para o mundo - informou
o outro.
- Não sei ao que venho. Sou Professor de história. A Sara pediu-me para vir, sem
me explicar mais nada. Só acedi devido à longa amizade que tenho por ela.
- Vai perceber tudo a seu tempo. Sou o pai de Sara.
- Sim.

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Vítor Caldeirinha

- Sou pai dela e faço parte de uma organização muito antiga, que prossegue o bem
no mundo.
- Muito antiga? Que organização?
- Não posso revelar o nome, mas posso contar-lhe uma história. Há milhares de
anos, existia um continente com uma antiga civilização que veio a desaparecer com
um terramoto, seguido de um tsunami.
- Bem sei, a Atlântida. Se sei.
- Muito bem. Adivinhou. As três ilhas estavam localizadas a sudoeste de Portugal
e desapareceram. A Península de Setúbal era o bastião e principal porto de ligação
entre as ilhas e o continente europeu, essencialmente com o Mediterrâneo. O porto
de Abul. Era uma próspera comunidade que se estendia entre o Tejo e o Sado, e que
aproveitava os cais nos dois rios.
- O que me diz???
- Sim, e a Tróia era uma zona industrial de apoio. Nessa altura existiam dois reis,
irmãos gémeos em disputa, Evenor e Mestor. Evenor tinha as terras da África e
Mestor as terras europeias. Os seus impérios estendiam-se até ao Egipto, a Sul, e
até Itália, a Norte. Evenor era um Rei bom que queria a convivência pacífica dos
povos. Mestor era um Rei dominado pelo poder, que dividia e gerava conflitos, para
poder reinar.
- Como sabe tanto?
- Espere. O terramoto veio fazer desabar os dois impérios irmãos, que se gladiavam
na altura. No entanto, os descendentes de Mestor construíram e expandiram, até
aos nossos dias, um império de empresas que tem como objectivo semear a guerra
e governar, secretamente, o maior número de países e territórios, para que no futuro
voltem a refazer o antigo império europeu-atlante, para dominar os restantes povos
do mundo.
O outro homem continuou - Em contraponto, os descendentes do Rei Evenor,
o bom, criaram uma organização igualmente secreta, que tem combatido a de Mestor
e tem como objectivo a convivência harmoniosa de todos os povos, credos e raças,
em paz e com a autonomia que cada um pretenda. Andamos nestas lutas há milhares
de anos, desfazendo todos os impérios que os Mestorianos têm formado: Egípcio,
Grego, Romano, Francês, Inglês, Espanhol, Português, Alemão, Holandês, Russo,
Árabe, etc. Eles deram uma ajuda a formar estes impérios e dominaram-nos.
- Mantivemos a diversidade milenar dos povos da Europa. Mas os Mestorianos
não nos dão tréguas, nem olham a meios. Ainda recentemente eliminaram o nosso
candidato a Presidente da União Europeia. O Bush no EUA, apoiado por deles, teve
anos no poder da América e lançou a guerra e o caos por todo o lado. Lembre-se
de Hitler, Napoleão. O nosso bastião da liberdade e da responsabilidade tem sido
a Inglaterra. Em tempos foi a Grécia - explicou o pai de Sara.
- É verdade o que dizem?
- Sim. Mas há mais. Existia um segredo guardado na ilha de Urz, na antiga Atlântida,
... o códice do conhecimento antigo de Urz.

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A Feitoria de Abul

- Consta que nesse códice estavam revelados, pelos antigos deuses, os cinco
grandes segredos do mundo sobre a Matéria, a Energia, a Mente, a Vida e o Amor.
Esse códice desapareceu com a catástrofe e nunca mais ninguém o viu.
- Já ouvi falar nesse códice.
- Pois é isso que está em jogo nessa sua expedição. Diz-se que antes da catástrofe,
uma das expedições que os dois irmãos reis mandaram à ilha poderá ter encontrado
o códice e depositado em local seguro. Mas não se sabe. Nunca mais se ouviu falar
dessas expedições. No entanto, o túnel que agora encontraram poderá levar a alguma
pista sobre o códice. Quem possuir o códice poderá vencer esta batalha secreta
milenar e dominar o mundo - fez uma pausa... - então, pode fazer a expedição fi-
nanciado por nós? Tem que ser já, pois o Conde de Sagres, que trabalha para eles,
já avançou com a sua expedição financiada pelo Governo português. Eles têm gente
em todos os partidos e países.
- Bolas, que revelação - o Professor estava atordoado - não sei se consigo acreditar
em tudo. Deixem-me pensar e dormir sobre o assunto.

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Vítor Caldeirinha

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A Feitoria de Abul

Capítulo XI
Despedidas

N o dia seguinte, logo de manhã, Sara e Andrade batem à porta da casa de Pedro,
no sopé da encosta Norte do monte Formosinho, na Serra da Arrábida, à qual se
acede a partir da estrada entre Setúbal e Azeitão.
Ao chegarem, a serra estava encoberta de nuvens baixas, sobressaindo o verde
escuro dos arbustos carrasco nas curvas redondas de montes e vales.
Do cimo do monte Formosinho desciam largas cascalheiras formadas pela ero-
são do mar, quando este esteve duzentos metros acima.
A floresta em redor da casa era quase mágica, escura com ramagens entrelaçadas
e com a terra bordada de folhas secas de várias cores, formando uma larga camada
de húmus fofo e húmido.
- Pedro acorde! - gritou Andrade em tom alegre. - Acorde que temos muito que
fazer.
- Quem é? - Pedro aparece à janela do primeiro andar, com a cara ensonada.
- Vamos embora para o Pinhal Novo, que temos muito que explorar. Faça a mala.
- Mas mudou de ideias Prof.? Que se passa?
- Não posso dizer mais nada por agora. Mais tarde perceberá. Mas mudei de
ideias e quero ir já hoje e ainda de manhã.
- Nós já temos as malas no carro - gritou Sara - prepara a tua.
- Está bem.
Voltou à cama e avisou a mulher. Esta, apesar de muito alarmada, começou a
preparar a mala do marido. Com a cara ensombrada, foi-lhe pedindo que tivesse
muito cuidado. Que não tinha vida para essa coisa das expedições. E tinha medo
de ficar sozinha. Pedro lá a acalmou com um abraço.
Passados vinte e cinco minutos, Pedro sai disparado pela porta, passando à corrida
o pequeno jardim frente à casa. Ao fundo, em tons de verde forte, a serra da Arrábida
continuava a erguer-se majestosa e bela, no meio da neblina matinal, já parcialmente
banhada pelo sol em algumas das suas colinas.
- Vamos embora - diz entrando no carro, depois de atirar a bagagem para a mala
traseira do Renault Laguna, modelo 2050.

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Vítor Caldeirinha

- Pedro, sabes que a serra já foi uma ilha muito distante de terra? E que fazia
conjunto com a ilha da serra vulcânica de Sintra? Sabes que no estuário do Tejo foram
encontrados fósseis de peixes das profundezas, com luzes, e de rinocerontes, croco-
dilos, tubarões, peixes-boi, dinossauros, entre outros animais hoje estranhos ao local?
E que a serra teve ursos há poucos séculos? Que antes de se erguer devido aos
movimentos tectónicos da terra, por pressão da placa africana, a serra esteve debaixo
de água muito tempo e que, no cimo, ainda hoje se podem achar fósseis de animais
marinhos?
- Sei, Professor.
- Bem sei que sabes, mas não me canso de o dizer e pensar. Tão maravilhoso que
acho toda a história geológica desta região ao longo de milhões de anos.
- Professor, não sei porque mudou de ideias, mas fico muito feliz. Trago todo o
material e alimentos que precisamos para uma semana.
- Espero que não precisemos de tanto tempo.
- E essa sua ferida na perna?
- Foi só de raspão. Coxeio, mas posso fazer qualquer esforço, desde que me
ofereçam uma ajudinha nas situações mais difíceis.
- Não tenha problemas.
Sara tinha um fraquinho por Pedro. Mas este já era bem casado. Agora ia poder
passar uma semana inteira com ele. Não sendo possível mais, só desejava poder estar
junto a ele, usufruindo da sua companhia e do seu sorriso, sem concorrência femi-
nina. Eram afinal apenas bons amigos.

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A Feitoria de Abul

Capítulo XII
Início da Expedição

C hegados à entrada do túnel do metro do sul, pararam o carro e começaram a


descarregar todo o material e bagagens que traziam: tendas de ambiente controlado,
máscaras de oxigénio, detectores de vários gases, alimentos, câmara de filmar e
fotográfica, blocos de apontamentos, mochilas para trazer objectos, cordas, arnês,
lanternas, pequena picareta/pá eléctrica, baterias, uma arma, GPS subterrâneo, etc.
- Todo este material tem que caber nas nossas mochilas pessoais. Não quero
equipamento a mais - pediu o Professor, enquanto agarrava numa caixa e a atirava
para o passeio.
Sara colocou as suas coisas às costas e iniciou a descida pelas escadas da obra,
seguida por Pedro e Andrade, que carregavam tudo com alguma dificuldade. Os
ambientes debaixo de terra exigiam algum equipamento especial devido ao perigo
para a respiração e ao perigo de desabamento.
Caminharam, calmamente, pelo túnel principal que ia dar ao túnel descoberto
pela empresa de construção e cuja primeira parte já tinham explorado.
Próximos do final, vislumbraram dois homens entroncados, que fumavam abun-
dantemente e riam junto à entrada do túnel atlante. Só mais perto repararam que
os homens estavam armados de pistola no coldre e não fizeram boa cara quando se
aperceberam da sua presença.
- Não podem passar por aqui. Quem são os senhores?
- Isso pergunto eu. Quem são os senhores? Que fazem aqui num local de inves-
tigação arqueológica de interesse nacional? Identifiquem-se - ordenou o Professor,
que começava a ficar irritado.
- Estamos aqui a trabalhar para a equipa de arqueólogos do Ministério. Fazemos
parte da segurança ao túnel.
- Mas não podem impedir-nos de entrar.
- Temos essas ordens. Há uma equipa lá dentro em pesquisa científica e o acesso
está vedado a todos, até novas ordens.
- Temos todo o direito de aqui estar e de entrar. Sou o Professor Andrade, es-
pecialista em arqueologia. Também trabalho para o Ministério e tenho o direito de
entrar.
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Vítor Caldeirinha

- Não precisa de nos dizer mais nada, Professor. Não o podemos deixar entrar.
Aliás, temos ordens específicas em relação ao senhor.
- O quê? Vou fazer queixa ao Ministério e serão demitidos.
- Faça como entender, caro senhor. Tenha um bom dia.
Andrade ficou desesperado. Aqueles dois trabalhavam certamente para a orga-
nização de Francisco e do Conde de Sagres. Como ultrapassar esta dificuldade?
Os três amigos afastaram-se ligeiramente, ficando fora do alcance da visão dos
guardas e debateram irritados o problema que tinham pela frente, sem perspectivas
de resolução. Mas não iriam desistir.
- Como saímos desta? Bolas - avançou Sara.
- Sei lá - disse Pedro desanimado, sentando-se no empoeirado chão do túnel.
- Só vejo uma saída - o Professor olhava em volta, para o tecto do túnel, de forma
enigmática.

Passada uma hora, os dois guardas ouviram um ruído no túnel.


- Parece que vem aí alguém.
- Quem vem lá? - gritou um dos guardas, mas ninguém respondeu.
- Vai lá ver o que se passa, enquanto eu fico de guarda ao túnel. Sintoniza o rádio.
- Ok.
Um dos guardas afastou-se em direcção à fonte do ruído que continuava de forma
intermitente, "pum, pum, pum", como que um bater de metal contra metal.
- Quem está aí? Quem vem lá? - foi repetindo o guarda.
Repentinamente, o ar começou a ficar impregnado por um cheiro horrível. O
guarda que ainda se encontrava na entrada do túnel começou a ficar enjoado e passou
rapidamente ao estado de quase inanimado, revirando os olhos. Finalmente, sem
se aperceber de mais, acabou por tombar lentamente desmaiado no chão.
- Vamos andando.
Três vultos entraram no túnel do metro do Sul com a cabeça coberta por máscaras
de oxigénio, rindo e falando alto.
- Conseguimos. Funcionou o "spray" que o meu pai me arranjou - Sara parecia
muito satisfeita e mesmo surpreendida com a eficácia daquela pequena lata que o
pai lhe tinha entregue na véspera, para usar só em caso de extrema necessidade. A
legenda da lata referia um efeito imediato de inconsciência, sem perigo para a saúde.
- Uma pequena lata, mas eficaz em grandes espaços fechados.
Passaram rapidamente pelo guarda que jazia desmaiado a meio do túnel, dormin-
do como uma criança.
- Vamos passar. O efeito é de seis horas. Depois nunca mais nos apanham.
- Vamos embora - Pedro começou a aumentar a velocidade do passo, aproximan-
do-se quase do passo de corrida.
Na chegada à entrada do túnel, o outro guarda interrompia a passagem no chão.
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A Feitoria de Abul

Pedro pousou a mala e arrastou o corpo cinco metros para a fora, deixando a pas-
sagem totalmente livre.
- Vamos embora que já estamos atrasados.
- Vamos a isso - Andrade estava visivelmente satisfeito e com muita pressa. Por
vezes os rótulos não traduzem a verdade e os efeitos são diferentes de pessoa para
pessoa, pelo que era melhor se apressarem antes que os guardas acordassem.
E lá iniciaram a descida pelo mesmo túnel que anteriormente tinham percorrido,
arrastando as mochilas, atrás de cada um, deixando vários rastos no chão de areia
escura.

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Vítor Caldeirinha

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A Feitoria de Abul

Capítulo XIII
Dificuldades Inesperadas

U ltrapassados os primeiros metros do túnel mais estreito, os três amigos che-


garam à sala onde tinham estado na primeira visita. A sala tinha cerca de cem metros
quadrados, um piso de pedra branca, polida e enegrecida pelo tempo e uso.
Era escorregadia e húmida, com cheiros podres, resultado do tempo em que
permanecera fechada.
Com a lanterna podiam vislumbrar, marcados nas paredes, os desenhos e gra-
vuras alusivas à vida da época. Eram perceptíveis as embarcações com mercadorias,
reis, deuses e seus súbditos, entre aqueles o Deus Sol. Eram ainda visíveis guerreiros
armados, caçadores, animais e alguns símbolos estranhos. As paredes estavam com-
pletas de gravuras e pinturas, de cima a baixo, com cores amarelas, verdes, azuis e
vermelhas, sempre com contornos a negro.
Ao meio da sala, uma coluna redonda, despida de desenhos, aguentava há mi-
lhares de anos o peso do solo acima, que cobrira o edifício subterrâneo.
- Temos que fotografar, filmar e desenhar todas estas gravuras - ordenou pausa-
damente o Professor.
- Vamos levar anos a interpretar tudo isto. Talvez nunca consigamos decifrar os
pensamentos de quem os desenhou. A diversidade e qualidade são muito superiores
às que encontramos habitualmente nas pirâmides e edifícios egípcios.
- Sim, pode-se concluir que o antigo Egipto veio beber conhecimento e técnicas
a esta cultura anterior, mas perdeu alguma informação e tecnologia pelo caminho,
pois esta estava mais avançada.
- Comecemos por este lado - Sara deu um passo em direcção à parte esquerda
da parede, olhando para trás, para os amigos.
- Sim, comecem. Eu vou tentar perceber como poderemos continuar o caminho.
Vou avançar um pouco - disse o Professor.
Passados vinte minutos, Pedro e Sara acabaram o trabalho de registo dos exem-
plares de arte atlante, que decorava a parede da sala, quando Andrade regressou
ofegante.
- Acabem tudo depressa. Uff. Temos mais uma dificuldade. Ufff.
- Então?
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Vítor Caldeirinha

- Lá à frente, desci por um dos túneis destas catacumbas da antiga cidade. Havia
duas hipóteses para prosseguir e escolhi o túnel da esquerda. Mas, um pouco depois,
o percurso estava armadilhado com uma mina robot detectora de movimento. Senti
a luz vermelha de detecção no meu corpo e só lentamente consegui sair sem despoletar
o engenho. Já conhecia este tipo de armas na frente egípcia, onde estive recentemente.
- Vamos ver como podemos ultrapassar isto agora - disse Sara imobilizada com
o medo - parece mesmo impossível.
- Avancemos. A solução surgirá depois - disse o Professor começando a caminhar
com as mochilas.
Iniciaram o caminho, chegando rapidamente à bifurcação de que o Professor
havia falado.
- Desta vez, vamos pelo caminho da direita. A armadilha robotizada está no da
esquerda.
- Ok.
E lá foram avançando, passo a passo, por um túnel largo e comprido, com as luzes
das lanternas dançando nas paredes. De repente, encontraram à sua frente uma
parede que bloqueava o caminho e que parecia ser constituída por rochas caídas
recentemente.
- Calma ! - grita cauteloso o Professor - cuidado que as rochas podem resvalar
para cima de nós. Fiquem aí que eu vou ver.
O Professor avançou, pé ante pé, e esgueirou-se junto às rochas. Mas, num abrir
e fechar de olhos, abriu-se um buraco estreito por debaixo do Professor, suficiente
para engolir o seu corpo pela terra adentro. Nem teve tempo para gritar.
Pedro saltou para o buraco em pânico e desatou a gritar para o seu interior.
- Professor! Professor!
- Professor!! - gritaram Pedro e Sara desesperados.
Mas nenhuma resposta se ouviu. Teria falecido na queda? Estaria inconsciente?
Logo que recomposto, Pedro apontou a lanterna para o escuro do túnel, mas nem
conseguia vislumbrar o fundo, pois o túnel inclinava-se em cotovelo.
- Que fazemos agora? - pergunta Sara.
- Vamos fazer uma descida com cordas. Tira-as do saco.
- Não. Não. Não parece seguro.
- Atamos a corda a uma destas rochas maiores. E é só ter calma.
Pedro laçou uma das rochas e iniciou a descida em rappel. Não desceu mais que
três metros, quando deparou com o final do túnel, sem saída.
- Como está o Professor? - gritou Sara lá de cima.
- Ele...Ele.. - Pedro aterrorizado nem sabia o que dizer.
- O quê?
- Ele não está aqui. O túnel deve ter-se fechado através de algum mecanismo, à
passagem do corpo do Professor e não parece possível forçar a grande pedra que o
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A Feitoria de Abul

bloqueia no final. Vou voltar para cima.


- Que fazemos agora? Vamos pedir socorro lá fora?
- E o Professor talvez ferido ou enterrado vivo, a morrer durante o tempo de
espera?
- Já sei. Vamos pelo outro túnel. Pode ser que encontremos o Professor - diz Pedro
decidido, convencendo a companheira.
- Mas. E a mina sensível ao movimento?
- Vamos ver.
Voltaram assim à bifurcação carregando todas as mochilas, incluindo a que o
Professor Andrade havia deixado para trás. De seguida, tomaram a direcção do
outro túnel, com muito cuidado.
Pé ante pé, alcançaram uma área marcada.
- O caminho correcto deve ser por aqui. O Francisco deve ter deixado a mina
para impedir que o seguissem. Ao que percebi, as minas afectam o coração humano.
A sua explosão não é de fogo, como uma mina normal, mas auto-projecta-se em
direcção à vítima, desfazendo-se num gás mortal para o coração.
- Nunca mais passamos? - questiona Sara.
- Pois...

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Vítor Caldeirinha

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A Feitoria de Abul

Capítulo XIV
Encontro Indesejado

P edro esgueirou-se pela esquina da última parede que os separava da mina assi-
nalada pelo Professor, só colocando um olho de fora para poder ver sem ser visto.
A mina estava a cinco metros de distância. De imediato o marcador luminoso vermelho
do sistema de detecção da mina apontou para Pedro, procurando sinais do ritmo
cardíaco humano, para poder cumprir a sua missão.
Mal sentiu a luz ofuscando o seu olho a descoberto, Pedro recolheu a cabeça
assustado.
- Nem podemos espreitar. É muito sensível. Está a cinco metros, em cima de uma
espécie de banco de pedra. Mas não disparou quando espreitei. Deve necessitar de
detectar a presença humana por mais tempo.
- E se procurássemos pedras e lhe atirássemos? - arriscou Sara.
- Bom, podíamos tentar. Mas é provável que despoletemos o mecanismo interno
e "pum". Finito.
Fez-se uma pausa silenciosa. Tinham perdido o seu mentor... Provavelmente
estava morto ou a morrer, e eles ali estavam num impasse, sem poderem fazer nada.
Se calhar o melhor seria regressarem lá a cima e avisarem as autoridades.
- Vamos lá então experimentar atirar pedras, conforme disseste - decidiu Pedro.
- Como evitamos que a mina venha ao nosso encontro?
- Vamos esconder-nos atrás daquela rocha mais afastada e jogaremos bilhar nas
paredes. E com um pouco de sorte e o ângulo certo. "Zás". Se tentarmos várias vezes,
pode ser que dê resultado.
E assim fizeram. Foram ao local onde o Professor tinha desaparecido e recolhe-
ram diversas pequenas pedras. Depois voltaram e iniciaram o lançamento dos ca-
lhaus contra as paredes, tentando vários ângulos de ricochete e diferentes níveis de
força. Cada vez que tentavam, esperavam um pouco e espreitavam para verificar os
resultados. Mas nada.
Só após mais de vinte tentativas, Sara pareceu ouvir a pedra bater em algo metálico.
Seguiu-se um ruído ligeiro de detonação e a mina deflagrou sem consequências que
chegassem ao local onde se encontravam. Felizmente estas minas ainda não eram
suficentemente inteligentes.
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Vítor Caldeirinha

Esperaram um pouco para que o efeito mortal passasse e avançaram, saltando


por cima do banco de pedra onde tinha estado a perigosa mina.
À frente, um longo e alto corredor, onde sentiram uma estranha brisa fria. Estatuetas
de cavalos, da altura da cintura, surgiam em diversas posições, a cada dez metros
de avanço, contendo inscrições indecifráveis na base, numa linguagem certamente
demasiado antiga.
Ao fundo, uma escada com vinte e três degraus levou-os a uma porta rendilhada,
feita de um metal desconhecido, em tons de fogo. Como teria resistido ao tempo
naquele tão bom estado de conservação? Que material era aquele?
Parecia ter sido recentemente limpa do pó e utilizada. Foi fácil abrir a porta com
um potente pontapé. Pedro não teve que utilizar a máxima força.
De repente, uma luz de fogo invadiu as caras boquiabertas dos nossos amigos,
que apanharam um valente susto.
Depararam com uma sala larga, onde caberiam dois autocarros em fila, de for-
mato semicircular e da altura de uma pequena igreja, com uma espécie de altar ao
centro e, um pouco acima, um objecto semelhante a um recipiente de barro, com
cerca de um metro de diâmetro, de onde pendiam largas chamas de fogo, consumin-
do abundantemente uma espécie de combustível no seu interior.
Surpreendidos, pararam junto ao estranho vaso em chamas, olhando admirados.
Alguém tinha ateado aquelas chamas havia pouco tempo. Estavam tão distraídos,
que nem repararam que estavam a ser observados num dos recantos da sala, cheia
de velhas estatuetas e objectos estranhos.
De um momento para o outro, ouviu-se um ruído vindo do meio das estátuas.
- Quem está aí?
- Pedro!! Sara!! Sejam benvindos a este templo pagão anterior a Stonehenge.
- Professor!!! Está vivo?
- Sim.
O Professor contou a sua história. Tinha caído no buraco, indo por um túnel
escorregadio até um monte de terra endurecida pelo tempo, mas suficientemente
mole para amparar a sua queda. Não se tinha livrado de algumas gordas nódoas
negras. Tratava-se afinal de uma passagem directa até uma pequena sala ao lado
daquele templo, sem perigo.
Em redor, a sala continha inscrições sobre alguns dos sobreviventes de uma tragédia
que destruiu a Atlântida.
A grande civilização atlante estava acabada e os seus descendentes não aguenta-
ram as invasões que se seguiram. As várias ordas de povos hiperbóreos que migra-
ram do Norte da Europa, tiveram como consequência a perda, para sempre no
tempo, de grande parte da sua cultura e conhecimento.
- As inscrições parecem falar-nos de um sábio muito venerado que aqui exerceu
o culto ao sol. Esse sábio tinha grandes conhecimentos e ligação aos deuses. Pelo que
se pode entender da observação das gravuras e inscrições, terão sido realizadas neste
local ligações entre o futuro e o passado. Não percebi esta parte das inscrições. De
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A Feitoria de Abul

resto, fui eu que acendi o fogo. Usei um combustível fóssil qualquer que ali estava,
já muito velho.
- Ainda bem que está vivo Professor. Estávamos muito preocupados. Decidimos
procurá-lo, destruímos a mina do outro corredor e chegámos aqui - disse Pedro.
- Muito bem, filmem e registem tudo e continuaremos a viagem dentro de pouco
tempo.
Após descansarem, comerem e filmarem tudo o que havia nas salas, preparavam-
se para ir embora, quando alguém apareceu.
- Não se mexam. Deitem-se no chão - Francisco e outro homem tinham voltado
atrás para confirmar algumas das inscrições nas paredes, quando depararam com
o grupo expedicionário.
- Esta pistola está carregada e sei usá-la muito bem - garantiu o colega de Fran-
cisco.
- Vocês são muito teimosos. Como passaram pelos nossos guardas? E pela mina
anti-vida?
- Que devemos fazer com eles? Vamos matá-los.
- Não. Podem vir a ser úteis para decifrar algumas das inscrições - Francisco e
o colega não podiam acreditar que o Professor ali estivesse e que pudesse ter chegado
tão rápido.
- Francisco. És um malfeitor, um assassino. Não ficaste com a missão a bem,
ficaste a mal e ias-me matando. E nem sabes para quem estás a trabalhar realmente,
nem o que está em causa - diz o Professor enraivecido e vermelho.
- Só te queria ferir e não matar - respondeu Francisco.
- Mas se quiseres, continuamos juntos e partilhamos os louros. O que já desco-
briste? - Andrade atirou o barro à parede.
- Nem queiras saber. Mas não vamos fazer nada em conjunto. Vocês não vão fazer
mais nada até precisarmos. Vamos prendê-los aqui.
- Ok - respondeu o amigo de Francisco - passa-me as cordas. Vou atá-los em redor
daquela coluna larga.
- Sim, deixamo-los aqui e amanhã passamos por cá para os alimentar e para nos
ajudarem na parte de decifração.
Depois de terem atado os três amigos, muito bem, sem se poderem mexer, em
pé e em redor da larga coluna principal, Francisco e o seu colega reexaminaram os
escritos e as gravuras nas paredes e nas estátuas e, passada uma hora, voltaram a sair
pela mesma pequena passagem por onde haviam surgido.
- Desta vez é que estamos tramados Professor - confessou Pedro, que estava
imobilizado entre Sara e o Professor.
- Só nos resta esperar. Vocês não têm objectos de vidro ou lâminas nos bolsos
das calças? Desculpem não ter tomado atenção ao surgimento daqueles malandros.
- Bolas - disse Sara.

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Vítor Caldeirinha

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A Feitoria de Abul

Capítulo XV
A Pirâmide Giratória

A s horas passavam e os três amigos já começavam a ficar desesperados com


fome e sede. E as suas mochilas com alimentos ali a poucos metros, intactas. Os seus
adversários não tinham tido de tempo de inspeccionar e esconder as suas coisas.
- Estão ali - disse um dos guardas que havia ficado inanimado à entrada da gruta.
- Pois vamos até lá.
Chegando perto dos três presos junto à coluna, ficaram admirados.
- Ei lá! Que fazem aí? Estamos muito chateados com a vossa atitude. Estamos nós
a fazer o nosso trabalho e brincam com a gente e quase nos matam. Mas quem vos
prendeu aí?
- Foi a equipa do Dr. Francisco. Abandonaram-nos aqui à morte certa - disse o
Professor.
- O quê? O Dr. Francisco do Ministério? Com toda a certeza que não..
- Não? Deixaram-nos aqui à morte. Vejam a gravação que está na minha mala.
Estava a filmar as paredes quando eles chegaram e deixei a máquina em "REC".
Após visionarem o filme, do qual apenas se percebia o som e as vozes.
- Como é possível?
- O Dr. Francisco está a enganar o Ministério. Trabalha para uma seita secreta
inimiga do Estado, contra Portugal e contra a Europa - garantiu o Professor.
- Nós trabalhamos para Ministério, na área da segurança. Não participamos em
mortes.
- Isso não - confirmou o outro guarda.
- Então tirem-nos daqui. Desatem as cordas por favor.
- Bom, como é um caso de vida ou morte, fica aqui um e o outro vai chamar a
polícia secreta do Estado.
- Sim - disse o outro guarda, enquanto o primeiro se afastava.
- Mas, pelo menos tirem-nos as cordas e deixem-nos comer o que temos na
mochila.
- Não pode ser.
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Vítor Caldeirinha

- Vá lá. Temos fome e sede, estou desidratado.


- Hummm, ok. Liberto-lhe as mãos e tem aqui a mochila, Professor.
Tirando a arma que havia colocado no mochila de manhã, o Professor apontou
ao guarda - deita já arma para o chão ou disparo sem piedade. Já...
- Calma. Ena. Calma. Ok - lançou a arma ao chão.
- Agora desata-me. Vá depressa. Depressa - dizia o Professor enquanto era liber-
tado e corria para as mochilas procurando beber água e comer algo.
- Querem? E você desapareça daqui e não volte mais.
- Vou embora, não me lixem. Tenho filhos..
E assim, o grupo pegou na sua bagagem e, após saciar o corpo, continuou a
viagem pelos túneis, agora com novo vigor, perseguindo Francisco e o seu colega.
À medida que avançavam, foi-se instalando no ar um forte cheiro a podre e a
queimado, da combustão de algo desconhecido. Um cheiro nunca sentido antes.
Subitamente ouviram um forte estrondo e uma onda de luz intensa. O ar quase
que os atirou ao chão. Não faziam a mínima ideia do que se teria passado lá mais
à frente.
Mas desconfiavam que teria sido obra de Francisco. Talvez tivessem caído em
alguma armadilha ou usado algum material explosivo para abrir uma entrada. Os
nossos amigo alargaram o passo, mas cautelosamente.
Passados vinte minutos, quase sempre a correrem por túneis estreitos, chegaram
a uma sala redonda com dez metros de altura e cerca de vinte metros de diâmetro,
sendo visíveis inscrições e símbolos em toda a parte. Devia ser um local muito
sagrado e secreto.
Ao centro uma pirâmide metálica que ocupava boa parte da sala.
- Professor, o que é isto?
- Não faço ideia, rapaz. Não faço ideia.
Estava abismado com o que via. Dentro da pirâmide gigante, uma esfera de uma
espécie de metal vermelho ocupava todo o espaço interior, tocando as suas faces,
ligava-se à pirâmide através de um mecanismo giratório, nunca visto anteriormente.
O acesso ao interior da bola vermelha estava franqueado. Mas, por prudência,
nenhum dos nossos amigos ousou entrar sem primeiro avaliar a envolvente. De
Francisco nem sinal.
Os nossos amigos pousaram as mochilas e contemplaram aquela obra de arte.
- Estou farta e exausta. Este dia tem sido demais para mim - disse Sara pousando
as mochilas.
- Precisamos de descansar um pouco - concordou Pedro.
- Muito bem. Montem o acampamento enquanto eu dou uma volta de inspecção
pelo local.
- Professor, que será tudo isto? Isto deve ser mais recente. Como poderia existir
este nível tecnológico há milhares de anos - interrogou-se Sara, começando a montar

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A Feitoria de Abul

o acampamento.
- Não faço a mínima ideia querida. Mas vou investigar. Também acho muito
estranho.
Os dois jovens deitaram-se, cada um no seu saco de cama e adormeceram.
Passaram-se quatro horas.
- Amigos, amigos, acordem. Vamos - gritava o Professor. - Venham, venham.
O Professor nem tinha dormido. Tinha passado o tempo todo a observar, em
detalhe, objecto a objecto e desenho a desenho, toda a sala, sem nunca entrar na
esfera. Tinha feito descobertas impressionantes.
- Amigos, pelo que consegui entender da linguagem e dos desenhos das paredes,
estamos perante algo gigantesco para a humanidade. Era nesta sala que os atlantes
sobreviventes guardavam uma das maiores heranças dos antepassados, as tecnolo-
gias dos Lemures, que não fazemos ideia quem eram, mas que os escritos afirmam
ter sido um povo antigo muito avançado tecnologicamente, mas cujo conhecimento
se perdeu nos tempos.
A herança materializou-se nesta pirâmide metálica, com a bola de fogo ao meio,
que simboliza o sol. Parece uma espécie de templo e percebi que se relaciona com
os antepassados e com os descendentes. Mas não percebi mais nada.
- E Francisco? Onde estará?
- Nem vivalma. Desapareceram. Mas não encontro saída desta sala que não seja
o túnel pelo qual viemos ou...
- Ou...??
- A pirâmide!
Um silêncio de morte invadiu-os a todos.
- Vamos entrar na pirâmide e na bola para investigar? Parece uma máquina de
qualquer espécie.
Sara estava receosa. Tinha um forte pressentimento negativo.
Que perigos inesperados os aguardavam lá dentro? Onde estavam Francisco e o
colega? Dúvidas que sobressaltavam as suas mentes num rodopio sem resposta.
- Vamos entrar e que Deus nos proteja.
Avançaram cautelosamente para o interior da pirâmide.
- Esta pirâmide deve estar relacionada com as do antigo Egipto e do México.
Pensava alto o Professor, sem tirar os olhos da frente. Talvez seja o túmulo de um
antigo Rei ou esteja relacionado com a vida depois da morte.
O interior da bola era liso e igualmente da cor de metal-fogo, sem vestígios de
corrosão.
Tinham acabado de entrar, quando repentinamente a porta se fecha nas suas
costas, quase por magia, e a esfera começa a girar lentamente. Para se manterem de
pé, os três amigos, assustados, começaram a andar no seu interior, em direcção
contrária ao movimento. Mas a velocidade ia rapidamente aumentando.

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Vítor Caldeirinha

- O que é isto Professor?


- Agarrem-se a mim. Corram. Não sei...
Mas a velocidade disparou. Os três amigos desmaiaram rapidamente, tendo sido
atirados para a parede da esfera que atingia velocidades giratórias alucinantes, co-
lando os seus corpos à parede, pelo efeito da força centrífuga. Que lhes iria acon-
tecer?

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A Feitoria de Abul

Capítulo XVI
Novo Mundo

S entiu a cara ardente do sol e um clarão brilhante inundava-lhe os olhos semi-


serrados. Onde estou? O que se passou? Sentiu nas mãos a forma dos pequenos seixos
rolados e frescos da humidade da manhã, polvilhados de areão grosso, como se
estivesse deitado num leito de rio. O seu corpo não se movia e as tonturas que sentia
obrigavam Pedro a manter os olhos fechados, sem conseguir encarar a luz.
Passados dez minutos, abriu um olho a custo e inclinou levemente a cabeça,
conseguindo vislumbrar o cascalho castanho-húmido no chão e os arbustos verde-
escuro em redor, contrastando com o céu azul forte e com o sol que começava a ficar
quase a pique.
O calor tendia a ficar mais intenso. Pedro apoiou-se com uma mão no chão e
sentou-se, procurando os colegas com o olhar, mas sem sucesso. Lembrava-se de ter
entrado naquela bola gigante, dentro da pirâmide e mais nada. Teriam ficado feridos?
Como viera ali parar?
Logo que sentiu mais forças, levantou-se. Tinha a roupa chamuscada e um cheiro
a enxofre na pele. Inspirou e, logo que ganhou forças, moveu-se lentamente, come-
çando a procurar os amigos no meio dos arbustos, que tinham a sua altura e, de tão
densos, podiam ocultar um corpo a apenas dois metros.
Conhecia bem aquele tipo de vegetação típica da Arrábida. Estaria na Arrábida?
A moita carrasco, como lhe chamavam devido aos picos nas suas pequenas folhas
recortadas que torturavam e feriam os viajantes mais incautos, que tivessem um
pouco de pele a descoberto.
- Professor! Professor! Sara! Sara!
E nada. Ninguém respondia.
Ouviu um ruído nos arbustos a poucos metros, mas quando se aproximou, viu
fugir uma pequena raposa, que entrou na sua toca. De seguida, começou a procurar
em círculos, aumentando o seu raio em redor do local onde tinha acordado, mas a
tarefa foi dificultada pelos arbustos muito serrados e espessos.
Finalmente, numa outra clareira de cascalho roliço, viu Sara deitada junto às
mochilas espalhadas por vinte metros. Mais à frente o Professor Andrade igualmente
deitado. Assustado, correu para os amigos.

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Vítor Caldeirinha

- Sara! Sara, acorda! - sentiu a pulsação no pescoço e descansou. Estava viva. -


Acorda Sara.
- Sim? - ouviu-se de forma ténue. - Ai a minha cabeça.
- Calma Sara, está tudo bem. Abre os olhos lentamente.
- Pedro, onde estamos? - o Professor já tinha começado a acordar também. - O
que se passou?
- Não faço ideia Professor. Alguém nos deixou aqui.
Os três amigos levantaram-se, reuniram os seus haveres, entre eles ainda estava
a pistola e algumas balas. Depois começaram a explorar o ambiente em redor.
- Lembro-me de entrarmos na bola de metal, no interior da pirâmide, debaixo
de terra, no Pinhal Novo e, de começar a rolar, a rolar, a rolar e depois mais nada...
- Ou fomos apanhados e drogados, para depois nos deixarem aqui, longe de tudo.
Não se vê nada. Ou não sei.
- Pois, pode ter sido o Francisco e o amigo.
- Não há aqui nada em redor. Só uma planície grande e lá ao fundo montanhas.
Onde estaremos? E para ali... Não pode ser !? O quê! A Arrábida? Mas... onde
estamos afinal? É a Arrábida ali. Conheço bem as suas formas. Estamos na Península
de Setúbal ainda. Mas não percebo em que local exacto estamos - disse o Professor
estupefacto.
- Sim, parece que estamos em Setúbal, no mesmo local, só que longe de pessoas
e de casas - ficaram os três de boca aberta, espantados, sem perceberem o que lhes
tinha acontecido.
- Repare Professor - disse Sara - ali é o monte do castelo de Palmela. Mas não
está lá nada! - estava abismada. Sempre viveu naquela zona e a qualquer que fosse
a distância, sempre tivera o castelo de Palmela como referência para se guiar, mesmo
quando ia passear a Lisboa. E agora não estava lá o castelo !!!
Subiram a uma rocha mais alta e olharam em redor. Era a grande planície da
margem Sul do Tejo, mas em vez de amarela e polvilhada de casas, estava toda verde,
com manchas castanhas aqui e ali de cascalho e veios azuis de ribeiros. Chovera
durante a noite, certamente, mas o sol agora brilhava sozinho no céu azul.
Ao longe, a serra da Arrábida ondulava como que um grande monstro adorme-
cido, rodeado de verde por todo o lado.
Não se vislumbrava qualquer sinal de presença humana que não fosse um peque-
no rasgo de fumo longínquo no céu, que subia de uma das vertentes da serra.
Do outro lado, a serra vulcânica de Sintra aparecia no meio da neblina matinal,
depois do rio Tejo, mas nem sinal da cidade de Lisboa. O que se passara? Uma
catástrofe natural, uma guerra global?
- Ou estamos no céu, ou estamos todos loucos, ou passou-se algo de muito, muito
grave - Pedro começava a entrar em pânico e a tremer. - Estaremos ainda drogados?
O que é isto? O que é isto? - começou a andar em volta e a abanar a cabeça como
se estivesse louco. Mas os amigos não o conseguiam ajudar, raiando também as

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A Feitoria de Abul

fronteiras entre a realidade que conheciam e a loucura.


Passados quinze minutos:
- Calma - o Professor recuperara a racionalidade - vamos sentar-nos e meditar
sobre isto tudo - disse procurando estabilizar os próprios pensamentos.
- Meu Deus! - gritou Sara.
- Não sei o que aconteceu, mas este local é sem dúvida a Península de Setúbal,
mas nada está no seu sítio. Ou foi tudo destruído ou não foi construído.
- O que quer dizer com isso?
- Nunca ouviram falar nos "wormhole" no espaço-tempo? - lembrou-se o Pro-
fessor. - São ligações entre momentos e espaços diferentes. Aquela bola e aquela
pirâmide podiam ser uma máquina do tempo.
- Isso explicava porque nada está construído.
- Sim, estávamos a explorar ruínas atlantes, pensávamos nós, e se eles eram muito
avançados podiam ter esta tecnologia. Ou podiam tê-la herdado de alguma civiliza-
ção anterior ou extraterrestre. Lemures?
- Mas em que ano estaremos? - Pedro, ainda não podia acreditar no que ouvia
e via.
- Não sei, mas este ambiente sem civilização pode ser muito perigoso. Vou andar
de arma preparada. Vamos montar o acampamento e comer alguma coisa.
Pedro e Sara montaram o acampamento e aqueceram alguma comida enlatada.
Depois de encherem a barriga, o Professor foi explorar o arredores, enquanto Pedro
e Sara se deitaram. Estavam exaustos e não sabiam porquê.
Já meio da tarde, o Professor Andrade regressou ao acampamento.
- Pessoal acordem. Estamos certamente vários séculos antes de Cristo. Não sei
quantos. Aquele aparelho em que entrámos devia ser uma máquina do tempo atlante
em stand by preparada para enviar qualquer pessoa, de qualquer tempo, para esta
data e local. Se calhar aconteceu o mesmo ao Francisco e ao seu amigo. Temos que
ter muito cuidado - Andrade explicou a sua teoria - desconfio que estamos num
século antes de Cristo, na época do final do império Altlante. Como sabem, os
escritos apontavam para o final do império 10.000 anos antes de Cristo, mas as
datações nas últimas escavações mostram actividade imperial no continente europeu
até cerca de 5.000 anos a.C., e deixa-se de ter vestígios de comércio com as ilhas
desde então, época em que se pensa terem as ilhas sido varridas do mapa por qual-
quer catástrofe natural.
E continuou.
- Encontrei frutos frescos e bagas, mas não consegui caçar animais. Aproximei-
me um pouco duma aldeia na serra, de onde saía aquele fumo que vimos de manhã.
- E então?
- É na serra de S. Francisco. Parece-me ser a velha Chibanes, cujas ruínas já
visitámos muitas vezes. Pensávamos que só tinha sido construída e ocupada muito
mais tarde, mas afinal não. Pode ter havido limpeza do local em algum momento e

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Vítor Caldeirinha

despejo dos restos em local desconhecido - disse o Professor, apontando para o


fumo.
- Chibanes? E quem lá vive?
- Não sei. Talvez os avós dos portugueses, dos lusitanos... Não sei. Vi de longe
e estavam alguns homens de barba, vestidos com peles, em redor de uma fogueira.
As casas eram redondas, com telhado de colmo. Não me pareceu muito grande.
Talvez ali vivam cem ou cento e cinquenta pessoas. É preciso andarmos com cui-
dado. Como fica na cumeada da serra, têm uma vista defensiva numa grande dis-
tância e num raio alargado para todo o Norte da península.
- O que havia de nos acontecer - lamentou-se Sara. - Será que vamos achar o
códice do conhecimento na própria época dele? Será que vamos falar com os meus
antepassados atlantes?
- Vamos dormir e amanhã veremos o que vamos fazer, com mais clareza.

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A Feitoria de Abul

Capítulo XVII
A Aldeia de Chibanes

N o dia seguinte, de manhã, acordaram ao som de tambores e do trompar grave


de um grande corno ou concha. Embora distantes, aqueles sons pareciam varrer a
planície entre o Tejo e o Sado, entrecruzando-se com a neblina que enchia todos os
lugares deixados vagos pela vegetação. A manhã estava ainda fresca e os nossos amigos
levantaram-se apressados e assustados, desarmando as tendas rapidamente e colo-
cando as mochilas em local seguro.
- Será que nos viram e vêm apanhar-nos? - questionou Sara.
- Não sei, mas vamos esconder-nos no mato.
Os sons pareciam vir de todos os lados e podiam ouvir-se cada vez melhor, o que
parecia indicar que se aproximavam. De um momento para o outro, começaram
a ouvir-se vozes e os corações dos nossos amigos bateram mais depressa. As vozes
vinham do lado Norte, da direcção do Tejo.
- Vem dali. Parecem estar a passar ao lado. Vamos ver o que é. Vamos aproximar-
nos devagar - disse o Professor.
Ao longe, viram uma caravana com cerca de vinte homens e três carros puxados
por bois e alguns cães. Um dos carros trazia em cima um urso morto, resultado de
uma caçada, certamente. Os outros carros traziam outros animais e armas, lanças
de vários tipos e redes. Enquanto avançaram passo a passo em direcção a Chibanes,
alguns homens gritavam, tocavam os tambores e ecoavam sons a partir de cornos
de animais. Os carros eram simples conjuntos de troncos atados assentes em peque-
nos toros laterais, de largo diâmetro, que serviam de rodas. Eram muito rudimen-
tares.
Os homens eram morenos e tinham todos barba grande escura e peles castanhas
que lhes cobriam parte do corpo. Alguns empunhavam lanças com ponta de sílex ou
metal. Adornos metálicos de cobre embelezavam o pescoço, sobressaindo por detrás
da barba e dos braços, perto dos ombros.
- Vêm do Tejo. Devem ter ido caçar nas suas margens. Agora retornam a Chibanes
com o produto da caçada. Maravilhoso. Nunca pensei ver isto ao vivo - o Professor
estava deliciado - quem é este povo? Qual a sua origem?
- Professor, vamos atrás deles para ver o que fazem. Talvez encontremos alguma

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Vítor Caldeirinha

resposta para nós - disse Pedro.


- Ok. Temos que achar a máquina do tempo para nos levar de volta. Talvez esteja
por aqui perto, mas o mais certo é haver uma nas ilhas de Atlântida, se existir mesmo.
Penso que só mais tarde construíram aqui o templo e nele colocaram a máquina que
encontrámos no nosso tempo.
O grupo indígena avançou até ao sopé da serra de S. Francisco e voltou à esquer-
da, contornando-a e subindo um caminho ancestral que levava até ao cimo da serra,
onde se localizaria futuramente a vila de Palmela. No cimo, na portela onde viria a
ser construída a paragem principal dos autocarros de Palmela e o jardim da povo-
ação, viraram cento e oitenta graus à direita e iniciaram a subida pela cumeada da
serra de S. Francisco.
Os nossos amigos seguiam a distancia segura, ficando cada vez mais espantados
com a paisagem que se podia observar à medida que iam ganhando altitude. Ao
longe, o Tejo corria manso e escuro, entre as margens de sapal verde e as sete colinas
da futura Lisboa, carregadas de plantas, árvores e mato. No pouco do Sado que podia
ver entre serras, nenhum navio, nem vestígio da cidade de Setúbal.
No cimo da montanha de Palmela, onde devia estar a vila e o castelo, estava
apenas uma pequena casa de pedra, talvez algum templo de uma divindade antiga.
O cenário era maravilhoso e assustador ao mesmo tempo.
Voltaram-se para o estreito caminho que os homens tinham tomado, que subia
a serra do Louro, outro nome da serra de S. Francisco, e voltaram a perseguir a
caravana de caçadores, escondidos entre rochas e arvoredos.
Subitamente, um homem barbudo e meio despido apareceu-lhes pela frente,
assustador e de lança em punho.
- Rabui, caci, faloté - gritou o homem enervado.
Devia ser um guarda avançado da aldeia.
- Tabui palca - estes sons saíram de imediato da boca de Andrade, para espanto
dos seus amigos.
- O que está a dizer Professor? Percebeu alguma coisa - perguntou admirada Sara.
O homem ficou especado com as palavras que ouvira, sem saber o que dizer ou
fazer.
- Ele fala uma espécie de fenício antigo. Aprendi essa língua quando estive nas
escavações em Israel. Alguns cultos ainda a utilizam como língua litúrgica.
E o Professor continuou a tentar falar com o homem, com a mão junto à arma
carregada no bolso.
- Eles não compreendem. Eu falo - disse o Professor em fenício antigo - viemos
em paz e temos fome.
- Quem são? Que querem? - gritou o homem outra vez.
- Somos do Norte. Depois do rio. Queremos comer e continuar a viagem.
- Que querem daqui? Vão embora.
- Queremos comer e falar. Depois vamos embora - insistiu o Professor.
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A Feitoria de Abul

Os gritos do homem atraíram os outros homens que seguiam mais à frente, que
surgiram pela cumeada abaixo em forte corrida, com as lanças empunhadas. Segu-
raram-nos e tiraram-lhes tudo o que tinham. A arma manteve-se no bolso do Pro-
fessor. De seguida levaram-nos para Chibanes.
À frente do grupo iam três homens anunciando a captura na aldeia com o som
longo e grave dos cornos de animais, que ecoava pelos vales adjacentes, carregados
de neblina. Atrás vinha o Professor agarrado por dois homens, seguido por Pedro
igualmente preso e Sara. Mais atrás vinham os restantes homens, descalços e meio
vestidos com peles, sujos e armados.
Ao aproximarem-se da aldeia, começaram a ver qual era a origem do fumo que
subia ao céu, dia e noite. Uma fogueira no meio de casas pequenas esculpidas nas
pedras com formatos redondos, aglomeradas desde a cumeada até cerca de vinte
metros pela encosta Norte abaixo. A encosta Sul era muito íngreme.
O caminho da cumeada passava a meio da aldeia, deixando uma fileira de casas
mais nobres no cimo, de um lado, e as restantes casa no outro, pela encosta abaixo.
Algumas mulheres e crianças de cabelos negros e longos vieram receber a comi-
tiva, atraídas pelo ruído e pela caça fresca. Depois de passada a confusão, gerada na
aldeia pela chegada de tão estranhas pessoas, o grupo parou num pequeno largo junto
a uma pedra maior, que servia de trono ou cadeira a um membro mais velho da
comunidade. Um Ancião, que empunhava o seu imponente e trabalhado báculo de
pedra esculpida, símbolo do poder na região, falou:
- Quem são? O que querem? - perguntou o velho em tom forte e na língua que
só Andrade entendia. O que querem daqui?
- Amigo, Amigo! Não queremos problemas. Viemos em Paz. Paz. Somos estran-
geiros do Norte - respondeu o Professor.
- O que querem daqui?
- Estamos apenas de passagem. Em viagem.
- Para onde?
- Queremos ir à ilha do império Atlante. Conhece? O reino do Mar. Queremos
falar com o Rei e com o sacerdote da Ilha.
- O reino do Mar?
- Atlântida.
- Reino da Atlântida. Sim. Senhores de toda a terra conhecida junto ao mar, até
ao Egipto.
- Sim.
- Não é bom ir à grande ilha. Muita gente. Muita confusão. Não é bom.
- Temos uma missão de paz em nome dos nossos reis.
- Que reis?
- De Portugal e da Europa.
- Nunca ouvi falar. Deve ser para além das montanhas da neve.

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Vítor Caldeirinha

- Sim.
- Isso explica as vossas estranhas vestimentas.
- Tenho algumas ofertas - disse Andrade tirando da mochila uma lanterna pequena
e uma bússola.
- Agradeço - e voltou-se para os homens da aldeia - libertem-nos e dêem-lhes de
comida. Eles vão para a grande ilha.
Ainda desconfiados, os homens levaram os três amigos para junto da fogueira
onde estavam a ser assados vários grandes pedaços de carne e se secavam algumas
peles de diversos animais. Depois de comerem e esperarem várias horas, o ancião
e dois homens vieram juntar-se a eles perto da fogueira.
- Queremos falar. Sentem-se - ordenou o ancião.
- Diga - respondeu Andrade sentando-se e fazendo sinal aos seus amigos para lhe
seguirem o exemplo.
- O nosso povo vive aqui há mais de quinhentos invernos. Somos descendentes
de antigos capitães da feitoria de Abul inicial, que vieram do oriente e aqui se es-
tabeleceram neste rico rio, para comercializarem o peixe diferente e o sal que en-
viavam para as suas terras de origem. O oceano tem estas maravilhas diferentes.
Mais tarde vieram os atlantes, que floresceram a partir do seu império das ilhas do
mar e ocuparam todas as terras e feitorias marítimas, passando a dominar o comér-
cio por mar. Os nossos avós longínquos tiveram que subir às montanhas e defende-
rem-se. A nossa tribo divide-se por duas aldeias. Chibanes e Rotura. Nós domina-
mos o Norte até ao grande rio e Rotura domina para sul, até ao Sado. Agora estamos
todos em paz com os atlantes e ganhamos com o comércio. O império atlante é
principalmente constituído por feitorias, fortes e pequenas cidades junto aos mares,
por todo o mundo conhecido.
- Compreendo - o Professor estava maravilhado com o que ouvia. - Vivem muitas
pessoas na região?
- Em Chibanes cerca de cento e cinquenta. Na Rotura cem e na Feitoria e na
fábrica de Abul, vivem cinquenta atlantes e cinquenta dos nossos. Na serra sagrada
vivem dez pessoas. Junto ao grande rio a Norte também existem seis famílias da
nossa raça. Mas a Norte daquele rio só vivem indígenas, brutos e agressivos. Sel-
vagens. Às vezes juntam-se em ordas e vêm até aqui atacar-nos, a nós e à Feitoria
de Abul.
- Como podemos chegar às grandes ilhas? Há barcos na Feitoria?
- Sim, mas têm que pagar com mercadorias.
- Onde fica a Feitoria?
- Ali - o ancião apontou para o rio, entre a serra de S. Luís e o monte de Palmela
- O velho do monte sagrado, que vive naquela casa lá em cima, vai partir amanhã
para a Feitoria. Ele pode ajudar-vos a negociar a vossa ida. Os atlantes são muito
difíceis para negociar. Vou mandar levar-vos lá a cima, para irem falar com ele.
- Obrigado, obrigado - agradeceu Andrade em fenício antigo.
- Mas vão levar uma oferenda de Chibanes para o Rei Atlante. Existem dois reis
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A Feitoria de Abul

que disputam o poder. Levam duas oferendas. Queremos paz com todos.
O ancião e os seus dois homens levantam-se e partiram para o centro da aldeia.
- De que falaram Professor? - perguntou Pedro, que estivera calado todo o tempo
com Sara, percebendo que a coisa estava a correr favoravelmente.
- Vou contar-vos. Vamos para a Atlântida. Vamos procurar a máquina do tempo
e, quem sabe, o códice do conhecimento - depois o Professor contou-lhe toda a
conversa que acabara de ter com o ancião.

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Vítor Caldeirinha

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A Feitoria de Abul

Capítulo XVIII
O Monte Sagrado

N aquela noite, ficaram pela aldeia dormindo na tenda que montaram ao centro,
numa zona mais aberta perto da fogueira. Os resultados da expedição de caçada
foram comemorados em grande pelos habitantes da aldeia, com uma festa em que
homens, mulheres, crianças e cães participaram activamente. Todos se juntaram
perto da fogueira comunitária, onde se começou por assar carne, a parte que não
tinha sido conservada em sal de Abul.
Um sumo de frutos meio alcoólico foi distribuído aos homens, enquanto várias
mulheres dançavam no meio da população. Os nossos amigos, um pouco distantes
de toda esta festa, foram deitar-se mais cedo na tenda. Dormitaram com dificuldade,
enquanto a festa durava até amanhecer.
Já de manhã, desmontaram a tenda, prepararam as suas mochilas e pediram ao
ancião que mandasse alguém para os acompanhar até ao cimo do Monte Sagrado,
que ficava a meia hora de distância a pé, pelo mato. Logo desceram a cumeada
olhando em volta os belos vales verdejantes, não vislumbrando qualquer casa ou sinal
de presença humana, habitual naquela zona em 2050 d.C.
Mais à frente iniciaram a subida ao Monte Sagrado, num caminho serpenteando
por entre a espessa e alta vegetação. Já perto do cimo surgiu-lhes, do lado esquerdo,
um pequeno muramento, que os guiou até à casa de orações onde vivia o velho que
procuravam. Viam-se bustos de deuses animais esculpidos em algumas pedras junto
ao muro.
Um velho de longa barba branca e vestes de tecido amareladas com o tempo, veio
recebê-los no final da última subida.
- Sejam benvindos ao Monte Sagrado, estrangeiros. Já sei que vão para as Ilhas.
Entrem - ordenou, apontando para um edifício alto, feito de pedras e barros. - Curvem-
se perante a deusa Inana e os bois sagrados.
- Pedro, Sara, curvem-se perante aquelas figuras - Andrade apontava para uma
rocha grande esculpida com um rosto feminino de deusa suméria e para as figuras
de bois alados que rodeavam a deusa. Compreendia agora que o culto da mulher em
Portugal era muito mais antigo do que imaginara, tendo culminado no culto à virgem
Maria.
O velho fez sinal para que entrassem no templo, local escuro e retiro de culto,
71
Vítor Caldeirinha

iluminado apenas por uma pequena vela de gordura.


- Entrem e sentem-se. De onde são?
- Do Norte. Muito a norte. Somos mensageiros do nosso reino distante. Viemos
em embaixada à corte do Rei atlante.
- Evenor. Eu sei. Estava à vossa espera há anos. Sabia que viriam hoje.
- Como? - perguntou o Professor.
- A salvação do mundo está nas vossas mãos.
- O que diz?
- Um jovem, um velho e uma rapariga aparecerão vindos de outro mundo e
ajudarão o Rei bom a recuperar o códice perdido e a salvar o mundo de agora e de
amanhã. Esperava-vos e já tenho a viagem marcada.
- Diz que vamos salvar o mundo e fala de um códice - disse o Professor aos seus
amigos, em português. Não percebia o que se passava.
- O quê?!?
- Sim, parece que sabe alguma coisa sobre a máquina do tempo e estava à nossa
espera no dia certo.
- Mas só a colocaram mais tarde no Pinhal Novo. Como é possível? - perguntou
Sara.
- Um barco parte amanhã para Antília, em Seden, mas temos que partir ainda
hoje para Abul. O guarda do Monte Sagrado irá convosco. Eu já estou velho e
doente.
- Quem?
- Este monte era a morada de uma família de gigantes, antes de aqui ter sido
construído este templo. Foram eles que esculpiram as rochas e movimentaram os
grandes blocos de pedra. Ogo ainda aqui ficou. Tem cento e quarenta anos. Um
jovem. Os seus pais partiram há muito para o interior.
- Gigante. Ele falou de um gigante.
O Professor voltou-se sobressaltado para os amigos.
- Entra Ogo.
O templo não era muito alto e a figura do homem de três metros que entrou de
repente assustou os nossos amigos, que se encostaram a um dos cantos da sala.
- Tenham calma. Apresento-vos Ogo, o Gigante - disse o velho.
- Olá deuses vivos, sou um vosso servo.
- Ogo tomou-vos como a missão da vida dele, está pronto para tudo e é muito fiel.
- Mas de que missão fala?
- Os escritos antigos é que falam e bateram certo. Vocês apareceram.
- Como pode ser tão alto? - perguntou o Professor Andrade.
- São descendentes de um povo muito antigo, que veio das estrelas e aqui deixou
descendentes.

72
A Feitoria de Abul

- Quem é essa aberração gigante, Professor? - perguntou Pedro ainda encostado


ao fundo da sala.
- Não se assustem. É amigo e vai-nos ajudar.
- Olá - disse Pedro e o gigante fez-lhes uma vénia.
- Não sabia que tinham mesmo existido gigantes.
- Não percamos mais tempo - disse o velho - vamos partir já para Abul.
Com a cabeça feita em água com tanta confusão e grandes enigmas, os três
amigos aguardaram que o velho e o gigante preparassem os seus haveres para a
viagem até ao entreposto comercial de Abul.
O velho iria com eles para negociar a viagem com o barqueiro e para trocar
algumas mercadorias. Precisava de azeite, tâmaras, cerâmica, prata e marfim. Só
o gigante faria a viagem marítima com eles.
Enquanto esperavam, vieram para fora e olharam a bela bacia de Abul. O rio,
limpo de embarcações, corria suave e azul. A ilha de Tróia era uma jóia verde com
uma auréola amarela da areia. Mais atrás, após a caldeira, estava a vasta fábrica de
peixe salgado atlante, cujas ruínas iriam ser o encanto dos arqueólogos e dos turistas
do século XXI.
Na outra margem, já bem dentro do rio, podia ver-se um casa grande, tipo
armazém. Era certamente a Feitoria de Abul, junto ao pequeno porto onde estava
acostada uma embarcação.
Em Setúbal, só se podiam ver sapais e ribeiros que serpenteavam na vasta zona
húmida plana. Olhando para Leste era visível uma extensa zona verde plana. E para
Norte, o rio Tejo e a margem Norte. Quem habitaria a capital nestes tempos?
- Vamos - disse o velho chamando os nossos amigos.
Desceram pelo caminho que serpenteava o monte Sagrado, na sua vertente sul,
até chegarem à planície de sapal que ocupava a várzea da futura cidade de Setúbal.
Entre pântanos, ribeiros e braços do estuário do Sado, ladeados por muita ve-
getação, seguiram um velho caminho aberto pelo tempo, que os levou, após várias
horas, à margem do rio.
Perto do rio, podiam ver as belas praias e a montanha da serra de S. Luis, que
conferia uma beleza especial a toda a região. Depois seguiram junto à costa, pelos
sapais, junto à Mitrena, Praias do Sado, até à futura Herdade do Pinheiro, naquela
altura ainda sem pinheiros.
O caminho demorou muitas horas dificultadas pelo terreno arenoso. Quando já
quase não conseguiam ver o Monte Sagrado, pelo escuro da noite que caía, avistaram
um conjunto de edifícios e um cais palafítico com uma barca. Tinham chegado ao
destino.
- Doem-me as costas - disse o gigante pouco habituado ao longos percursos.

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Vítor Caldeirinha

74
A Feitoria de Abul

Capítulo XIX
A Feitoria de Abul

A o entardecer, naquele dia quente, soprava um vento fresco agradável de No-


roeste, provocando uma ligeira ondulação que corria ritmicamente para a costa,
chocalhando vaga após vaga a embarcação ancorada no cais de Abul, contrastando
com a imagem brilhante da lua cheia, fixa no horizonte, iluminando tudo a meia luz.
Os nossos amigos chegaram perto do edifício da feitoria e pararam por um
momento. Homens com vestes brancas carregavam e arrumavam continuamente
algumas mercadorias acondicionadas em sacos e fardos, transportando-as às costas
para uma pilha próxima do cais. Eram os preparativos da viagem de retorno da
embarcação.
- Não sou grande amigo do vice-rei da Feitoria de Abul. Desentendemo-nos em
algumas transacções comerciais e outros assuntos. Mas não tenham problemas -
disse o velho a Andrade.
- É como no meu país. Negócios e amizade nunca andam de mãos dadas.
- Entremos. Homem, você aí, vá chamar o vice-rei. O homem largou uma ânfora
que levava às costas e correu para o interior do edifício principal.
A feitoria ficava numa pequena península plana e redonda, entrando pelo estu-
ário e permitindo atingir maiores profundidades para a acostagem das embarcações.
Esta configuração tornava também mais fácil defender o estabelecimento de possí-
veis ataques por terra.
O edifício da feitoria era alto e rectangular. Tinha poucas janelas, tendo a Oeste
uma torre de defesa quadrangular, mais alta que o edifício, através da qual se acedia
ao interior do próprio edifício da feitoria, por uma porta elevada ligada ao chão por
uma rampa inclinada em formato de "V" invertido, com dois metros de alto.
Em redor do edifício, um muramento com cerca de um metro de largura e dois
metros de altura protegia o acesso aos armazéns, só possível pela entrada principal,
a sul, junto à torre, com acesso directo ao cais de embarque.
Entre o cais de embarque e a feitoria, uma fossa, larga e cheia de água, prevenia
eventuais ataques por via marítima, confinando o acesso e facilitando a defesa.
No cais, uma bela embarcação de vela redonda arreada aguardava o dia de se
fazer ao mar cheia de mercadorias.

75
Vítor Caldeirinha

Um pouco antes da pequena península, mais para o interior de terra, a cerca de


quinhentos metros, localizava-se uma aldeia de casas de madeira onde viviam os
trabalhadores da feitoria e os serviçais agrícolas que apoiavam a feitoria.
Passado algum tempo, cinco homens surgiram na porta da torre e desceram a
rampa, torneando o muro e aproximando-se dos nossos amigos.
O vice-rei vinha à frente com capacete pontiagudo e uma cara séria e sisuda,
seguido por quatro guardas armados de lanças, deixando os nossos amigos apreen-
sivos.
- Velho, que vens aqui fazer?
- Venho levar estes amigos para embarcarem para as ilhas e queria também al-
gumas mercadorias e víveres.
- Devias era ter vergonha em vires aqui depois do que me fizeste.
- Porquê? Por fazer a vontade à tua filha?
- Ritma sabe lá o que quer. Tem doze anos.
- Mas está feliz e apaixonada com o seu marido em Chibanes.
- A minha filha pertence à aristocracia atlante. Pode ter um futuro brilhante nas
ilhas. Casar com um oficial da corte ou com o Rei.
- Mas preferiu viver nesta linda região.
- Nunca. Casaste-a com um bárbaro que vive numa aldeia porca, neste fim de
mundo.
- Tens de aceitar.
- Nunca. Prendam o velho.
Os quatro soldados avançaram para o velho com as lanças empunhadas. Ogo
saltou em sua defesa, empurrando os guardas, mas o velho fez sinal para se afastar.
- Professor, o que se passa - perguntou Pedro.
- Querem prender o velho. Parece haver uma desavença por causa da filha do
vice-rei da feitoria.
- E vocês estrangeiros, quero-vos dizer que o velho fica aqui preso até me tra-
zerem a minha filha. E se querem embarcar, têm que me trazer Ritma. Agora vão.
Os guardas levaram o velho para o interior da feitoria, desaparecendo, apressa-
damente, pela porta da torre.
- E agora o que fazemos?
- Não sei Pedro. O vice-rei quer a filha aqui, para libertar o velho e deixar-nos
ir no barco. Mas ela fugiu para Chibanes e casou. Só tem doze anos.
- Vamos meter-nos numa confusão - disse Sara colocando a mão na cabeça.
- Sim, amanhã temos que ir a Chibanes avisar sobre o que se passa - decidiu o
Professor.
- Vamos primeiro arranjar sítio para dormir.

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A Feitoria de Abul

Capítulo XX
A Tragédia

-A corde senhor - gritou o gigante Ogo para Andrade.


- O que se passa?
A manhã já ia avançada, mas ninguém tinha acordado devido ao cansaço do dia
anterior. Algumas nuvens tapavam o sol de vez em quando, sempre por breves minutos.
- Diz Ogo.
- Acordem e levantem-se. Eu vim na frente.
- Não percebi?!
- Vim primeiro. Fui a Chibanes avisar sobre o que se passou ontem. Os homens
ficaram exaltados e combinaram formar um grupo armado de ataque. Devem estar
a chegar.
- Foste sozinho?
- Sim, pela noite. Não podia deixar o meu mestre preso. Estou estafado.
- Muito bem. Vamos vestir-nos, meninos, que vem aí uma coluna de ataque de
Chibanes para resgatar o velho sacerdote de Palmela.
- Temos que nos por a salvo, não vamos também apanhar - disse Sara.
- Vamos para ali esconder-nos para acompanharmos tudo bem perto.
Na feitoria a vida parecia decorrer normalmente, embora as pessoas olhassem
constantemente para o horizonte por instinto, conhecedoras que eram da fibra dos
homens de Chibanes e da sua ligação ao velho.
E tinham razão para isso. Os Chibanes eram temidos. Passados trinta minutos,
chegaram cerca de cinquenta homens Chibanes, velhos e novos, armados de lanças,
machados, paus e arcos.
Os amigos ficaram a vê-los passar irritados e aos gritos, enquanto Ogo se lhes
juntou em direcção a Abul.
Chegados à feitoria, pararam perto do istmo da península. A Feitoria estava
fortificada com madeiras pontiagudas voltadas para fora e estava bem guardada por
homens com grande força de armas.
- Tragam o vice-rei - gritou o chefe dos Chibanes aos guardas - quero falar-lhe

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Vítor Caldeirinha

de imediato.
Depois de alguma hesitação entre os guardas, um deles correu para dentro do
edifício da feitoria, tendo decorrido um bom tempo sem que nada acontecesse, mas
todos esperavam sem mais alarido.
De repente, a porta da feitoria abriu-se e saiu de lá o vice-rei acompanhado por
vários guardas. - O que querem daqui?
- Liberta de imediato o nosso sacerdote ou destruiremos a feitoria.
- Só se trouxerem a minha filha.
- Não podemos. Seria contra a vontade dela.
- O velho só sairá daqui com vida nessa condição.
- Então vamos matar os teus homens e destruir tudo.
- Poderemos perder agora, mas já sabem que depois virão frotas e homens do
reino que destruirão vocês e as vossas famílias. Não haverá mais paz.
- Temos que aí ir libertar o velho que de nada tem culpa.
- Não foi ele que a casou sem nada me dizer?
O impasse estava criado. A tensão era enorme. Quem daria o primeiro passo?
E seria de cedência ou de ataque? Embora os atlantes estivessem melhor equipados
com armamento e armaduras, eram apenas cerca de vinte guardas contra mais de
cinquenta Chibanes.
- Chibanes, preparar para atacar quando eu disser...
- Não, não - Ritma tinha seguido a orda de Chibanes e mantivera-se escondida
até não aguentar mais a pressão. Levantou-se detrás da vegetação e correu em di-
recção ao seu marido que estava no grupo de ataque. - Não te quero morto Jadeu!
Não. Parem - e correu como uma louca, deixando todos os presentes, de um lado
e de outro, de boca aberta.
- Que fazes aqui? Vai-te mulher.
- Ritma, vem ter com o teu pai já. Vem para casa.
Ao chegar ao pé do marido desatou num pranto acompanhado de berros bem
altos.
- Não vás, não quero que morras, nem que mates o meu pai.
- Vai-te embora daqui. Volta para Chibanes.
- Não, Não. Só se vieres comigo.
- Não posso, o teu pai raptou o nosso sacerdote.
- Vai ser uma tragédia e tudo por minha causa.
- Vai para casa, já te disse.
- Não, vou desfazer esta tragédia.
- O quê?
- Sim. Adeus amor - e dizendo isto, correu rapidamente por entre os guardas
atlantes para o pé do seu pai - liberta já o velho.

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A Feitoria de Abul

E nisto, para espanto de todos, o marido de Ritma saltou sozinho por cima do
muro de defesa e correu em direcção a Ritma e ao seu pai, furioso e com um machado
nas mãos.
No espaço de poucos segundos, Ritma olhou incrédula para a reacção que des-
pertara no marido, gritando um profundo "NÃOOOOO".
Jadeu chegou perto do vice-rei que, antecipando o seu acto, o atravessou com
a sua lança, obrigando o corpo a cair imóvel no chão.
Todos ficaram sem saber o que fazer, estupefactos, e Ritma desfeita atirou-se ao
corpo do marido desfalecido.
O único que teve reacção foi o pai de Ritma que acenou para dentro edifício,
de onde saiu em liberdade o velho sacerdote.
- Vês o que provocaste, velho casmurro.
Este gesto serviu para anular o outro, deixando os Chibanes imóveis sem re-
acção.

Após dois dias e meio de choro absoluto e ruidoso pelas planícies de Abul, Ritma
decidiu abandonar de imediato o local na barca que partia para a capital do reino
atlante, com mercadoria da região, com os três amigos Andrade, Pedro e Sara e com
o gigante Ogo.
A tripulação queria partir o quanto antes. Mas Ritma iria sem antes enterrar o
seu amado na bela ilha de Tróia, junto à fábrica de peixe, mandando erguer uma
coluna de pedra em sua honra, com a frase "Esposo Óptimo".
Sem se despedir do pai, a barca largou do cais de Abul no final de uma tarde em
que o sol se punha no cimo da serra da Arrábida, deixando ensombrada toda a
planície verdejante da futura cidade de Setúbal, recortada por braços do rio que
entravam pela terra adentro.
Deixando atrás de si um pequeno rasto na água calma, passou lentamente de velas
erguidas à brisa suave e guiada por três golfinhos saltitantes. A barca seguiu, passan-
do pelo complexo industrial de salga de peixe de Tróia, de onde recebeu um caloroso
adeus oferecido pelos trabalhadores atlantes, para quem a barca levava saudades da
sua terra tão distante.
Por fim saiu da barra do rio, embrenhando-se no oceano guiado pelo sol poente
e, mais tarde, pelas estrelas do céu aberto estrelado.
No dia seguinte, Ritma manteve-se isolada toda a manhã, não falando com ninguém
e choramingando de quando em vez, talvez recordando a vida que podia ter tido em
Chibanes com o seu marido.
Pedindo a Andrade que servisse de interprete, Sara foi-se aproximando lenta-
mente de Ritma.
- Não comes nada Ritma?
- Não tenho fome.
- Esta viagem vai ser muito cansativa e vais ter que comer para teres forças.

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Vítor Caldeirinha

- Depois.
- Vais levar alguns meses ou anos para te sentires melhor, mas a vida continua
e não podes deixar de comer.
- Não me importa morrer e que os deuses me levem.
- Sei que não é o mesmo, mas também sofri muito com a morte da minha mãe,
mas continuei a alimentar-me.
- Mas ele era o meu amor, o meu companheiro de vida. Agora não tenho futuro.
Vou ter com a minha mãe em Antília. Poderão ficar na casa dela. Serão bem vindos.
- Obrigada, mas temos uma missão a cumprir e depois quero voltar para a minha
terra.
- Vamos ter muito tempo para me contares a tua vida. Podes ser minha amiga?
- Sim, claro. Quantos dias costuma ser de viagem?
- Entre sete e quinze dias, dependendo do tempo que fizer.
- A viagem é muito complicada?
- Não, se tiver bom tempo, como é habitual de Verão. Só temos que ter cuidado
com as feras do mar, que atacam os barcos.
- Que feras? Peixes?
Ritma estava outra vez receosa e chorava.
- Tem calma, onde é a tua terra?
- São umas ilhas muito verdes no oceano. Lindas. Aea é governada pelo rei-
Mestor I, um Rei mau que está em guerra com o seu irmão. A outra ilha é Seden,
governada pelo Rei bom, Evenor II. A terceira ilha é Urz, uma ilha misteriosa, onde
ninguém quer ir e onde quem vai não volta mais. Dizem que é onde está guardado
o segredo dos nossos antepassados que povoaram as ilhas.
- Então há guerra entre atlantes irmãos?
- Sim, dantes o nosso império estendia-se a toda a terra dos dois lados do mar
mediterrâneo, mas agora o Sul é dominado pelo Rei Evenor II e o lado Norte é
dominado pelo Rei Mestor I e as batalhas continuam no mar, nas cidades costeiras
e lá longe, na zona onde se encontram as duas terras e acaba o mar. Morrem muitos
homens ao que dizem. Há intriga, traição. Irmão mata irmão. Por isso eu queria
viver o amor longe desta confusão.
- Quero-te confessar, eu tenho uma missão.
- Sim?
- Bom, nós viemos de muito longe e para voltarmos precisamos do códice do
conhecimento da ilha de Urz, de que falaste e de ver um engenho dos vosso antepas-
sados. É para lá que queremos ir.
- Mas é muito perigoso!
- Eu já sei, mas não temos escolha.
- Tenho que vos apresentar ao meu Rei que vos ajudará de certeza.
De repente, um estrondo fez estremecer fortemente todo o barco, fazendo cair
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A Feitoria de Abul

a vela e empurrando as duas raparigas para o outro bordo.


- O que foi isto Andrade ! - gritou Sara aterrorizada por entre água que lhes caía
em cima.
- Não sei. Estão bem?
- Sim.
- Sim.
Os tripulantes gritavam muito assustados, olhando e apontando para um lado e
para o outro. O mar acalmou por instantes...
- Dizem que é um animal qualquer muito grande. Agarrem-se bem que pode
bater no barco outra vez.

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Vítor Caldeirinha

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A Feitoria de Abul

Capítulo XXI
A Cidade de Antília

S ubitamente, a água começou a saltar de novo, surgindo uma boca do tamanho


de quatro bois, com centenas de pequenos dentes pontiagudos que sobressaiam do
seu interior negro abismal.
O animal tinha um olho enorme ao centro, erguendo-se no ar a dez metros de
altura e tornando a mergulhar. Mas o seu corpo em forma de cobra continuou a
passar por fora de água durante alguns segundos. Talvez fosse uma moreia gigante
ou uma serpente de grandes dimensões que depois desapareceu nos tempos.
Ao longe uma centena de serpentes passavam ao largo com as cabeças de fora
e os corpos ondulando dentro e fora de água.
- Talvez este seja um defesa do grupo e apenas nos queira afugentar e não atacar
mesmo - disse Andrade esperançado.
Depois, mais três fortes pancadas no barco, numa das vezes chegou mesmo a
entrar bastante água a bordo.
Os homens, encolhidos, protegiam-se e seguravam-se como podiam. Enrolando
o seu corpo em redor do casco, o animal estava prestes a virar o pequeno barco.
Foi então que um trovão se fez sentir muito perto e a chuva começou a cair. Uma
daquelas repentinas chuvas de Verão em pleno oceano. Assustado com o clarão e
talvez com a electricidade que o envolveu, o monstro largou repentinamente a
embarcação e desapareceu nas águas escuras e tenebrosas.
Durante quase uma hora ninguém se atreveu a sair do lugar onde se protegera.
Todos olhavam para fora à procura de sinais do bicho. O cardume de monstros ao
longe havia desaparecido. Pouco a pouco, os homens foram acreditando que já não
havia perigo, consertaram a vela e retomaram o rumo interrompido.
- Que outros estranhos e perigosos animais nos aguardam neste lugar e neste
tempo desconhecido ? - questionava-se o Professor.
- Nunca descobrimos vestígios destes bichos na nossa época, mas o oceano é tão
grande e está tão mal explorado. Um mergulhador ao procurar conhecer o mar,
comparativamente, é equivalente a uma pessoa a andar à noite, a pé, com uma
lanterna, a tentar conhecer a Europa toda. Ainda por cima, conhecer o mar é mais
difícil, pois tem três dimensões.

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Vítor Caldeirinha

Após uma semana de navegação calma, avistaram a terra. Era a ilha de destino.
Contrastando com o balancear rangido pelas madeiras da barca, a ilha de Seden
apresentava-se muito fixa e estável à linha do horizonte, surgindo como uma longa
costa a perder de vista, para um lado e para o outro, recortada por montanhas ao
longe, que ondulavam sem saírem do lugar.
Seria agradável a sensação de pisar chão firme depois de tantos dias a balouçar,
sem condições de conforto e sujeitos aos perigos daquele oceano pré-histórico.
Ao aproximarem-se começou a ver-se a estreita faixa de areal que bordejava toda
a costa e o fumo que saía certamente de fogueiras das aldeias e lugares.
Mais próximo, podia ver-se que a ilha possuía uma longa planície fértil, decorada
com culturas agrícolas em tons de verde e castanho, tendo ao centro a entrada do
porto, estreita, ladeada por altas torres de vigia e espessas muralhas de defesa de
pedra branca e telhados laranjas de ouricalco, um metal cor de fogo.
Feitos os devidos sinais pelo comandante da embarcação e reconhecidas as pessoas,
levantaram-se as defesas da entrada para o primeiro porto interior, o porto de co-
mércio.
Com a lenta passagem dos barcos, os guardas, trajando armaduras de ouricalco,
tinham oportunidade de observar atentamente os tripulantes e passageiros, procu-
rando qualquer indício de perigo.
Passadas as primeiras muralhas, apresentou-se um porto interior carregado de
embarcações de comércio em plena operação de troca de mercadorias de todo o
Mediterrâneo, nos cais em redor.
A bacia e o porto ladeavam todo o palácio real numa extensão de cerca de vinte
quilómetros.
Ritma pretendia ir ter com a mãe à corte real, pelo que a barca se dirigiu às torres
de entrada do segundo porto interior, o porto militar.
As torres e as respectivas muralhas fortificadas eram de pedra de cor negra,
rodeando todo o segundo porto interior, e estavam cobertas com telhados de cobre
brilhante.
Aqui, a barca foi obrigada a parar para ser revistada, tendo os tripulantes sido
interrogados sobre a sua identidade e intenções. Ritma responsabilizou-se pelos seus
quatro amigos.
Passadas as defesas de madeira da entrada, o porto apresentava-se cheio de
embarcações militares muito semelhantes às futuras embarcações egípcias. No porto,
soldados e artífices andavam para lá e para cá, muito atarefados.
O segundo porto interior tinha cerca de mil e quinhentos metros de largo e
também rodeava todo o edifício real. A caminho do palácio real, a barca aproximou-
se das últimas torres de defesa, onde terminavam as muralhas muito mais altas que
as anteriores.
A entrada estava encerrada por uma porta gigante, que se abria em duas partes,
para os lados. As muralhas e as torres eras feitas de pedra vermelha e os telhados no
seu interior eram dourados de ouro maciço, luzente.

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A Feitoria de Abul

No seu interior, um pequeno canal com cem metros de largo rodeava o edifício
portuário real, que era circular ao centro, com diversos cais interiores quase para-
lelos uns aos outros.
- Chegámos - Ritma parecia estar satisfeita por mostrar a grandeza de Antília aos
amigos estrangeiros, a capital do reino e do império, embora tivesse facilmente
disposta a trocar tudo aquilo por uma vida pacata em Chibanes.
- Maravilhoso, é tal como foi descrito por Platão nos seus textos antigos - excla-
mou o Professor Andrade.
- Sempre pensei que fosse apenas imaginação, mas afinal sempre existiu este
famoso e antigo império - disse Pedro.
- Vamos lá conhecer a terra dos nossos antepassados gloriosos - Sara estava muito
emocionada.
A embarcação acostou a um dos cais livres e foi amarrada. Aqui as pessoas
andavam mais calmas e mais bem vestidas que nos outros portos. Este era o porto
real.
- Venham comigo, vou levar-vos à minha mãe. Vai ficar muito interessada nas
vossas histórias, vão ver. Ela gosta muito de saber sobre mundos longínquos e des-
conhecidos do nosso.
Saíram do porto por uma ponte em estacaria, chegando rapidamente à entrada
do palácio real. Uma grande escadaria, mais larga em baixo que em cima, era guar-
dada por dois soldados trajados com ouro.
Subiram os longos degraus da escada e cumprimentaram os guardas.
- Por aqui - disse Ritma.
Ao passarem por um corredor, ouviram alguém a chamar:
- Ritma! Ritma!
- Sim, meu Rei. Sou eu.
Era Evenor II.
Mas alguém espreitava, boquiaberta, por detrás de uma grande coluna de pedra
cinza...

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Vítor Caldeirinha

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A Feitoria de Abul

Capítulo XXII
A Ilha de Aea

U ma semana antes, na ilha de Aea, no palácio real de Mestor I, o feroz, na cidade


de Altas, um grupo de homens ajoelhados ouve o seu Rei.
- Desde que o meu irmão soube que eu vou organizar esta expedição à ilha de
Urz, parece que não se fala de outra coisa no palácio de Antília, segundo me dizem
os espiões. Só falam no códice do conhecimento antigo e na expedição a Urz, que
também Evenor está a organizar, para lá chegarem primeiro.
Vamos enviar já os nossos trezentos homens para a ilha. Quero que seja uma
expedição rápida e quero ter o códice na minha mão no prazo de um mês.
- Mas Senhor, muitos perigos desconhecidos se nos vão colocar no caminho para
nos atrasar. Bestas gigantes, ao que falam, homens primitivos e outros animais e
perigos naturais.
- Não quero saber. Quero esse códice depressa, antes dos outros.
- Sim, meu Senhor.
Agora partam. Vão para os navios. Vocês são os meus melhores homens e de
vocês pode depender o sucesso nesta guerra.
Assim que saíram os generais da operação, incluindo o comandante supremo da
operação, um mágico novo na terra, Mestor mandou chamar o jovem que o aguar-
dava há várias horas no interior do palácio.
- Homem, vais já partir num barco comercial para Seden e vais avisar Elna, a
escrava pessoal do Rei Evenor, que a nossa expedição partiu hoje com trezentos
homens e que ela deve fazer tudo para integrar a expedição de Evenor e atrasá-la,
para que não passe do início ou se perca para sempre.
- Sim, Amo.
- Agora vai.

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A Feitoria de Abul

Capítulo XXIII
A Expedição de Seden

E lna ouviu, por detrás de uma coluna, o seu Rei chamar Ritma e sentiu voltar
aquele sentimento antigo de ciúme e raiva pelo qual havia anos que tinha passado,
devido a Ritma. E colocou-se em escuta...
- Querida Ritma, há quantos anos não te via.
- Meu Rei ! - disse Ritma surpreendida, fazendo uma larga vénia.
- Então, como te deste por terras atlânticas, do continente? E quem são esses teus
amigos estrangeiros?
Ritma contou todo o drama que havia passado, mas não sem soltar algumas
lágrimas.
- Estes meus amigos são de longe, das terras do Norte do continente e querem
encontrar o códice do conhecimento antigo de Urz, para poderem conhecer o ca-
minho de volta à terra deles. Sabes, a lenda do livro!
- Esse é um códice sagrado. Mas não é nenhuma lenda, é real. Pertence aos
antepassados dos atlantes, que vieram dos céus. E só nós, atlantes, podemos possuir
esse códice, lê-lo e compreendê-lo. O que querem do códice? - perguntou admirado
Evenor.
- Eu sou descendente de atlantes que foram para o Norte - disse Sara. - Assim,
poderei ler?
- Sim. Reconheço os traços ilhéus na tua face. Mas, o que pretendem do códice?
- Estamos perdidos há muitos anos, vagueando pelo continente, sem sabermos
onde fica a nossa terra. E um ancião avisou-nos que encontraríamos o caminho de
volta nas palavras do códice, ou junto ao local onde está guardado, em Urz - avançou
cautelosamente Andrade, como explicação aceitável, uma vez que o Rei nunca
compreenderia o que era uma máquina do tempo, que era na verdade o que eles mais
queriam encontrar, para além do códice.
- Pois então vieram no momento exacto em que eu preparo uma expedição a Urz.
Um velho também me disse que precisava do códice do conhecimento antigo para
fazer voltar a paz à Atlântida. E acabar com esta guerra de irmãos.
- Podemos ir convosco? Temos muitos conhecimentos mágicos que poderão ajudar
contra os perigos da ilha - Andrade acendeu um fósforo, deixando os atlantes estu-
89
Vítor Caldeirinha

pefactos.
- Muito bem, mesmo o que eu precisava. Está formada a equipa. Vocês e o
gigante, eu, Elna - a minha escrava - e uma equipa de dez homens da minha guarda
pessoal. Os meus exércitos estão em batalha no Mediterrâneo e não me poderão
acompanhar.
- Muito bem - disse o Professor.
- Mas muitos perigos desconhecidos nos esperam, dos quais só parte nos chegam
a partir de histórias que se ouvem. Muitos tentaram, mas nunca ninguém conseguiu
descobrir o códice do conhecimento antigo de Urz.
- Temos que ter muito cuidado - disse Andrade, vendo alguém na sombra da
coluna de pedra.
Elna, que tudo ouvira, manteve-se imóvel e imperceptível, ao que pensou. Sentiu
uma grande satisfação por Ritma não ir, mas ficou preocupada com as artes mágicas
dos forasteiros. Talvez a sua missão viesse a ser dificultada por aqueles intrusos.
- Bom, ficam duas noites em Seden para descansar da viagem e conhecerem a
cidade. Mas, depois partiremos. Ficam na minha casa real. E tu Ritma, ficas por
aqui?
- Sim, vou ver a minha mãe e voltar a percorrer a cidade, para ver se ainda está
igual. Farei de cicerone dos meus amigos durante a sua estadia.
- Está bem.
- Venham comigo.
Chegados à zona dos quartos de hóspedes do palácio real, uma serva indicou o
quarto de cada um.
- Descansem um par de horas e depois encontramo-nos aqui para fazermos uma
visita à nossa capital imperial, Seden.
- Até já.

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A Feitoria de Abul

Capítulo XXIV
Volta pela Cidade

A música dos tambores, que ecoava pelas ruas apinhadas de atlantes e gentes de
todas as raças, provinha da praça central da cidade, onde vários músicos e artistas
tentavam afincadamente ganhar o dia com o que de melhor sabiam fazer. Em redor
da praça, ao som de várias músicas misturadas, vendia-se peixe fresco em bancadas,
fruta, legumes, animais vivos e em carcaça, peças de artesanato, cestos e loiças.
O mercado diário do centro da cidade era o ponto de encontro para venda do
que se produzia na terra e nos arredores ou do que se trazia de além mar e para a
compra do que é necessário às pessoas. A cidade estendia-se por mais de três qui-
lómetros.
Bandos de miúdos corriam divertidos em redor dos artistas. Muitas pessoas
atarefadas carregavam cestos e sacos cheios à cabeça e em carroças, com as merca-
dorias para vender e trocar ou que já tinham comprado. Parecia uma medina árabe,
apertada e com um mar de gente e cheiros.
Andrade mal podia acreditar no que via. Sempre tinha tentado sonhar como seria
a vida numa cidade atlante e agora ali estava, no centro da capital, em 5050 a.C.
Os três amigos e Ogo, o gigante, percorreram a cidade guiados por Ritma, passando
pelo emaranhado de pessoas, que circulavam indiferentes aos desconhecidos. Era
uma grande metrópole, onde as pessoas estavam habituadas a ver de tudo.
- Há muito que não vinha a Seden e já não estou habituada a tanta gente, tanta
confusão - referiu Ritma fascinada e meio estonteada.
As casas tinham quase todas dois andares e telhados arredondados laranjas de
ouricalco, como que descrevendo "ns" pequenos em contínuo. No centro, todas as
casas tinham grandes portas abertas ao comércio, onde desfilavam mercadorias de
todo o império. Era o mercado das lojas.
Cada família do centro da cidade tinha uma loja onde vendia os produtos do mar,
do campo e as mercadorias que os navios traziam diariamente de todo o império.
Os amigos continuaram a andar e saíram da zona central da cidade, por entre
templos e monumentos, chegando aos arrabaldes de Seden.
No final da cidade fortificada, subiram à muralha e, do alto da torre, puderam
observar toda a planície fértil que circundava a cidade, a perder de vista, e que era

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Vítor Caldeirinha

abraçada por sete montanhas altas, cobertas de um manto branco de neve.


- Talvez tenha sido por isso que escolheram Lisboa para capital, entre as sete
colinas - gracejou Pedro Filipe.
Os primeiros dois mil metros de planície, em redor da cidade, eram cobertos
de casas mais pobres, de pedra e colmo ou só colmo e madeira, de formato redondo
e com o telhado de bico ao centro, onde deveriam viver as pessoas que trabalhavam
os campos.
Depois, seguiam-se terrenos sem fim, cultivados e irrigados por múltiplos ca-
nais, num misto pastel e verdes, recortados de vários tons, ora com árvores de fruto,
ora com plantas mais rasas ou cereais.
Olhando para trás, para o lado do mar, podia ver-se o porto feito de circunfe-
rências sucessivas de água e o palácio real ao centro, e um picotado de velas das
embarcações militares e de comércio, que entravam pela cidade adentro e acostavam
aos diversos cais.
Após darem uma volta pelos campos, regressaram ao palácio de Evenor, já can-
sados.
- Obrigado Ritma, agradecemos tudo o que fizeste por nós - disse Andrade.
- Adeus Ritma - Sara despediu-se com algum carinho e um beijo de especial
amiga de viagem. - Pode ser que um dia nos voltemos a encontrar, nem que seja
noutra vida ou noutra época.
- Amanhã ficamos no palácio a descansar e a preparar a partida com Evenor -
lembrou Pedro.
- Gostei de vos conhecer e agradeço a ajuda que me deram num momento difícil,
quando perdi o meu amor.
- Adeus Ritma.
No dia seguinte, logo pela manhã, Andrade resolveu dar uma volta pelo cais, para
ver como iam os preparativos da expedição, tendo rumado ao porto, com destino
à embarcação de Evenor.
Ao chegar junto do navio, que devia ter cerca de quarenta metros de comprido,
reparou na azáfama dos homens que faziam o carregamento dos haveres e das armas.
- Bom dia senhores.
- Bom dia. É o Sr. Andrade?
- Sim. Quase tudo pronto para amanhã? Temos ainda malas para trazer.
- Tragam tudo hoje.
- Assim farei senhores. Estão optimistas?
- A minha mulher tem medo. Mas eu estou desejando ir. É pelo meu Rei e pelos
meus.
Repentinamente, um pequeno barco a remos saiu por detrás do navio e partiu
rapidamente na direcção oposta ao cais, não deixando reconhecer os dois vultos
encapuçados que remavam ansiosamente.

92
A Feitoria de Abul

Capítulo XXV
A Ilha de Urz

E ra o dia da partida para a grande aventura de Urz. Todos estavam apreensivos


com os possíveis cenários de desfecho da viagem, sob o peso das histórias que ti-
nham ouvido, mas ninguém falava no assunto. Apenas se notava nas faces.
Os homens de Evenor faziam os últimos preparativos, arrumando a carga no
porão da embarcação. A chuva miudinha que, ora caía, ora parava, deixava antever
que o destino não seria fácil, pois nem o tempo ajudava.
Ogo, Elna, Evenor e os três amigos viajantes do tempo assistiram aos trabalhos
a partir de terra, junto às famílias, mulheres e crianças, dos homens do Rei, que
choravam e queriam passar estas últimas horas com os seus. Evenor deixara claro
que, caso não regressasse, o seu primo e fiel amigo, Fernol, deveria ficar com os
comandos do reino e as famílias dos homens que desaparecessem, ou padecessem,
deveriam ser altamente recompensadas.
Três horas mais tarde, todos estavam a bordo para a partida, tendo passado as
sucessivas muralhas do porto e da cidade, desde o palácio real, até ao mar.
- Que perigos sobre-humanos nos esperam? - questionava-se Evenor, olhando
magnânimo para o mar. - Mas que poderes poderemos vir a possuir?
- Estamos preparados para tudo, meu Amo - lembrou Elna.
Passadas apenas cinco horas de viagem, já se avistava o cume do vulcão central
de Urz, que se elevava a quase quatro mil metros, no epicentro da ilha de quarenta
quilómetros de raio.
Para lá da costa, toda escarpada e impenetrável, esculpida pelas ondas gigantes,
encontrava-se uma vasta floresta serrada e salpicada de cumes rochosos menos ele-
vados, que se cobriam e descobriam com a passagem constante de um manto de
nuvens intermitentes, que adensavam o mistério e não facilitariam certamente o
caminho que era preciso percorrer.
Dizia-se que o códice estava no centro da ilha, no vulcão.
- Majestade, Majestade! Entra água no porão a jorros - gritava um dos homens
da tripulação.
- Não podem tapar?

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Vítor Caldeirinha

- É muito grande. Vamos afundar.


- Mas não batemos em nada?! O que se passou?
Seguiu-se uma tragédia marítima, com o navio a afundar nas ondas e os homens
a saltarem para o mar, agarrando-se ao que podiam.
Felizmente, com a ajuda dos deuses atlantes, só se perdeu um homem, que levou
com uma parte da carga na cabeça, que se desfez. Os restantes, ao todo quinze, foram
atirados para uma pequena enseada rochosa da ilha.
Depois de descansarem, recolheram os equipamentos e os mantimentos que ali
chegaram e montaram as tendas da primeira base de apoio, cobertas de ramos e
folhas, pois a maioria dos equipamentos tinha sido dada como perdida.
- Começamos mal - disse Pedro estafado.
- Que azar - Ogo sempre tivera mau pressentimento em relação ao mar.
- Devem ter sido uns sabotadores que vi ontem, junto ao barco, num bote. Nunca
imaginei que quisessem afundar-nos - desabafou Andrade.
- Devem ter sido os lacaios do meu irmão, para impedir a nossa expedição. Não
foram querida Elna?
- Eu? Eu não! Sou-te fiel Evenor.
- Deixa-te de mentiras. Os meus espiões já me tinham avisado. Que anda Mestor
a preparar?
- Nunca direi nada.
- Se amas a vida, diz - os guardas apontaram as armas pontiagudas.
- Eu falo. Eu falo.
- Então?
- Foi Mestor que me pagou para eu te espiar, mas mantém a minha mãe presa.
Mata-a se eu não quiser espiar-te.
- Que sabe ele do códice?
- O mesmo que tu. Soube da tua expedição e já preparou uma com trezentos
homens. Deve ter chegado ontem a Urz.
- E quem sabotou o barco?
- Foram dois estrangeiros. Um tal de Francisco. O novo mágico de Mestor, que
diz que o ajudará a descobrir o poder do códice e que comanda a expedição como
general supremo.
- Francisco? - Andrade estava estupefacto. - É um malfeitor da nossa terra, que
quer o códice para fazer o mal - Andrade não podia explicar mais.
- Queriam acabar comigo ou convosco no mar? Ou com todos. Temos que ter
cuidado com eles - advertiu Evenor.
Enquanto dizia isto, sem que houvesse a menor brisa no ar, uma lenta e ruidosa
onda de vento varreu a copa da floresta próxima do acampamento, assustando todos
os presentes.
- O que será isto? - questionou um dos homens de Evenor, olhando para um lado
94
A Feitoria de Abul
e para o outro.
Ficaram em silêncio durante uns dez minutos.
Subitamente, um velho muito magro, surgiu do nada, com roupas esfarrapadas
e apoiado num cajado.

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Vítor Caldeirinha

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A Feitoria de Abul

Capítulo XXVI
O Velho de Azaes

-O
Azaes.
que querem daqui? Vão-se embora enquanto é tempo. São mal vindos a

Os homens de Evenor juntara-se em redor do Rei, preparando a defesa dum


potencial perigo que viesse com o velho.
- Não ouviram? Vão desta ilha.
- Quem sois? - Ogo avançou lentamente para o homem.
- Não interessa, não me assustas homem grande. Venho avisar-vos que a ilha não
vos quer aqui. Ide enquanto é tempo e se não quereis sofrer represálias.
- Ficámos sem navio. Temos que construir outro - disse Andrade.
- Apanhem o homem - ordenou Evenor.
Mas o velho desapareceu rapidamente pelo meio da floresta, sem deixar rasto.
- Quem seria?
- Um dos habitantes da aldeia local, Azaes. Vivem junto ao mar e nunca arris-
caram ir ao centro da ilha. Os que foram não voltaram. E são avessos ao contacto.
- Onde está Elna? - perguntou o Rei.
- Desapareceu no meio da confusão criada pelo velho - disse um guarda.
- Julga que encontrará a expedição de Mestor. Mas com os perigos da ilha, di-
ficilmente sobreviverá muito tempo - Evenor não demonstrava qualquer compaixão.
- De que perigos e ameaças falaria o velho?- perguntou Sara.
- Não sei amigos. Veremos. Falam em bestas gigantes e homens primitivos, entre
outros - referiu um guarda.
- Vamos pernoitar e amanhã veremos - ordenou o Rei. - Cinco homens ficarão
aqui à procura de embarcações perdidas, ou a construir uma jangada, caso nada
achem, e outros quatro virão connosco para o interior da ilha. Tirem à sorte.
- A jangada é uma hipótese. As correntes levam-nos a casa de certeza - disse um
dos homens.

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Vítor Caldeirinha

No dia seguinte, o grupo dividiu-se como Rei dissera, tendo partido Ogo, Andrade,
Pedro, Sara, Evenor e quatro guardas.
Depois de andarem com grande dificuldade durante alguns minutos, voltaram
a ver o velho ao longe, que os observava a boa distância, de cajado na mão. Gritaram
e correram durante algum tempo no seu encalço, novamente sem sucesso.
Entretanto, chegaram a uma zona mais húmida e escura, onde não se ouvia o
cantar de qualquer pássaro, mas apenas o movimento e o vergar da árvores.
Seguiram passo a passo, por onde pensavam que o velho teria ido. Surgiu então
um clareira, no sopé de um grande monte rochoso cinzento. Foi nessa altura que
viram algo que os deixou boquiabertos.
Destroços de vários navios espalhados pela terra, num espaço de cem metros.
- O que será isto? - perguntava-se Pedro baixinho, fascinado e extremamente
assustado.

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A Feitoria de Abul

Capítulo XXVII
A Civilização Antiga

À medida que avançavam por entre os escombros das embarcações, apodrecidas


e entremeadas por vegetação rasteira, mas densa, viam alguns esqueletos mutilados
de homens e cavalos.
- Os cortes nos ossos são de garras e dentes de animais e não de espadas ou facas
- disse Andrade assustado.
Provavelmente, terão naufragado com os navios terra adentro, impelidos por
fortes ondas de tempestade ou por outras forças sobrenaturais. Os corpos poderiam
ser sido comidos vivos ou já mortos.
Depois das embarcações, apareceu um fosso com mais de vinte metros de lar-
gura, não sendo possível adivinhar a sua profundidade, devido à intensa vegetação.
Olhando em volta, viram uma ponte metálica.
- Mas é uma ponte moderna - reparou Sara.
- É muito estranho - disse Evenor. - Não temos nada disso na nossa engenharia.
A ponte era feita de um estranho metal quase transparente. Talvez uma mistura
entre cristal e metal.
- Parece que temos aqui uma obra de uma civilização perdida muito avançada
- reflectiu Pedro.
- Avancemos - ordenou Evenor.
Passada a ponte, entraram por uma espécie de grande portão na rocha, tendo
chegado a uma gigantesca e escura antecâmara subterrânea. Os três amigos ligaram
então as suas lanternas, tendo deixado os restantes muito admirados com o seu
poder. Uma escadaria redonda, escavada na rocha com um rigor espantoso, subia
por um pequeno túnel sem fim à vista.
Em redor da sala, grandes estátuas metálicas de guerreiros equipados de forma
estranha, apontavam pequenas armas para a entrada da gruta, como que defendendo
o seu interior de possíveis intrusos.
Subiram pelas escadas durante algum tempo. No final, encontraram uma cratera
central do monte, resultante de um antigo pequeno vulcão. O que viram deixou-os
aterrados.

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Vítor Caldeirinha

Uma cidade subterrânea, escavada na rocha, em redor de um grande lago inte-


rior, com uma tecnologia muito avançada.
- Esta é a maior descoberta de todas - Andrade estava fascinado. - Afinal sempre
se comprova a teoria da civilização perdida muito avançada dos Lemures, que ori-
ginou todas as outras.
- Sim, nós os atlantes somos os eleitos. Somos os primeiros descendentes dos
homens que vieram do céu e viveram em Urz - ensinou Evenor.
- Do céu? Do espaço?
- Sim.
- Mas ainda voltam? Têm contactos com eles?
- Já não temos. Desapareceram há alguns milhares de anos. Há dez mil anos,
penso. Eles desceram dos céus em navios há vinte mil anos e fundaram a sua cidade
em Urz. Misturaram-se com os homens que aqui estavam e reproduziram uma nova
espécie. Um homem muito inteligente. O povo atlante. Só depois nos fomos mis-
turando com os povos mais atrasados do continente e se espalhou a espécie humana
em redor do Mediterrâneo.
- Sim! Eu sei que em 25 mil a.C. existiam seres miscigenerados, resultado do
cruzamento do homem de Neardental (seres próximos dos macacos que existiam)
e o homem de Cro-Magnon (o homo sapiens sapiens). Mas nunca pensei que tam-
bém se misturassem seres externos ao planeta. Aliás, Pedro, Conheces o menino de
Lapedo?
- Sim.
- Foram desenterrados no local inúmeros homens com traços miscigenerados,
que depois se foram perdendo ao longo de milhares de anos. Se calhar, alguns dos
traços eram extraterrestres. E só agora poderemos perceber.
- O que aqui se vê, casas, pontes, veículos, tudo destruído, são evidências no
meio da vegetação, de que tinha que ser um povo muito avançado - disse Pedro.
- Sim, eram mágicos. Poucos conhecimentos ficaram deles. O uso de metais
preciosos e pouco mais. Herdámos a sua organização e o sistema monetário, segun-
do dizem os escritos - explicou Evenor.
- É impressionante! - exclamou Sara - mas o que lhes terá acontecido? Fugiram
ou morreram?
- A lenda diz que voltaram à sua casa e que, daqui a muito anos, regressarão para
levarem os melhores guerreiros de nós para o paraíso, para ajudar no combate contra
o mal universal - disse um guarda.
- Vamos visitar a cidade, ou que resta dela - pediu Andrade.
As portas eram feitas de uma espécie de fibra resistente e inquebrável. Mas
algumas estavam abertas. Ao entrarem, viam-se ecrãs partidos, zonas de repouso,
luzes apagadas.
Quem seriam? De onde eram? Qual o seu objectivo? Onde estavam agora? Os
nossos aventureiros não paravam de se interrogar.

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A Feitoria de Abul

De um momento para o outro, um pequeno animal surgiu na porta da sala onde


estavam. Tinha três patas de cada lado e um aspecto muito agressivo, como que a
estudar as reacções e as armas dos adversários, pronto a atacá-los.
O animal tinha uma tonalidade de pele castanha claro, com uma boca pequena
e enormes olhos, com um formato de corpo couraçado e arredondado, como que
um insecto, embora mais parecesse um mamífero.

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A Feitoria de Abul

Capítulo XXVIII
Os Homens Primitivos

O animal não mostrava qualquer receio quer das lanças quer do número de
inimigos humanos que tinha pela frente. Estava criada uma situação difícil de im-
passe em que cada lado avaliava cuidadosamente o outro, com elevado nível de
adrenalina.
Sem dizerem nada, os homens de Evenor juntaram-se à sua frente, em formação
de "V", defendendo o seu Rei e tentando atacar o animal. Mas o bicho atacou primeiro.
O homem que estava mais à frente nem teve tempo de se aperceber, quando o
animal se atirou à sua cara e lhe sugou rapidamente o cérebro pelos orifício dos olhos,
num abrir e fechar destes.
De imediato, Andrade sacou a sua arma que guardara durante este tempo todo,
pedindo para que funcionasse como deve de ser, e disparou um tiro certeiro bem
na cabeça do animal, o qual fugiu muito depressa, largando líquidos de várias cores
pelo chão e procurando um local para morrer escondido.
Todos estavam horrorizados como que tinham visto pela primeira vez nas suas
vidas e alguns espantados com o tiro que os salvou.
- Assustaste-o com o ruído dessa coisa pequena - disse Evenor.
- É uma pistola que lança pontas de seta metálicas - explicou - mas de onde veio
este bicho, há certamente muitos mais.
- Sim fujamos daqui enquanto é tempo - pediu Sara.
- Vamos, vamos - disse Evenor.
E fugiram dali muito rapidamente, entrando pela floresta adentro, sem saberem
o que mais iriam encontrar, mas retomando a direcção ao centro da ilha.
- Andrade, que será aquele animal? - perguntou Pedro.
- Penso que é um ser extraterrestre, deixado pela antiga civilização, por engano
ou de propósito. Talvez tenha destruído a comunidade que aqui vivia. Por isso fu-
giram. Não sei. Mas percebi que o animal não se arrisca a ir à aldeia junto ao mar.
Talvez não goste de água salgada.
- Para a próxima trazemos água para ver o que sucede.
- Sim - respondeu Andrade a Pedro.

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Vítor Caldeirinha

E lá continuaram a sua caminhada por várias horas, até anoitecer, quando


montaram o seu acampamento nocturno e decidiram descansar, embora sempre em
grande sobressalto.
"Conseguiremos atingir o nosso objectivo? Saberemos o que diz o livro do
conhecimento antigo?" era o que ia na cabeça de todos.
Os nossos amigos pensavam ainda: "voltaremos a casa? O livro poderá salvar a
humanidade?".
No dia seguinte, logo de manhã, o dia estava enevoado e misterioso. Os vários
montes cónicos, quase pelados que se podiam observar no horizonte, até ao monte
central da ilha, muito mais elevado, praticamente o dobro dos restantes, eram ro-
deados por uma floresta baixa densa.
Poderiam subir e descer os montes, num percurso muito maior ou poderiam ir
pela floresta, onde a vegetação densa dificultava em muito o passo.
Ainda faltava pelo menos mais um dia e meio de caminhada intensa e de perigos
inimagináveis naquela ilha estranha e fantástica, ao mesmo tempo.
Puseram-se ao caminho muito cedo, logo que desmontaram o acampamento. A
beleza agreste do contraste entre os montes descabelados e o emaranhado verde da
superfície, mais a baixo, adensava a atmosfera de receio que os inundava cada vez
mais.
Depois de muito caminharem, apareceu-lhes pela frente um grande fosso que os
impedia de atravessar para o centro da ilha. Apesar de terem tentado andar para um
lado e para o outro, não havia maneira de o atravessar.
Depois de muito tentarem, descobriram uma longa ponte de corda que permitia
a passagem de um homem de cada vez por cima do fosso, acabando no interior da
selva do outro lado, não se percebendo se a outra margem era ou não segura.
Depois de hesitarem, resolveram atravessar. Mas ao primeiro passo, um dos
homens de Evenor partiu uma das cordas que seguravam a ponte à margem. Ogo
apercebeu-se e conseguiu segurar a corda a tempo.
Assim, enquanto Ogo agarrava a corda, todos os companheiros atravessaram a
ponte seguros, chegando ao outro lado. Ogo foi o último.
Quando atravessou, a ponte rebentou todas a cordas com o seu peso, caindo na
encosta do outro lado do fosso, levando Ogo uma forte pancada, que no entanto não
foi suficiente para o fazer cair. Apesar disso, teve que se agarrar às pedras e aproveitar
uma das saliências para descansar do choque.
Passados cerca de 30 minutos, Ogo recuperou as forças e subiu pela ponte caída
acima, utilizando as mãos e os pés como se fosse uma escada. Os seus amigos já
deveriam estar em cuidados, mas ninguém tinha descido à sua procura.
Ao chegar ao cimo, verificou que ninguém estava no final à sua espera. Que teria
acontecido? Teriam desistido que esperar e continuado, pensando que morrera ao
cair na falésia?
Sem perceber, procurou indícios em redor e viu pegadas na floresta de muitos
seres com pés mais largos do que os dos humanos, embora menores que os seus.

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A Feitoria de Abul

Os seus amigos tinham certamente sido raptados.


Seguiu o rasto deixado e pouco tempo depois posicionou-se a meio de um ponto
elevado, observando uma aldeia de casas primitivas escavadas na rocha, com foguei-
ras e centenas de homens-macaco.
No meio deles, os seus amigos estavam presos em grandes jaulas de madeira no
exterior e não havia sinal de Sara. Que poderia fazer para libertar os seus amigos sem
se deixar apanhar?
- Pedro! - gritou Andrade com dificuldade - Pedro. Para onde levaram a Sara?
- Parece que foi para uma das grutas.
- O chefe deve querer possuir a fêmea capturada. Parecem os homens de Neardental,
tendo em conta as suas vestes. Desapareceram em todo mundo e toda a Europa em
cerca de 28.000 a 30.000 a.C., mas devem ter subsistido aqui até este data. Impres-
sionante, mas talvez não nos safemos desta.
Enquanto todos os homens primitivos gritavam, os nossos amigos foram levados
para uma espécie de arena rodeada de grande pedras altas, tipo Stonehenge.
De mãos libertas, mas assustados no meio daquela multidão medonha, os nossos
amigos não percebiam o que lhes iria acontecer. A expectativa era enorme.
De repente, os homens primitivos trouxeram uma enorme besta de dentro de
uma das grutas, que apesar de andar em dois pés, tinha chifres e uma grande boca
cheia de dentes afiados.
A besta vinha atiçada, mas presa por cordas e picada pelas muitas lanças dos
homens que a empurravam para a arena. Tinha cerca de três metros de altura e um
corpo que lhe devia conferir quatrocentos a quinhentos quilos.
Durante alguns minutos Evenor, os seus homens, Andrade e Pedro conseguiram
fintar a besta, mas um dos homens de Evenor foi apanhado e decapitado pelos dentes
do monstro.
O corpo caiu inerte, ficando a jorrar sangue.
Quando a besta avançou para os restantes, ouviu-se um ruído vindo da multidão.
Alguns do homens primitivos iam pelo ar, sem se perceber o que se passava.
Por fim, Ogo, armado de duas espadas que sempre trazia à cintura, surgiu no
meio da multidão que fugia à sua passagem, e entrou na arena, para surpresa dos
amigos.
A besta e Ogo olharam-se das suas elevadas estaturas, prontos para se enfrentarem.
A besta foi a primeira a avançar.
- Ponham-se atrás de mim - disse aos seus amigos.
E avançando também com as espadas em punho, passou pela besta e tornou a
voltar, cortando um dos braços do monstro, sem ter um arranhão.
A besta irritada atacou de novo, mas desta vez arrancou a mão esquerda e uma
das espadas de Ogo.

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A Feitoria de Abul

Capítulo XXIX
O Templo dos Céus

-V ais ver o que é bom - gritou Ogo.


Avançou novamente e, com artes que só os gigantes deveriam conhecer, conseguiu
cortar a besta em três partes, que caiu pintando a areia de abundante sangue verde.
Os homens primitivos, que nunca tinham visto um humano gigante, e muito
menos imaginavam que alguém poderia matar a sua besta centenária sagrada, fica-
ram muito assustados e desataram a fugir por onde podiam.
Os amigos, aproveitando a confusão, libertaram Sara de um gruta próxima,
apanharam os seus haveres e embrenharam-se mais uma vez na selva, fugindo do
perigo ultrapassado.
Reduzidos a sete, avançaram pela floresta e acamparam para passar a noite que
se aproximava, num local já muito próximo do sopé do monte vulcânico central da
ilha de Urz. O vulcão expelia regularmente um bafo de fumo negro.
Perante aquele cenário e sentados junto à fogueira no seu acampamento, pude-
ram assistir espantados ao surgimento de dinossauros gigantes que, ao longe, comi-
am ervas e folhas das árvores.
- Professor, como podem existir nesta data. Não se extinguiram muito antes no
Continente? - questionou Pedro.
- Sem dúvida. Ou esta ilha ficou protegida do evento que extinguiu os restantes
dinossauros por todo o mundo, ou os homens da estrelas que aqui estiveram qui-
seram brincar como deuses e recriaram estes animais a partir do ADN dos fósseis
que acharam.
Na manhã seguinte chegaram finalmente ao vulcão principal da ilha. A meio da
encosta vislumbraram um tipo de convento velho e abandonado, semelhante aos
budistas, enredado por vegetação que o cobria quase todo. Um caminho antigo em
forma de rampa, levava à sua entrada principal.
Ao subirem, puderam ver os três leões de pedra gigantes, com dez metros de
altura, que guardavam a entrada. Que mistérios estariam no seu interior assim guar-
dados? Era um templo dos céus.
Entraram com facilidade e sem oposição, contrariamente ao que imaginaram.
Viram um salão muito grande, com archotes acesos por todo o lado. Ao centro,
107
Vítor Caldeirinha

um livro com um metro por um metro e a espessura de uma mão aberta, permanecia
aberto dentro de uma espécie de redoma de vidro inquebrável, protegido.
- Que maravilha!- exclamou Andrade.
- É o Códice do Conhecimento Antigo de Urz! - gritou Evenor - levem-no.
Mas verificaram que era impossível quebrar o vidro e arrancar o livro para o
levarem.
- Esperem.- O professor começou a ler as inscrições antigas e a tentar decifrar.
- Penso que consigo. Preciso de tempo.
- Professor, o códice está aberto numa página com o desenho da máquina do
tempo - disse Sara.
- Já vejo.
Passados alguns minutos, o Professor começou a carregar em vários locais da
parede e, repentinamente, o vidro subiu.
- Já está.
- Obrigado Professor - Francisco surgiu por uma porta com o seu colega, com
uma arma automática nas mãos. - Ninguém se mexa e ponha a sua arma no chão.
Explique-lhes o que é uma arma Professor.
- Evenor, não se mexa, pois é uma arma de fogo como a minha, mas mais po-
derosa - disse, enquanto deitava a sua pistola para o chão.
- Tenho cem guerreiros que rodeiam o convento. Foram os que sobraram de
trezentos com que chegámos. Os outros foram mortos por criaturas estranhas da
ilha. Não podem sair daqui com vida. Mestor vai ter a sua vingança familiar. Nem
precisa do Códice. Mas eu preciso.
Enquanto dizia isto, disparou contra os dois guardas de Evenor, que estavam
imobilizados no chão do salão.
- Professor, Evenor fica, mas se quiser podem vir connosco para 2050 d.C, mas
levamos o códice nós. Preciso de si para o ler. A parte em que estava aberto diz que
a máquina do tempo está já colocada na zona do Pinhal Novo, num templo dentro
de uma gruta. Tem ali o mapa.
- Nem pense. Nós vamos, mas você não sairá jamais deste tempo.
- Não têm hipótese - disse Francisco.
Entretanto, os homens de Mestor foram entrando e prenderam os amigos, levan-
do-os de volta para a costa marítima, onde os navios os esperavam.
- Ok. Ganharam Francisco. Que quer de nós.
- Estude o livro durante a viagem e depois diga-me coisas. Tem pouco tempo.
Agora vamos voltar apara a ilha Aea, para a cidade de Atlas. Evenor estava desolado
por ficar à mercê dos homens do seu irmão.
Mas, já na praia, durante a noite, Evenor conseguiu fugir ajudado pelos seus
restantes homens, que perceberam o que se passava e acorreram com um plano de
fuga para o seu Rei.

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A Feitoria de Abul

Capítulo XXX
A fuga dos Atlantes

A ilha de Aea surgiu no horizonte do mar azul escuro, como uma pequena faixa
negra balanceando ao ritmo da embarcação. Aos poucos foi-se aproximando.
A ilha era rochosa, impenetrável por mar, sem praias, excepto numa bacia com
uma pequena entrada entre duas altas rochas. Lá dentro, uma grande bacia com uma
extensa praia e um porto comercial e militar, ao centro.
A cidade de Atlas, capital do império de Mestor, estava localizada por detrás do
porto, protegida com muralhas negras. Os telhados negros das casas contrastavam
com as paredes brancas caiadas.
O céu estava escuro e o tempo ameaçava piorar a qualquer momento.
Enquanto se aproximavam do porto, Francisco questionou Andrade sobre o que
tinha aprendido com o códice, durante toda a viagem.
- Desembuche Professor. Que segredos tem o livro para nos revelar?
- Nada do que julgas. Não fala sobre tecnologia. Bom, mas não tenho nada a
perder. Precisamos de trabalhar em conjunto para sairmos daqui - Andrade não
confiava em Francisco, mas achou que face à situação, esta seria a melhor estratégia
no momento.
- Então, Professor? - Sara queria saber.
- O livro relata a origem do universo e a origem da vida. E prediz o futuro.
- É uma espécie de Bíblia? - perguntou Pedro.
- Não. Faz revelações muito interessantes. Primeiro refere que o nosso universo
está cheio de estrelas e planetas plenos de vida. O nosso universo é um entre muitos
que ora competem, ora se unem uns com os outros, para sobreviverem e se repro-
duzirem. O nosso próprio universo formou-se de uma explosão fruto de um "encontrão"
físico entre as membranas externas dois universos pré-existentes, já maduros, de
forma premeditada.
- Como é possível Professor? Isso é treta - disse Francisco.
- Cada universo tem as suas leis físicas, diferentes uns dos outros, funcionando
em dimensões e noções de tempo diferentes. O nosso universo é ainda muito novo.
Primeiro formou-se a parte física das partículas, depois evoluiu a parte química, das

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Vítor Caldeirinha

moléculas compostas por relações mais complexas entre partículas, depois surgiram
as grandes estrelas tipo Pop III, as galáxias e os planetas e só depois apareceram os
seres vivos, compostos de relações mais complexas entre moléculas, o ADN, etc.
Finalmente surgiu a inteligência, os seres inteligentes e as sociedades organizadas
tecnológicas de seres, compostas de uma relação mais complexa entre seres vivos e
entre os seres vivos e a matéria, a química e a vida.
- Mas a vida surgiu onde?
- Espontaneamente em muitos lugares do universo, com diversos formatos, mas
com traços comuns. A vida saltou de planeta em planeta, não se conteve face às
distâncias. Quer na sua forma celular, quer na sua forma de sociedades de seres
inteligentes, a vida expandiu-se de planeta para planeta e de galáxia para galáxia,
dominando a matéria, a química, a vida e, cada vez mais, o próprio universo.
- E na terra, como surgiu a vida? - perguntou Sara novamente.
- Ao que parece, foi trazida por cometas ou flutuou pelo espaço até aqui na forma
mais primitiva, tendo-se desenvolvido até ao ser humano arcaico. Mais tarde, os
seres que estiveram na Atlântida, há trinta mil anos, deixaram mestiços, que deram
origem ao homem moderno. O objectivo deles foi colonizar a terra com seres in-
teligentes. No futuro virão aqui buscar reforços para colonizar outras galáxias e
vencer algumas outras formas de vida inimigas que também colonizam planetas.
- Mas tudo isto vai-nos levar onde? - Pedro estava admirado.
- Segundo o Códice do Conhecimento Antigo, os seres vivos que consigam
colonizar o universo todo sofrerão alterações de determinada ordem e dimensão que
não consigo perceber e ficarão a comandar os destinos deste universo, então já
maduro, e as suas relações com outros universos, sejam de luta, de sobrevivência
ou de reprodução dos universos. Quem escreveu o livro desconhece o objectivo final
dos universos que não seja de aumento do seu número, a expansão da área ocupada
pelos do mesmo tipo e a obtenção da maior quantidade de recursos e de energia
possível. Provavelmente, ultrapassado um certo patamar, o códice refere que deverá
haver um salto de alteração para uma nova dimensão de "vida superior", fruto do
aumento da complexidade das relações entre universos. A esse patamar poderá ser
formada uma nova unidade física básica gigantesca, composta por universos unidos,
uma corda vibrante gigante, e começará tudo de novo: física, química, vida, inte-
ligência, universos maduros e nova corda básica.
- Ficamos na mesma, mas a uma escala maior, não é? - diz Francisco.
- Sim. Não existe objectivo, mas apenas energia e criar mais complexidade a cada
vez maior escala, testando, seleccionando e procurando a melhor forma para esta-
bilizar, dominar e expandir-se sobre o espaço da não energia.
- Já tinha ouvido falar na teoria das cordas que une as forças todas da natureza:
a forte, a fraca, a electromagnética e a gravidade. É uma partícula muito pequena,
uma corda vibratória, que constitui todos os quarks e a própria energia - disse Pedro.
- Sim - confirmou Andrade. - O nosso objectivo é contribuir para fazermos parte
de uma corda gigante, que por sua vez fará parte de partículas maiores de um uni-
verso gigantesco. É a luta da energia para vencer a não energia.

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A Feitoria de Abul

Ao dizerem isto, o barco aproximou-se do porto e puderam ver as casas quase


todas destruídas e uma multidão de gente de um lado para o outro, procurando lugar
nos barcos que estavam acostados.
- Fiquem aqui, eu vou ver o que se passa - ordenou Francisco, enquanto saltava
para um pequeno bote que tinham colocado dentro de água.
Passados 25 minutos de interrogação e desespero, Francisco voltou de terra.
- Homens, os barcos ficam ao largo por questões de segurança. Cada homem
poderá ir buscar a sua família de forma ordenada e vamos acolher algumas famílias
da nobreza.
- Mas o que se passou? - perguntaram os homens.
- Desde que tirámos o Códice da ilha de Urz, todas as Ilhas Atlântidas tem sido
varridas por tempestades, terramotos e maremotos constantes. Os sacerdotes dizem
que é a vingança dos Deuses e que a ilhas vão ser engolidas pelo mar. Eu não tenho
dúvidas.
- Mas que deuses? - perguntou Andrade. - Deve ser algum mecanismo de des-
truição das ilhas, deixado pelo extraterrestres. Bombas atómicas ou algo assim. Mas
porquê ?
- Meu Deus, estamos no momento de desaparecimento da Atlântida - gritou
Sara.
- Que horror! - Pedro e Ogo estavam em pânico também.
Os homens começaram a chorar e a gritar pelas famílias. Estariam vivas?
- Têm 20 minutos para irem buscar os familiares que estiverem vivos e partire-
mos para Abul. Mestor já foi para lá. Nada sabemos sobre Seden, a ilha irmã.
Ao ouvir aquilo, um dos homens de Mestor tirou o Códice das mãos de Andrade
e lançou-o ao mar, tendo sido de imediato traspassado por uma bala de Francisco.
- Que perda para a humanidade. Não quero exaltações. Corram para os botes.
O amigo de Francisco lançou-se ao mar, mas já era tarde, o códice havia sub-
mergido para sempre nas águas escuras e profundas da baía.
- Vamos ver se assim acaba a maldição para as nossas gentes - gritou um dos
homens de Mestor.
- Vamos para Abul. Esqueçamos o códice. Professor, será que conseguimos
encontrar a máquina do tempo e regressar a casa? - Perguntou Francisco.
- Penso que sim. O livro referia a sua localização, perto do local onde surgirá um
dia o Pinhal Novo. Vamos lá.

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A Feitoria de Abul

Capítulo XXXI
O Fim da Atlântida

A ntes de abandonarem o planeta terra, o extraterrestres tinham deixado o códice


do conhecimento antigo guardado na ilha de Urz e tinham feito um acordo com os
atlantes. O Códice só poderia ser utilizado pela humanidade, e pelos atlantes, dali
a 10.000 anos, quando fosse necessário para a expansão do homem para fora do
Sistema Solar, permitindo enfrentar os perigosos habitantes dos sistemas em redor.
Os atlantes foram então avisados que caso se apoderassem do livro antes daquele
prazo, as consequências seriam desastrosas, incluindo o desaparecimento do mundo
que conheciam.
E assim foi. Logo que o livro foi retirado do seu local, foram accionados meca-
nismos de destruição das ilhas Atlantes, incluindo Urz. Passadas vinte e quatro horas,
registou-se a primeira explosão gigantesca no mar, provocando tremores de terra
sucessivos que fizeram desabar muitas das casas das ilhas e formou-se uma onda
gigante, de dez metros, que varreu as ilhas, matando uma grande parte da população.
As explosões foram-se repetindo, cada vez mais próximas e mais intensas. As
pessoas gritavam e fugiam para todo o lado e para lado nenhum. Só por sorte alguns
escapavam às derrocadas, aos incêndios e às ondas gigantes.
Seis horas após o último dos navios intactos ter abandonado Seden e Atlas, deram-
se as explosões no centro das ilhas, cuja terra se espalhou num raio de vários qui-
lómetros, dentro de água, desaparecendo no fundo dos oceanos, ficando apenas os
vestígios dos actuais bancos de areia do Gorringe, ao largo de Portugal.

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A Feitoria de Abul

Capítulo XXXII
A Batalha Final

P assados alguns dias, os navios comandados por Francisco chegaram a Abul. No


Estuário do Sado, centenas de embarcações cruzavam-se nas águas calmas, para
descarregarem refugiados atlantes.
Milhares de pessoas tinham desaparecido ou morrido nas tormentas que asso-
lavam as ilhas Atlantes. Mas outros milhares tinham escapado e espalhavam-se pela
ilha de Tróia e pela margem Norte do Rio Sado, desde Alcácer até ao Portinho da
Arrábida. Tendas estavam montadas por todo o lado e as fogueiras enchiam os céus
de fumo. Todos queriam ficar junto à praia para verem chegar os familiares pelo mar.
Os três amigos, Ogo, Francisco e o seu amigo, desceram para terra, juntamente
com os homens de Mestor e as suas famílias.
- As ilhas deverão estar quase a desaparecer para sempre, no fundo dos oceanos
- comentou Sara.
- É verdade, assistimos à maior tragédia da história dos seres humanos - referiu
Andrade.
- Adeus amigos. Vou ter com o meu Sacerdote ao Monte Sagrado - Ogo tinha
muitas saudades do seu monte, de onde podia ver tudo até trezentos quilómetros,
em todas as direcções. - Vou acompanhar isto lá de cima.
- Adeus amigo. Obrigado por tudo - disse Sara chorosa.
- Adeus, até sempre. Vão para a vossa terra, mas voltem...
Os homens de Mestor e de Evenor tinham formado pequenos aglomerados em
aldeamentos diferentes, mas tinham feito tréguas de não agressão, pois estavam
muito ocupados a comandar as equipes de salvação, de tratamento dos feridos e de
obtenção dos recursos de água e alimentares necessários à sobrevivência do que
restava dos seus povos.
No meio desta confusão, os três amigos, e os seus dois inimigos, colaboravam
e conseguiram escapar para o interior da floresta sem que as forças dos reis dessem
por isso, caminhando durante a noite até à zona de Pinhal Novo, que na altura era
uma densa mata de grandes arbustos.
- Deve ser por aqui, se bem me lembro das indicações do códice - O Professor
Andrade guiava-se pela sua bússola electrónica, sem perceber bem como iria encon-
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Vítor Caldeirinha

trar a máquina.
- É ali - ouviu-se.
- Onde Pedro?
- Ali naquelas rochas. Vejo uma espécie de entrada tapada com arbustos.
- Vamos até lá.
Desviaram a vegetação e entraram num túnel estreito em escadaria para baixo.
Depois de muito descerem, depararam com a sala onde tinham estado anteriormen-
te. "Aí está!"
Era uma sala redonda com dez metros de altura e cerca de vinte metros de di-
âmetro, sendo visíveis inscrições e símbolos em toda a parte. Era sem dúvida a
mesma sala.
Ao centro a mesma pirâmide metálica que ocupava quase toda a sala. Dentro da
pirâmide gigante, lá estava a esfera feita de uma espécie de metal vermelho, que se
ligava à pirâmide através de um mecanismo giratório.
- Sim, cá está! - disse Francisco.
O acesso ao interior da bola vermelha estava outra vez franqueado. Entraram de
imediato. Com isto, a porta fechou-se e a esfera começou novamente a girar cada
vez mais depressa, mais depressa, até que os nossos amigos desmaiaram.
Passados alguns minutos, o Professor acordou. Foi o primeiro a acordar. Silen-
ciosamente, acordou o amigos. Mas não Francisco, nem o seu cúmplice, que dor-
miam profundamente.
Estavam no interior do túnel do Metro do Sul. Teriam voltado a 2050 d.C.?
- Vamos confirmar. Vamos fugir de imediato.
Saíram a correr dos túneis, certificaram-se que estavam no tempo correcto e
foram encontrar-se com o Conselho Atlante.
Depois de contarem todas as aventuras ao pai de Sara e aos seus conselheiros,
Andrade abriu o jogo:
- Mas tenho mais uma coisa para lhes dizer.
- Estou admirado e espantado com a epopeia a que acabaram de viver. Viram
a morte da terra natal dos nossos antepassados. Mais deslumbrado estou com o
segredos que revelou o Códice do Conhecimento Antigo. Que mais há?
- Nem queira saber. O livro secreto tinha mais. Mas isto eu não revelei a Fran-
cisco.
- Mas o que é?- questionou Pedro.
- Tenho o segredo do Poder das Cordas, a energia que une as partículas mais
pequenas que há. É uma arma que quebrará qualquer inimigo.
- Muito bem, isso é fundamental. Escreva os planos dessa arma que os nossos
cientistas vão trabalhar de imediato nela.
Nisto, Francisco e dez homens armados de metralhadoras de laser entraram no
pavilhão onde a Conselho Atlante se encontrava e começaram aos tiros.

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A Feitoria de Abul

- Acabem com a raça deles.


Seguiu-se uma grande batalha, com lasers disparados em todos os sentidos, homens
a tombar de ambos os lados. Andrade, avançou por detrás de alguns caixotes e, sem
que o vissem, surgiu por detrás de Francisco, que dava ordens com gestos.
Atirou-se ao pescoço de Francisco, apertando-o com os braços e tentou estran-
gula-lo. Mas ele ofereceu resistência e puxou-lhe por um dos braços, atirando-o a
dois metros de distância. Mas enquanto corria para a arma que tinha deixado cair,
o Professor levantou-se apressadamente e deu um forte pontapé no seu inimigo, que
tombou como um saco.
Andrade agarrou na arma, apontando-a a Francisco, que ainda estava no chão,
e disse.
- Desta vez é que te vou matar, assassino.
No entanto, este sacou de uma faca que tinha na bota de cano alto e espetou-a
na perna de Andrade, que caiu a disparar para cima, sem acertar em ninguém.
Quando tentou espetá-lo mais vezes, com o objectivo de matar, Andrade apon-
tou a sua arma e disparou abrindo vários buracos na cabeça de Francisco, que jorrou
sangue.
A batalha estava ganha. Sem o chefe, os homens da Congregação Secreta par-
tiram em debandada e os restantes homens do Conselho Atlante juntaram-se para
tratarem dos feridos.
Passados dois meses, a arma secreta tinha sido montada. Foi então utilizada com
sucesso na guerra contra a Liga Árabe, que se rendeu de forma incondicional, pro-
metendo não voltar a fazer ataques terroristas no Ocidente, com receio que a arma
voltasse a ser utilizada, matando milhões dos seus num ápice, sem provocar qualquer
destruição nas infraestruturas.
Os homens do Conselho Atlante venceram as eleições em todos os países euro-
peus e nos EUA e a paz voltou à terra por muitos anos.

FIM

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A Feitoria de Abul

A Feitoria de Abul (Parte II)

N este momento já estou a escrever a parte dois da série "A Feitoria de Abul".
Desta vez a história passa-se no tempo de Império Romano.
Na fase final da vida da Grande Roma, em 350 d.C., no século IV d.C., Cons-
tante, um co-imperador, é contestado na sua competência para governar o Mar
Mediterrâneo, que começa a estar cheio de piratas e frotas de cidades inimigas.
Para demonstrar ao povo romano o seu controlo perfeito sobre todo o mar
conhecido, o imperador, cuja mulher havia dado à luz recentemente, prometeu perante
o Senado que, no prazo de seis meses, uma embarcação com duas mulheres e um
homem iria à ponta do império, à Feitoria de Abul e a Cetóbriga (a nossa actual
Tróia), na Lusitânia, e trariam Garum, uma pasta de peixes raros do Atlântico, para
a sua esposa degustar durante os jogos de Roma. Assim, ficaria provado que qual-
quer romano poderia navegar o Mediterrâneo mais profundo sem medo.
Paralelamente, incumbiu o grupo de missão à Lusitânia de saber mais sobre a
localização da Atlântida de Platão e de procurar o Códice do Conhecimento Antigo,
cujos escritos afirmam ter sido recuperado do fundo do mar e escondido naquela
zona.
A parte dois da série “A Feitoria de Abul” trata desta viagem de aventura e das
dificuldades que este grupo terá que enfrentar.
Em 2051 d.C., o professor Andrade descobre escritos sobre esta aventura em
Tróia. Uma vez que a máquina do tempo atlante já estava a ser estudada pela Uni-
versidade de Lisboa, Andrade solicitou autorização do Governo para empreender
uma nova viagem, para procurar o Códice do Conhecimento Antigo. Andrade não
decorara todo o livro na sua primeira leitura e queria saber mais sobre os seus segredos.

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A Feitoria de Abul

Parte Final

S endo este o meu primeiro livro de ficção e uma edição de autor, não podia deixar
de aproveitar para incluir alguns dos melhores poemas escritos durante a minha ado-
lescência, alguns dos quais publicados pelo Clube dos Poetas de Setúbal, nos anos 80.
A quem não gostar de poesia, aconselho a parar por aqui.
Esta parte queria dedicar à "Malta da PB - Praça do Brasil", de Setúbal, que ali
brincou, namorou e casou, e que fazia quase tudo em grupo. Ainda hoje nos jun-
tamos muito, já cada um com as suas famílias.
Éramos sempre cerca de 20, um grupo bem conhecido em Setúbal nos anos 80
e 90, não porque praticássemos actos de grande vandalismo como outros, mas porque
apesar de seremos sérios, honestos e bons estudantes (nem todos), conseguíamos
impor respeito com firmeza ao pessoal dos restantes bairros, através da união, da
solidariedade total e do desenvolvimento de actividades, divertimentos e brincadei-
ras constantemente em grupo.
Não passávamos uns sem os outros. Mas éramos todos muito homens.
Antes de entrar nos poemas, quero deixar os seus nomes para a memória e o
resumo de algumas histórias mais divertidas.

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A Feitoria de Abul

Nomes da PB (anos 80/90 do século XX)

Angelo Luís II
Alberto Manuel
Carlos Nuno
Couto Nuno II
Elsa Paulo
Eduardo Paulinho
Eduardo II Pedro
Filipe Rogério
Henrique Rui
João Pedro António
João Valter
Jorge Vítor (eu)
José
Luís (irmão)

Espero não me ter esquecido de ninguém.

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A Feitoria de Abul

Algumas Pequenas Histórias da PB

N ão são histórias, nem contos, mas apenas pedaços de lembranças que ficam
registados nestas poucas páginas, para que os meus amigos possam recordar a partir
daqui e para que as restantes pessoas possam conhecer um pouco destas infâncias
e juventudes felizes, sem se enfadarem. Fica a faltar muito, que talvez publique num
livro próprio um dia.

a ) Lá Atrás
Lá atrás, era o termo utilizado para designar as traseiras norte dos prédios da
Praça do Brasil, onde havia um largo de terra para brincarmos em pequenos.
Havia um campo de futebol antigo, do tempo do meu primo Tozé. Havia ainda
a cabana do velho Badio, guarda dos prédios em construção nas imediações, e que
andava sempre a correr atrás de nós.
Para lá de lá atrás, estavam pequenos quintais de agricultura de entretenimento
de moradores dos prédios, como era o caso do avô do Jorge, consentidos pelo Tavares
da Quinta.

i. Soldadinhos na Barraca de Tijolo


Recordo os pães com manteiga e tuli-creme, de chocolate e avelã, que as nossas
mães lançavam, das varandas de nossas casas, nos prédios, para o nosso lanche da
tarde, dentro de sacos de plástico, e o copo de água que sempre bebia na casa da avó
do Jorge, no R/C do meu prédio, depois de muito corrermos lá atrás.
Após as aulas na escola Santana, a 5 minutos, ia sempre lá para trás. Lembro-
me do grupo de soldadinhos que em meninos formávamos com 7 ou 8, comandados
pelo Paulo, marchando, brincando e fazendo muitas traquinices.
Uma vez fizemos uma barraquinha de tijolos, com tábuas por cima, e quando
começou a chover, fomos todos lá para dentro, protegidos. Belos tempos.
Lembro-me de ter pegado fogo ao prado lá trás, ter espetado um prego na sandália
e ter derrubado um poste de telefone, que por sua vez fez cair as telhas de uma casa
velha, tudo numa manhã.

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Vítor Caldeirinha

Além dos tijolos, brincávamos muito com azulejos quadrados de 1 cm de lado,


que utilizávamos para tudo. Havia muitos lá atrás.
O caminho da quinta do Ti Zé, que ligava ao portão da Estrada dos Ciprestes,
seguia por entre duas partes da quinta, cultivadas, com umas cercas pequenas de
arrame a separar, que tinham sempre bichos muito interessantes.
No final do caminho estava a casa do Ti Zé, pequena casa de um só quarto,
isolada, com um cão sempre preso que nos assustava, e galinhas aqui e ali.
Por ali em frente, à direita, ia-se para as quintas, guardadas e cultivadas. Quase
nunca arriscávamos lá ir. À esquerda, tínhamos pequenos montes e vales de terra,
de torrões amarelos, ervas altas e cobras, até à zona de obras. Esta zona de obras tinha
prédios, trabalhadores e um portão para o outro lado. Ao meio tinha um moinho
para mistura de cimento, com montes de areia. Em redor, prédios que nunca mais
acabavam, com as paredes abertas, onde era perigoso entrar.
Lá atrás, havia lixo por todo o lado, que caía dos sacos rebentados que os moradores
lançavam lá para trás, ao fim do dia.
Brincávamos com muita coisa gira, comprimidos, seringas, pomadas, latas de
spray.

ii. As Bicicletas
Houve um momento em que aprendi a andar de bicicleta, na que a minha avó
me tinha dado, laranja e moderna. Não sem cair muitas vezes. Tinha sempre os
joelhos com sangue.
Depois começámos todos a ir mais longe de bicicleta, até ao Bonfim, até ao
Liceu. Andávamos sempre de bicicleta.
O Couto tinha uma bicicleta especial com guiador em "V" elevado para trás e
com banco de encosto e mudanças ao meio. Era um sucesso. Chegávamos a dar
voltas ao campo do vitória e a ir ver a estação ou até à beira-mar.

iii. Folhas de Amoreira


Tínhamos sempre muitas épocas de entretenimento diferentes, ciclicamente. A
época do pião, do espeta com um ferro para jogar ao mundo, do lencinho, das
escondidas, das bicicletas, das fogueiras, dos bugalhos, etc.
Os dois prédios em construção, lá atrás, eram locais óptimos para as escondidas.
Saltávamos de janela para janela, da varanda do primeiro andar cá para baixo, para
o cimo de um monte de entulho. Havia buracos para as caves. Havia o buraco do
elevador muito perigoso. De lá tirávamos inocentemente fios de cobre que usávamos
para fazer fisgas e seus grampos de arame.
Havia o tempo das fisgas de pedra, dos tubos de atirar milho a sopro, da apa-
nhada, do mata, do futebol, do rei manda, do lá vai alho.
E havia também o tempo das folhas de amoreira e dos bichos da seda. Alguém
arranjava bichos da seda que distribuía, que faziam casulo e se transformavam em

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A Feitoria de Abul

borboletas. Mas a melhor parte, era ir, em grupo, apanhar folhas de amoreira para
os bichos. Só conhecíamos uma árvore junto a um tanque de água, muito bonito,
no interior das quintas para lá de lá atrás. Eram belas tardes passadas a subir às
árvores.

iv. Os Micheys da PB
Como todos os grupos de bairro, na Praça do Brasil também tínhamos os nossos
rivais. Por exemplo, um grupo de miúdos das traseiras Oeste da Praça do Brasil,
onde raramente íamos, mas muito semelhante às nossas, também com lixo. O Ciga
liderava aquele grupo. Muito simpático e sempre cheio de ideias e de energia.
Na altura, formámos um clube de futebol e fomos pedir quotas aos vizinhos,
tínhamos o campo nas traseiras, lá atrás. Eram os Mickeys e havia equipamento de
camisola branca e calções vermelhos, se bem me lembro, que íamos sempre comprar
às sete de manhã lá frente. Também lá combinávamos para jogar à bola. No final já
ninguém aparecia.
Tínhamos a sede do clube no edifício do junta de freguesia, depois do colégio
Santana, e não deixávamos mais nenhum menino entrar. Foi então que o grupo rival
de lá trás formou o clube dos Pelezinhos, que cresceu e hoje é um grande clube da
cidade de Setúbal. Os Mickeys desapareceram, pois nós também passámos a ter
outros interesses com o tempo.
Lembro-me que, na altura, se chegou a fazer um foguetão movido com pólvora
de fósforos e levantou voo.

b) Lá à Frente
Lá à frente, era o termo que utilizávamos para designar a Praça do Brasil pro-
priamente dita.
Antes, era toda ela um jardim verde e passava uma estrada mesmo junto ao café
da Brasília. Tinha um largo de piso vermelho, com um muro branco descente, com
o busto de Olavo Bilac na parte mais alta e um banquinho de pedra em volta. Havia
caminhos pelo meio da relva e cavalinhos e baloiços a Norte. E uma árvore que eu
gostava muito subir.
Após passar a parque de estacionamento, fizeram os bancos lá da frente, onde
nos encontrávamos habitualmente, junto ao café Bilac.
Lá atrás fizeram o novo parque infantil e um pequeno campo de futebol com um
muro, onde não podíamos jogar depois dos 11 anos. Uma vez mudei o sinal com
tinta e gozei o pagode. Era o tempo da velha da Sopa.

i. A Baixa de Setúbal
Lá à frente nos encontrávamos e de lá partíamos para a baixa, pelo Bonfim ou
pelo Bairro Salgado. Vi os primeiro filmes de cinema na esplanada no Bairro Salgado
e um filme do Bucha e do Estica no antigo cinema Bocage, no centro comercial com
o mesmo nome.
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Vítor Caldeirinha

De lá à frente íamos em grupo à baixa e às escolas uns dos outros. Não falarei
aqui da escola, pois separava já muito bem esses dois mundos, que nada tinham um
a ver com o outro. Na PB era um rapaz da rua e na escola era um bom aluno.
Lá em baixo procurávamos conhecer miúdas. Fazíamos voltas sem fim à baixa.
Piscinas. Sempre a olhar para as miúdas, mas poucas conhecíamos. Acabava-se por
ir à beira-mar, para o castelo de S. Filipe ou para os conventos de S. Paulo, brincar.
Nesta altura, tínhamos sempre muitos inimigos na rua. Cães, ciganos, tipos
chanfrados, pedófilos e grupos de miúdos de outros bairros.

ii. Noites de Motas


Uma coisa que nunca mais me vou esquecer, foram as noites passadas de mota
com o António. Íamos para todo o lado com os nossos capacetes desenhados, sem-
pre devagar. Ele é que conduzia, pois a mota era dele e eu não tinha carta. Íamos
ao snooker, às festas, à praia. Sempre de noite, depois de ele vir do trabalho.
Mas o giro foi cairmos várias vezes. Uma na Figueirinha, parámos e caímos.
Outra junto à PSP da Avenida da Portela, onde ele deixava a mota presa. Caí-lhe em
cima, literalmente. A melhor foi na descida da Restinguinha, quando vínhamos da
Figueirinha. Andámos a rojo mais de 50 metros e fiquei com as calças de ganga como
se fossem saias, todas abertas.
Foi a mania das motas e das Casal Boss. O Jorge tinha, o Angelo tinha. Vá lá que
nunca ninguém se aleijou a sério. Depois veio a época dos carros. O Angelo tinha
o Max, no qual íamos para todo o lado.
O Francisco tinha o Fiat 127, que um dia se virou na descida da Restinguinha.
O Carlos comprou o AlfaRomeu de cimento-cola que se virou na ida para S. Paulo
e só mais tarde os outros tiveram os seus primeiros carros.
Lembro-me de ir pé a todo o lado. Lisboa, Tróia, Santo André, para acampar.
A primeira vez que fui a Palmela, foi a pé, para ir às vindimas. Mas pouco vindimei.
E ia de bicicleta a Azeitão, Palmela, Sesimbra e Barreiro, de onde regressei a pé uma
vez, com um pneu furado.

iii. Café Bilac


Quando não estávamos lá à frente nos bancos, sentados na parte de baixo ou em
cima, a colar pastilhas no poste de luz, estávamos no café Bilac, onde nos encontrá-
vamos todos numa ou duas mesas para beber café. Depois, íamos jogar snooker com
o Arvela.
Muitas vezes não conseguia jogar bem, falhava algumas bolas, o que irritava.
Passei várias horas sentado no Bilac, sozinho ou acompanhado. Era para onde
ia quando saía da escola e não tinha nada para fazer.

iv. Praia
De vez enquanto íamos à praia todos juntos. Íamos para Tróia todos juntos, em

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A Feitoria de Abul
grande grupo, com cerca de 20 miúdos, tudo rapazes. Levávamos a bola e sandes.
Em grupo, na praia, ocupávamos uma grande superfície e escolhíamos estas ou
aquelas raparigas para conhecer. Mas como éramos muitos, descambava quase sempre
para a parvoíce e acabávamos por não conhecer nenhuma. Mas chateávamo-las. Só
tropelias.
No Verão, íamos todos os dias para a Figueirinha à boleia. Formávamos um
grupo grande junto ao esporão, de onde nos atirávamos para a água. O pessoal em
volta ia-se afastando para não levar com nada, na guerra de conchas e de areia que
era normal acontecer.
Divertíamo-nos muito e ouvíamos o Tonight I'm Yours, do Rod Stewart. As
boleias por vezes eram perigosas.

v. Festas
Muitas vezes íamos a festas. A primeira que fui, foi numa discoteca da tarde que
havia junto à antiga sede da judiciária, em Setúbal. O Stringfellows.
Depois começámos a ir à Cubata a pé, onde havia sempre confusão e porrada.
Também íamos ao "10" e depois ao Seagull. Íamos ao Leo Taurus, a antiga Ostra,
a Tróia, ao Rosamar e ao Montijo. Por vezes íamos ao Bairro Alto. Dependendo de
que alguém do grupo se lembrasse e da boleia que tivéssemos.
No Seagal nadávamos na pista. Passávamos pela Varanda onde se namorava ou
vomitava. O regresso de carro era sempre muito perigoso e alguns carros caíam na
ravina. Por vezes íamos ao Bingo à noite, mas não jogava.

vi. Droga
A droga sempre foi um dos problemas de 3 ou 4 rapazes da nossa rua, mas que
não andavam tanto com o nosso grupo de amigos. Alguns resistiram poucos anos,
apesar de serem dos mais duros da rua. Outros ainda estão nesse flagelo.

c) A Barraca
Estas histórias não podiam passar sem a barraca, marco fundamental da vida da
nossa geração na PB. Construída pelo Carlos, Couto, Nuno, Jorge, etc., enfim por
todos, aos poucos, tinha um poço de água e um quintal com portão e horta. Tinha
um poste ao meio e quatro postes em redor. Nunca caiu. Alguns dos construtores
tornaram-se engenheiros civis. Tinha tábuas nos lados e em cima, onde o plástico
e as alcatifas protegiam da chuva. No chão estava um pavimento de cimento, que
por vezes levava creolina para desinfectar. Localizava-se onde hoje está uma bomba
de gasolina da Repsol, junto à Praça do Brasil.

i. Construção da Barraca e do Quintal


A barraca era a nossa segunda casa. Por vezes a primeira, onde nos encontráva-
mos diariamente. "Vou à barraca" dizia à minha mãe vezes sem conta.
Como vivíamos em prédios, aquele era o nosso quintal, que desejávamos ter em

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Vítor Caldeirinha

nossas casas. Além disso, ali estávamos sós. Ali nos encontrávamos, jogávamos às
cartas e dali partíamos para todo o lado.
Lembro das tardes de domingo de chuva na barraca.
Uma vez discutíamos e destruímos as cercas do quintal. Jogávamos a dinheiro.
Ao escudo e a vinte e cinco tostões. Ouvíamos música, contávamos histórias. Tí-
nhamos bancos e velas para a noite. Uma vez até tivemos um sofá. As nossas namo-
radas também lá iam.
Havia os cães, nossos grandes amigos. O Capeto e o Beizi (baptizado com letras
que cada um disse). Era sempre muito osso e arroz aguado que levávamos p'ró cão.
Adoravam-nos.

ii. Capeto
O Capeto era um cão muito inteligente, preto, mas arraçado de pastor alemão
e merece um capítulo especial.
Andava sempre com a gente, defendia-nos. Era o cão da PB, uma companhia e
muito meigo. Até que um dia lhe deram com uma paulada na cabeça, saindo os olhos
e ficou cego. Nada via, mas conseguia andar por todo o lado sem bater em nada,
levantando as patinhas da frente.

iii. "Non ou a Vã Glória de Mandar"


Um dia juntámo-nos na Barraca e bebemos e comemos durante a noite toda.
De manhã, fomos para a Praça do Bocage, apanhar o autocarro, para sermos actores
no filme de Manuel de Oliveira.
No caminho, o condutor parou milhares de vezes devido às coisas que lhe diziam,
ameaçando deitar a viatura para uma ribanceira.
No local da filmagem, não havia comida e bebida suficiente para todos e ficámos
de seca com centenas de pessoas. Horas e horas. Logo que pude saí dali. Nem
cheguei a filmar. Outros ficaram.

d) O Palmeiras
O café Palmeira foi a nossa segunda casa um pouco mais tarde. Íamos todos os
dias para lá. O Couto fazia parte do mobiliário da casa e depois veio a casar com
a São, dona do café. Bebíamos, estudávamos, conversávamos lá. Era o local de en-
contro. Estava por nossa conta. "aquece-me uma sopa" era a frase da época. Era ao
almoço, à noite, de manhã.

i. Jantares
Por essa altura começaram as namoradas e os jantares com bebidas alcoólicas.
Era sempre até não poder mais ou ficar com a dupla. Ou seja ficar outro.
Muitas, muitas histórias. Conto apenas aquela em que fiquei todo mordido por
mosquitos nos pés. A primeira vez foi na Barraca com o Jorge, durante a tarde e a
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A Feitoria de Abul

noite toda.
Depois algumas farra em Lisboa, na casa do Couto. A famosa casa. Na Cubata
e nas jantaradas dos Melros ou a acampar em Milfontes ou Santo André, a ver a via
láctea. O pior eram as misturas, que acabavam sempre mal.

ii. Carnaval
O carnaval era sempre em Tróia ou em Sesimbra, para onde o pessoal ia de
véspera, para uma pensão. À noite, juntávamo-nos num restaurante ou num bar e
andávamos pela Avenida com pistolas de água e máscaras. Por fim já só ia eu e o
Manuel. Lembro-me de salvar o Couto de cair do muro para a praia, e de ele ter
ficado com o braço roxo.

iii. Almoçajantas
Numa fase mais final da PB, juntávamo-nos nas almoçajantas, numa quinta para
lá da Bela Vista. Febras e sangria corriam ao som de conjuntos que tocavam. Era um
concerto da PB.
O melhor de tudo era quando juntávamos o dinheiro de todos e íamos ao Jumbo
comprar carne e bebidas. Era uma festa de rir e rir.

Pode ser que um dia escreva um livro com as histórias contadas por cada um.

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Vítor Caldeirinha

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A Feitoria de Abul

Poemas do Autor

Desilusão
1985

Como era Lindo


Quando era Criança,
O mundo que via
O Mundo de Esperança.

Pelos filtros Maternos


O mundo Chegava,
E quando Mais,
Mais Pressa me dava.

Julgava estar
Num Mundo perfeito,
Onde Tudo Para mim
Tinha Sido feito.

O Mundo cresceu,
O Filtro Parou,
Olhei em volta
E tudo Mudou.

Não estava mais


Num mundo perfeito,
Mas na confusão
De um Mundo desfeito.
133
Vítor Caldeirinha

O medo veio
E a Raiva também ,
A esperança ficou
De um mundo além.

Cá vou estando
No passar do dias,
Sentado à espera
Talvez de um Messias.

Esta letra foi transformada em canção, com música de João Araújo.

Corredores x passarinho
1987

Apenas me saem corredores por esta caneta.


O passarinho, coitado, nem aparece neste
Amontoado de fios e resistências.
Sou um robot, de onde, outra vez ou
Finalmente, só saem corredores
Metricamente medidos.
Curvas em ângulo recto
Entre o código binário e a cópia,
Começo…, não começo…, tento, mas cedo
vejo a porcaria, a mecanização, a cópia,
a estupidez, o não chegar lá, o desespero
de estar a ser um alegre paxá.
O passarinho não vem,
Há dias e dias que o espero.
Fugiu.
Já não sei porquê, nem como era lindo.
Talvez por eu só ter sentimentos
Fingidos, computados, sociais.
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A Feitoria de Abul

Deusa
1987

Perdida deves estar,


Ó Deusa do amor,
Nesta terra de mortais.
Sei que vieste para me amar.
Que sorte foste pôr
Neste ninho de Dor.
Onde afinal,
Só já existe amor.
Ó que bela vos mostrais.
Por favor,
Deusa do Amor,
Deusa do Luar,
P´ró Olimpo
Não vais voltar.
Pois,
Senão retorna a dor.

Religiosos
1987

Saltam juntos
De ramo em ramo,
Tratam de assuntos
Do seu amo.
Pombinhos meus,
Ide depressa,
Pois Deus
Pode não estar nessa.
E lá iam,
De árvore em árvore,
Juntos sorriam,
Mas nunca o viam,
De árvore em árvore.
135
Vítor Caldeirinha

Aulas
1987

Sentado no pequeno banco, sentia que subia.


Sorria. Cumprimentava.
Submetia-me às moralidades estranhas e superiores.
E esforçava-me. Esforcei-me muito.
A minha mãe levava-me um café ou um copo de leite quente, para esfriar as ideias.
Usava todos os métodos.
Só me descuidava no horário e fazia algumas baldas.
Estudava.

Padrinho Zé
1987

Herói da Guerra, Mas perdeu a perna,


Mão na terra, mas a família governa.
Tinha mulher e filho, e uma prótese na perna,
Trabalhava, trabalhava, sempre com vontade eterna.
Meu 1º leitor, comprava a minha edição,
Sinto verdadeiro amor, no fundo do coração.
Veio nos jornais, precisava de uma operação,
De dinheiro para a família, todos deram um tostão.
Padrinho assim não há, uma homem espectacular,
Trabalhava de lá para cá, a sustentar o lar.
Um dia adoeceu, ficou muito magrinho,
Foi para o hospital, todos diziam coitadinho.
Morreu, enterrou-se, ninguém mais
Comprou os meus jornais.
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A Feitoria de Abul

Futuro pró jovem


1987

Olho o presente
E vejo o futuro,
Que não está ausente,
Mesmo que escuro.

E olho as gentes
Que foram como nós,
Que estão cientes
E não perderam a vós.
Tenho esperança em nós
E num futuro melhor,
Com Deus ou sós.
Mas com muito suor,
Chegaremos à paz.
Ainda que sem nós.

Fernando Pessoa
1987

Críticos parvos, escutai:


Não faleis sobre mim como quem cospe,
Não digais às pessoas, palavras confusas
E estúpidas sobre mim.
Que não quero meter medo, nem baralhar ninguém.
Leiam-me, desentendam-me, mas sozinhos.
Não sejais parvinhos.
Não me façam ser odiado.
Por favor, obrigado.
137
Vítor Caldeirinha

Prisão Social
Reflexão
1987

Reconheço e sei bem


Que tabus sempre estavam
No progresso e também
À desgraça levaram.

Ao tomar conhecimento
Que já era homem,
Veio ao meu pensamento:
O que é que eles comem?
Porque tenho de ser
Tão forte e mau?

Têm que compreender


Que não sou de pau.

Nuclear
1987

Batam tambores tanto


Que nem cantando vão.
Nem se ouvem as sombras
dos que sentados estão.
Se se ouvissem sem se sentir
Diríamos que era festa,
Mas desta vez ninguém vai ficar para dizer
O que quer que seja.
É o último tambor
A última guerra.
138
A Feitoria de Abul
Ultramar
1987

Um dia vi saltarem soldados,


Vi catanas e mato.
Vi medo e aventura.
Vivia-se para matar
E para morrer!
Senti a sede,
A fome,
A dor,
A tristeza das perdas,
A raiva da fúria,
Não de vencer, nem de lutar,
Mas de vingar,
Mãos, pensos, sangue, lágrimas,
Armas, tabaco, saudade, braços, mortos.
Sempre uma certeza
Duma vivência inútil
Para mim e para o País.

Cavalo
1987

Correr! Correr! Correr! Correr!

Correr! Ai! Ai! Fugir! Fugir!

Fuuugiiir! Correr! Correr!

Haaaa! Parar! Pescoço! Agora!

Parar! Parar! Descançar! Beber! Sede!

Água! Bom! Bom! Humm! Tchoca! Tchoca!

Iiiiii! Susto! Fugir! Fugir! Correr!


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Vítor Caldeirinha

Setúbal
1987

Parvas elevações verticais


Surgem rude e acastanhadas,
Fortes e Acampanadas,

Homens, trabalham devagar.

Na vida verde da vinha,


Vagarosas uvas vão indo,
Pelas vias, para as vagas de vinho.

Lentos cães ladram ao gado.

O Sol alto queima as sombras,


E endurece enquanto aquece.

140
A Feitoria de Abul

Hospitais
- Minha senhora, senhora enfermeira !
Disse ao ver passar a matraquear as socas chulerentas a largar pêlo, abrigando
os presuntos deformados de banha descaída em camadas de sedimentos cronológi-
cas e couratão esbranquiçado privado de humidade do roçar contínuo nas costas das
alpergatas, em horas passadas nas veredas a pé entre o bairro, nos arredores de vilas
periféricas, e aquele hospital central, onde ainda se usam máquinas, paredes e camas
de sem anos atrás.
Os pés adivinhavam um rabo fora das cuecas a três quartos e a querer rebentar
do saco de células que o sustinha, e uma cara de passadora a ferro de cabeça pelada
pelo calor tropical do vapor do suor e detergente de camisas e casacos de criaturas
sem tempo, mulher que tinha evoluído orgulho da família de pastores da Estrela e
havia entrado por baixo do médico chefe, como ajudanta de enfermagem, única
esperança constante não concretizada da atenção que aqueles doentes terminais
tinham, abandonados pelas famílias.
- Minha senhora, que aparelho...que aparelho é este?
À sua volta paredes doentes apresentavam bolhas alérgicas de bolor empolado,
infecções latentes no antigo branco, que apenas aguardavam uma pequena distrac-
ção sua para o fazerem seu manjar, entre novelos de tubos flexíveis que nasciam de
tubos de ferro pintados a cores por cima de camas de criança em aço bege, com
lençóis de flanela debotados e borbotados com logótipos feios de hospitais não
conhecidos.
Mesas decrépitas faziam o possível por destoar dos diferentes tipos de cadeiras
gastas desconfortáveis de almoços de rabos cansados com chinelos a arrastar e canjas
de peixe a cheirar a mau bife, em tabuleiros cinzentos de bactérias expectantes,
familiares das do chão passado vezes a fio com o esfregão sujo de anos de mijo,
defecação e sangue jorrados, onde assentavam os pés da máquina farta de botões e
luzes, números e dizeres que o aqueciam e em quem confiava uma solução milagrosa,
esperança remota de cura, das horas que passavam juntos e em que ela o media em
noites longas de gemidos e dor. Ela sabia.
- Como funciona? Para que é o botão?
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Vítor Caldeirinha

As suas noventa primaveras não tinham amainado a vontade de saber de tudo


e principalmente de coisas modernas de esperança como era a sua companheira, já
dum novo século, no tempo mais moderno de sempre, que o observava e controlava,
confortando-o por estar certamente em boas mãos, entre fios vermelhos e verdes,
luzes amarelas qual painel de avião, domínio do homem pela máquina, mãos de
chapa em que entregava a sua alma e que lhe mantinha a ténue chama-piloto da
esperança.
Nunca tinha estado num hospital excepto quando levou uma dose de cavalo antes
de partir para cumprir serviço na Índia, onde conheceu pessoas estranhas de quem
nunca gostou e donde regressou para ser um excelente pai por muito tempo e tirar
fotos por dezenas de anos para que o filho estudasse e tivesse futuro, apanhando caras
de seres que nunca lhe interessaram ou de porcarias que aconteciam aos outros com
o seu olho de papel.
- Sempre gostei de saber mais, mas já não consigo ouvir o que diz.
- Cale-se e durma.
Aqui não é ninguém, é utente ser dominado escravo do sistema e dos esbirros
graduados que ordenam a todos os vitelos que ali caem, sejam lá quem tenham sido
fora dali. Comunismo e os porcos. Há semanas que o filho formiga ocupada não
vinha e ele ali preso pelos carrascos do Estado com pernas que se recusaram fun-
cionar pela primeira vez havia duas semanas mas para sempre, era normal disse o
médico que passou cinco minutos na semana passada, já não vai andar mais.
Sempre adorara caminhar com a mulher e o filho pela cidade e noutras cidades,
com as pernas companheiras incansáveis que tinham assistido fortes a tudo, ao
nascer do filho, ao casamento, às fotos, às lamúrias da mulher, aos passarinhos.
Pouco faltava para morrer abandonado, menino preso naquele corpo de velho que
ninguém queria ver, a quem tinham que limpar o rabo, desolado em pânico sem
perceber como ali tinha chegado e como sairia, àquele estado, mesmo fazendo sempre
o que devia, sem perceber o que se seguia, num fosso de sentidos, num deserto de
sentimentos de mirrado vegetal.

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A Feitoria de Abul

Bibliografia com Interesse

Stephen Hawking "O Universo numa Casca de Nós"


http://www.hawking.org.uk/home/hindex.html

João Aguiar "O menino de Lapedo"


http://www.spautores.pt/revista.aspx?idContent=584&idCat=147
http://www.ipa.min-cultura.pt/pubs/slides/

Nova, Teoria das Cordas


http://www.pbs.org/wgbh/nova/elegant/

Feitoria de Abul e Ruínas de Tróia


http://www.troiaresort.com/natureza/reserva.htm

Chibanes
http://www.moinhosvivos.com/
defaultArticleViewOne.asp?categoryID=305&articleID=390&lId=1

Atlântida
http://lendasdeportugal.no.sapo.pt/distritos/madeira.htm

Horm holes
http://en.wikipedia.org/wiki/Wormhole

Raio U
http://pt.wikipedia.org/wiki/Edgar_P._Jacobs

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Vítor Caldeirinha

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