You are on page 1of 28

ÀS EXPENSAS DA INTUIÇÃO INTELECTUAL: PARA UMA FUNDAMENTAÇÃO

DA ATIVIDADE DA RAZÃO TRANSCENDENTAL


At the expenses of intellectual intuition: towards a rationale for the activity of
transcendental reason

Luciano Carlos Utteich1


Programa de Graduação e Mestrado em Filosofia
UNIOESTE
lucautteich@terra.com.br

Resumo: Kant criticou incisivamente na Crítica da razão pura (1787) a tentativa de manter a
noção de Intuição intelectual como válida ao procedimento moderno da argumentação
científica. Num sentido inequívoco a pressuposição desse tipo de Intuição como
conhecimento intelectual e imediato dos objetos antes descurava das reais condições humanas
limitadas de conhecimento, dependente de atos de síntese para constituir objetos. Num roteiro
argumentativo diferente, do ponto de vista da sistematização da razão transcendental, Fichte
concede na Doutrina da Ciência (1794) e na Segunda Introdução à Doutrina da Ciência
(1797) uma atividade à Intuição intelectual, não para uma vinculação intelectual imediata do
sensível, mas para evidenciar os atos originários da reflexão do eu (Apercepção), enquanto
constituidores do sistema da Filosofia transcendental. Expomos a diferença de registro nas
concepções kantiana e fichtiana da noção de Intuição intelectual.

Palavras-chave: Filosofia Transcendental. Coisa em si. Idealismo transcendental. Intuição


Intelectual. Autoconsciência.

Abstract: Kant pointedly criticized in the Critique of Pure Reason (1787) the attempt to keep
the notion of intellectual intuition as a valid concept to modern procedures of scientific
argumentation. In an unequivocal sense, the assumption of such Intuition as intellectual and
immediate knowledge of the objects disregarded the actual limited human conditions of
knowledge, dependent on synthesis acts to constitute objects. At a different argumentative
script, from the point of view of the systematization of transcendental reason, Fichte gives
both in the Doctrine of Science (1794) and in the Second Introduction to the Doctrine of
Science (1797) an activity to intellectual intuition, not for a immediate intellectual binding of
the sensitive but to highlight the acts originated on the reflection of self (apperception), as
constitutors of the system of transcendental philosophy. We expose the difference of register
in the Kant’s and Fichte’s conceptions of the notion of intellectual intuition.

Keywords: Transcendental Philosophy. Thing-in-itself. Transcendental Idealism. Intellectual


Intuition. Self-Conscience.

1
Professor Adjunto da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Toledo (Paraná, Brasil). Email:
lucautteich@terra.com.br. Doutor em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, Brasil. Agradeço à CAPES pelo apoio.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 100
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

I. Introdução

O veto de Kant na Crítica da razão pura (1787) a um tipo de Intuição puramente


intelectual dos objetos, por meio do qual eram extraídos conteúdos sensíveis e a matéria do
conhecimento, pode se considerar conforme à exigência moderna na Filosofia, que entende
como devendo se submeter a rigorosos procedimentos de prova e demonstração todas as
afirmações que pretendam valer como conhecimento. Tendo elucidado na Primeira crítica que
o veto à Intuição intelectual (entendimento intuitivo)2 redireciona a atenção aos atos
necessariamente constitutivos dos objetos de conhecimento, através disto atenta à função
decisiva do sujeito (lógico) do conhecimento, desenvolvido pela Analítica transcendental da
Crítica da razão pura e na noção de Apercepção transcendental. Expomos adiante a
argumentação de Kant sobre a ineficácia da Intuição intelectual para alcançar o que deve ser
entendido mediante o desenvolvimento3 das condições constitutivas do conhecimento, pela
exposição das condições de possibilidade transcendentais dos objetos (demonstradas mediante
as deduções metafísica e transcendental das categorias na Analítica transcendental), e à base
da fundação das faculdades transcendentais do sujeito de conhecimento.
Por sua vez, Fichte reativou num sentido específico a função a ser exercida pela
Intuição intelectual, de demonstrar a constituição do sistema do conhecimento como
elucidado e fundado ao mesmo tempo pelo estatuto transcendental da razão. Mais importante

2
De modo geral, os conceitos de Intuição intelectual e entendimento intuitivo se equivalem no contexto em que
Kant busca impugnar sua eficácia para o pensamento consequente fundado pela filosofia. Todavia, no contexto
do pensamento fichtiano a Intuição intelectual se mostra desde nuanças e operações não similares ou cogitadas
pela crítica kantiana à noção do entendimento intuitivo.
3
Como acentua Henrich, “Kant desenvolveu sua filosofia crítica na intenção de tornar transparentes as leis da
razão, das quais surgiu a metafísica tradicional e, deste modo, o fundamento para a luta milenar, que ela
conduziu contra si mesma”. HENRICH, 1969, p. 57. Neste sentido, recorda Henrich, a possibilidade de
vincularmos à uma conexão histórica os problemas filosóficos tem de ser pensada, como Aristóteles, enquanto
“o primeiro que julgou necessário tratar os problemas filosóficos em sua conexão histórica”. Pois, a própria
razão tem de se manter exercitada a fim de desvencilhar-se historicamente das suas produções. Segundo Henrich,
tal sucedeu a Aristóteles, cuja “metafísica e psicologia contêm muitos conceitos que apenas foram elaborados na
intenção de superar as dificuldades nas quais seus precursores haviam fracassado”, sendo que “esses conceitos
são resultado tanto de seu próprio pensamento como de sua crítica da história”. Como tarefa ambicionada pelos
primeiros pós-kantianos – Reinhold, Maimon, Schulze e Jacobi – estes se atarefaram em desenvolver às
consequências últimas o estágio da razão pura, debatendo as condições para considerá-la, por um lado, como em
condições de se mostrar autofundada, mas, por outro, como impossível de ser fundada de modo incondicionado,
cabendo por isso ir encontrar na dimensão histórica um modo de elaborar a vinculação dos princípios filosóficos
fundamentais, a partir da perspectiva já estabelecida pela crítica kantiana da razão pura. Para um debate
detalhado, Cf. FRANK, 1997.
_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 101
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

que considerar as diferentes fontes de representação das faculdades transcendentais, há que se


mostrar, segundo ele, de que modo as representações estão ou se acham fundadas no sujeito
(transcendental)4. Para isso estabelece como mais originário um princípio primeiro
(Grundsatz) do conhecimento, na constatação de que toda consciência (de objetos) é
condicionada originalmente pela consciência imediata de nosso Eu5. Fichte toma a noção de
autoconsciência (Selbstbewusstsein) ou de Eu transcendental como oriunda da noção kantiana
da Apercepção transcendental. Mas a partir daqui executa operações inteiramente distintas, ao
apresentar a relação entre os produtos e as ações reflexivas do Eu (Apercepção), tematizadas
transcendentalmente na reflexão, como amparadas do ponto de vista sistemático na atividade
da Intuição intelectual, que exibe o elemento vinculador das reflexões, como condicionadas
por uma primeira ação, um ato originário do Eu (Tathandlung).
Veremos a seguir os diferentes papéis da figura da Intuição intelectual a cada sistema,
executando operações distintas na “realização de sínteses”, e por isso como devendo ser
tomados enquanto propostas diferentes, ainda que Fichte insista que seu princípio da
autoconsciência (o Eu) seja o que executara atividades “de síntese” no modelo kantiano.

I. A Ultrapassagem dos limites da noção de Intuição Intelectual na KrV

Kant caracterizou o entendimento humano como sendo um entendimento discursivo,


que requer, para trazer sentido a seus conceitos, a vinculação dos conceitos a uma intuição
(matéria) para só então pensar os objetos na razão teórica (Verstand). Pois o entendimento
humano não tem condições de ter uma intuição dos objetos como totum simul, como acesso

4
Exemplifico isso fazendo referência a uma das questões nucleares trazidas pelo texto fundacional, a Grundlage
der gasammten der Wissenschaftslehre, 1794 [= GdW]) (Fundamentação completa da Doutrina da Ciência [=
DdC]), no qual Fichte coloca a pergunta: “que caminho se deve tomar na explicação da representação?”. In:
Fichtes Werke, hrsg. von I. H. Fichte, Berlim: de Gruyter, 1971, Bd. I, GdW, S. 156 (DdC, p. 82). Para uma
visão abrangente deste debate Cf. SPICKHOFF, 1961. Referente à Grundlage indicaremos a correspondente
numeração da página na tradução ao português de TORRES FILHO, R. R. A Doutrina da Ciência de 1794
(TORRES FILHO, 1972).
5
No texto ligeiramente posterior às duas Introduções à Doutrina da Ciência, intitulado Versuch einer neueren
Darstellung der Wissenschaftslehre (1797) (Ensaio de uma nova exposição da Doutrina da Ciência) Fichte
entende, de modo científico, a consciência imediata pela expressão “intuição”. Assim, na medida em que, diz
ele, “a consciência de meu pensar não é eventualmente algo contingente ao meu pensar, [ou] só acrescentada a
ele posteriormente e vinculada com ele, mas [ao contrário] é inseparável dele”, pode ser entendido que “toda
consciência é condicionada pela consciência imediata de nós mesmos”. Idem, 1797, p. 177-182. Na tradução de
Torres Filho ao português o texto aparece intitulado O Princípio da Doutrina da Ciência.
_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 102
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

intelectual à totalidade imediata dele (objeto) do ponto de vista material. Contornando essa
impossibilidade e ao mesmo tempo ineficácia, face às exigências atuais, Kant enfatiza a
dinâmica de outro conceito, tomado para pensar a unidade do pensamento, tanto do ponto de
vista analítico quanto sintético, a saber, o de Apercepção transcendental. Atento ao fato de
que a noção de Intuição Intelectual estivera atrelada, desde os medievais, à noção constitutiva
imediata também do objeto sensível6, Kant institui doravante, na Crítica da razão pura,
inicialmente que “(...) o ato de síntese (...) é, inevitavelmente, o primeiro princípio (...)”(KrV,
§ 17, B 139; CrP, p. 138).
Uma maneira meramente intuitiva de proceder (um intelecto vinculado já, diretamente,
à matéria sensível), mas que não pudesse apresentar as condições de justificação deste tipo de
antecipação para legitimá-la e demonstrá-la conceitualmente, relativa ao conhecimento, visto

6
Às nossas pretensões é suficiente comparar aqui o sentido do veto de Kant à atividade da Intuição Intelectual
com a análise de Heidegger, em Kant e o problema da metafísica, do caráter finito das condições do
conhecimento humano, atrelado à única forma de acesso aos objetos, a intuição. Segundo Heidegger, “a essência
da sensibilidade consiste na finitude da intuição. Os instrumentos que estão a serviço da afecção são
instrumentos sensíveis, por pertencer à intuição finita, à sensibilidade. Kant obteve assim, pela primeira vez, o
conceito ontológico não-sensualista da sensibilidade.” HEIDEGGER, 1986, p. 32. A esfera da Intuição
Intelectual é confrontada ao fato da sensibilidade humana ser finita e ser dependente a capacidade cognoscente
da razão. Pois, continua Heidegger, “essa finitude da razão não consiste única e primariamente no fato de que o
conhecimento humano demonstre muitos defeitos devido à inconstância, à inexatidão e ao erro, senão que reside
na estrutura essencial do conhecimento mesmo. A limitação fática do conhecimento não é senão uma
consequência desta essência.” Idem, 1986, p. 28. Neste sentido é posto em contraste a essência do conhecimento
humano finito com a ideia do conhecimento divino infinito, ou seja, com a intuitus originarius, enquanto a
essência do conhecimento humano procede por uma intuitus derivatus. Diz Heidegger: “a diferença entre a
intuição infinita e a finita reside unicamente em que aquela, em sua representação imediata do objeto singular,
isto é, do ente único e singular como um todo, o introduz primeiramente em seu ser, lhe ajuda em sua formação
(origo).” Idem, 1986, p. 30. Ou seja, trata-se de uma intuição absoluta que “não seria absoluta se estivesse
destinada a um ente já diante dos olhos, à medida do qual se faria acessível o objeto da intuição. O conhecimento
divino é aquela forma de representação que produz na intuição o ente desta [intuição] como tal. E como intui o
ente imediatamente em sua totalidade com uma transparência absoluta, não necessita do pensamento. Pois o
pensamento como tal leva já o selo da finitude.” Idem, 1986, p. 30-1. Não sendo o nosso modo de intuir, diz
Kant, senão “sensível, porque não é originário, quer dizer, não é um modo de intuição tal que por ele seja dada a
própria existência do objeto da intuição (como que se nos afigura só poder pertencer ao Ser supremo), [nosso
modo de intuir] antes é dependente da existência do objeto e, por conseguinte, só possível na medida em que a
capacidade de representação do sujeito é afetada por esse objeto”. Immanuel Kant Werkausgabe: in zwölf
Bänden. Hrsg. Wilhelm Weischedel. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1968, Bd. III, Kritik der reinen Vernunft I,
B 72 [= KrV] (Crítica da razão pura, 1990 [=CrP]; Cf. CrP, p. 86). Daí que justamente por ser a nossa “uma
intuição derivada (intuitos derivatus) e não original (intuitos originarius)”, a nossa intuição não será “intelectual,
como aquela que (...) parece só poder competir ao Ser supremo, nunca a um ser dependente, tanto pela sua
existência como pela sua intuição (a qual determina a sua existência em relação a objetos dados).” Idem, KrV B
72 (CrP, p. 87). Portanto, isso significa que o conhecimento humano é uma intuição não-criadora; ele possui uma
intuição que tem que poder “apresentar imediatamente em sua singularidade [aquilo que] deve estar já diante
dos olhos”. E assim o objeto dessa intuição tem de ser “um ente que existe já por si mesmo”, ou seja, ele não
pode ser “criado” pelo exercício de uma intuição pensante. Todo o conhecimento humano tem de ser sempre
“intuição e não pensamento”, já que o pensamento demonstra limitações. Cf. HEIDEGGER, 1986, p. 31.
_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 103
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

não suportar o fato de que o conhecimento exige ser exposto metodicamente, cujo
desenvolvimento ao mesmo tempo pode ser provado só enquanto possibilita ser acompanhado
exaustivamente em todos os momentos de seu processo, conduz tudo à completa obscuridade.
Diante de tais consequências não cabia admitir, por isso, nenhum desempenho à Intuição
intelectual. Kant impugnou o seu exercício e a sua atividade na Crítica da razão pura.
Enquanto uma faculdade não envolvida em processos demonstrativos e de justificação, ela
não poderia exibir nenhuma instância mediadora para se referir ao mundo real de objetos. Em
vez disso, tal faculdade representa o inverso do pretendido: ela acaba antes por bloquear a
investigação, consistindo num empecilho à autêntica investigação científica, truncando a
necessária pormenorização dos instrumentos de que a razão dispõe para fundar o
conhecimento.
Na referência à noção de Intuição Intelectual na Crítica da razão pura, esta é
apresentada como executando a produção de objetos sensíveis a partir do puro pensar, num
pensar desvinculado da matéria sensível (sensibilidade) e das condições de conhecimento do
ser humano finito. Todavia, diz Kant,

Um entendimento que, tomando consciência de si mesmo, fornecesse ao mesmo


tempo o diverso da intuição, um entendimento, mediante cuja representação
existissem simultaneamente os objetos dessa representação, não teria necessidade de
um ato particular de síntese do diverso para a unidade da consciência, como disso
carece o entendimento humano, que só pensa, não intui (KrV § 17, B 139; CrP, p.
138).

E ainda complementa Kant adiante, dizendo:

Um entendimento no qual todo o diverso fosse dado ao mesmo tempo pela


autoconsciência seria intuitivo; o nosso só pode pensar e necessita de procurar a
intuição nos sentidos (KrV § 16, B 135; CrP, p. 134).

Outro é o papel desempenhado pela faculdade de conhecimento que passou pelo crivo
e pela avaliação crítica: assim a faculdade do entendimento (Verstand) é admitida, enquanto
que tanto do ponto de vista teórico como do prático, a sua função é “reportar a síntese [como
efeito da imaginação] a conceitos”(KrV § 10, B 103; CrP, p. 109), e na medida em que, diz
Kant, “nós nada podemos explicar senão aquilo que possamos reportar a leis, cujo objeto

_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 104
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

possa ser dado em qualquer experiência possível”(GMS BA 121; FCM, p. 111)7, visto ser esta
a condição exclusiva das faculdades humanas a fim de demonstrar a legitimidade de suas
operações.
Kant elabora e apresenta a noção de Apercepção transcendental (Ich denke) visando
explicitar por meio dela, de um modo tanto lógico (analítico) quanto transcendental
(sintético), o papel a desempenhar como a única instância fundadora da vinculação entre a
sensibilidade (Sinnlichkeit) e a faculdade do pensamento (Verstand), cientificamente adotável
no domínio da argumentação metódica moderna. Partindo de uma série de desdobramentos,
Kant caracteriza os diferentes momentos nos quais a noção nuclear da apercepção
(autoconsciência) dá lugar ao processo de vinculação intrínseco entre os aspectos formais do
pensamento e os aspectos formais da sensibilidade, enquanto atos de síntese e de ligação,
conforme os quais a autoconsciência (Ich denke) aparece como o ponto mais alto, a unidade
mais geral contida em cada ato singular do pensamento e de subsunção dos dados sensíveis
(intuição) em conceitos gerais (categorias). Afirma Kant:

A unidade sintética da consciência é, pois, uma condição objetiva de todo o


conhecimento, que não me é necessária simplesmente para conhecer um objeto, mas
também porque a ela tem de estar submetida toda a intuição, para se tornar objeto
para mim, porque de outra maneira e sem esta síntese o diverso [da sensibilidade]
não se uniria numa consciência. Esta última proposição é, como dissemos, analítica,
embora faça da unidade sintética a condição de todo o pensamento; com efeito,
apenas afirma que todas as minhas representações, em qualquer intuição dada, têm
de obedecer à condição pela qual, enquanto minhas representações, somente posso
atribuí-las ao eu idêntico e, portanto, como ligada sinteticamente numa apercepção,
abrangê-las pela expressão geral ‘eu penso’ (KrV § 17, B 138; CrP, p. 137).

Distinguindo a eficácia do princípio Eu penso (Ich denke) em relação a uma atividade


pura e simplesmente intelectual, como na executada pela figura da Intuição intelectual, Kant
visa elucidar os limites do uso da própria Apercepção transcendental como princípio
científico, em contraposição à qual esvazia o sentido da pretensa função exercida por uma
Intuição intelectual. E nisso ele salienta, dizendo:

7
Immanuel Kant Werkausgabe: in zwölf Bänden. Hrsg. Wilhelm Weischedel. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1968, Bd. VII, Grundlegung der Metaphysik der Sitten [= GMS], BA 121, (Fundamentação da Metafísica dos
Costumes. Lisboa: Ed. Setenta, 1997 [= FMC], p. 111).
_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 105
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

Este princípio [Eu penso] não é, contudo, princípio para todo o entendimento
possível em geral, mas só para aquele [entendimento] cuja apercepção pura na
representação: ‘eu sou’, nada proporciona de diverso (KrV § 17, B 139; CrP, p. 138)

e ainda, visto que, complementa,

Mediante o eu, como simples representação, nada de diverso é dado; só na intuição,


que é distinta, pode um diverso ser dado e só pela ligação numa consciência é que
[ele] pode ser pensado. (...) Sou, pois, consciente de um eu idêntico, por relação ao
diverso das representações que me são dadas numa intuição, porque chamo minhas
todas as representações, que perfazem uma só (KrV § 16, B 135; CrP, pp. 134-5).

Pode se constatar, desde já, não haver nenhum sentido controverso no veto de Kant à
noção de Intuição intelectual, enquanto que, diz ele,

um entendimento no qual todo o diverso fosse dado ao mesmo tempo pela


autoconsciência seria intuitivo; o nosso [entendimento] só pode pensar e necessita
[para isso] de procurar a intuição nos sentidos (KrV § 16, B 135; CrP, p. 134).

A fim de imprimir seriedade no leitor habituado ao modo de vigência dos conceitos


desenvolvidos pela filosofia tradicional, doravante deve se conservar a atenção às reais
condições humanas de conhecimento, que dependem da realização de atos de síntese para
constituir os objetos de conhecimento. Neste sentido a atitude de Kant de vetar como falso
aquele recurso, desde o início, neutraliza a hipótese de passividade na atividade do conhecer,
podendo descartá-la através disso, em definitivo. Essa atitude crítica se mostra conquistadora
de um domínio no qual é possível problematizar a metafísica (tradicional) e iniciar daí um
novo modelo metódico, que considera ilusório qualquer uso das faculdades que não esteja
inteira e exaustivamente envolvido em processos de justificação.
A exigência de faculdades ativas para executar operações de síntese se torna por isso
presente: como uma síntese em geral que compreenda primeiro e diretamente a matéria da
sensibilidade, enquanto que, diz Kant, “nenhum conceito pode ser de origem analítica quanto
ao conteúdo”(KrV § 10, B 103; CrP, p. 109)8 – tendo por isso de ser dadas as representações

8
Completa Kant: “é a ela [síntese] que temos de atender em primeiro lugar, se quisermos julgar sobre a primeira
origem do nosso conhecimento”. Trata-se aqui da primeira síntese como sendo a mais geral, enquanto “é a
síntese que, na verdade reúne os elementos para os conhecimentos e os une num determinado conteúdo.” Idem,
KrV B 103 (CrP, p. 109). E continua, dizendo: “a síntese em geral é (...) um simples efeito da imaginação,
_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 106
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

referidas a um objeto (Gegenstand) antes de toda a análise; e, da síntese como um conceito


intelectual, realizada como uma ligação da série das percepções para constituir o objeto
(Objekt) a ser conhecido de modo determinado. Estas faculdades têm de atuar segundo leis
necessárias, conforme um modelo no qual possa ser explicitado o conjunto das condições
requeridas para seu envolvimento nas operações do conhecimento9.
Kant apresentou duas faculdades principais para o conhecimento: a faculdade da
sensibilidade (Sinnlichkeit) e a do entendimento (Verstand). As leis necessárias para as
ligações sintéticas de conhecimento dos objetos devem obedecer, por primeiro, às formas
puras de espaço e tempo (faculdade da sensibilidade), onde são dados os conteúdos (a
matéria); a partir disso as percepções são conceitualizadas pelo entendimento (e no interior
deste, mediante a unidade qualitativa da Apercepção transcendental), no qual cada ato
sintético do entendimento é uma determinação, sendo que agora o dado na sensibilidade é
pensado mediante tais atos, designados conceitos puros (categorias).
O princípio supremo de todo o conhecimento humano reside com primazia no conceito
da Apercepção transcendental (como unidade condicionante de todo ato de ligação do
entendimento a partir de categorias). No autodesdobramento interno destes condicionamentos
do entendimento, a razão teórica (Verstand) funda e demonstra o processo interno para a
obtenção de todas as suas potencialidades. Todavia, a filosofia tradicional havia fornecido a
razão como um princípio sem tanta pormenorização, como na exigida doravante por Kant.
Nem mediante o princípio cartesiano do cogito fora estabelecido por Descartes algo além de
um estágio apenas prévio à unificação entre o real e o ideal, entre a constituição interna do

função cega, embora imprescindível, da alma, sem a qual nunca teríamos conhecimento algum, mas da qual
muito raramente temos consciência”.
9
A faculdade de entendimento (Verstand), enquanto realiza a ligação das percepções por meio de conceitos, já
atua sob o pressuposto de uma identidade conservada de modo meramente analítico, mesmo que ela dependa
previamente de sínteses (que são constitutivas das categorias). Diz Kant: “(...) facilmente nos apercebemos de
que esse ato [do entendimento ou consciência] deverá ser igualmente válido para toda a ligação e que a
decomposição [análise] em elementos, que parece ser o seu contrário, sempre afinal a pressupõe.” Idem, KrV §
15, B 130 (CrP, p. 130). Isto é, “onde o entendimento nada ligou previamente, também não poderá desligar,
porque só por ele foi possível ser dado algo como ligado à faculdade de representação”. Idem, KrV § 15, B 130
(CrP, p. 130). Em vista disso, o próprio princípio da consciência (Ich denke), como princípio teórico, precisa
pressupor uma síntese, sobre a qual então “assenta (...) a própria possibilidade do entendimento” Idem, KrV B
137 (CrP, p. 136), e essa síntese é a Apercepção como o conceito mais alto de unidade, enquanto uma “unidade
qualitativa na medida em que por ela é pensada só a unidade da síntese do diverso dos conhecimentos, à maneira
da unidade do tema num drama, num discurso, ou numa fábula.” Idem, KrV B 114 (CrP, p. 116).
_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 107
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

pensamento (estágio a que chegou) e a capacidade do pensamento de referir-se ao mundo


externo10.
A figura de uma Intuição intelectual, enquanto uma noção imprecisa nos modelos
anteriores da investigação e vetada por não ter condições de satisfazer o efetivamente
requerido para o conhecimento fundado cientificamente, elucida por fim que as pretensões de
sustentar-se com primazia como atividade inteligível não consegue superar o fato de que o
conhecimento exige ser exposto metodicamente (seguir um método), cujo desenvolvimento é
provado enquanto possibilita ser acompanhado exaustivamente em todos os pontos de seu
processo. Daí que a negação expressa de tal noção não é controversa, pois sem passar pelo
crivo do método e seu desenvolvimento, um modo meramente intuitivo de proceder não pode
almejar possuir as condições de legitimação para justificar qualquer antecipação de
conhecimento: essa noção é antes um empecilho à autêntica investigação científica, truncando
a necessária pormenorização dos instrumentos de que dispõe a razão para fundar o
conhecimento de modo transcendental.
Ao inverso disso, obter-se-ia antes pela hipótese de uma atividade da Intuição
intelectual, premeditadamente, o bloqueio da investigação, como atitude esquiva de um
procedimento em si anti-metódico. Portanto, a pressuposição da atividade de uma Intuição
intelectual significa aqui um engodo, pelo fato alcançar de modo indireto o contrário daquilo a
que se propõe em seu exercício no conhecimento, a saber, uma deliberação a favor da
suspensão (neutralização) do único modo de investigação legítimo ao intelecto humano, o
modo lógico-discursivo. Daí que Kant afirme o caráter fundador da Apercepção
transcendental, dizendo:

O ‘eu penso’ deve poder acompanhar todas as minhas representações; se assim não
fosse, algo se representaria em mim, que não poderia, de modo algum, ser pensado,
que o mesmo é dizer, que a representação ou seria impossível ou pelo menos não
seria nada para mim (KrV B 131-2; CrP, p.131).11

10
Neste sentido o próprio Kant polemizara na Crítica da razão pura com o modo cartesiano de pensar a
vinculação do pensamento com o mundo externo, na Refutação do Idealismo empírico, ao problematizar o
problema do mundo exterior, colocado por Descartes, como um falso problema. Cf. Idem, KrV B 274-5 (CrP, p.
243). Para uma exposição detida da argumentação kantiana, Cf. ALLISON, 1992, pp. 447-468.
11
Em nota de rodapé, afirma Kant: “Assim, a unidade sintética da apercepção é o ponto mais elevado a que se
tem de suspender todo o uso do entendimento, toda a própria lógica e, de acordo com esta, a filosofia
transcendental; esta faculdade é o próprio entendimento.” Idem, KrV B 134 (CrP, p. 133).
_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 108
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

Enquanto um ato de espontaneidade, a representação Eu penso não está vinculada nem


pode ser considerada pertencente à sensibilidade, menos ainda a uma instância ao mesmo
tempo Intelectual e sensível. Por isso a representação Eu penso (Ich denke) será, diz Kant,

aquela autoconsciência que, ao produzir a representação ‘eu penso’, que tem de


poder acompanhar todas as outras, e que é una e idêntica em toda a consciência, não
pode ser acompanhada por nenhuma outra (KrV B 132; CrP, p. 132). [– e tal
representação mostrar-se-á como a única condição –] pela qual podem se encontrar
reunidas [as representações] numa autoconsciência geral (KrV B 132; CrP, p. 132).

Assim como relativo ao conhecimento Kant não desvincula a faculdade da


sensibilidade e a faculdade do entendimento12, mas demonstra o modo correto de vinculá-las
mediante operações discursivas (atos de ligação e síntese, realizadas no entendimento pela
espontaneidade da imaginação e do entendimento, devido ao fundamento da representação Eu
penso), permanece preservado o caráter heterogêneo dos domínios visando compreendê-los
enquanto metodicamente unidos (unificáveis), através das condições de possibilidade de
conhecer transcendentais13, condições essas assentadas na Apercepção transcendental e no
entendimento. Diz Kant:

O entendimento, como espontaneidade, pode (...) determinar, de acordo com a


unidade sintética da apercepção, o sentido interno 14 pelo diverso das representações

12
O tipo de vinculação entre a sensibilidade e o entendimento passa, novamente, pela atividade da faculdade de
imaginação transcendental, produtiva. Entretanto, pode-se dizer, Kant ainda mantém uma obscura relação entre o
princípio da consciência (Eu penso) e a imaginação transcendental, oriundo aqui da reincidente colocação em
relação do princípio da consciência (Eu penso) com a faculdade do entendimento: “A unidade sintética da
apercepção (...) é o próprio entendimento.” Idem, KrV B 134 (CrP, p. 133). Pois, por um lado, se o vínculo entre
o Eu penso e o entendimento reitera aquela dependência de um primeiro ato de síntese (pela faculdade de
imaginação transcendental), por outro, pela função mediadora também da imaginação transcendental – que
estabelece um “terceiro termo” para colocar um conceito intelectual como adequado à forma de uma percepção
sensível –, essa sua atividade esquematizante e produtora de esquemas deve ser considerada, diz ele, “uma arte
escondida nas profundezas da alma humana e da qual será difícil trazer, um dia, o verdadeiro mecanismo, à
natureza, para expô-lo, descoberto, a nossos olhos.” Idem, KrV B 180-1 (CrP, p. 183-4).
13
Abre-se aqui um debate na literatura sobre o executado pelas atividades de síntese do entendimento e da
imaginação no sentido interno (forma do tempo), pelo conceito de auto-afecção do sentido interno, em relação ao
princípio da autoconsciência (Eu penso). Para uma exposição detalhada das diferentes camadas que constituem o
desdobramento kantiano do conceito de Apercepção, Cf. Höffe, 1986, p. 90-3.
14
Como observa Kant, de modo algum deve ser confundido (como faz a psicologia) o sentido interno (forma do
tempo) com a capacidade de apercepção. Isso porque, completa ele, “(...) o nosso humano entendimento não é
uma faculdade de intuições, e mesmo que estas fossem dadas na sensibilidade não as poderia acolher em si, para
de certa maneira ligar o diverso da sua própria intuição.” Idem, KrV B 153 (CrP, p. 153). Daí que a síntese seja
considerada em si, completa Kant, “não mais do que a unidade do ato de que tem consciência, como tal, mesmo
sem o recurso à sensibilidade, mas que lhe permite determinar interiormente a sensibilidade em relação ao
_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 109
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

dadas, e deste modo pensar a priori a unidade sintética da apercepção do diverso da


intuição sensível, como condição à qual têm de se encontrar necessariamente
submetidos todos os objetos da nossa (humana) intuição (KrV, B 150-1; CrP, p.
150).

Na medida em que o entendimento por si “nada conhece, mas apenas liga e ordena a
matéria do conhecimento, a intuição, que tem de ser dada pelo objeto”(KrV, B 145; CrP, p.
144), do mesmo modo ele tem de determinar o sentido interno, enquanto que tal é “a sua
capacidade originária de ligar o diverso da intuição, isto é, de submetê-lo a uma apercepção
(como àquilo sobre o qual assenta a sua própria possibilidade)”(KrV, B 153; CrP, p. 153). Daí
que, apesar de todas as “categorias que constituem o pensamento de um objeto em geral pela
ligação do diverso numa apercepção”(KrV, B 153; CrP, p. 153), a consciência própria não se
constitui em um conhecimento de si próprio; ou seja, que uma inteligência (a consciência
própria que existe) só pode se conhecer “tal como aparece a si mesma com respeito a uma
intuição (que não pode ser intelectual nem ser dada pelo próprio entendimento) e não como se
conheceria se a sua intuição fosse intelectual.”(KrV, B 158; CrP, p. 160). E por isso, do
mesmo modo, que também a categoria pura

não basta para formar nenhum princípio sintético a priori, [e] que os princípios do
entendimento puro têm apenas uso empírico e nunca transcendental e que, para além
do campo da experiência possível, não pode haver princípios sintéticos a priori
(KrV, B 304-5; CrP, p. 264).

Ver-se-á a seguir que num tipo de arrazoamento assemelhado, todavia diferente,


Fichte elabora uma demonstração, de modo sui generis, da vinculação entre o pensamento
(forma) e a intuição (matéria), pensados ambos de um ponto de vista sistemático. Esse
procedimento se distinguirá do modo kantiano pelo fato da vinculação ser admitida por meio
de uma atividade mediadora, a de uma Intuição intelectual, como abordagem na perspectiva

diverso, que lhe pode ser dado segundo a forma de intuição dessa sensibilidade. O sentido interno é determinado
sucessivamente pelo ato da síntese do diverso, como movimento que é ato do sujeito, todavia, pelo ato
transcendental da imaginação, que exerce uma ação que afeta o sentido interno, já que o sentido interno contém a
simples forma da intuição, mas sem a ligação do diverso nela inclusa, não contendo, portanto, nenhuma intuição
determinada” Idem, KrV B 154 (CrP, p. 154). Nesta direção é que a apercepção e a sua unidade sintética são só
“a fonte de toda a ligação, [e] se dirigem, com o nome de categorias, ao diverso das intuições em geral e aos
objetos em geral, anteriormente a qualquer intuição sensível.” Idem, KrV B 154 (CrP, p. 154).
_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 110
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

dos dois lados da razão, o subjetivo e o objetivo. Vejamos o significado concedido por Fiche à
atividade da Intuição intelectual.

II. Intuição Intelectual (Intellektuele Anschauung) e Construção sistemática

“Suponho que na filosofia não há nenhum autor clássico; (...) peço que se conheça a
significação de meu termo [Intuição intelectual] antes de julgar meu sistema.”(ZE, S. 472-3;
SI, p. 59).15 Nessa interjeição de Fichte está dada a tônica por meio da qual será enfatizada a
necessidade de uma compreensão autônoma de sua proposta de sistematização da razão
transcendental.
Dissemos que no contexto das propostas de Kant e de Fichte a autoconsciência
(Selbstbewusstsein)16 ou Eu transcendental17, como atividade realizadora de sínteses,
operavam de modos distintos. Relativo a Fichte se pode dizer que isso se deve a que ele

15
O desempenho da atividade de uma Intuição Intelectual Fichte expôs nos textos do primeiro período da
fundamentação da doutrina da ciência, enquanto ciência das ciências em geral. A esse período pertencem os
textos Grundlage der gesammten Wissenschaftslehre (1794), a Erste Einleitung in die Wissenschaftslehre [= EE]
(Primeira Introdução à Doutrina da Ciência) e a Zweite Einleitung in die Wissenschaftslehre [= ZE] (Segunda
Introdução à Doutrina da Ciência). In: Fichtes Werke, hrsg. von I. H. Fichte, Berlim: de Gruyter 1971, Bd. I. As
duas Introduções foram publicadas, concomitantemente, no Philosophisches Journal, Bd. V, S. I-47 e Bd. V, S.
319-378, no ano de 1797. Referente às duas Introduções, indicaremos a correspondente numeração da página na
tradução espanhola de CABANAS, J. M. Q.: FICHTE, Primera Introducción de la Doctrina de la Ciencia.
Madrid: Ed. Tecnos, [=PI], 1987, e FICHTE, Segunda Introducción de la Doctrina de la Ciencia. Madrid: Ed.
Tecnos, [=SI], 1987. É minha a tradução ao português.
16
Por considerar o princípio kantiano Eu penso (Ich denke) como enunciando uma consciência determinada,
como secundária e derivada, devia ser feito referência a uma atividade mais essencial da razão, na qual a
consciência aparece de modo originário. Fichte problematiza isso, indagando: “Qual é a condição da unidade
sintética da apercepção? Kant fala certamente aqui de condições, mas a verdade é que indica somente uma que
seja a condição fundamental” FICHTE, ZE, S. 475 (SI, p. 62). Essa condição é, no fundo, aquela pertencente à
encontrada na razão teórica, cuja capacidade de análise exige a cada vez, previamente, a realização de sínteses.
Cito Kant: “Só porque posso ligar numa consciência um diverso de representações dadas, posso obter por mim
próprio a representação da identidade da consciência nestas representações; isto é, a unidade analítica da
apercepção só é possível sob o pressuposto de qualquer unidade sintética.” Idem, KrV B 133-4 (CrP, p. 132-3)
Contudo, para Fichte é evidente a originariedade sintética (auto-ativa) da consciência, e isso tem de ser
demonstrado já no momento constituidor (legitimador) das categorias. Diz ele: “Eu sei que de modo algum
[Kant] demonstrou que as categorias por ele estabelecidas sejam condições da consciência de si, senão que
unicamente afirmou que o são”(ZE, S. 478; p. 65). No ensaio-convite à chegada para atuar na universidade em
Jena, intitulado Über den Begriff der Wissenschaftslehre (1794) [= UdB] (Sobre o Conceito da Doutrina da
Ciência [= CDdC]), Fichte estabelece o princípio Eu sou (Ich bin) como o mais originário e, por isso, também já
sintético-constitutivo. Neste princípio tem-se, então, a proposição fundamental (Grundsatz) que, dirá,
“acompanha todo saber, está contido em todo saber e todo saber o pressupõe.” Idem, UdB, S. 48 (CDdC, p. 16).
17
Diz Fichte: chamo Intuição intelectual “a este intuir a si mesmo exigido ao filósofo na realização do ato
mediante o qual surge para ele o Eu.” Idem, ZE, p. 463 (SI, p. 49)
_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 111
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

tomou interesse pela fundação do estatuto transcendental18 da razão. Ele não estava tão
convencido quanto Kant – após este ter depositado a ênfase sobre a matéria da intuição e da
sensibilidade para conteúdo do conhecimento objetivo – que a doutrina do Idealismo
transcendental devia se manter ainda numa perspectiva fundadora só monocromática, de
ênfase apenas na dimensão fenomênica e sensível, do mundo natural. Kant vinculou nessa
doutrina os domínios da sensibilidade e do entendimento, enquanto radicalmente distintos,
vindo por isso a enfatizar e a esclarecer, que

(...) tudo o que se intui no espaço e no tempo e, por conseguinte, todos os objetos de
uma experiência possível para nós, são apenas fenômenos, isto é, meras
representações que, tal como as representamos enquanto seres extensos ou séries de
mudanças, não têm fora dos nossos pensamentos existência fundamentada em si. A
esta doutrina [diz Kant] chamo eu idealismo transcendental (KrV B 519; CrP, p.
437).

Pelo fato de aí terem sido discriminados menos os aspectos inteligíveis que os


empíricos, envolvidos no ato constitutivo do conhecimento, só a aplicação das categorias
(razão teórica) à natureza fora aqui privilegiada do ponto de vista constitutivo. Mas Kant
havia fundado na Crítica da razão pura, a esta altura, a diferença e o uso, com sentidos
distintos, dos objetos possíveis em fenômeno e noumeno19. Assim, se desde a dimensão da
distinção de todos os objetos em geral em fenômeno e noumeno fora antecipada a tematização
do lado do qual tem de ser considerado e colocado o objeto da experiência sensível, vindo daí,
por outro lado, a distinguir-se dos objetos da mera experiência possível, havia sido indicado já
pela doutrina do Idealismo transcendental exposta por Kant, segundo Fichte, ao mesmo tempo
o lugar desde onde devia ser pensado o fundamento da experiência (só encontrável fora da

18
A meta de instituir um estatuto e uma legitimação ao elemento transcendental da razão, como legitimação
mesma da atividade do puro pensamento, se torna na tarefa de dar forma científica à filosofia: uma forma
científica também para o puro pensamento, através de conceitos que não têm, direta e imediatamente, vínculo ao
mundo empírico e natural, senão só indireta e mediatamente. A primeira tarefa é a de sistematizar o
conhecimento ou apresentar o conhecimento de modo sistemático. Essa exibição sistemática evidencia, do ponto
de vista do puro pensamento (transcendental), o modo pelo qual, ao que fora já conhecido, podem ser concebidos
ainda os possíveis acréscimos (mediante os juízos sintéticos a priori) desde dentro, internamente. O exercício da
razão pura que conhece desde a perspectiva da sua fundamentação transcendental corrobora a atividade do puro
pensamento como indiscutivelmente necessária e fundada, também, de modo transcendental.
19
O caráter monocromático trazido na exposição da doutrina do Idealismo transcendental é enriquecido de
nuanças quando se leva em conta a distinção entre fenômeno e noumeno realiza por Kant, no capítulo da Crítica
da razão pura, intitulado Do Princípio da distinção de todos os objetos em geral em fenômeno e noumeno. Cf.
Idem, KrV B 294-315 (CrP, p. 257-273).
_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 112
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

experiência). Aqui ele entende ter encontrado o espaço de manobra para tematizar, doravante
de um ponto de vista sistemático, o lado do sujeito20.
Fichte entende como necessária a tematização do lado do sujeito uma vez que isso é
decisivo para instituir o estatuto transcendental da razão, fundando-o com vistas a estabelecer
um critério para dirimir as dúvidas a respeito de uma possível indistinção preservada entre
Idealismo transcendental e Realismo ingênuo, no caso de ser mantida a questão, como
exigência necessária da razão (Vernunft), também da constituição da efetividade do sistema da
razão, isto é, não meramente do ponto de vista regulativo, senão constitutivo.
A abordagem kantiana preservou o uso das categorias apenas ao conhecimento
(aplicação empírica) e acabou por isso lançando para fora da esfera do conhecimento a
possibilidade do sistema da razão. Isso tornar-se-ia contraproducente concernente à
manutenção de sua própria defesa do uso negativo do conceito numênico, na primeira grande
Crítica, como o espaço no qual podia ser pensada a questão sistemática mediante o uso das
categorias para o uso no puro pensamento. Parecia se desvelar aqui, aparentemente, uma
ausência de critério do ponto de vista sistemático, por parte de Kant, para se pensar o
fundamento de toda a experiência. Apesar disso ele deixou apontado o caminho, ao enfatizar
que “(...) todos os objetos de uma experiência possível para nós, são apenas fenômenos”(KrV
B 519; CrP, p. 437) e que estes fenômenos “(...) não têm fora dos nossos pensamentos
existência fundamentada em si”(KrV B 519; CrP, p. 437). Segundo Fichte, Kant teria deixado
designado com isso ao menos o lugar do fundamento da experiência: esse lugar é o
20
Fichte funda a exigência de sistematização com base em um sistema de representações acompanhadas de um
sentimento de necessidade. Tal conjunto de representações requer ser demonstrada conforme a um fundamento,
para não ser deixado carente de fundamentação. Num texto de 1800, não incluído nas Obras Completas editadas
pelo seu filho, Immanuel Hermann Fichte, e publicado só em 1921, intitulado Ankündigung einer neue
Darstellung der Wissenschaftslehre (Anúncio de uma Nova Exposição da Doutrina da Ciência) (e que também
recebe o título “Seit sechs Jahren lieg die Darstellung der Wissenschaftslehre”, traduzido ao português por
Torres Filho em O Programa da Doutrina da Ciência), questiona Fichte a operacionalização da sistematização,
dizendo: “Vocês, já que pretendem estabelecer uma ciência necessária e universalmente válida, partem de
conceitos cuja necessidade como conceito vocês afirmam, isto é, dos quais afirmam que o diverso coligido neles
é coligido com absoluta necessidade e é inseparável entre si”. Mas acerca disso pergunta: “Como e onde vocês
pensam demonstrar o fundamento dessa necessidade de [deste modo] coligir? Esse fundamento não pode estar
no próprio coligir, de tal modo que este fosse seu próprio fundamento, portanto livre e não necessário; mas então
estará em algo fora dele? Mas assim vocês sempre seriam levados para além do conceito.” Cf. Idem, 1980, p. 53.
Através disso Fichte mantém a ênfase do lugar da Intuição intelectual no processo mesmo de colocar em relação
o pensado na reflexão, desde conceitos, com o fundamento necessário das ações da reflexão para reunir (coligir)
o tem condições de ser pensado em conceitos. A instância vinculadora é por isso a mais originária e primeira,
visto que assenta fora dos conceitos (fixos). Daí que a Intuição intelectual represente a dinamicidade mais
própria no domínio do puro pensamento, enquanto o elemento mais vivo e o mais ativo.
_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 113
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

pensamento mesmo, e conceder que também este possui, de modo puro, um estatuto
transcendental, é convertê-lo em um domínio legítimo no qual podem ser pensadas as puras
ações do Eu, ao se tratar de estabelecer as conexões sistemáticas entre o sujeito conhecedor e
os objetos conhecidos.
Neste domínio a Intuição intelectual vem cumprir uma função intransferível, no
entender de Fichte, por realizar operações não no sentido das vetadas por Kant, senão em
sentido bem distinto, conforme vemos a seguir. De início Fichte é claro ao lançar mão da
figura da Intuição intelectual e por designá-la, diz ele, como uma “consciência imediata, mas
não sensível” (ZE, S. 472; SI, p. 59)21. Isto é, a Intuição Intelectual tem de ser utilizada como
um tipo de “raciocínio a partir dos fatos [já] manifestos da consciência”(ZE, S. 464; SI, p. 51),
visto que essa (atividade da) Intuição Intelectual só pode ser encontrada se for distinguido “o
que se dá unido na consciência vulgar e ao analisar o todo em suas partes integrantes”(ZE, S.
465; SI, p. 51-2).
Na Doutrina da Ciência (1794)22 e na Segunda Introdução à Doutrina da Ciência
(1797) Fichte delegou uma função a esse tipo de intuição intelectual: enquanto atividade
desenvolvida no puro pensamento, vinculando e colocando em relação os domínios sensível
(empírico) e inteligível (puro), diz ele, é só pelo fato de que “(...) tudo aquilo de que sou
consciente (...) recebe o nome de objeto da consciência”(EE, S. 427; PI, p. 12), que o filósofo
(transcendental) de agora em diante não pode mais deixar de considerar a noção de objeto
como desenvolvida a partir da sua caracterização desde os dois lados da razão23.

21
E, enquanto tal, Fichte acentua: ela “não se dirige de modo algum a um ser, mas sim a um atuar”. Idem, ZE,
S. 472 (SI, p. 59). Tal atuar é representado pelo princípio Eu sou (Ich bin).
22
Enquanto que, diz Fichte na Doutrina da Ciência (1794): “só para a imaginação há um tempo”, enquanto que
“para a mera razão pura tudo é ao mesmo tempo.” Idem, GdW, S. 217 (DdC, p. 114). Daí que a função
representada pela Intuição intelectual no texto fundacional se ressente, num certo sentido, de seu vinculo à
Imaginação transcendental como faculdade produtora, que coloca em relação os dois aspectos da
autoconsciência, a representante (sujeito) e a representada (objeto). Diz ele: “A imaginação é a faculdade do eu
que é ativa na síntese. A faculdade de síntese tem a tarefa de unificar, de pensar como um os opostos. (...) Como
a faculdade de pensar (Verstand) não é capaz disso, (...) surge, por isso, um conflito entre a incapacidade e a
exigência. Nesse conflito o espírito se demora, oscila entre a exigência e a impossibilidade de cumpri-la e, nesse
estado, (...) fixa ao mesmo tempo ambas, ou (...) faz delas tais que possam ser coligidas e fixadas ao mesmo
tempo. (...) Esse estado chama-se estado do intuir (Anschauen); a faculdade ativa nele é a imaginação produtiva”.
Idem, GdW, S. 225 (DdC, p. 118-9). Para uma abordagem detida sobre a função da Imaginação na doutrina da
ciência, Cf. TORRES FILHO, 1972.
23
É claro que tem de ser vetada a noção de Intuição Intelectual no caso dela ser adotada pela perspectiva do
sistema do dogmático, que unicamente ilustra a caracterização provável de um proceder só material da intuição,
_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 114
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

Na medida em que a doutrina kantiana do Idealismo transcendental expôs a concepção


de que os objetos da experiência possível para nós “(...) não têm fora dos nossos pensamentos
existência fundamentada em si”, ela acabou ao mesmo tempo por impor, diz Fichte, que “o
que se contrapõe ao meu atuar – algo devo lhe contrapor, visto que sou finito24 – é o mundo
sensível; [e] o que deve surgir em virtude de meu atuar é o mundo inteligível”(ZE, S. 467; SI,
p. 54). Neste contexto as intenções de Fichte são claras: o mundo inteligível também é
constituível e tem de ser constituído, na medida em que ele tem de ser mostrado como o
fundamento do mundo sensível25. E só em função de haver um mundo inteligível é que se
pode alegar estar fundado ou haver fundamento para isto que aparece no mundo sensível. Não
há nem deve haver outra fonte das representações (empíricas) senão as ações do puro
pensamento.
Enquanto o pensamento é considerado o lugar do fundamento da experiência, já desde
o domínio do pensamento tem de ser entendida a distinção entre mundo sensível e mundo
inteligível, consistindo o domínio do puro pensamento no campo de manobra do conceito de
espontaneidade, encontrado na forma do princípio da autoconsciência (Selbstbewusstsein) e
no ato originário do Eu (Tathandlung), na terminologia fichtiana. Pois, como é que se sabe
(ou se alcança o acesso no puro pensamento) que há um Eu ativo (um ato originário do Eu na
consciência), senão mediante uma outra atividade que “enxerga” as determinações puramente
reflexivas (ações puras) da autoconsciência, na medida em que tais determinações têm de se

à qual pudesse ser referido um aspecto criador, desvinculado da efetividade dos atos da inteligência, pensados
enquanto conjunto constitutivo do sistema da razão e, por isso, como elemento meramente abstrativo.
24
Como observa HENRICH (1969, p. 20), pode se compreender os descobrimentos que fizeram Fichte chegar à
formulação da Doutrina da Ciência (1794) no texto germinal Eigene Meditationen über Elementarphilosophie
(1792), texto no qual exprime teses contra Reinhold e sua Filosofia Elementar. No Eigene Meditationen Fichte
teria compreendido que o ato fundamental da consciência não pode consistir meramente num relacionar e
distinguir. Prévio a isso tem de se dar uma oposição, um opor, como condicionante mesmo da operação de
distinguir. Mais rica em consequências que a tese de Reinhold, a tese de Fichte sustenta que a consciência só é
compreensível a partir da oposição, e não a partir da ligação do múltiplo, como postulara Kant. Num segundo
momento, Fichte compreende também que a oposição exige, ao mesmo tempo, um fundamento da unidade, e
que este não podia ser encontrado senão não incondicionalidade (absolutidade) da autoconsciência, enquanto ela
abarca toda oposição. Nessa tentativa de fazer referência às origens, como origem para além da linguagem,
acentua Torres Filho, o caráter radical da reflexão proposta por Fichte reside em remeter à apresentação de uma
“anterioridade arqueológica do pensamento que é solidária de sua anterioridade lógica”. Cf. TORRES FILHO,
1973, p. 10.
25
No Versuch einer Kritik aller Offenbarung (1791) (Ensaio de uma Crítica de toda revelação) Fichte já havia
enfatizado isso, dizendo que “não é a representação que deve nos determinar, [pois] neste caso o sujeito se
comportaria de modo somente passivo – seria determinado, porém, não determinaria a si próprio –, mas somos
nós que devemos nos determinar através da representação”. Cf. Idem, 2002, p. 176. Servi-me da tradução ao
espanhol, Ensayo de una Crítica de toda Revelación. É minha a tradução ao português.
_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 115
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

mostrar vinculando-se a um conteúdo, entretanto, cuja visão completa da vinculação entre a


forma (reflexão) e o conteúdo (matéria) não pode ser pressuposta como incluída e já presente
nela própria, senão que deve ser mais fundamental e pressuposta como atividade de um puro
inteligir (Intuição intelectual)?
Se se pode conceder legitimidade ao conceito de uma ação pura no pensamento puro,
então é necessário se pressupor também uma Intuição intelectual, que possa alcançar esse
conceito. Por isso, diz Fichte,

tão só em virtude desta Intuição Intelectual do Eu-espontâneo resulta possível o


conceito do atuar. O conceito do atuar é o único que une os dois mundos que
existem para nós, o sensível e o inteligível (ZE, S. 467; SI, p. 54).

Ou seja, na medida em que o Eu se vê como auto-ativo – ou, em que eu “me vejo”


como auto-ativo (espontâneo), – só então é que, diz ele, surge

para mim esse ingrediente totalmente alheio que é a ação real de meu Eu numa
consciência que, de outro modo, seria tão só a consciência de uma sucessão de
minhas representações (ZE, S. 466; SI, p. 53).

Aqui vale ressaltar que o papel da Intuição intelectual surge como decisivo face ao
debate com os filósofos dogmáticos, na Segunda Introdução à Doutrina da Ciência (1787).
Partindo da confrontação das duas escolas teóricas existentes no período, que se opunham
desde o advento da Crítica da razão pura de Kant, o Dogmatismo e o Idealismo26, Fichte
entende como necessário achar um ponto comum desde o qual elas possam discordar ou
concordar com os resultados obtidos pelo fundado na Doutrina da Ciência, na perspectiva
complementar ao estágio negativo (crítico) da razão pura kantiana.
O princípio da autoconsciência (Selbstbewusstsein), demonstrado na Doutrina da
Ciência, aponta ao modo pelo qual o fundamento faz coincidir, essencialmente, o sujeito e
todas as suas representações. Do ponto de vista da fundamentação kantiana, enquanto
meramente “crítica” da esfera de atividades da faculdade da razão (Vernunft), os únicos
26
Para uma exposição pormenorizada das nuances das injunções doutrinárias oriundas da fundação da razão
crítica kantiana, nas abordagens do Dogmatismo e do Criticismo, Cf. UTTEICH, 2013, p. 190-211. Fichte
refutou as perspectivas dogmática e empirista, desenvolvidas como continuadoras do criticismo kantiano. Tais
perspectivas adotaram a primazia da coisa-em-si (Dinge-an-sich) no ato de conhecer, atribuindo isso à revolução
kantiana. Fichte reformulou a questão do ponto de vista sistemático e por isso, argumentando que só desde o
primado do sujeito pode ser demonstrado o estatuto transcendental da razão, assenta o único modo de deduzir
(construir de modo puro no pensamento mediante reflexões e atos do Eu) efetivamente o sistema da razão, a
saber, a partir do Idealismo transcendental fundado tanto do ângulo do sujeito, como do ângulo do objeto.
_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 116
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

objetos aos quais podia a filosofia se ater, de modo constitutivo, diziam respeito à esfera de
objetos dados na sensibilidade, como condição de conhecimento. Mas a questão trazida no
referido opúsculo é a seguinte: até que ponto a fundação kantiana trouxe à Filosofia
transcendental um tipo de síntese entre empirismo (ceticismo) e racionalismo (dogmatismo)?
Segundo Fichte, os filósofos dogmáticos queriam fazer derivar o seu modo de
proceder de Kant – da própria Crítica da razão pura – e também o seu modelo (Dogmático)
como tendo sido a opção aventada e de fato escolhida pelo próprio Kant27. Todavia, já que os
objetos da experiência possível “não têm fora dos nossos pensamentos existência
fundamentada em si”(KrV B 519; CrP, p. 437), depois do correto entendimento dos dois
diferentes domínios de objetos (os de conhecimento e os de pensamento), assumir a
manutenção da hipótese dogmática seria minar a base transcendental da razão e colocá-la a
perder.
Visto ser inconsequente sustentar tal partidarismo em Kant, buscar para isso endosso
no texto kantiano seria novamente sustentar, diz Fichte, que “a representação (..) é algo já por
si” e que ela “pode subsistir por si só”, sendo “algo” sem necessitar “ir vinculada a outro
elemento distinto”(EE, S. 432; PI, p. 17) dela. Visto que o contrário disso fora admitido,
restara demonstrar que as representações possuem um fundamento, ou ainda, que corresponde
algo às representações, “independentemente do ato representativo”(EE, S. 432; PI, p. 17).
Face às possibilidades dos sistemas do dogmático e do idealista, Fichte explana a
partir das diferenças entre eles a fim de demonstrar a consistência do fundamento das
representações, por ele exigido; entretanto, ciente de que por mais que seja fechado o cerco
em torno da abordagem dogmática, diz ele, “nenhum dos dois sistemas pode fazer nada
contra o outro”(EE, S. 432; PI, p. 17), pois cada sistema traz dentro de si seu próprio princípio
condutor, sendo conforme a ele que cada qual procede na defesa da sua própria perspectiva.
27
Isto chamou à atenção de Fichte nos estudos das Introduções à Doutrina da Ciência. Conforme veremos, a
qualificação de “dogmático” aos filósofos criticados não se vincula à caracterização kantiana de “uso
dogmático” dos conceitos de conhecimento, na qual distingue a necessidade de assim proceder pelo fato de ter
realizado a investigação das fontes e limites dos conceitos, e a proposta dogmaticista de impor arbitrariamente
um certo uso dos conceitos, sem prévia análise e exame de suas fontes. Diz Kant: “A crítica não se opõe ao
procedimento dogmático da razão no seu conhecimento puro, enquanto ciência (pois esta é sempre dogmática,
isto é, estritamente demonstrativa, baseando-se em princípios a priori seguros), mas [opõem-se] sim ao
dogmatismo, quer dizer, à presunção de seguir por diante apenas com um conhecimento puro por conceitos
(conhecimento filosófico), apoiado em princípios, como os que a razão desde há muito aplica, sem se informar
como e com que direito os alcançou. O dogmatismo é, pois, o procedimento dogmático da razão sem uma crítica
prévia da sua própria capacidade.” Idem, KrV B XXXV (CRP, p. 30).
_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 117
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

Por isso as diferenças entre ambos (sistemas), principalmente as diferenças atribuídas ao


sistema do dogmático pelo Idealismo, têm de ser desqualificadas para servirem como
deduções no operar contra o dogmatismo (Cf. EE, S. 432; PI, p. 18), pois mesmo que pudesse
ser mostrado ao dogmático “a insuficiência e inconsequência de seu sistema”(EE, S. 434; PI,
p. 20) e até fazê-lo “desconcertar-se e inquietar-se por todos os lados”, pelo fato de ser
incapaz de escutar e examinar “tranquila e friamente uma doutrina [– a doutrina Idealista –]
que simplesmente não pode suportar”, ele simplesmente não pode ser convencido por outrem,
devendo acontecer isso só a partir de si mesmo, por um autoconvencimento.
O Dogmatismo alega legitimidade para ser adotado como o único modelo filosófico
(sistema) válido. No entanto, Fichte traz à luz a observação conforme à qual se conduz o
Dogmatismo: este traz em si uma concepção de “ser” ou de “coisa” para explicar o
fundamento da experiência (ou explicar o sistema de todas as nossas representações).
Entretanto, quando tenta demonstrar o modo como se dá a passagem do “ser” ao “representar”
(EE, S. 437; PI, 22), o Dogmático só aparenta estar em condições de demonstrá-lo, uma vez
que suas tentativas de resposta incorrem em inconsequências por tomar por base um princípio
que só pode fornecer o fundamento de um ‘ser’, e não “o fundamento do representar,
totalmente contraposto ao ser”(EE, S. 437; PI, p. 22).28
Fichte ataca a base da pretensão de legitimidade do Dogmatismo mostrando sobre o
que esse modelo está assentado. À base da concepção de sistema dos dogmáticos, demasiado
estreita e furtiva, subsiste, diz Fichte, um “enorme oco que fica entre coisas e
representações”(EE, S. 438; PI, p. 24) e que o Dogmatismo não toca pelo fato de pôr
“palavras vazias que se podem aprender de memória e repeti-las de novo”(EE, S. 438; PI, p.
24), em vez de colocar uma explicação29. Em vista disso o modelo filosófico legítimo –

28
Continua Fichte: “Eles dão um enorme salto a um mundo completamente estranho a seu princípio. Eles
procuram ocultar, de muitos modos, este salto.” Idem, EE, S. 437 (PI, p. 22). A conclusão fichtiana é
paradigmática já que, sentencia: “nenhum dos dois sistemas pode fazer nada contra o outro”, porque cada
sistema traz dentro de si seu próprio princípio condutor, conforme o qual procede em favor da defesa da sua
própria perspectiva (Cf. Idem, EE, S. 431; PI, p. 17).
29
Fichte aponta aqui a uma disjunção interna como possibilitada pelo sistema do Idealismo, prefigurada desde a
oposição entre um Idealismo Crítico ou criticista (transcendente) e um Idealismo Absoluto (transcendental).
_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 118
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

portanto, o modelo sistemático autêntico – cabe só à filosofia que se ocupar de explicar a


contento a dedução da passagem entre as coisas e a representação (EE, S. 438; PI, p. 24).30
A partir do Idealismo, postulado como o verdadeiro sistema filosófico autofundado e,
por isso, fundador do estatuto “transcendental” da razão, a estratégia argumentativa típica de
Fichte é esclarecer de que modo unicamente a partir do sistema do idealista se dá a passagem
(entre as coisas e a representação), por uma abordagem trabalhada na perspectiva dos dois
lados da razão filosófica31, do lado tanto do sujeito como do objeto. Ao entenderem a noção

30
A questão fichtiana: “que caminho se deve tomar na explicação da representação?”(Idem, GdW, S. 156; DdC,
p. 82) tem de ser entendida, obviamente, em relação à fundação a priori do conceito de sistema da experiência,
que faz coincidir ao final os resultados da filosofia (ou as reflexões puras) com o que fora experienciado. Se pelo
Idealismo transcendental na perspectiva de Kant, privilegiadora da fundamentação das faculdades
transcendentais, restou o caráter inextrincável de contradições oriundas dos componentes heterogêneos das
faculdades de conhecimento, agora pela afirmação e posição prática, como exigência da sistematização da
experiência, se estabelece uma passagem lógica (lógico-transcendental) para a perspectiva fichtiana do Idealismo
transcendental. O método crítico kantiano principiou pela dúvida, enquanto uma atitude cética e reticente em
relação a um saber, desde um ângulo lógico-material face ao dado da ciência, dependente da dúvida. Numa
direção mais abrangente, Fichte radicaliza, como vimos, buscando sair do caráter monocromático da doutrina do
Idealismo. Neste domínio a própria ação de duvidar recebe a sua colocação no sistema: tal atitude ou ação não
deve ser encarada ingenuamente, como mera expressão de uma atitude cética. Doravante, para Fichte o saber só
principia pela dúvida estabelecida metodicamente, por um método sistemático (formal), na medida em que não
subsiste espaço para a dúvida no domínio em que não puder ser afirmada a posição do Eu (sujeito), prévia para a
possibilidade do próprio pensamento e da reflexão. Por isso, a dúvida não reza contra o sistema mesmo do
conhecimento, mas apenas contra questões específicas no interior do próprio processo de conhecimento, a saber,
se dada matéria pode ampliar ou não o que já conhecemos; só face à possibilidade de ser acrescido e
complementado sinteticamente (mediante juízos sintéticos a priori) um novo conhecimento, como atualização de
determinações da matéria sensível, tem utilidade a dúvida, como prova de resistência da matéria em face da
validade universal exigida do dado para a ciência. Já do ponto de vista metódico (formal-transcendental) não
pode haver (resistir) nenhuma dúvida formal a respeito das reflexões puras a serem desenvolvidas e pensadas
sistematicamente, pois isso seria finalizar e dissolver a constituição mesma das regras formais do (pensamento
do) sistema. Ao contrário, só pode haver dúvida e se propor adesão a uma atitude cética (radical) se não fosse
possível, portanto, o sistema como desenvolvimento formal do pensamento, ou se o âmbito de conexão das
representações umas com respeito às outras não existisse e não fosse realizável. Noutras palavras, em geral, a
dúvida só pode ter início à base de um princípio fundado pela razão e na razão, entretanto, não como um
princípio fundador de toda cisão (como o executa o conceito de coisa-em-si), mas como um princípio que é fonte
da síntese fundamental e exprime a exigência do fundamento geral da razão, que supera a exclusão mútua de
suas partes (fontes heterogêneas) teórica e prática, por ser já aquela lei fundamental, exemplificada nos termos
de Kant, de unificar em um conjunto o máximo de efeitos e consequências a partir do menor número de
princípios, a saber, lei de economia da razão (Vernunft). Cf. Idem, KrV B 706-712 (CrP, pp. 555-559).
31
Entretanto, ainda que essa abordagem se mostre decisiva para sustentar a perspectiva Idealista transcendental
pode-se dizer, antecipadamente, que Fichte não encontra na tematização do outro lado, o lado do objeto, uma
abordagem tão radical quanto à realizada do lado do sujeito, senão que desde ali só traz à autoconsciência
(Selbstbewusstsein) o que constitui, desde a perspectiva do sujeito, o que pode ser ou se mostra verdadeiramente
originário no domínio do objeto somente para-o-sujeito (ou do sujeito para-si). A atitude fichtiana de privilegiar
a dimensão “do sujeito” não é uma atitude nociva a seu método e à investigação do modo como se comporta o
objeto. Todavia, no caso de ser admitida ainda uma “atividade originária” como causa do “objeto”, ter-se-ia o
acréscimo de uma nova dinâmica à razão transcendental. Essa questão foi posta por Schelling, que vincula-a à
sua estratégia de refutar o Dogmatismo em Cartas Filosóficas sobre o Dogmatismo e o Criticismo, por um
_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 119
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

de “ser” de modo diverso32, Dogmatismo e Idealismo disputam o entendimento do ponto de


vista desde o qual apenas o sistema do idealista consegue colocar-se de um modo
“transcendental”: a perspectiva do sistema do idealista possui a seu favor a experiência e o
sistema de todas as representações pensado a partir do fundamento, a saber, a Intuição
Intelectual.
A necessidade da Intuição Intelectual compreende-se aqui nisto, na medida em que,
diz Fichte, “tudo quanto tenha de chegar a ser minha representação tem que achar-se referido
a mim”(ZE, S. 464; SI, p. 51) e que, ao mesmo tempo, “a intuição sensível só é possível unida
à Intuição Intelectual.”(ZE, S. 464; SI, p. 51) Noutras palavras, o “conteúdo” do Eu – como o
atuar que volta a si mesmo (reflete) ou como a “forma” da Eu (egoidade) – é constituído pela
Intuição Intelectual, vinculada à matéria (já que o filósofo “não deve intervir no
desenvolvimento do fenômeno (...)”(ZE, S. 454 ; SI, p. 40). Pela captação do Eu como essa
atividade da Intuição Intelectual (vinculada à matéria sensível) é possível se elevar então à
filosofia, visto que só para o filósofo “o Eu se dá nessa forma.”(ZE, S. 515; SI, p. 102) E
nesse sentido pode ser dito que a “doutrina” da ciência toma o seu início nesse Eu, como
Intuição Intelectual, na medida em que “unicamente da Intuição Intelectual pode proceder a
consciência-Eu.”(ZE, S. 464; SI, p. 51)
Assim, completa Fichte, é sempre “por um raciocínio a partir dos fatos manifesto da
consciência” que o filósofo “chega à Intuição Intelectual”(ZE, S. 465; SI, p. 51)33, isto é, em

dogmatismo perfeito, ao iniciar ali a tematização da natureza (Natur) como fonte original do tipo de síntese que
parte do objeto e vai em direção ao sujeito transcendental. Cf. SCHELLING, 1972.
32
Pois, complementa Fichte: “Afinal, como é produzido um ser?” E responde: “O Dogmatismo quer explicar
esta natureza da inteligência em geral, e suas determinações particulares, por meio do princípio de causalidade:
[aqui] a inteligência seria algo causado, seria segundo membro da série”. E observa: “o princípio de causalidade
fala [só] de uma série real, e não de uma dupla série. [Para o Dogmatismo] A força da causa atua sobre algo
distinto que se acha fora dela e contraposto a ela, e produz nisso um ser, e nada mais; [mas produz] um ser para
uma possível inteligência fora dele, e não para ele. [Por fim] Dada ao objeto da atuação uma força não seja mais
que mecânica e [ele] comunicará esta impressão recebida ao que se acha mais próximo dele, com o qual o
movimento precedente daquele primeiro objeto pode ser transmitido através de toda uma série tão longa como
quereis; mas, em nenhum ponto de tal série [a única real] encontrareis um membro que atue retroativamente em
si mesmo.” Idem, EE S. 436 (PI, p. 22). Ou seja, do ponto de vista do sistema do filósofo dogmático, a questão
da objetividade repousa, diz, “no curioso pressuposto: de que separado de seu próprio pensamento de Si mesmo,
o Eu é todavia outra coisa, e de que este pensamento se acha fundado em algo fora do pensamento, e cuja
peculiar natureza lhes deixa preocupados. Sabe Deus em que estarão pensando os defensores desta tese.” Idem,
ZE, S. 460 (SI, p. 47). A noção de uma dupla série na reflexão é a inovação trazida pela fundação da atividade da
Intuição Intelectual, só possível de ser demonstrada pela abordagem Idealista (absoluta) consequente.
33
Continua na mesma passagem Fichte, dizendo sobre a atuação da Intuição Intelectual: “Proponho-me fazer
esta ou outra coisa determinada, e a representação de que a faço tem efetivamente lugar. Isto é um fato de
_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 120
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

nada diferente do modo como o filósofo chega “ao conhecimento e à representação isolada da
intuição sensível.”(ZE, S. 465; SI, p. 51) E o caráter de estar vinculada ao “raciocínio” reside
em que, complementa Fichte,

esta intuição [Intelectual] não se dá nunca só, a modo de um ato [já] completo da
consciência; como também a intuição sensível não se dá só nem completa a
consciência (ZE, S. 463; SI, p. 50).

Isto é, na medida em que

só por ela [Intuição Intelectual] distingo meu atuar; e neste atuar me distingo a mim
mesmo do objeto do atuar que se me faz presente. Todo aquele que crê ter uma
atividade alega[rá ter] esta intuição (ZE, S. 463; SI, p. 50).

E, porque não há razão, diz ele, “(...) nos ingredientes sensíveis”(ZE, S. 465; SI, p. 52)
para admitir que sou “este princípio ativo e me encontro com que não posso renunciar a esta
situação sem renunciar a mim mesmo”(ZE, S. 465; SI, p. 52), a Intuição Intelectual é aqui

uma consciência especial e, por certo, imediata, isto é, de uma intuição que é uma
intuição da mera atividade, a qual não é nada estável, mas sim algo que se escapa,
que é um viver, e não um ser (pois não se dirige a algo material permanente) (ZE, S.
465; SI, p. 52).

Neste sentido, completa dizendo:

não posso ver-me atuando sem ver um objeto sobre o qual atuo, em uma intuição
sensível que é conceitualizada, sem esboçar uma imagem daquilo que quero
produzir, o qual é igualmente conceitualizado (ZE, S. 464; SI, p. 50).34

Por outro lado, numa segunda nuança, Fichte explicita o Eu como Ideia, com o qual se
completa a doutrina da ciência, enquanto distinto do Eu como Intuição Intelectual, que inicia
a doutrina da ciência. Na admissão do conceito do Eu como Eu-mesmo à base de um estatuto

consciência. [Mas] Se o considero segundo as leis da consciência meramente sensível, nele não se dá nada mais
que o dito, uma sucessão de certas representações. [Eu] Só teria consciência [aqui] de tal sucessão no decurso do
tempo, sendo ela o único que eu poderia afirmar.” Idem, ZE, S. 465; SI, p. 51.
34
Continua Fichte: “E como sei o que quero produzir, e como poderia sabê-lo, se não é contemplando-me
imediatamente na busca do conceito do fim, ou, se se quiser, em um atuar?” É em virtude disso que, diz, “(...) a
qualquer um cabe muito bem mostrar-lhe, na própria experiência reconhecida por ele mesmo, que esta Intuição
Intelectual se dá a todo momento de sua consciência.” Idem, ZE, S. 464; SI, p. 50.
_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 121
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

autônomo, o filósofo encontra então a possibilidade de realizar aquela dupla série do


pensamento e distinguir entre duas ordens do pensar, a ordem de pensar acessada pelo filósofo
(acerca de objetos) e aquela ordem de pensar referida “a um autêntico ser, (...) que tem lugar
(...) só para o Eu-considerado”(ZE, S. 515; SI, p. 102), isto é, à auto-atividade do sujeito.
Vê-se assim que pela noção de Eu como Intuição Intelectual é constituído, desde a
perspectiva do Idealismo transcendental, o significado completo da representação verdadeira,
como o “que completa a consciência [e] é só este estado integral, unido à diversidade
mencionada”(ZE, S. 464; SI, p. 50) enquanto que, por seu turno, pela noção de Eu como Ideia
“é estabelecido o Eu-mesmo [autônomo] como ideia do homem natural”(ZE, S. 515; SI, p.
102) que tem de ser, uma vez confrontado à experiência sensível, tornado efetivo por ter de
vir a formar para si “a ideia de que [ele, o filósofo autêntico] é livre e de que fora dele existem
determinadas coisas.”(EE, S. 432; PI, p. 17-18).
Daí que, primeiramente, desde o caráter necessariamente “ideal”, a ser pressuposto, de
todo elemento representacional particular, a fim de que este venha a ser considerado sempre
em possível vinculação e união com a perspectiva da totalidade das representações 35 e, em
segundo lugar, desde o caráter “ideal” das leis fundamentais da Inteligência36, como modos de

35
A tarefa do filósofo é a de “prestar atenção aos fenômenos, lhes seguir adequadamente e estabelecer conexão
entre eles.” Idem, ZE, SI, p. 40. E ela já pressupõe que só se pode fazer isso desde um ponto de vista ideal. Para
uma tematização detida do aspecto ideal das representações, Cf. Idem, EE, S. (PI, p. 10).
36
O caráter perene das ações necessárias da Inteligência se demonstra no acesso a elas pela Intuição Intelectual.
Fichte fixou como questão essencial, na Fundamentação completa da Doutrina da Ciência (1794), a de que “die
Einheit des Bewusstseins nicht aufgehoben werden soll.” Idem, GdW, p. 127 (DdC, p. 65). Daí que, a fim de
suprimir (aufzuheben) a cisão existente entre “representação” e “coisa” e para ainda conservar (aufzuheben) a
unidade da consciência, Fichte lança mão da palavra alemã aufheben, possibilitando exprimir através do seu
significado a constituição desse elenco de ações puras da inteligência. Se não pode ser suprimida (aufgehoben) a
Autoconsciência, ao mesmo tempo têm de ser guardadas (aufgehoben) as ações da Inteligência que garantem e
preservam-se disponíveis à Autoconsciência. Essa nuança da palavra alemã aufheben foi definitivamente
enfatizada por Hegel, que na Enciclopédia das Ciências Filosóficas definiu-a, dizendo: “Importa recordar aqui a
dupla significação de nosso termo alemão aufheben. Por aufheben entendemos primeiro a mesma coisa que “hin-
wegräumen” [ab-rogar], “negieren”[negar], e por conseguinte, dizemos, por exemplo, que uma lei, um
dispositivo, etc. são revogadas (“aufgehoben”). Mas além disso, aufheben também significa o mesmo que
guardar (“aufbewahren”), e neste sentido dizemos que uma coisa está bem conservada (“wohl aufgehoben”).
Essa ambiguidade no uso da língua, segundo a qual a mesma palavra tem uma significação negativa e uma
significação positiva, não se pode considerar como contingente, nem se pode absolutamente fazer à linguagem a
censura de dar azo à confusão; mas tem-se de reconhecer aí o espírito especulativo de nossa língua, que vai além
do simples ou-ou do entendimento”. Cf. HEGEL, 1995, p. 204.
_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 122
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

atuar necessários na consciência37, é que o Idealismo (absoluto) fichtiano embasa o seu modo
de legitimar o fundamento da experiência.
Conforme isso, pela decomposição (análise) das invectivas dos dogmáticos Fichte
erige ao mesmo tempo o sistema do idealista, demonstrando com evidência aquilo sobre o
qual estão assentados os fundamentos das duas premissas acima, e que serve para firmar a
prerrogativa do Idealismo como o único modelo de sistema legítimo à Filosofia
transcendental.
Por sua vez, Fichte também se viu confrontado pelo estado anterior da questão e dos
preconceitos mantidos sobre a noção de Intuição Intelectual utilizada pelos primeiros
pensadores modernos na filosofia. Ele teve de se desfazer desses mal entendidos em relação a
sua reativação da figura da Intuição intelectual, e para isso opôs-se inicialmente à
interpretação kantiana dessa noção. E assim questiona a base dos preconceitos ainda vigentes
numa referência clara a Kant, ao indagar:

uma filosofia edificada naquilo que a filosofia kantiana decididamente rechaça


constitui – por si só – a perfeita antítese do sistema kantiano e daria lugar a esse
sistema absurdo e fatal do qual tanto fala Kant no artigo ‘Sobre o tom distinto em
Filosofia’(Monatschrift, maio de 1796)? (ZE, S. 471; SI, p. 58).38

Ao contrário, em vez de conduzir a uma conclusão precipitada em desfavor da noção


de Intuição intelectual, Fichte contemporiza, dizendo:

37
Fichte acentua, dizendo na Segunda Introdução: “a correspondência com o pensar necessário se dá mediante o
livre pensar do Eu.” Idem, ZE, S. 460 (SI, p.46) Deste modo se mostra como é “conectada toda a série” de
representações enquanto uma ação objetiva do Eu, fundadora da noção “para-si” do Eu. Ou seja, o pensar do Eu
torna-se “para-si”, como pensar necessário, ao possibilitar conectar todas as representações numa série inicial,
inaugural, que não havia antes desse ato de pensar do Eu.
38
Precisamente no texto Sobre o tom distinto em Filosofia, Kant incide sobre a Intuição Intelectual como uma
ilusão e noção à qual são levados os filósofos que menosprezam todo trabalho e toda investigação
exaustivamente estabelecida. Tendo em vista isso Fichte reitera o significa próprio, desenvolvido pela atividade
de uma Intuição intelectual, que de modo algum desempenha o tipo de atividade vetado por Kant na Crítica da
razão pura. Ao mesmo tempo, porém, vale lembrar que na Kritir der Urteilskraft (1790) (Crítica da faculdade
do juízo) Kant concede importância decisiva à noção de um Entendimento intuitivo (Intellectus Archetypus) para
tornar possível refletir (através da faculdade reflexiva do juízo) os objetos da natureza, em vista de reconhecer,
do ponto de vista da atividade de uma faculdade transcendental, uma finalidade (Zweckmässigkeit) tanto nos
objetos empíricos singulares, quanto na natureza como um todo. In: Immanuel Kant Werkausgabe: in zwölf
Bänden. Hrsg. Wilhelm Weischedel. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1968, Bd. X. Kritik der Urteilskraft [=
KrV] (Crítica da faculdade do juízo [= CfJ]). Esse texto de Kant foi decisivo para a elaboração fichtiana do texto
fundacional de 1794. Essa influência foi apresentada por mim no 1º Congresso Internacional da Associação
Latino-Americana de Estudos sobre Fichte (ALEF), realizado em Goiânia (UFG) em 2011, em texto a ser
publicado.
_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 123
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

teríamos de averiguar, antes de construir sobre este argumento, se não se expressam


por acaso nos dois sistemas, com a mesma palavra [Intuição Intelectual], conceitos
inteiramente distintos (ZE, S. 471; SI, p. 58).

A noção fichtiana de Intuição intelectual não se refere a um modo de pensar


estritamente “formal” ou mesmo única e exclusivamente fora da condição de tempo “formal”,
expressa em conformidade com a lógica formal. A noção proposta por Fichte pode ser
pensada, comparativamente ao sentido kantiano de distintas atividades da razão, como o
pensar que alcança tanto a atividade do conhecer como a do pensar. Contudo, pela atividade
da Intuição Intelectual no sentido fichtiano se alcança uma tematização de duplo foco,
constitutiva da razão em geral (Vernunft). E justamente em função disso a Intuição Intelectual
se constitui para Fichte na “única realidade firme para toda a filosofia”, já que desde ela “pode
se explicar tudo o que tem lugar na consciência”, na medida em que à razão livre “só pode
caber uma necessidade”, encontrada do mesmo modo como fundada na perspectiva ideal
(Idealismo transcendental). Ou seja, completa ele: “aqui minha filosofia se torna
completamente independente de todo arbítrio e produto de uma férrea necessidade”, isto é,
aqui a razão “se faz produto de uma necessidade prática.”(ZE, S. 466-7; SI, p. 53)
Agora a noção de objeto fundada na adequação fichtiana à concepção do Idealismo
transcendental pode ser vista como compreendendo também um algo a mais (um caráter
suplementar): aqui o objeto é ele mesmo (objeto) + o seu limite (o objeto acrescido do seu
limite), podendo ser visto todo objeto do filosofar transcendental a partir desse estatuto, como
estatuto do puro pensamento transcendentalmente fundado, cuja necessidade sistemática se
mostra à base de uma necessidade que se mostrará, por fim, fundada como
incondicionalmente prática.

III. Conclusão

A adaptação fichtiana na doutrina do Idealismo transcendental não se contrapôs à


iniciativa de privilegiar os atos (de síntese) da autoconsciência (Apercepção), senão à
determinação de um modo único, exclusivamente teórico, de fazê-lo. A noção fichtiana de
uma atividade pura no pensamento, fundada em conformidade ao estatuto também
_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 124
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

transcendental – como de um estatuto constituído em relação às faculdades do conhecimento


determinado e determinável pelo sujeito –, abre um flanco para tratar o conhecimento e
amplificar o sinal das faculdades transcendentais nele envolvidas, devido à perspectiva do
conhecimento adotada, fundada numa abordagem mais abrangente que a abordagem
exclusivamente voltada ao conhecimento sensível, portanto, em relação ao todo das atividades
(faculdades) do sujeito para o conhecimento em geral, em vista da conotação sistemática em
que elas se mostram envolvidas e também ativas.
Visto que a autêntica explicação filosófica não pode prescindir desta atuação ou
capacidade inteligível de organizar a própria experiência de um ponto de vista sistemático-
reflexivo, parece possível identificar no sentido agregador desta proposta, pela sustentação de
tal atitude por Fichte, o cumprimento de uma advertência a ele dirigida por Kant, assim
narrada ao amigo Schelling: “O honorável homem deu-me há oito anos um outro conselho, ao
qual me senti mais inclinado a seguir, a saber: sempre parar sobre meus próprios pés.”(Carta
de Fichte a Schelling, 10 de dezembro de 1799. In: BECKENKAMP, 1997, p. 137).
Ainda que Kant não tenha tomado como meta na exposição do modo modificado
(crítico) de pensar a de estabelecer um fundamento válido a toda a Filosofia transcendental,
extensivo à razão teórica, à razão prática e à faculdade de juízo reflexiva, subordinando a
metafísica da natureza e a metafísica dos costumes a um único princípio fundamental
(Grundsatz), isso passa ao lado da desqualificação a ser efetivada sobre a figura da Intuição
intelectual. Por sua vez, Fichte recorreu à figura da Intuição intelectual no propósito de
estabelecer o fundamento único de todas as ações do pensamento e aplicações da razão. Neste
sentido seu motivo confirmou o desdobramento da atividade do puro pensar no pensamento
transcendental e sistematicamente constituído, como atividade do puro raciocínio vinculadora
das esferas sensível (teórica) e inteligível (prática).
Se aquilo que na abordagem kantiana se contrapunha ou parecia uma contradição à
razão (capítulo da Dialética na Crítica da razão pura), como caráter conflitivo de domínios
heterogêneos com os quais lidava a razão em geral, desde a esfera que considera tanto a
dimensão subjetiva como a objetiva Fichte converte – o que aparece como impasse na esfera
teórica da razão – numa reflexão instituída previamente, desde o estatuto do pensamento
fundado transcendentalmente, contraposto já tanto à resistência (Widerstand) como à

_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 125
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

contradição (Widerspruch) que impossibilitavam tratar também a perspectiva sistemática


como objeto de conhecimento.
Todavia, apesar de ser concedida por Fichte a fundação da atividade da razão
transcendental no estofo da figura de uma Intuição intelectual, tal proposta fundadora não
tardará a ser desconstruída39, ao ser mostrado que a reflexão “não é capaz de expressar a
síntese [ou necessidade] absoluta numa proposição”(HEGEL, 1990, p. 39) (fundamental)
(Grundsatz). Pois a faculdade de Intuição intelectual perde paulatinamente o sentido de seu
uso à medida que passa-se a conceber tudo (discursivamente) por conceitos, em que o
conceito atualiza de modo ainda mais autônomo a autoreflexividade de suas próprias
estruturas, como expressão da razão como um todo.

Referências Bibliográficas:

BECKENKAMP, J. Correspondências entre Fichte e Schelling. In: Dissertatio, UFPel (6),


verão 1997, p. 133-144.
FICHTE, J. G. Fichtes Werke. Hrsg. I. H. Fichte. Berlin: Walter de Gruyter & Co., Vol. I,
1971.
____. Primera Introducción de la Doctrina de la Ciência. Trad. J. M. Q. Cabanas. Madrid:
Tecnos, 1987.
____. Segunda Introducción de la Doctrina de la Ciência. Trad. J. M. Q. Cabanas Madrid:
Tecnos, 1987.
____. A Doutrina da Ciência de 1794 (Grundlage der gesammten Wissenschaftslehre). Trad.
R. R. Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural (Col. Os Pensadores), 1972.
____. Sobre o Conceito da Doutrina-da-Ciência (Über den Begriff der Wissenschaftslehre).
In: A Doutrina da Ciência de 1794 e outros escritos. Trad. R. R. Torres Filho. São Paulo:
Abril Cultural (Col. Os Pensadores), 1972.
____. O Programa da Doutrina da Ciência (Anúncio de uma Nova Exposição da Doutrina da
Ciência, 1800) (Seit sechs Jahren lieg die Wissenchaftslehre). In: A Doutrina da Ciência de
1794 e outros escritos. Trad. R. R. Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural (Col. “Os
Pensadores”), 1980.
____. O Princípio da Doutrina da Ciência (1797) (Versuch einer neueren Darstellung der
Wissenschaftslehre). In: A Doutrina da Ciência de 1794 e outros escritos. Trad. R. R. Torres
Filho. São Paulo: Abril Cultural (Col. “Os Pensadores”), 1980.
39
No capítulo de abertura da Ciência da Lógica (Wissenschaft der Logik), intitulado Com o que deve ser feito o
começo da ciência (Womit muss der Anfang der Wissenschaft gemacht werde?), expressa Hegel dizendo que “a
Intuição intelectual é a mais poderosa repulsa da mediação e da reflexão demonstrativa, extrínseca”. Neste
capítulo dedica-se a demonstrar o ônus acarretado metodologicamente a um sistema da filosofia que faça uso
dessa noção, desfazendo pela base qualquer pretensão argumentativa de tornar tal noção indispensável a um
modelo de pensamento criticamente estabelecido. Cf. HEGEL, 1968, p. 100.
_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.
Às expensas da intuição intelectual: para uma fundamentação da atividade da 126
razão transcendental
Luciano Carlos Utteich

____. Ensayo de una Crítica de toda Revelación (Versuch einer Kritik aller Offenbarung).
Trad. V. Serrano. Madrid: 2002.
FRANK, M. Unendliche Annährung: Die Anfänge der philosophischen Frühromantik.
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997.
HEGEL, Georg W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas (Enzyklopädie der
philosophischen Wissenschaften im Grundrisse). Vol. I. Trad. P. Meneses. São Paulo: Ed.
Loyola, 2002.
____. Diferencia entre los sistemas de filosofía de Fichte y Schelling. (Differenz des
Fichte’schen und Schelling’schen Systems der Philosophie). Trad. Mª d. C. Paredes Martín.
Madrid: Tecnos, 1990.
____. Ciencia de la Logica. (Wissenschaft der Logik). Tomo I. Trad. R Mondolfo. Buenos
Aires: Solar, 1968.
HEIDEGGER, M. Kant y el problema de la Metafísica. (Kant und das Problema der
Metaphysik) Trad. J. Gaos. México: Fundo de Cultura Económica, 1990.
HENRICH, D. Fichtes-Ich. In: Selbstverhältnisse. Frankfurt am Maim: Reclam, 1969.
____. Hegel im Kontext. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1971.
HÖFFE, O. Immanuel Kant. Trad. Diorki. Barcelona: Herder, 1987.
KANT, I. Immanuel Kant Werkausgabe: in zwölf Bänden. Hrsg. Wilhelm Weischedel.
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1968.
____. Crítica da razão pura (Kritik der reinen Vernunft). Trad. Manuela P. dos Santos e
Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Ed. Calouste Gulbenkian, 1990.
____. Crítica da faculdade do juízo. (Kritik der Urteilskraft) Trad. Valério Rohden. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1995.
SCHELLING, F. W. J. Cartas Filosóficas sobre o Dogmatismo e o Criticismo
(Philosophischen Briefen über Dogmatismus und Kritizismus). Trad. R. R. Torres Filho. São
Paulo: Ed. Abril Cultural (Col. Os Pensadores), 1972.
SPICKHOFF, W. Die Vorstellung in der Polemik zwischen Reinhold, Schulze und Fichte
1792-1794. München: Uni-Druck,1961.
TORRES FILHO, R.R. O Espírito e a Letra. Crítica da Imaginação Pura em Fichte, São
Paulo: Ática, 1972.
____. O Discurso fichtiano. In: Discurso. São Paulo. Ano II, nº 4, 1973, p. 9-39.
UTTEICH, L. C. Kant e Fichte e a “Corrida de Estafetas” da questão do Idealismo
Transcendental. In: Revista Filosófica de Coimbra. V. 43, 2013, p. 190-211.

_____________________________
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.99-126 jan.– jun., 2013.

You might also like