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Artigo original

CIÊNCIAS HUMANAS E NEUROCIÊNCIAS


Um confronto crítico a partir de um contexto
educacional*
Luiz Fernando Dias Duarte
Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ), Rio de Janeiro – RJ, Brasil. E-mail: lfdduarte@uol.com.br

DOI: 10.590/339702/2018

Para o organismo, a organização é um fato; para a anos antes pela Fundação Roberto Marinho e ob-
sociedade é o seu a fazer. tivera um crescente apoio da Prefeitura do Rio,
Canguilhem (1975, p. 333).
no bojo de seu projeto de revitalização da região
portuária da cidade.
Entre as diversas atrações da exposição inau-
O desafio do cerebralismo gural, voltada, grosso modo, para a relação entre a
tecnociência e a preservação ambiental, surgia todo
Em dezembro de 2015, foi aberto no Rio de um módulo intitulado “Pensamento”, em que as
Janeiro o muito aguardado Museu do Amanhã, informações precedentes sobre a natureza cósmica
com uma sede portentosa, desenhada pelo arqui- e biológica cediam lugar a uma apresentação da
teto Santiago Calatrava e erigida em pleno centro condição humana, o elo essencial em direção ao
da cidade. A iniciativa fora desencadeada cinco módulo seguinte, dedicado ao Antropoceno, com a
caracterização da devastação antrópica e suas terrí-
* Apresentado na mesa-redonda “Natureza e Cultura: veis e previsíveis implicações futuras.
expectativas futuras e antigas amarras”, 30ª Reunião O retrato apresentado buscava mostrar algumas
Brasileira de Antropologia, João Pessoa (PB), em 5 de
agosto de 2016. Agradeço os comentários dos parece- características estruturais e alguns aspectos fenome-
ristas anônimos da RBCS para esta versão. nais da humanidade, distribuídos entre uma série de
dispositivos museográficos nas áreas de circulação e
Artigo recebido em 11/01/2017 um ambiente mais fechado, um grande cubo, guarne-
Aprovado em 15/08/2017 cido de colunas dispostas em labirinto, revestidas de
RBCS Vol. 33 n° 97 /2018: e339702
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imagens variegadas, remissivas a um amplo leque de grandes campos, com importantes implicações para
atividades e instituições humanas. o empreendimento antropológico e para o pensa-
Para um antropólogo que, como eu, partici- mento ocidental em geral, além de exigir uma re-
para como consultor do projeto do museu desde flexão sobre as condições e limites da convivência
o início de sua concepção,1 o que mais chamava a entre esses saberes.
atenção eram dois pontos, diretamente contrários à É inesgotável a literatura que trata de ambos os
orientação que procurara imprimir antes a minha assuntos e é particularmente difícil dar conta do pri-
contribuição: o cerebralismo radical das referências meiro, o da relação presente entre ciências humanas
à condição humana e o caráter aleatório, assistemá- e neurociências. Não se trata apenas do volume ma-
tico e superficial da tentativa de demonstração da terial da produção, mas da intensidade dos debates,
variedade e complexidade da experiência sociocul- polarizados entre o que Fitzgerald e Callard (2014,
tural da humanidade. p. 9) chamam de “retórica da crítica” e de “retóri-
Considero necessário procurar compreender ca da exuberância [ebullience]” – a primeira voltada
esse episódio crítico contemporâneo à luz dos ma- para a denúncia das ambições socioculturais das neu-
crodesafios enfrentados pelas ciências humanas em rociências (particularmente das “neurociências cog-
face da ambição reiterada das ciências biomédicas nitivas”); a segunda voltada para o enaltecimento do
de produzir uma compreensão do humano total- projeto neurocientífico. Nesse sentido, é preciso dei-
mente “fisicalista” ou “naturalista”, o que costuma xar claro desde já que, embora minha argumentação
ser criticamente chamado de “reducionismo” (even- neste artigo seja bastante típica do registro da “críti-
tualmente expresso como um “eliminacionismo”).2 ca”, ela não se volta evidentemente contra a pesquisa
Recentíssimas reconfigurações das ciências naturais em neurociências em si, mas contra a formulação e
vêm retomando os postulados mecanicistas origi- uso de ilações socioculturais de seus conhecimen-
nais desse campo, refinando-os e reforçando-os (cf. tos em contextos gerais de divulgação científica ou
Meloni, 2011, p. 103). O vasto campo contempo- formação educativa, aproveitando-se de uma aposta
râneo das neurociências tem sido pródigo em pro- ingênua na maior “cientificidade” de suas propostas
postas sobre a preeminência da matéria, ao explorar e compondo uma estratégia autoritária de desqualifi-
o funcionamento da conexão cerebral da experiên- cação das ciências humanas.
cia humana com potentes recursos e ambições de Como ressalta Alain Ehrenberg (apud Bezerra
grande envergadura. Júnior, 2007, p. 134):
A antropologia contemporânea, por outro
lado, tem se aberto com grande entusiasmo para [...] a última perspectiva [da literatura propo-
uma revisão das bases tradicionais da oposição en- nente de um “sujeito cerebral”] é de caráter social
tre “natureza” e “cultura”, seguindo tendências an- e se refere à disseminação de inscrições sociais e
tirrepresentacionalistas e hiperempiristas, que se imaginárias que fazem do cérebro e de suas
fundam em um conjunto complexo de argumentos propriedades biológicas um verdadeiro ator so-
filosóficos e éticos. A ênfase na experiência viven- cial, e não apenas a condição biológica de pos-
cial e na condição incorporada do pensamento e sibilidade de existência do self.
dos valores tende a produzir um interesse particu-
lar na corporalidade e na afetividade, podendo ser Tal concepção do ser humano tem implicações
eventualmente considerada assim também próxima éticas profundas, ao postular um regime de autoridade
de uma “naturalização”. e responsabilidade mecânico, autorreferido e extras-
Cresce uma robusta literatura sobre as duas subjetivo, infenso e hostil à compreensão das condi-
tendências, que tem levantado inclusive o tema de ções culturais e psicológicas que instituem os sujeitos
uma possível confluência mútua. Essa acumulação na vida social – a única possível para a humanidade.
crítica exige uma constante revisão dos principais As críticas das ciências humanas contra as am-
fios do diálogo tenso e desafiador que se vai dese- bições do “programa forte” das neurociências não
nhando entre as posições características dos dois visam coibir que tais manifestações se deem no
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vasto campo das possibilidades contemporâneas em todos os seres humanos. Dessa identidade
de interpretação da condição humana – o que seria fundamental, no entanto, resulta a incrível di-
descabido, além de inútil –, mas sim demonstrar versidade das culturas, ilustrada por centenas
como esses desenvolvimentos podem ser incompe- de imagens que retratam diferentes aspectos de
tentes em sua concepção (à luz de sua outra expe- nossa vida, sentimentos e ações – como habi-
riência), temerários em suas promessas apressadas, e tamos, celebramos, disputamos, pertencemos.
autoritários em seu desprezo pelo saber acumulado
e corrente das ciências humanas. O mesmo uso tendencioso do verbo “resultar”
A seguir, a segunda seção deste artigo apresen- aparece em um texto da bancada interativa, que
ta o material empírico da exposição do Museu do precede imediatamente o cubo dedicado à cultura:
Amanhã, do qual se depreendem diversos aspectos
essenciais dos argumentos posteriores. A terceira O cérebro humano – Sensações, emoções, lem-
seção é uma tentativa de oferecer uma ideia geral branças, movimentos: tudo o que existe para
da multifacetada história do naturalismo ocidental nós resulta de processos realizados pelo cére-
moderno, no que toca o trajeto da invenção do “sis- bro. [...] Está sempre agindo e reagindo [...]
tema nervoso” até a conformação do “cerebralismo” (grifo meu).
contemporâneo. A quarta seção busca fazer um
contraponto com as tendências também “natura- Toda a complexa evolução da espécie huma-
lizantes” que detecto nos desenvolvimentos recen- na, com seus componentes biológicos, corporais,
tes da antropologia, partícipes assim de um “estilo ambientais, culturais, sociais e psicológicos, assim
de pensamento” (Fleck, [1935] 1979) de grande como toda a complexa dinâmica da vida humana
interesse. Abordo aí também alguns movimentos in- histórica, com seus componentes políticos e afeti-
ternos da biologia contemporânea, que permitem vos, são assim resumidas:
tornar mais complexa a atitude da biomedicina em
relação ao determinismo. Finalmente, nas conclu- O pensamento se desenvolveu com a evolução
sões, trato dos debates disponíveis explicitamente da vida. É produzido pelo mais complexo dos
entre os cientistas sociais e as neurociências, para órgãos: o cérebro, uma massa de [...] A criati-
demonstrar suas características e insuficiências, e vidade humana deu origem à diversidade das
retorno ao aguilhão local (da exposição do Museu culturas, à arte e à ciência.
do Amanhã) para amarrar o excurso analítico geral.
Teria havido assim uma “evolução da vida” que
incluiu o desenvolvimento do pensamento. Mas,
Retrato do cérebro enquanto jovem como este é produzido pelo cérebro, o que teria ha-
vido seria, na verdade, o desenvolvimento do cére-
Em um texto geral a respeito do módulo “Pen- bro. Supondo finalmente que a “criatividade huma-
samento”,3 mais ou menos a meia altura do per- na” seja um efeito do pensamento e, na medida em
curso expositivo do Museu do Amanhã, aparece a que este não passa de uma emanação do cérebro,
atribuição ao cérebro humano de causalidade sufi- depreende-se que é o cérebro afinal que dá origem à
ciente e linear em relação à experiência sociocultu- cultura (diversidade, arte e ciência).
ral, como revela o uso do verbo “resultar” na frase A apresentação do cérebro como deus ex machina
seguinte – em que, do “sistema nervoso”, coroado continua, em outro texto do mesmo equipamento:
pelo cérebro, “resulta” a cultura: “Com o desenvolvimento da técnica, o cérebro esten-
de os limites do corpo para além da ponta dos dedos
O terceiro cubo, enfim, apresenta a dimen- [...]”. Ou ainda, e de maneira mais contundente:
são do Pensamento. No exterior, temos mais
uma vez um elemento unificador: nosso sis- Outra grande proeza do cérebro humano foi a
tema nervoso, que é essencialmente o mesmo aquisição da linguagem [...]. Mas a ciência ain-
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da procura entender como o cérebro de uma e retomada por M. Foucault na abertura de As pa-
criança aprende a representar o mundo por lavras e as coisas.
meio da língua.

Por fim, a construção da futura história humana O que faz um cérebro?


vem a se concentrar nos processos tecnocientíficos
de uma ambicionada manipulação do cérebro: O fato de que a experiência humana opera,
em certo nível, pela mediação da matéria cerebral
Aprender a identificar padrões de atividade ce- dos sujeitos é inquestionável em nossa cultura, pelo
rebral relacionados a diversos processos pode menos desde Descartes. O desenvolvimento, nas
abrir as portas para explorar o enorme poten- últimas décadas, das neurociências tem permitido
cial desse órgão. [...]. avançar celeremente no conhecimento do funciona-
mento dessa complexíssima engrenagem, ensejando
Todo esse desenvolvimento retórico cerebra- grandes expectativas quanto às possibilidades técni-
lista apresenta um fundamento “histórico”, filo- cas futuras desse saber. Esse papel crucial do órgão
genético – uma verdadeira cosmogonia –, para a começou a ser sistematicamente descrito no século
emergência das capacidades do moderno cérebro XVII (no contexto do conhecimento sobre o re-
humano, em hipótese que sugere uma grande mu- cém-inventado “sistema nervoso” – Duarte, 1986)
tação natural, arbitrária e aleatória, em direção ao e nunca deixou de merecer a mais detida aten-
estado de cultura, o que se manifesta em duas dife- ção pela ciência ocidental moderna, com a cons-
rentes passagens da exposição: trução de diferentes hipóteses e modelos (Figlio,
1975; Vidal, 2005).
O cérebro além do cérebro – um “excesso” das O fato de a experiência humana se dar por
capacidades existentes no cérebro – quer dizer, a meio do cérebro não implica, porém, necessaria-
abundância de ligações neuronais que podem ser mente pretender que ela tenha origem nesse órgão,
estimuladas pela aprendizagem – permitiu que os ou que seja dele um mero epifenômeno. Mui-
humanos criassem a técnica e a linguagem. to pelo contrário, tem se discutido amplamente
como o surgimento do cérebro “humano” pode ser
Conhecimento – Tudo começou com um pe- o resultado de um processo evolucionário, filoge-
queno excesso de células no cérebro. Um exces- nético, em que a materialidade original do cérebro
so que permitiu o desenvolvimento da lingua- símio interagiu continuamente, por pressões am-
gem e da técnica. bientais e acumulação de traços diferenciais, com
os primeiros desafios e experiências da cultura e
Todas essas informações sobre o cérebro como da socialidade humanas, constituindo-se e vindo
agente autoinstituído da condição humana prece- a sustentar a forma material e as propriedades fun-
dem o interior do cubo mencionado, onde a “in- cionais do órgão atual.
crível diversidade das culturas” se apresenta sob a Clifford Geertz foi o antropólogo a ter mais
forma de um caleidoscópio de imagens coloridas claramente formulado essa participação da cultura
de variadíssima origem, num arranjo despojado de na evolução humana e não apenas em sua história:
qualquer sistematicidade e necessidade.4
A mensagem que decorre da detalhada apre- [...] não apenas a acumulação cultural já se
sentação do caráter estruturado e estruturante do encontrava em curso bem antes que cessasse o
cérebro contrasta vivamente com a da pitoresca desenvolvimento orgânico, mas [...] essa acu-
justaposição de uma variedade avulsa e completa- mulação muito provavelmente desempenha-
mente aleatória – que não deixa de evocar a absur- ra um papel ativo na conformação dos está-
da e imaginária enciclopédia chinesa celebremente gios finais daquele desenvolvimento (Geertz,
citada por Jorge Luis Borges em um de seus contos, 1973, p. 67).5
CIÊNCIAS HUMANAS E NEUROCIÊNCIAS  5

Ou ainda: o cérebro (humano) seja apresentado na exposição


como um ente autônomo, um agente exclusivo da
Entre o padrão cultural, o corpo e o cérebro, história, saído pronto da coxa de Júpiter para ocu-
criou-se um sistema de retroalimentação posi- par o lugar de demiurgo universal da humanidade.
tiva, no qual cada um conformava o progresso Um cérebro que se faz – e faz o mundo.
do outro; um sistema em que a interação entre A posição hegemônica nas ciências humanas
o crescente uso de ferramentas, a mutante ana- contemporâneas a respeito da relação entre natureza
tomia da mão e a ampliada representação do e cultura (ou todas as variações da oposição original
polegar no córtex é apenas um dos exemplos cartesiana entre res extensa e res cogitans) considera
mais gráficos. Ao se submeter à governança de haver algum tipo de “paralelismo psicofísico” entre
programas simbolicamente mediados para a o suporte corporal da vida humana e a experiência
produção de artefatos, a organização da vida vital em si, integrada a condições intersubjetivas e
social ou a expressão das emoções, o homem coletivas que são necessariamente oriundas do am-
determinou, mesmo que sem saber, os estágios biente envolvente de cada sujeito humano e, eviden-
culminantes de seu destino biológico. Bem li- temente, das propriedades de seu “cérebro”.6 Essa
teralmente, ainda que inadvertidamente, ele se correspondência ou paralelismo sublinha o caráter
criou a si mesmo (Geertz, 1973, p. 48). necessariamente interativo das diversas dimensões da
condição humana, sem atribuir um caráter determi-
Mais recentemente, Tim Ingold tem retomado nista nem ao “espírito” nem à “matéria”. O mesmo
esse ponto, de modo ainda mais eloquente. Na se- caráter interativo se considera reconhecível nas hi-
guinte passagem, o argumento montado contra o póteses disponíveis sobre a emergência da condição
determinismo genético é perfeitamente aplicável ao humana a partir de algum momento da evolução dos
contexto cerebralista: mamíferos superiores.7
A literatura que tenta compreender a eclosão
[...] o DNA nunca existe em si mesmo, exceto e o rápido desenvolvimento das neurociências na
quando isolado artificialmente no laboratório. cultura ocidental moderna, no último quartel do
Ele existe dentro de células, que são partes de século XX, arrola diversas circunstâncias que teriam
organismos, eles próprios situados em ambien- favorecido uma retomada tão vigorosa da ideolo-
tes mais amplos. E é somente em virtude de gia reducionista (Russo e Ponciano, 2002; Bezer-
sua incorporação na maquinaria viva da célula ra Júnior, 2010), permitindo sua difusão cada vez
que as moléculas de DNA têm os efeitos que mais generalizada, no lugar das interpretações de
têm. Sozinhas, elas não produzem cópias de cunho sociológico ou psicológico dos fenômenos
si mesmas nem constroem proteínas, muito humanos, que se tinham paulatinamente imposto
menos organismos inteiros [...]. Logo, o DNA no Ocidente contra as interpretações mágicas ou
não é um agente, mas um reagente, e as reações teológicas (a partir do Renascimento, pelo menos).
particulares que ele põe em movimento depen- Fernando Vidal chama a atenção, muito pro-
dem do contexto total do organismo no qual priamente, para a marca mais ampla, de longa
ele está situado (Ingold, 2000, p. 14) . duração, da concepção da encarnação cristã, que
forneceu um dos fundamentos centrais da cosmo-
Do mesmo modo, em cada evolução ontoge- logia ocidental: a da sacralização da “carne”, da di-
nética supõe-se que a modelagem cerebral gene- mensão terrena do humano (e, por aí, mais adiante,
ticamente herdada interaja com os estímulos e as da “matéria” e da “natureza”) (Vidal, 2005, p. 41).
condições de vida de cada ser individual (o que sói Essa peculiar característica da cultura cristã sofreu
ser chamado de “ambiente”), moldando uma con- uma torção importante no século XVII, com a ge-
figuração peculiar, singular, nunca terminada, aliás neralização de uma concepção relativamente mais
(graças à chamada “plasticidade neuronal” – Lent, desencarnada da noção de pessoa, graças às acele-
2010). Esse é o motivo pelo qual é temerário que radas investigações filosóficas e fisiológicas sobre os
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processos da razão (a mente, o entendimento, o juí- Esse foi e continua sendo o caldo de cultura de
zo etc.) e da experiência sensorial, que culminaram onde emergiu o projeto contemporâneo de “natu-
na descrição de um “sistema nervoso” e na formu- ralização” da mente e da vida social que se expressa
lação do duradouro modelo dualista de Descartes, nas neurociências (Bezerra Júnior, 2010), mas não
mediado justamente por um elemento do cérebro, apenas, já que se pode vê-lo igualmente pujante na
a glândula pineal.8 Começava a se impor então o genética, na imunologia, na endocrinologia e nas
cérebro como lócus privilegiado da humanidade ciências evolucionárias.9
dos sujeitos humanos. As características de reducionismo, internalis-
Essa torção de efeitos persistentes fazia parte mo e individualismo, a que alude Bezerra Júnior
da grande transformação cultural que redundou (2010, p. 146) ao analisar o campo ideológico em
no que se veio a chamar de “modernidade”. Os que vicejam as neurociências no início do sécu-
portadores de um sistema nervoso exclusivamente lo XXI, podem ser integradas a esta minha breve
físico, integrado e centrado numa sede cerebral, evocação das longas linhas de força da cosmologia
eram também os portadores de novas qualidades ocidental: o reducionismo é a continuada tentativa
coletivas, como a da “individualidade” subjacente de explicar toda a experiência humana pelas pro-
à cidadania associada ao “contrato social” (Duarte, priedades imediatas da matéria de que se constitui
1986, p. 103). Uma total reconfiguração da rela- o seu corpo; o internalismo é a continuada ênfa-
ção entre o público e o privado vinha a prevalecer, se na singularidade monádica de cada sujeito, in-
constituindo as bases da “esfera pública” moderna, dependentemente de suas relações com o mundo
associada ao liberalismo político e econômico e aos envolvente,10 e o individualismo é a generalizada
individualismos quantitativo (liberdade e igualda- atribuição aos sujeitos humanos da capacidade e
de) e qualitativo (autonomia e singularidade). obrigação de autogestão.11
Concomitantemente à noção de uma pessoa A disposição reducionista ganhou imenso fôle-
politicamente livre e dotada de um entendimen- go com a invenção dos poderosos recursos de visua-
to ideologicamente desimpedido, espraiaram-se as lização do funcionamento interno do cérebro (as
preocupações com uma nova educação (como em neuroimagens funcionais) ora disponíveis, que ofe-
J.-J. Rousseau e Pestalozzi) e generalizaram-se os recem supostas confirmações palpáveis da “realida-
investimentos no autocultivo dos novos indivíduos de” observada da vida do órgão12 e constituem um
(como na Bildung romântica). solo inesgotável para as pesquisas neurocientíficas.
O projeto tecnocientífico desencadeado no sé- A disposição individualista (na versão que G.
culo XVII, coetâneo da grande transformação polí- Simmel chamou classicamente de “qualitativa”) se
tica da modernidade, vinha, por outro lado, buscar articula com processos mais amplos de reordenação
conhecer a experiência humana à luz dos modelos dos horizontes ideológicos e éticos da pessoa hu-
mecânicos que tinham constituído a linha de frente mana, característicos das últimas décadas do sécu-
do avanço científico newtoniano. O assim chamado lo XX, oferecendo, por meio de empreendimentos
“mecanicismo”, característico das nascentes ciências comerciais de neurotecnologia, de neurofitness e
biomédicas modernas, cedeu paulatinamente lugar a de neuropreservação, recursos de suposto revigora-
um “organicismo”, graças aos aportes da crítica vi- mento das capacidades individuais (enhancement)
talista, mas não perdeu de vista o ideal de uma ex- e habilitação a uma vida de competência e fruição
plicação dos fenômenos humanos, baseada nos pres- ilimitadas (Vidal, 2005, p. 38). Esses empreendi-
supostos materialistas, fisicalistas e naturalistas das mentos exterioristas são a contrapartida de uma
ciências exatas. O organicismo forneceu ao antigo espécie de exculpação funcional no plano interno,
desiderato a justificação empírica para uma concep- já que a responsabilidade por eventuais incomple-
ção autorreferida dos sujeitos humanos, como mô- tudes ou falências não pode ser do sujeito, mas sim
nada individual, autônoma, assertiva e autopoiética, de seu cérebro (Azize, 2008, p. 19). Não é à toa que
coerente com a unidade garantida pelo sistema ner- alguns autores associam o boom das neurociências
voso/cérebro e pela “razão” nele assentada. à difusão do neoliberalismo tão generalizadamente,
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intensificada no quadro mundial das últimas déca- propostas, com ponderáveis repercussões para as
das como reflexo na ordem coletiva de um indivi- atividades de educação e formação (escolar, profis-
dualismo instituinte. sional, cívica ou ética).
É importante reconhecer que o empreendi- A tradicional representação ocidental de um
mento neurocientífico não é uniforme e unívoco, livre-arbítrio pessoal (de origem cristã) foi severa-
apresentando pelo menos duas grandes tendên- mente desafiada pelas grandes teorias filosóficas,
cias, descritas por Alain Ehrenberg (2004) como psicológicas e sociológicas emergentes ao longo do
um “programa forte” e um “programa fraco”. O século XIX, que trouxeram à baila diferentes mode-
“programa fraco” seria o do desenvolvimento de los da contingência da condição humana. Teorias
pesquisas concebidas no interior da problemática políticas, como a da luta de classes ou a da evolução
do funcionamento do cérebro, sem extrapolações social; teorias psicológicas, como a do inconscien-
interpretativas para a condição humana em sentido te ou a da imitação; teorias sociológicas como a da
amplo. O “programa forte” seria justamente o seu autoridade da ordem social ou da preeminência das
ambicioso oposto, abrangendo inclusive manifesta- representações e valores culturais; todas procuraram
ções superficiais, de popularização, como as ocorri- compreender as condições e limites em que se dis-
das na exposição do Museu do Amanhã. tende a ação humana, em seus contextos históricos
Esse “programa forte” constitui todo um cam- e socioculturais. De modo geral, conviveram, por
po de experiências e especulações que “busca ex- um lado, com a permanência de ideologias mais
plicar em termos fisicalistas as atividades da vida “liberais” (baseadas no livre-arbítrio individual), e,
subjetiva, tanto individual quanto social, com base por outro, com a emergência de ideologias deter-
na percepção de que o cérebro é o órgão da mente ministas de origem biomédica, como no caso da
e da vida de relação”, como resume Bezerra Júnior teoria da “degeneração”, associada aos movimentos
(2010, p. 146). Para fazê-lo, vem realizando um eugenistas e à consolidação do racismo biológico
vasto programa de pesquisas sobre as mais dife- que atravessou – com as trágicas consequências co-
rentes manifestações da vida humana, como as da nhecidas – toda a primeira metade do século XX.
sexualidade (Savic e Lindström, 2008), da religião O modelo neurocientífico, subjacente às suas
(Beauregard e Paquette, 2006; Kapogiannis et al., muitas variações internas, surgiu como um híbrido
2009; McGraw, 2012; Lent, 2009) ou da educação peculiar dos modelos anteriores. Ele certamente
(Lent, 2010), para citar apenas algumas que pa- dá continuidade e aprofunda o modelo biomédico do
receriam menos obviamente passíveis de redução determinismo fisicalista, mas acoplado a uma ines-
naturalista. perada retradução da ideologia do liberalismo,
O grau em que essas pesquisas se comprometem como reforço das representações “individualistas”
com uma representação de causalidade linear, no lu- hegemônicas no Ocidente desde o século XVIII.
gar da mera e mais evidente concomitância, entre o Como descreve Vidal (2009, p. 7), a brainhood
funcionamento cerebral e a experiência sensível e afe- (cerebralidade), como nova concepção da selfhood
tiva é muito variável e nem sempre claramente enun- (individualidade), se caracterizaria como:
ciado. Há eventuais remissões a uma multifatoriali-
dade ou pluricausalidade, além de reiteradas cautelas [...] a noção de um self “delimitado”, “distancia-
retóricas no tocante à complexidade dos mecanismos do” e autônomo, que dispõe da autoconsciência
e funções estudadas, que envolvem consideráveis e como sua única propriedade constitutiva, e se
reconhecidas dúvidas e lacunas. Não obstante, evola caracteriza por uma reflexividade radical, um
de toda a produção a palpável e marcante expectativa autodistanciamento, um senso de interioridade,
do reconhecimento de um exclusivo fundamento in um ponto de vista de primeira pessoa, e um des-
re da condição humana. compromisso com o corpo e o mundo.
Para a antropologia, um dos pontos mais ins-
tigantes a compreender nesse fenômeno são as Essa combinação de determinismo biológico
teorias da pessoa que estão aí sendo elaboradas e com ideologia liberal se opõe frontalmente à tercei-
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ra tradição mencionada, a das condições (ou deter- ao verem mensurações sofisticadíssimas (e certa-
minações) socioculturais e psicológicas do fenôme- mente muito caras) das contrapartidas cerebrais
no humano. Como comentam Russo e Ponciano de comportamentos ou sensações humanas sendo
(2002, p. 25): feitas com base em pressupostos ideologicamen-
te enviesados e empiricamente insustentáveis.14 A
O trabalho sobre si, proposto por esse novo pesquisa, provavelmente em decorrência do tipo de
aconselhamento científico, não envolve um pro- sujeitos selecionados como “homossexuais”, apre-
cesso reflexivo de autoexame. Trata-se, ao con- senta, como magro resultado, a constatação de que
trário, de uma espécie de “autocultivo” exterio- os homossexuais masculinos operariam como mu-
rizado, que se processa no fazer, na experiência lheres e que as homossexuais femininas operariam
de viver, não em uma indagação sobre si. [...] é a como homens. Idêntica impressão de desconforto
própria ideia de uma interioridade propriamen- causa a maior parte das pesquisas a respeito da ex-
te espiritual ou psicológica que é descartada. periência mental das religiosidades, um dos fenô-
menos mais generalizados, complexos e variados
O “sujeito cerebral” é monádico e autorrefe- da condição humana, grosseiramente reificados ou
rido, e o mundo envolvente, seja o intersubjeti- reduzidos na maior parte dos experimentos.
vo, seja o ambiental, só existe enquanto afetos ou A impressão que decorre de tais empreendi-
representações individuais que flamejam no fluxo mentos, montados sobre insubsistentes pré-cons-
bioquímico da matéria de cada cérebro.13 truções do objeto empírico, extravasa para o con-
Essa característica leva a que muitas pesquisas junto das análises neurocientíficas de fenômenos
neurocientíficas possam se apresentar como dotadas vivenciais humanos, como no caso das interpreta-
de uma considerável e desconcertante ingenuidade ções sobre o sofrimento e as perturbações mentais.
no tocante às características socioculturais dos su- Neste caso, a situação é particularmente inquie-
jeitos selecionados segundo os pressupostos de sua tante, já que a psiquiatria contemporânea aderiu
concepção. Um bom exemplo é o da mencionada maciçamente ao projeto neurocientífico, capaz de
pesquisa sobre as diferenças entre homossexualida- finalmente lhe prometer os fundamentos biológi-
de e heterossexualidade (Savic e Lindström, 2008). cos, fisicalistas, por que ela sempre ansiara, desde o
Os pesquisadores, ao compararem a atividade ce- começo do século XIX (cf. Ortega, 2009; Ortega e
rebral em “homossexuais” e em “heterossexuais”, Zorzanelli, 2010), e já que esses diagnósticos têm
operam como se os sujeitos envolvidos nessas duas implicações concretas para o destino dos padecen-
condições ou orientações constituíssem duas espé- tes. Apesar da importância das análises sociocultu-
cies biologicamente distintas, ou como se se pudesse rais desses fenômenos, tão amplas quanto as que
definir a priori (ou seja, na seleção dos participan- construiu a antropologia a respeito da sexualidade
tes) uma diferença “natural” univocamente defini- ou da religiosidade, as interpretações sociogênicas
da. Há décadas se acumula um acervo de pesquisas têm sido descartadas em prol de um determinismo
e análises históricas, sociológicas e antropológicas neurológico. Também as interpretações psicogêni-
que demonstra de forma inquestionável a enorme cas disponíveis são descartadas ou submetidas a um
variedade de disposições mentais, comportamentos, processo de subordinação à lógica fisicalista, como
afetos e identificações envolvendo a atração física, no caso das muito variadas e complexas hipóteses
o engajamento sentimental ou a interação sexual da psicanálise. O processo como um todo é con-
entre sujeitos do mesmo gênero ou de gêneros di- comitante com o avanço acelerado da medicamen-
ferentes, de forma virtual ou efetiva, eventual ou talização do sofrimento mental (psicofármacos),
permanente, pública ou encoberta, ritual ou profa- acompanhado de perto pelos volumosos interesses
na, juvenil ou adulta etc. Como nada disso é levado da indústria farmacêutica (Azize, 2008; Racine e
em conta na revisão bibliográfica ou no desenho da Costa-von-Aesch, 2011, p. 91).
pesquisa, o resultado produz um incômodo estra- Algumas análises sublinham o fato de que as
nhamento nos profissionais de ciências humanas, neurociências atendem a uma demanda imaginária
CIÊNCIAS HUMANAS E NEUROCIÊNCIAS  9

que as precedia, ao invés de terem inaugurado uma A primeira dimensão tem encontrado recente-
verdadeira nova via de compreensão do humano.15 mente sua versão mais prestigiosa nas formulações da
Outras sublinham o fato de que essa demanda ima- chamada “virada ontológica”, em que, por oposição
ginária é preenchida por uma espécie de wishful à “virada linguística”, que caracterizara a grande con-
thinking, mais do que por efetivos avanços cientí- tribuição do estruturalismo à compreensão da condi-
ficos de monta: ção humana, se vem sublinhar a preeminência da
mediação corporal da experiência humana. Contra
Um ponto a enfatizar no desenvolvimento das o privilégio intelectualista das representações, re-
neurociências concerne ao fato de que a acei- tomam-se alguns pressupostos da fenomenologia,
tação que mereceu não é proporcional a qual- com sua ênfase característica na dimensão vivida,
quer inovação ou descoberta definitiva feita em experienciada, do estar-no-mundo,18 ou do em-
seu campo. Assim, o processo de cerebralização pirismo, com seu atomismo e seu desprezo pelas
da pessoa não é o resultado do progresso cien- “abstrações”. Trata-se de uma corrente que tem se
tífico, de avanços definitivos no conhecimento voltado para uma intensa discussão conceitual e
da estrutura e funcionamento do cérebro ou programática, lastreada na etnografia das socieda-
de grandes descobertas que consistam em uma des não ocidentais e de contextos sociais minoritá-
base de autoridade construída para o cérebro rios, dominados ou divergentes (Holbraad, Peder-
(Ortega e Zorzanelli, 2010, p. 7). sen e Viveiros de Castro, 2014) – embora apresente
uma ambição universal.
As neurociências interagem intimamente com A dimensão que me interessa prioritariamente
as teorias fisicalistas da evolução humana (incluin- é a segunda, nos muitos tópicos em que se pode si-
do uma antropologia e uma psicologia evolucio- tuar as neurociências como fenômeno característico
nárias); intensamente comprometidas com a de- das sociedades modernas contemporâneas, mesmo
monstração, no plano filogenético, das causalidades que, em muitos casos, o reconhecimento e a des-
advogadas pelas neurociências para as séries onto- crição de um processo empiricamente constatável
genéticas.16 E não se pode ignorar o fato de que possa se articular com alguma valoração epistemo-
essa trilha reducionista seguida pelas neurociências lógica da “biologização”, aproximando tais propos-
é compartilhada pela genética e por outros saberes tas da primeira dimensão referida. Maria Luiza As-
contemporâneos da biomedicina, que competem sad (2016, p. 163) menciona a categoria de “devires
entre si pela preeminência na definição dos critérios biossociais”, de Ingold e Pálsson, como um apto
de um determinismo máximo. resumo de todo esse processo.
A literatura costuma reconhecer como foco
de origem a conceituação, por Michel Foucault, de um
Naturalismo no pensamento antropológico “biopoder” e de uma “biopolítica”, apresentada em
um capítulo do primeiro volume de sua História
Há duas dimensões do pensamento antropo- da sexualidade, publicado em 1976 (Foucault,
lógico contemporâneo que se podem abrigar sob o [1976] 2009; ver ainda Rabinow e Rose, 2006 e
epíteto de “naturalismo”. A primeira é a dos inves- Rose, 2003). A essa concepção vêm se acrescentan-
timentos na compreensão de uma série de caracte- do especificações esclarecedoras como as de “bios-
rísticas ideológicas e institucionais da experiência socialidade”, proposta em 1992 por Paul Rabinow
humana, que enfatizam a atenção à corporalidade (1996); de “individualidade somática”, proposta
e a seus afetos e “propiciações” (as affordances, de por Nicholas Rose e Carlos Novas em 2005; de “self
Ingold). A segunda é a das análises do modo como neuroquímico” (Rose, 2003); “cidadania biológica”
certa concepção de “natureza”, realidade e vida é (do mesmo Rose); “bioidentidades”, proposta por
intrínseca à cosmologia ocidental e, particular- Ortega e Vidal (2007, p. 257), ou “bioascese” (Or-
mente, às suas versões contemporâneas (incluindo tega, 2008b).
as neurociências).17 Acrescentam-se a esses instrumentos analíti-
10  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 33 N° 97

cos diversos outros mais diretamente voltados para enfatizando as noções de processo, relacionalidade e
a configuração neurocientífica, como o já citado interação com o ambiente, contra a noção de evolu-
“sujeito cerebral” (Ehrenberg, 2004, 2011), “neu- ção. Como diz Pitrou, em uma resenha do livro de
roessencialismo” (Racine e Costa-von-Aesch, 2011, Ingold e Pálsson (2013):
p. 87), “neurocultura” (Bezerra e Ortega, 2006; Vi-
dal, 2005, 2009) ou “cerebralidade” (brainhood, no Ao invés de integrar os fenômenos culturais
original; Vidal, 2009). Ortega e Zorzanelli (2010, em um esquema evolucionista clássico, a teoria
p. 8) falam ainda de um “processo de somatização geral de evolução defendida por Ingold enfati-
da experiência subjetiva” e Vidal (2009, p. 7) fala de za a porosidade das fronteiras entre humano e
um “interiorismo radical”. Assad menciona, além não humano, organismo e ambiente, ao se as-
de biosocial becomings (Ingold e Pálsson, 2013), no- sumir uma visão (eco) sistêmica, a única visão
ções como as de “biologia da história” (Landecker), que permite que se afirme legitimamente que
ou de embedded bodies (Niewöhner), todas aproxi- “o domínio do social e o biológico são um só”
máveis de meu foco (Silva e Duarte, 2016, p. 11). (Pitrou, 2015).
Essa literatura analítica busca localizar o fenô-
meno social das “neurociências” em um quadro his- Nesse mesmo livro, Pálsson chama a atenção
tórico de grande envergadura, que envolve as ma- para os novos desafios colocados pelas descobertas
crotransformações socioeconômicas decorrentes da relativas ao microbioma e ao que agora se chama de
globalização e do revigoramento do liberalismo (e “teoria endossimbiótica”, incluindo a possibilidade
do individualismo) após a falência da União Sovié- de troca de genes entre os partícipes dessas “zonas de
tica, assim como da retomada do prestígio da bio- interpenetração”, que passam a constituir os orga-
medicina, graças à medicamentalização exacerbada nismos complexos.
dos fenômenos da vida e à generalização da cultu- A segunda linha é a que vem propondo a no-
ra do enhancement, de uma fruição ilimitada do ção de “biologias locais”, a partir da sugestão pio-
“bem-viver”, garantida pelos recursos biotécnicos.19 neira de Margaret Lock (1993), baseada em suas
São de importância estratégica nessa possível pesquisas comparativas sobre as concepções cultu-
aproximação sociológica do universo neurocientífi- rais e as experiências vitais da menopausa. Como
co diversas linhas de relativização de uma “natureza” diz a autora:
universal, unívoca, uniforme; externa e estanque em
relação à cultura, o que certamente coloca em novos [...] biologias locais se refere ao modo com que
termos a oposição entre natureza e cultura. processos sociais e biológicos estão inseparavel-
A primeira é capitaneada por uma série de etnó- mente enredados ao longo do tempo, resultan-
logos, como Tim Ingold, Viveiros de Castro e Ma- do em diferença biológica humana – diferença
rilyn Strathern, acompanhados por sociólogos como que pode ou não ser subjetivamente discernível
Bruno Latour, considerados como proponentes ou pelos indivíduos (Lock e Nguyen, 2010, p. 90).
associados da já citada “virada ontológica”. Incluem-
-se aí movimentos que podem ser chamados de Na útil revisão do conceito feita por Maria
“perspectivismo”, “novo animismo” ou “multinatu- Luiza Assad (2016, p. 79):
ralismo” (Halbmayer, 2012, p. 9), e cujas caracterís-
ticas principais consistem em uma relativização radi- [...] biologias locais são o resultado de proces-
cal de concepções ocidentais tão estruturantes como sos em que nem sempre podemos isolar de ma-
as de realidade, natureza, biologia e pessoa. Para os neira nítida um lado biológico e um lado social
fins desta análise, o mais contundente exemplo desse (equivalente aqui a histórico, político ou cultu-
movimento é o da obra de Tim Ingold (1990), por ral) – e por isso podem ser pensadas também
questionar não apenas a noção ocidental de nature- como indício desse emaranhado.
za, mas também as próprias concepções da biologia
corrente (em sua hegemônica síntese neodarwinista), A terceira é, finalmente, a das reflexões corren-
CIÊNCIAS HUMANAS E NEUROCIÊNCIAS  11

tes sobre o desenvolvimento da epigenética e suas ber a emergência dessa capacidade senão pelo aleató-
implicações para uma reavaliação das ambições rio surgimento do suposto “excesso” de células nervo-
deterministas originais da genética (Meloni, 2015; sas.21 Ou ainda conceber que uma criança privada de
Silva e Duarte, 2016; Assad, 2016). Os avanços relações intersubjetivas, coletivas, pudesse desenvolver
recentes da epigenética desafiam a noção de uma o domínio de uma língua natural, supostamente en-
herança mecânica pela via dos genes, ao focar nas castoada, toda pronta, em sua cabeça, desde o Pleisto-
alterações em sua expressão decorrentes do “am- ceno (como no caso dos famosos “meninos lobos”, tão
biente”, ou seja, de todas as circunstâncias que en- discutidos a partir do século XVIII).
volvem os sujeitos, interpessoais e situacionais. Essa Não são raras atualmente as iniciativas no
perspectiva abre novas possibilidades de concepção sentido de superar a clivagem entre as ciências hu-
das fronteiras entre a natureza e a cultura, com a manas e as neurociências, oferecendo argumentos
intervenção de dimensões processuais e relacionais para uma aproximação estratégica, de que adviriam
antes escamoteadas. É uma perspectiva dinâmica e frutos em ambas as direções. Aparentemente, elas
interativa, que aproxima, de certa forma, a epigené- são mais numerosas na área da psicanálise, prova-
tica da neuroplasticidade. velmente por força da necessária vizinhança com a
Esses “naturalismos” aqui evocados são imen- psiquiatria de cunho neurocientífico. Não se pode,
samente variados, com interesses analíticos e pro- porém, descartar o fato de que a naturalização neu-
gramáticos díspares, não configurando de modo rocientífica atende a uma permanente inquietação
algum uma tendência uniforme e – muito menos – “naturalista” interna à psicanálise, costumeiramente
hegemônica. O fio comum que os aproxima – e a formulada em memória do “Projeto de uma psi-
diversos outros – da biomedicina é o da atenção cologia científica”, escrito por Freud, na transição
privilegiada aos fenômenos da “vida” (como am- entre sua dedicação à neurologia e a invenção da
bíguo conceito deslizante entre condição natural e psicanálise. A expectativa expressa por ele de que a
regime de significação), enquanto o fio que os afas- vida psicológica acabaria podendo ser analisada em
ta da biomedicina é o da recusa a qualquer modali- termos naturalistas descritivos apela a todos aqueles
dade de fundacionismo físico e realista primordial que buscam se afastar do mentalismo hegemônico
ou de reducionismo unilinear. na psicanálise em direção à corporalidade. O tra-
balho de Landeira-Fernandez e Cheniaux (2008) é
um exemplo de iniciativas brasileiras nessa direção.
Conclusões Não parece que sejam numerosos os trabalhos
desse tipo com origem nas ciências sociais. Os dois
O modo como o ser humano é apresentado únicos a que tive acesso defendem regimes de inter-
na exposição do Museu do Amanhã faz dele um locução das ciências humanas com as neurociências
subproduto de um de seus órgãos, que, portanto, (Fitzgerald e Callard, 2014; Campoy, 2016), na
teria de ter emergido preliminar e autonomamente medida em que venha a ser possível construir uma
em relação à espécie, ao organismo e à pessoa de que plataforma de cooperação efetiva.
compõe o conjunto.20 A subordinação da emergên- Fitzgerald e Callard propõem uma revisão das
cia da linguagem a um “pequeno excesso de células” atitudes das ciências humanas em relação às neu-
do cérebro é particularmente tendenciosa, ao propor rociências (2014, pp. 2-3), na perspectiva de um
que esse fenômeno essencial da humanidade – in- engajamento em “emaranhamentos [entanglemen-
dissociável como é da simbolização – tivesse brotado ts] experimentais” (p. 4), que não se submetam aos
pronto de um cérebro já plenamente humanizado, protocolos correntes de pesquisas “interdisciplina-
no nível filogenético, ou que viesse a fazê-lo repeti- res”. Fazem uma revisão abrangente da literatura
damente no caso das evoluções ontogenéticas. atinente às relações entre os dois campos discipli-
Para propor tal hipótese, é necessário atribuir à nares e buscam se concentrar nas possibilidades
matéria cerebral uma capacidade autogenética externa heurísticas de uma participação de cientistas sociais
à condição do Homo sapiens, sem que se possa conce- no próprio espaço de experimentação característi-
12  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 33 N° 97

co das neurociências. Recorrem, para sustentar essa Há todo um desenvolvimento interno às neu-
expectativa, à existência de uma “neurociência crí- rociências voltado para uma ação multidisciplinar
tica” (p. 8), a que corresponderia o movimento de a respeito dos “atos humanos que envolvem uma
aceitação de uma “teoria da afetação” no seio dos pessoa que pensa e sente, conscientemente ou não,
estudos culturais (p. 9). Oferecem inclusive alguma sobre si própria, ou sobre os outros, ou sobre gru-
informação sobre duas experiências concretas desse pos sociais mais amplos” (Cacioppo et al., 2006,
trabalho experimental conjunto, que acreditam ser p. viii), o que deveria provavelmente ensejar algum
capaz de tornar os avanços neurocientíficos signifi- diálogo com as ciências sociais. Baseia-se em uma
cativos do ponto de vista das ciências sociais. retórica de superação do dualismo “nature vs. nur-
Leonardo Campoy (2016, p. 249), por sua vez, ture” (p. x), embora sua “multidisciplinaridade”
considera que a influência das neurociências pode- não inclua as ciências sociais. Essa “neurociência
ria ser útil para uma necessária superação do dua- social” (ou “estudos de cognição social”) se restrin-
lismo entre natureza e cultura, que se reduplicaria ge a tratar das questões “sociais” pelo prisma das
tradicionalmente no que opõe o cérebro à mente. neurociências, de modo intensamente articulado
Aposta na possibilidade do estabelecimento de com a psicologia evolucionária.22
Não se pode deixar de registrar que se encon-
[...] uma relação de complementaridade entre tram entre os pesquisadores de neurociências autores
conexões neuronais e vivências individuais ou, de textos de avaliação do campo razoavelmente sen-
para colocar no vocabulário mais utilizado pe- síveis – pelo menos no plano dessa retórica geral –
los cognitivistas, entre organismo e ambiente à possível convivência entre os dois paradigmas,
(Campoy, 2016, p. 262). como é o caso, no Brasil, de Roberto Lent (2008).
Mas a consciência das pequenas violências perpetra-
E manifesta uma compreensível expectativa das pelas neurociências contra as ciências humanas
positiva em relação à adoção da noção de “neuro- em palcos públicos interdisciplinares contemporâ-
plasticidade”, ao considerar presente nas neurociên- neos, como o do Museu do Amanhã, não me parece
cias o conceito de permitir uma atitude irênica em relação às ambições
estruturais da disciplina, que ultrapassam em muito
[...] um cérebro mutável ao longo do tempo, não o que possa haver de eventual abertura e disponibili-
só transformado, mas, principalmente, depen- dade ao diálogo em seus representantes individuais.
dente do ambiente cultural. Um corpo humano Não se trata absolutamente de postular uma
interpretado como fisiologicamente disposto às “primazia ontológica” (Fitzgerald e Callard, 2014,
relações sociais (Campoy, 2016, p. 273). p. 9) das ciências humanas sobre as ciências da vida
no trato dos fenômenos vivenciais, mentais e com-
São palavras de esperança em uma interlocu- portamentais, mas de garantir sua presença legítima
ção que seria, sem dúvida, do máximo interesse e em um campo científico geral em que são frequen-
importância, mas de que não há sinais ou garantias temente consideradas anômalas, inconsequentes
efetivas na literatura disponível (e muito menos nas ou incompetentes. É difícil para as ciências natu-
iniciativas de difusão do saber neurocientífico, dire- rais reconhecerem como “científicas” disciplinas ou
tas ou indiretas), o que torna, por ora, bem pouco regimes de saber que não se rejam pelos cânones
realista seu programático veredicto final: naturalistas e fisicalistas da ciência experimental.
Efetivamente as ciências humanas nasceram da de-
Não é mais preciso desmascarar as assimetrias núncia dessa tradição iluminista, considerada inca-
de poder das lógicas internas do ocidente por paz de dar conta das qualidades peculiares – sistê-
meio de uma etnografia das neurociências, micas, processuais e emergentes – da vida social e
tampouco o é tomá-la como um espantalho mental. Elas não se consideram aquém das qualida-
inimigo para promover a importância da cul- des heurísticas das ciências naturais, mas além – no
tura (Campoy, 2016, p. 275). tocante à singularidade dos processos próprios do
CIÊNCIAS HUMANAS E NEUROCIÊNCIAS  13

humano. E o que se vê colocado em seu lugar, nas específicas dos projetos de pesquisa. Felizmente, os
diversas tendências reducionistas em curso, apenas estudos sociais da ciência são uma área cada vez mais
vem reforçando o reconhecimento da incompetên- forte das ciências sociais, dando rica continuidade às
cia das ciências da vida ao passarem da descrição contribuições de pioneiros como Ludwik Fleck ou
dos mecanismos vitais para a interpretação, a partir Robert Merton. Os estudos de laboratório, coloca-
deles, da experiência vital socialmente construída. dos na ordem do dia por Bruno Latour, são uma im-
É fundamental retornar, a esta altura, ao ou- portante via dessa telescopização, mas não a única.
tro detalhe da exposição do Museu do Amanhã a Eu, pessoalmente, ainda acho mais instigante uma
que fiz referência – aparentemente estranho à ce- perspectiva historicizante, que permita reconhecer
rebralização. Trata-se da composição heteróclita os enraizamentos de longa duração de projetos cien-
de imagens e categorias sociais, contida num cubo tíficos que se acreditam emergindo por geração es-
visitável, que deveria representar o essencial do mó- pontânea do ambiente mesmerizante dos centros de
dulo “Pensamento”. Como disse, a informação aí pesquisa e dos laboratórios universitários.
contida é totalmente assistemática, aleatória e pi- Nesse sentido, cabe sublinhar como parece ao
toresca, dando a entender que, enquanto o cérebro mesmo tempo surpreendente e previsível que cer-
é a dimensão fundacional, séria, estruturada, da to messianismo cristão, que se encontra na raiz do
condição humana, a “cultura” não passa de uma es- projeto de iluminação pela ciência da cultura oci-
cuma multiforme, volátil e desordenada. A mensa- dental moderna, possa estar tão ativo por trás do
gem transmitida, em uma instituição voltada para a tom triunfante com que se apresenta nessa expo-
promoção de consciência ecológica e educação para sição o “cerebralismo”. No lugar do Deus Criador,
a sustentabilidade, parece ser a de que a humanida- que não teria mais guarida num museu de ciência e
de terá que se organizar para intervir diretamente tecnologia (e nem mesmo seu substituto, o Design
no cérebro, caso deseje superar os graves desafios Inteligente...), entroniza-se outra divindade: um
ao seu amanhã. Mas há também a mensagem su- Cérebro onisciente, onipotente e onipresente. Que
bliminar de que nada se pode esperar das ciências um “criacionismo laico” possa presidir aos espaços
humanas, colocadas a léguas de distância de qual- de um templo da ciência e da técnica não é das me-
quer uma das problematizações encenadas no Mu- nores ironias que as ciências humanas detectam e
seu. Há, portanto, uma relação necessária entre o descrevem na trama complexa das sociedades.
reducionismo cerebralista das mensagens prelimi-
nares ao cubo do Pensamento e o esvaziamento
conceitual da apresentação das informações sobre Notas
a sociedade e a cultura, que torna particularmente
insidiosa a solução privilegiada pelos curadores. 1 Fui convidado a participar do projeto como consultor
Em condições como as atuais, em que os ven- em meados de 2009, tendo atendido a demandas es-
tos do imaginário social e, com eles, os do campo pasmódicas das sucessivas equipes de organização até
a inauguração da exposição. Nesse último momento
científico sopram contra a legitimidade específi-
fui convidado para compor o Conselho Científico do
ca das ciências humanas, cabe a elas, mais do que
Museu. Na primeira reunião do Conselho, em feverei-
nunca, debruçar-se sobre as condições em que se ro de 2016, apresentei minhas críticas à apresentação
constroem as ciências naturais como fenômeno do humano cristalizada na exposição, repetindo as
ideológico e social, desde as suas condições de pro- ideias que eu havia recorrentemente expresso, inclusi-
dução mais técnicas e sofisticadas até as manifesta- ve por escrito, durante as discussões sobre o conteúdo
ções mais banais e popularizantes. museográfico – e que tinham vindo a ser desprezadas,
Faz parte dessa responsabilidade demonstrar sem qualquer informação, debate ou justificativa.
como as ideologias científicas (inclusive as suas 2 Stephen J. Gould assim define “reducionismo”: “o
próprias) se apoiam sobre um solo social e como se desejo de explicar fenômenos parcialmente aleató-
movem instigadas por pulsões cognitivas e por estí- rios, de larga escala e irredutivelmente complexos pelo
mulos sociais em muito estranhos às racionalizações comportamento determinista das suas menores par-
14  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 33 N° 97

tes constitutivas” (Gould, 1981, p. 27). Ver também racionalista clássico e ao materialismo mecanicista e
Bezerra Júnior (2000, p. 167). O “eliminacionismo” afirmando a vida como valor supremo”.
ou “eliminativismo”, em sua versão dita “materialis- 10 “O individualismo característico das sociedades oci-
ta”, consiste em recusar realidade aos estados da men- dentais e ocidentalizadas, o valor supremo dado ao
te que não sejam reconhecíveis como propriedades da indivíduo como agente autônomo da escolha e da
matéria cerebral. iniciativa, e a ênfase correspondente na interioridade
3 Como última parte de um tríptico sobre o “Cosmos”, às custas dos vínculos e contextos sociais, são susten-
que dá início à exposição do Museu: Matéria, Vida e tados pela ideologia da cerebralidade e reproduzidos
Pensamento. pelos discursos neuroculturais” (Vidal, 2009, p. 7).
4 São dez categorias verbais (amamos, pertencemos, cria- 11 Rogério Azize (2008, p. 14 e 16) contribuiu para a
mos, celebramos, disputamos, produzimos, sentimos, compreensão da disseminação dos valores das neu-
lembramos, habitamos, acreditamos) que se desdobram rociências ao associá-los à ideologia contemporânea
em 27 categorias nominais completamente aleatórias. do enhancement ou self-improvement, generalizada
No projeto que me haviam encomendado em 2014, eu disposição em fazer ampliar as capacidades interati-
sugeria algo de semelhante, mas como primeiro passo vas e comportamentais dos sujeitos mediante recursos
na direção de uma explicitação da “variedade”, “com- de controle e treinamento. A noção de “bioascese”,
plexidade” e “sistematicidade” da experiência humana – trabalhada por Francisco Ortega (2008a), também
e não como mensagem autossuficiente. designa aspectos desse processo.
5 Ver também, no mesmo sentido, mas de uma perspec- 12 O caráter construído das imagens que se tornam evi-
tiva biológica, Dunbar (1998). dências científicas é ressaltado por diversos autores.
6 A categoria “paralelismo psicofísico” designa o mode- Fernando Vidal (2009, p. 27) diz, por exemplo, que “as
lo proposto por Leibniz para a relação entre o espírito neuroimagens funcionais podem ser ícones modernos,
e a matéria, tal como retomado por W. Wundt (Duar- mas [...] resultam de uma cadeia de decisões sobre o
te e Venancio, 1995). processamento de dados numéricos, e fazem parte das
práticas locais de produção, recepção e comunicação
7 O próprio Darwin ([1871] 2004b, p. 61 e 116), em
que se acrescentam à sua complexidade tecnológica.
A origem do homem e a seleção sexual, reconheceu o
O que isso implica para a materialização das invisíveis
ser humano como um “animal social”, e considerou
qualidades e experiências psicológicas, e para a transfor-
que “a civilização reprime a ação da seleção natural”.
mação de processos materiais em imaterialidade?”. Po-
8 Esse processo respondia à necessidade de reinstituir de-se ver ainda, sobre esse ponto, Ortega e Vidal (2011,
os fundamentos da condição humana, despojada de p. 13); Ortega e Zorzanelli (2010) e Zorzanelli (2011).
suas garantias transcendentais com a suspensão, pelo
13 As noções de neurochemical self (Rose, 2003) e de so-
menos metodológica, da hegemonia das crenças reli-
matic individuality apontam para a mesma configu-
giosas (Gusdorf, 1972).
ração (Carlos Novas e Nicholas Rose, apud Ortega e
9 Russo e Ponciano (2002, p. 351 e 371) chamam de Vidal, 2007, p. 256).
“monismo naturalista” à tendência contemporânea
14 As correntes homólogas de determinismo natural da
mais geral a que pertencem as neurociências, baseado,
homossexualidade – endocrinológico e genético –são
nas últimas décadas do século XX, em um antirra-
examinadas respectivamente em Nucci (2010) e em
cionalismo e um antidualismo estruturantes: “a atual
Fry e Carrara (2016).
tendência à adoção de uma visão totalmente natura-
lizada do ser humano – sobretudo daquelas caracte- 15 Esse papel de garantia quase mágica de processos as-
rísticas, tais como consciência, razão, linguagem, que sociados à “política de identidades” é cumprido tanto
tradicionalmente o distinguiam dos outros animais – pelas neurociências quanto pela genética. No primeiro
corresponde à ancoragem do espírito no corpo, o caso, é interessante mencionar os movimentos sociais
que significou não tanto uma redução materialista do subsumidos na categoria “neurodiversidade”, em que
humano, mas uma transfiguração espiritual da natu- o argumento do funcionamento cerebral avaliza uma
reza material. Esta, como se viu, passa a ser dotada demanda identitária afinada com o espírito do tempo
de características tradicionalmente vistas como huma- por parte de diversos segmentos antes marcados por
nas, em uma espécie de neovitalismo sem princípio algum estigma ou “deficiência”. A “‘neurodiversidade’
vital. Parecemos estar frente a uma Lebensphilosophie se torna um valor que os ‘neurotípicos’ devem respei-
materialista, fundada em uma crítica ao paradigma tar” (Ortega e Vidal, 2007, p. 257; Ortega, 2008a).
CIÊNCIAS HUMANAS E NEUROCIÊNCIAS  15

16 A clássica crítica de Marshall Sahlins (1976) à socio- BIBLIOGRAFIA


biologia demarcou uma posição mais afirmativa da
antropologia em relação aos determinismos biológi- ASSAD, Maria Luiza G. (2016), Situando a biolo-
cos reavivados a partir dos anos 1960 (Sahlins, 2008).
gia: de biologias locais à epigenética. Dissertação
Para uma boa revisão recente das posições “antinatu-
de mestrado, Rio de Janeiro, Instituto de Me-
ralistas”, ver Meloni (2011, p. 109).
dicina Social, Uerj.
17 O etnólogo americanista Philippe Descola nomeou
AZIZE, Rogério L. (2008), “Uma neuro-weltans-
como “naturalismo” uma das quatro grandes concep-
ções cosmológicas (ou “ontologias”) que considera pre-
chauung? Fisicalismo e subjetividade na divul-
valecentes entre as diversas culturas humanas. É a que gação de doenças e medicamentos do cérebro”.
caracterizaria justamente as sociedades ocidentais (ou Mana – Estudos de Antropologia Social, 14 (1):
euro-americanas) modernas (Descola, 2013); fundada, 7-30.
como é, na crença em uma natureza una, unívoca e já BEAUREGARD, M. & PAQUETTE, V. (2006),
dada exteriormente à experiência humana. “Neural correlates of a mystical experience in Car-
18 Na verdade, um processo de mais longo curso, radica- melite nuns”. Neurosci Lett, 405 (3): 186-190.
do na reação romântica ao racionalismo iluminista e BEZERRA JÚNIOR, Benilton. (2000), “Natura-
indissociável de toda a evolução das ciências humanas – lismo como antirreducionismo: notas sobre cé-
graças ao seu centramento na subjetividade, no fluxo, rebro, mente e subjetividade”. Cadernos IPUB,
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encarnou plenamente os ideais dessa tradição, demar-
BEZERRA JÚNIOR, Benilton. (2007), “Da con-
cando um caminho palmilhado pelos empiristas con-
temporâneos (Duarte, 2004).
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19 “A neurociência nada mais faz que seguir e aprofun-
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dar o caminho já traçado pela chamada medicina do
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oferecendo um aconselhamento especializado na arte Rio de Janeiro, 7 Letras.
do ‘bem viver’” (Russo e Ponciano, 2002, p. 25). Ver, BEZERRA JÚNIOR, Benilton. (2010), “Neurociên-
sobre a ideologia do enhancement, Azize (2008). cias e Psicanálise: definindo discordâncias para
20 A chamada “falácia mereológica”, nos termos de Ben- construir o diálogo”. Revista APPOA – Associação
nett e Hacker, comentados por Meloni (2011, p. 110). Psicanalítica de Porto Alegre, 38: 145-159.
21 O princípio darwiniano da seleção natural realmen- CACIOPPO, J. T. et al. (orgs.). (2006), Social neu-
te opera a partir de mutações aleatórias, mas elas só roscience: people thinking about thinking people.
se preservam no processo evolutivo quando servem à Cambridge, MA, MIT Press.
“luta pela vida”, ou seja, contribuem para uma me- CAMPOY, Leonardo C. (2016), “Como o cientis-
lhor sobrevivência no meio ambiente em que vicejam ta social pode se relacionar com as neurociên-
(Darwin, [1859] 2004a, p. 160-161). Que haja um cias contemporâneas. Discurso nativo ou voz
“excesso de células” aleatoriamente surgido no cére- analítica?”, Sexto Caderno: Novas Antropologias,
bro não é explicação suficiente para nenhum traço
5 (6): 238-278.
evolutivo; é preciso que essas células sejam postas em
CANGUILHEM, Georges. (1975), Études d’his-
ação em determinada direção, que a seleção preservará
ou não. O surgimento da linguagem e da cultura de- toire et de philosophie des sciences. Paris, Vrin.
pende, portanto, de alguma outra explicação, menos DARWIN, Charles. ([1859] 2004a), A origem das
linear e autógena. espécies. São Paulo, Martin Claret.
22 A psicologia cognitivista, em geral, e a psicologia evo- DARWIN, Charles. ([1871] 2004b), A origem do ho-
lucionária, em particular, contribuem intensamente mem e a seleção sexual. Belo Horizonte, Itatiaia.
para os debates aqui resenhados, eventualmente pa- DESCOLA, Philippe. (2013), Beyond nature and
trocinando discussões que se pretendem interdiscipli- culture. Chicago, University of Chicago Press.
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RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS  19

CIÊNCIAS HUMANAS E HUMAN SCIENCES AND SCIENCES HUMAINES ET


NEUROCIÊNCIAS: UM NEUROSCIENCES: A CRITICAL NEUROSCIENCES: UNE
CONFRONTO CRÍTICO A CONFRONTATION AS CONFRONTATION CRITIQUE
PARTIR DE UM CONTEXTO SEEN FROM A BRAZILIAN À PARTIR D’UN CONTEXTE
EDUCACIONAL EDUCATIONAL CONTEXT ÉDUCATIF

Luiz Fernando Dias Duarte Luiz Fernando Dias Duarte Luiz Fernando Dias Duarte

Palavras-chave: Neurociência; Museu; Keywords: Neuroscience; Museum; Sci- Mots-clés: Neurosciences; Musée;
Ciência; Determinismo; Naturalismo. ence; Determinism; Naturalism. Science; Déterminisme; Naturalisme.

A antropologia contemporânea tem se Contemporary anthropology has opened L’anthropologie contemporaine s’est
aberto com grande entusiasmo para uma itself with great enthusiasm to a revision ouverte avec beaucoup d’enthousiasme
revisão das bases tradicionais da oposição of the traditional bases of the opposition à une révision des bases traditionnelles
entre “natureza” e “cultura”, seguindo between “nature” and “culture”, follow- de l’opposition entre la « nature » et la
tendências antirrepresentacionalistas e ing anti-representationalist and hyper- « culture », suivant les tendances anti-re-
hiperempiristas que se fundam em um empiricist trends based on a number of présentationnalistes et hyper-empiristes
conjunto complexo de argumentos filo- philosophical and ethical postulates. At qui se confondent dans un ensemble
sóficos e éticos. Ao mesmo tempo, novas the same time, new configurations in the complexe d’arguments philosophiques
configurações das ciências naturais reto- natural sciences return to their character- et éthiques. Parallèlement, de nouvelles
mam os postulados mecanicistas originais istic mechanist models, reasserting their configurations des sciences naturelles ont
dessa área. O vasto campo contemporâ- original tenets. The broad contempo- repris les postulats mécanicistesoriginaux
neo das neurociências tem sido pródigo raneous field of neurosciences abounds de ce domaine. Le vaste champ des neu-
em propostas materialistas deterministas, in proposals based on a deterministic rosciences contemporaines a été riche en
ao explorar a conexão cerebral da expe- materialism, emerging from top technol- propositions matérialistes déterministes
riência humana com potentes recursos e ogy and broad scope research about the en explorant la connexion cérébrale de
ambições de grande envergadura. A coe- connection between the nervous system l’expérience humaine avec de puissants
taneidade desses movimentos sugere que and human experience. The coetaneity moyens et des ambitions à grande échelle.
se resuma em que se aproximam e se dis- of these movements demands an expa- La contemporanéité de ces mouvements
tinguem esses “naturalismos” biomédicos tiation about the points of convergence suggère que l’on résume en quoi s’ap-
e antropológicos. Mas se trata aqui sobre- and divergence between biomedical and prochent et se distinguent les « natu-
tudo de resumir os principais fios do diá- anthropological “naturalisms”. It is then ralismes » biomédicaux et anthropolo-
logo tenso que se vai desenhando entre as necessary to gather some of the links of giques. Mais il s’agit principalement de
posições características dos dois grandes the tense dialogue in process among the résumer les principaux fils conducteurs
campos, com importantes desafios para sundry positions in both fields, involving du dialogue tendu qui se dessine entre les
o empreendimento antropológico; tal eminent challenges for the anthropologi- positions caractéristiques des deux grands
como expresso nas exposições do recente cal endeavor; as expressed especially in domaines, avec des défis importants à
Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro. the exhibits of the new Museu do Amanhã l’entreprise anthropologique tel que cela
(Museum of Tomorrow), in Rio de Ja- est exprimé dans les expositions récentes
neiro. du récent Museu do Amanhã (Musée de
Demain) à Rio de Janeiro.

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