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LIRA, KARINA M.
RESUMO
O reconhecimento de bens ligados ao sagrado das religiões de matriz africana não é recente, muito
pelo contrário, ele se dá desde o início do acautelamento por parte do IPHAN, com o tombamento da
coleção do Museu da Magia Negra em 1938, visando preservar os bens apreendidos pela Polícia do
Rio de Janeiro na perseguição aos terreiros, principalmente na década de 1930.
Apesar de a instituição ter olhado desde no reconhecimento patrimonial ligado à temática, o próximo
bem acautelado pela Autarquia Federal só acontece em 1980, o tombamento do Terreiro da Casa
Branca, motivado pelo risco de perda de uma das casas de candomblé mais antigas e notáveis da
Bahia.
Apesar da indiscutível importância dos bens ligados a cultura negra no Brasil, além da coleção
supracitada, apenas dez bens materiais relacionados aos povos e comunidades tradicionais de matriz
africana foram tombados pelo IPHAN: Coleção do Museu da Magia Negra (1938), Casa Branca/BA
(1980); Axé Opô Afonjá/BA (2000); Alaketo/BA (2000); Gantois/BA (2000); Bate-Folha/BA (2000);
Casa das Minas Jeje/MA (2000); Oxumaré/BA (2010); Roça do Ventura/BA (2010) e o Omo Ilê
Agboulá/BA (2016).
O índice baixíssimo de bens materiais acautelados desta tipologia frente às demais, tem origem no
processo histórico de invisibilização destes espaços sagrados e seus detentores, e suas cruéis
consequências. O não reconhecimento por parte da sociedade do valor histórico-cultural, o
desconhecimento teórico por parte dos técnicos da instituição, decorrente da ausência do tratamento
da temática em seus cursos de formação e a dificuldade no acesso a políticas públicas por parte dos
membros das comunidades são exemplos da gama de motivações.
Outro ponto a tratar é subjetividade da compreensão destes bens, totalmente díspar da lógica da
valoração histórico-artística de tantos outros reconhecidos. As casas de culto de matriz africana, além
por sua importância histórica e o reconhecimento artístico de seus elementos particulares tem um
valor arquitetônico expresso em dois aspectos. Primeiramente, na materialização dos elementos do
sagrado na implantação das edificações, da utilização dos espaços, na escolha das técnicas
construtivas e na sua relação com a natureza.
Além desse, a compreensão da arquitetura em sua essência, o abrigo. O que dá sentido a esses
espaços é o que acontece nele, e sua transmissão ao longo das décadas. Estes bens são exemplos
que escancaram a impossibilidade da separação dos aspectos materiais e imateriais na leitura e
valoração de bens patrimoniais. Assim, os atributos de autenticidade e integridade ficam em segundo
plano em relação à significância do bem.
Estas especificidades foram tratadas na instrução no processo de tombamento do terreiro Ilê Omo
Agboulá. Para tanto, foram traçados critérios de valoração que abarcam a sua importância histórica,
sua excepcionalidade, e sua representatividade mediante a comunidade que nortearam não apenas a
justificativa do acautelamento, mas também as diretrizes para demarcação da área de tombamento e
entorno, e como estas devem ser tratadas. É por entender o referido processo como uma mudança
institucional em prol da preservação dos bens culturais que este artigo visa expor tal experiência.
A Instituição nasce em 13 de janeiro de 1937, por meio da Lei nº 378, assinada pelo então
presidente Getúlio Vargas, e tem parte de suas atribuições estabelecidas no Decreto Lei 25
de 30 de novembro de 1937. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o objeto
da missão instituição – o patrimônio cultural, é definido no seu artigo 216, como formas de
expressão, modos de criar, fazer e viver. Também são assim reconhecidas as criações
científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais
espaços destinados às manifestações artístico-culturais; e, ainda, os conjuntos urbanos e
sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e
científico. Nos seus artigos 215 e 216, a Constituição reconhece a existência de bens
culturais de natureza material e imaterial, além de estabelecer as formas de preservação
desse patrimônio: o registro, o inventário e o tombamento.
1 Utilizado na Portaria Iphan nº 537/13 e 194/2016 foi definido no Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro
de 2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais, da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial que em seu artigo 3º define
Povos e Comunidades tradicionais de Matriz africana como: ... grupos que se organizam a partir dos
valores civilizatórios e da cosmovisão trazidos para o país por africanos para cá transladados durante
o sistema escravista, o que possibilitou um contínuo civilizatório africano no Brasil, constituindo
territórios próprios caracterizados pela vivência comunitária, pelo acolhimento e pela prestação de
serviços à comunidade.
A instituição, até o presente momento, acautelou 10 bens materiais e 13 imateriais
relacionados aos povos e comunidades tradicionais de matriz africana. É uma perceptível
disparidade entre a aplicação dos instrumentos do tombamento, instituído pelo Decreto Lei
25/1937, e do Registro, estabelecido pelo Decreto 3551/2000, a este universo de bens
culturais, como é possível perceber nos quadros 1 e 2.
Quadro 1: Relação de bens tombados pelo IPHAN relacionados aos povos e comunidades
tradicionais de matriz africana
Ano de Nº processo de
UF Município Nome do bem
tombamento tombamento
RJ Rio de Janeiro Museu de Magia Negra: acervo 1938 35
BA Salvador Terreiro da Casa Branca 1986 1067
BA Salvador Terreiro do Axé Opô Afonjá 2000 1432
BA Salvador Terreiro Ilê Maroiá Láji - Alaketo, 2004 1481
MA São Luís Terreiro Casa das Minas Jeje 2005 1464
Terreiro de Candomblé Ilê Iyá Omim Axé 2005 1471
BA Salvador
Iyamassé - Gantois
BA Salvador Terreiro de Candomblé do Bate-Folha 2005 1486
BA Salvador Terreiro de Candomblé Ilê Axé Oxumaré 2014 1498
Terreiro Zogbodo Male Bogun Seja Unde - 2015 1627
BA Cachoeira
Roça Do Ventura
Terreiro Culto aos ancestrais - Omo Ilê 2015 1505
BA Itaparica
Agboulá
Quadro 2: Relação de bens registrados pelo IPHAN relacionados aos povos e comunidades
tradicionais de matriz africana
Área de Abrangência da Ano do
Nome do bem
Salvaguarda Registro
Samba de Roda do Recôncavo Baiano Recôncavo Baiano 2004
Ofício de Baiana de Acarajé BA, RJ, DF, PE, SP 2005
Jongo do Sudeste RJ. SP, ES, MG 2005
Tambor de Crioula MA 2007
Matrizes do Samba no Rio de Janeiro:
RJ 2007
partido alto, samba de terreiro e samba-enredo
Ofício dos Mestres de Capoeira Nacional 2008
Roda de Capoeira Nacional 2008
Complexo Cultural do Bumba-meu-Boi do Maranhão MA 2010
Festa do Senhor Bom jesus do Bomfim BA 2013
Maracutu Nação PE 2014
Maracatu Baque Solto PE 2014
Cavalo Marinho PE 2014
Caboclinho PE 2016
Devido às perseguições policiais aos praticantes de religiões de matriz africana, bem como
pelo início do processo de urbanização da área, Eduardo Daniel de Paula teve que transferir
o terreiro para uma área mais afastada da praia, em meio a mata, sendo este um local mais
reservado, chamado Barro Vermelho. Com a transferência, restaram apenas uma cajazeira
onde o Orixá Ogun era cultuado, uma gameleira branca, que é a árvore sagrada do Orixá
Iroco e a casa do Orixá Exu. Juntamente com as árvores sagradas, impassíveis de
transferência, a casa de Exú foi mantida, segundo a tradição, por determinação do próprio
Orixá.
A área do Barro Vermelho abrigou o terreiro no período de 1942 a 1960, sendo uma área
estratégica, pois ainda permitia acesso a casa de Exú e a praia, para continuidade de rituais,
bem como ficava em uma área de mata fechada, garantindo a privacidade do culto, cercada
de elementos naturais ritualisticamente fundamentais.
Alguns anos depois, o terreiro foi transferido mais uma vez, para um local denominado como
Bela Vista, onde até hoje se encontra. Esta última mudança ocorreu, pois, Mãe Senhora4 fez
ao terreiro a doação do terreno. Até os tempos atuais, a comunidade religiosa faz uso das
três áreas de implantação de sua casa, na primeira, onde fazem os cultos relacionados a
2 Segundo Mariza Viana, “os Egungum, Baba Egum, ou simplesmente Baba, espíritos daqueles
mortos do sexo masculino especialmente preparados para ser invocados, aparecem de maneira
característica, inteiramente recobertos de panos coloridos, que permitem aos espectadores perceber
vagamente formas humanas de diferentes alturas e corpos.
4Bibiana Maria do Espírito santo, conhecida como Mãe Senhora, falecida Ialorixá do Terreiro Axé
Opô Afonjá, que ocupou o cargo de Iá-Ubé no Omo Ilê Agboulá.
Exú, no Barro Vermelho são feitos os rituais que dependem da sua área de mata, e no Bela
Vista, está localizado o terreiro em si.
O local que abriga hoje o terreiro foi categorizado em três áreas funcionais distintas: espaço
profano, espaço sagrado público e espaço sagrado privado. No espaço profano, é o
estacionamento de veículos e o acesso de pedestres e ao espaço sagrado público, onde,
entre os limites destes, há uma cercadura visando garantir não só a restrição de acesso,
mas também a privacidade de culto.
6 Tocadores de Atabaques.
7 Sacerdotes.
1º Simpósio Cientifico ICOMOS Brasil
Belo Horizonte, de 10 a 13 de maio de 2017
trata de um plano elevado, onde ficam os tronos dos Egun, onde somente estes podem
acessar.
O espaço sagrado privado é composto pelos assentamentos dos Orixás Iroco, Ogum e Onilê
e pelo Ilê Auô8, aos quais somente os Egum e os Ojé têm acesso.
8 Casa do segredo.
3. O processo de tombamento
O pedido de tombamento do Omo Ilê Agboulà foi feito ao IPHAN ao ano de 2002, por
Balbino Daniel de Paula, descente de Eduardo Daniel de Paula, hoje Alabá da casa e
Alapini9 da tradição Baba Egun. Somente ao ano de 2015 que se percebe no processo
administrativo, a juntada de documentações técnicas produzidas por servidores com vistas
ao encaminhamento ao Conselho Consultivo do IPHAN10 para decisão sobre o tombamento.
Além desta proposta de tombamento, também foi encaminhada uma delimitação da área de
entorno para a área do terreiro atual. A função desta área de entono foi pensada no sentido
9Cargo maior da tradição Baba Egun. Enquanto o Alabá é a autoridade máxima do terreiro, o Alapini
é a autoridade máxima entre todos os terreiros da tradição.
No caso da área de entorno proposta para o Agboulà, entendeu-se sua função como de
garantir a não visibilidade ao bem, considerando que sua implantação revela isso como
característica. Ponderando a importância da privacidade de culto, as diretrizes para as
edificações circunvizinhas não se referem a uma unidade tipológica, estilística ou estética
em relação ao terreiro, mas sim limitações de gabarito e restrição de abertura de vãos
voltados para toda a área do terreiro. (Ver figura 4)
11Refere-se aqui ao artigo 18 do Decreto Lei 25 de 1937, “Sem prévia autorização do Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer
construção que lhe impeça ou reduza a visibílidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena
de ser mandada destruir a obra ou retirar o objéto …”
O Conselho Consultivo votou pelo tombamento do terreiro em unanimidade e, até o
presente momento, não se teve o retorno do processo para tratar do tombamento específico
das demais áreas, ou publicação de portaria com as diretrizes de preservação do entorno.
Outro efeito nocivo dessa trajetória histórica é a falta de capilaridade dos estudos
acadêmicos acerca da temática na disciplina de história do Brasil, nos primeiro e segundo
graus, bem como nos cursos de graduação que formam os profissionais atuantes nas áreas
afins ao patrimônio cultural, como história, ciências sociais, arquitetura e urbanismo,
museologia, conservação e restauro, entre outros.
12 As atribuições do GTIT foram definidas pela Portaria Iphan nº 489, de 19 de novembro de 2013: 1.
Analisar e emitir pareceres técnicos, em colaboração com o DEPAM, acerca dos processos de
tombamento abertos no Iphan relativos aos bens culturais dos povos e comunidades tradicionais de
matrizes africanas; 2. Analisar e emitir pareceres técnicos, em colaboração com o DPI, acerca dos
processos de registro abertos no Iphan relativos aos bens culturais dos povos e comunidades
tradicionais de matrizes africanas; 3. Elaborar metodologia para identificação das casas de culto e
dos bens culturais dos povos e comunidades tradicionais de matrizes africanas para o
reconhecimento integrado;4. Elaborar conjunto de critérios e diretrizes para tombamento e registro de
bens culturais relacionados aos povos e comunidades tradicionais de matriz africana; 5. Acompanhar
o andamento dos processos de tombamento e de registro de bens culturais relacionados aos povos e
Como principais desdobramentos da ação deste grupo, tem-se as Portarias IPHAN 188 e
194 de 18 de mais de 2016. A primeira versa sobre metas que a instituição assumiu com a
sociedade brasileira quanto a realização de ações para preservação de bens culturais dos
povos e comunidades tradicionais de matriz africana, disposto nos eixos de Identificação e
Reconhecimento13, Formação e Capacitação, Apoio e Fomento e Valorização, no período de
04 anos, a partir da data de sua publicação.
13 Para o eixo de identificação e reconhecimento, foi estabelecido como meta a finalização dos
processos de reconhecimento abertos até 2016 (BA, SE, PE, RJ, SP). Os processos abertos a partir
de então, seguirão os prazos estabelecidos nos atos normativos específicos de cada instrumento de
acautelamento.
1º Simpósio Cientifico ICOMOS Brasil
Belo Horizonte, de 10 a 13 de maio de 2017
5. Referências Bibliográficas
VIANNA, Marisa. Baba Egum. Texto de Júlio Braga. Salvador: P555 Edições, 2008.
www.iphan.gov.br