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58 DAS ARTES E DA HISTORIA DA MADEIRA—N.' 19 © 20—1955 O NATAL NA MADEIRA (Estudo Etnogréfico) © Natal tem para o madeirense, sobretudo para © do norte da Ilha, um encanto especial, tinico no mundo. Dia de festa, em todo o sentido da palavra, esté adornado com costumes e tradigdes, que muito hon- ram 0 nosso folclore e muita beleza e elevagio dio 4 vida do nosso povo. Profundamente crente, 0 madeirense néo se contentou com celebrar o Natal, reunindo a familia em alegre e farta consoada, envergando fato novo domingueiro, descansando pacatamente em casa das fides quotidianas, ornando uma Arvore do Natal, ‘com muitos e ricos brinquedos, ou armando um frio presépio, para géudio dos miudos, sdmente. Foi mais além. Deu largas sua f€ e acrescentou, desde tem- pos recuados, aos offcios litdrgicos do dia, um fol- clore cristio, cheio de piedade e beleza, que muito honra a Ilha e, bem compreendido, a propria fé. O estudo do modo como se celebra o Natal em Ponta Delgada, Porto Moniz e Boaventura, deu 0 presente trabalho. Espero que ele dé aos leitores uma prova bem frisante da crenca do nosso povo e da maneira, como celebra o seu Natal, Preparativos para o Natal Véspera do Natal. Como foi 4rduo labutar em casa do lavra- dor! Como andam cansados os bragos de tanto tra- balhar e os pés de tanto andar! Todos estio cansados, desde 0 pai ao mais pequeno. pai, que matou 0 porco; que ajudou os viz nhos em idéntica matanca; que cavou a «sem Por J. de Sousa Coutinho tha» (") nova para os dias do Natal; que foi & cida- de comprar os arranjos da Festa. ‘A mae que amassou 0 p4o, derreteu as banhas do porco, fez a linguica, deitou a «carne de vinho € alhos», lavou, remendou e engomou a roupa de cétio € a que estava guardada na caixa e que s6 sai neste grande dia:—a colcha vermelha ea toalha de renda da . Ouve-se o bater das botas, ns soalho, antes de serem calgadas, e o ranger delas, depoi: De mao em mio, passa um pente, que a todos penteia, O vidro da porta serve de espelho ea agua de brilhantina. De mais a mais, todos escusam estas coisas. Os rapazes ndo usam gravata, nem as raparigas «baton ou rouge». Bastam-Ihes as rosas vermelhas das faces. +..Dido, Dio, Dito... Diao... Diao. De ouvido & escuta, ouvem o repique do sino; contam as iiltimas badaladas e os foguetes. Mae, é a segunda» ~-«Toca a andar» Rodou a chave na fechadura da porta. A cabeca duma filha, vai a oferta para o Menino Jesus, que reverteré depois em beneficio do Senhor Vigério, que catequisa os filhos e a todos orienta para Deus. L& vao laranjas, magis, carne de porco, gali- 60 DAS ARTES E DA HISTORIA DA MADEIRA—N.° 19 ¢ 20—1955 nhas, librinhas do Cabo, muita alegria e fé, enfim, um pouco de tudo aguilo que Deus deparou, para © grande dia do Natal. A uma ordem da mie, todos se poem a cami- nho da Igreja, onde passario a noite mais bela do ano. Ninguém fica em casa. © mais pequeno vai ao colo € o pai jé partiy, hé muito. Ladrdes, nessa noite, s6 por excepgio. Pelo caminho, estoiram bombas, sobem fogueti- tos ao ar e ouvem-se «bailinhos» tocados em gaitas de beigos e pifaros de cana, Passam grupos, trovando ao som da barejen- ta (!9} do estuporzinho ("") dos ferrinhos e casta- nholas. A Missa do Galo A Igreja esta repleta de fieis. Ramos de alegra-campo revestem as paredes ¢ uma cortina branca cerra 0 camarim, onde ao «Gl6- ria» da Missa apareceré 0 Menino Jesus, rodeado de anjos. Num altar lateral esté armado 0 presépio,—um_ Menino deitado sobre palhas, anjinhos e flores de papel, os trés reis do Oriente, a estrela, que os guia, muitas searinhas, muitas laranjas, anonas, macis, castanhas, nozes,—eu sei li—um mundo de fruta. Ao lado, a cadeira paroquial, onde 0 Senhor Vigério, sentado, receberd as ofertas. No coro, cantam-se «matinas» e todos estto impacientes por que acabem, pois delas nada perce- bem e 0 mais bonito esta para vir. Os homens, envergando fatos domingueiros sustentando uma bengala de buxo (12), puxam, de pedago a pedaco, um relégio, herdado dos pais € reso a lapela do casaco ou a uma casa do colete, por uma corrente de prata ou de oiro, com uma libra dependurada, para ver se a meia noite estd a bater. Cinco para a meia noite, Acabaram as «Matinas» e a missa j4 comecou, O coro canta os «Kiries». Nota-se que, por detras da cortina do camarim, se acendem as tiltimas velas. Hé um fervilhar de impaciéncia, em toda a Igreja. Todos se levantam; querem ver. Esta perto 0 «Giériax, 0 cantico que recorda o momento, em que Cristo nasceu. celebrante rezou os «Kiries» e dirige-se, ago- ra, para o meio do altar. Batem os coracdes; arregalam-se os ollios; as mies levantam os filhos pequenos, para que tudo vejam. «Gloria in excelsis Deo», canta o celebrante. E ainda 0 «Deo» nao tinha sido pronunciado, quando se rasgou a cortina do camarim e apareceu © Menino, rodeado de anjos. Um Ahtt!... saiu de todas as bocas, acende- ram-se todas as luzes, tocaram todos os sinos e campainhas, subiram dezenas de foguetes ao ar, 0 orgio tocou, com todos os seus pulmdes, abraga- ramt-se 0s ministros do altar ¢ os irmaos das confra- rias, a filarménica tocou, a porta da Igreja, 0 «Hino da Sociedade», cairam pétalas, do alto, e, pelo ar, como se fossem vozes angélicas, espalharam-se as vozes dos anjos do camarim, entoando louvores a0 Deus Menino,—«GLORIA IN EXCELSIS DEO». Os «maduros» ('5) puxam novamente o reldgio fe meneiam a cabeca. —*Meia noite, dizem. Ainda bem, Desta vez nfo falhouy, Passados minutos, continua a missa. Na «Elevacio, todos so recordados. Por todos se pede a Deus,—pelos vivos, pelos mortos, pelos ausentes. Ninguém é esquecido, porque todos estio sen- tados @ roda da fogueira da saudade, acesa no cora- do dos presentes, Hi lagrimas em muitos olhos. «Domine, non sum dignus brante, Todos ajoelham e batem no peito. A missa esti a acabar. Volta-se 0 sacerdote € dé a bencio. Como se a bengio caisse do teto, todos se aga~ cham e se benzem. Neste dia, ninguém domingos. A festa ainda nao vai a meio. Vai comecar a «Anunciagio», a «Entrada dos pastores®, restos dos antigos Autos de Natal, que 0 povo nfo esqueceu € que ama com ternura, porque fazem parte da sua prépria alma. Terminou a missa. Recolhem-se a sacristia os ministros do altar, todos se ajeitam; todos , reza o cele sai, como nos demais

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