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ADAPTAÇÃO DE PALESTRA

Tendências latino-americanas da política social


pública no século 21

Aldaiza Sposati
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

Tendências latino-americanas da política social pública no século 21


Resumo: Este texto tem por objetivo examinar tendências das políticas sociais latino-americanas para o século 21 a partir de sua gênese
e de seu desenvolvimento marcados, ao final do século 20, pelas contingências impostas pelo neoliberalismo. O enfrentamento da
pobreza e o confronto com as desigualdades sociais constituem, neste novo século, dois paradigmas em oposição. Considera-se que essa
dualidade tende a fortalecer a existência de sistemas sociais paralelos que fragilizam o alcance de padrões igualitários dos direitos sociais
a todos os cidadãos.
Palavras-chave: Políticas sociais. Políticas públicas latino-americanas. Direitos sociais, Democratização. Universalismo.

Trends in Latin American Social Policy in the 21st Century


Abstract: The purpose of this text is to examine trends in Latin American social policy in the 21st century based on their genesis and
development in the late 20th century, under contingencies imposed by neoliberalism. The confrontation with poverty and social
inequalities constitute, in this new century, two opposing paradigms. The paper considers that this duality tends to strengthen the
existence of parallel social systems that weaken the scope of egalitarian standards of social rights for all citizens.
Key words: Social policies. Latin American public policies. Social rights, Democratization. Universalism.

Recebido em 15.10.2010. Aprovado em 10.02.2011.

R. Katál., Florianópolis, v. 14, n. 1, p. 104-115, jan./jun. 2011


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Introdução papel” do que em sua efetivação concreta. A


efetivação de direitos humanos e sociais, em muitos
Desenhar, ainda que a traços largos, as confi- países latino americanos, é marcada pela distância
gurações da política social na América Latina para entre o real e o texto legal. O pacto que propiciou o
o século 21, objetivo deste artigo, estabelece duas avanço no texto legal não atingiu valores conserva-
perspectivas. Supõe abordar, de um lado, o estatu- dores e avessos à universalização e a equidade de
to herdado das políticas sociais latino-americanas direitos. Esta luta ainda mobiliza ações de grupos
do último quartil do século 20, com a superação, da sociedade e de agentes institucionais.
ou não, dos problemas que nele se instalaram e, de Durante as últimas décadas do século 20, o con-
outro, analisar as tendências de um novo estatuto fronto com o formato autoritário do Estado centrou
em sua reconfiguração. forças em luta na busca de efetivar novas rela-
As políticas sociais públicas latino-americanas no ções democráticas e participativas na gestão es-
século 21 têm duplo desafio: superar suas heranças tatal. No século 21, colocam-se novos campos de
do século 20, sob a conjuntura do modelo neoliberal, confronto para o enfrentamento das desigualdades
e confrontar as desigualdades sociais e econômicas sociais, econômicas, jurídicas, culturais, políticas e
de forma a garantir a universalidade e a equidade de a constituição da universalidade de acesso que res-
direitos humanos e sociais, tornando-os alcançáveis peite as diferenças e, com ela, a construção do
para os estratos que permanecem precarizados em direito à equidade.
suas condições de vida, trabalho e cidadania.
É preciso tornar claro que não parto da concep-
ção da política social como mera estratégia do ca- Registros preliminares
pital sobre o trabalho e via de mão única. A comple-
xidade histórica exige a incorporação das lutas tra- A construção das políticas sociais na América
vadas entre sujeitos sociais representantes de inte- Latina percorre trajetória histórica diversa da Euro-
resses de classes, mesmo que as forças contra- pa Central e sua regulação social do pós-Segunda
hegemônicas possam oscilar, sob diferentes conjun- Guerra. Ressalve-se que o continente europeu pos-
turas, em seu protagonismo para configurar as polí- sui configurações histórico-sociais diferenciadas en-
ticas sociais públicas. Não enxergo ou conceituo uma tre seus países, que se refletem na formatação das
política social sob a leitura de uma armadilha do ca- suas políticas sociais. A Europa do Norte, os países
pital sobre o trabalho. Ainda que, na sociedade de escandinavos, e os países centrais, como Inglaterra
mercado, ocorra hegemonia dos interesses do capital, e França, desenvolveram proposta unificada de res-
nela ocorre, também, a contra-hegemonia do trabalho postas sociais conhecidas como welfare state, cuja
e das forças sociais que lutam por novos ganhos na aplicação foi diferenciada em outros países da Euro-
agenda do Estado, incluindo novas responsabilida- pa Central. A análise paradigmática de Esping-
des públicas em direção à consolidação de seus di- Andersen (1990) sobre os regimes europeus de
reitos. A política social é uma construção histórica welfare distingue-os em três tipologias.
e, como tal, não está fadada a ser capturada por um Na América Latina, as políticas sociais foram sen-
dos lados em que se posicionam os sujeitos sociais do incorporadas de forma fragmentada e setorial. Há
históricos, mas sim, e desde que colocada em con- forte distinção entre os países quanto às responsabi-
texto democrático, em ter disputados seus meios e lidades estatais para garantir a toda a população di-
fins entre os projetos sociais desses sujeitos consci- reitos humanos e sociais.
entes e ativos. Registros de Mesa-Lago (2004) agregam as ini-
Com certeza essas lutas não alcançam ganhos ple- ciativas em política social dos 20 países de região1
nos, embora signifiquem possibilidades de avanços no em três períodos:
âmbito dos direitos humanos, sociais e da cidadania. a) desde os anos 1920, despontam cinco países
Parto da afirmação que, nas duas últimas déca- pioneiros, que desenvolveram medidas sociais
das do século 20, as lutas sociais contra-hege- nacionais, em decorrência da industrialização
mônicas buscaram estabelecer novo formato dos das demandas de trabalhadores urbanos: Chi-
meios e modos de relação entre Estado e socieda- le, Uruguai, Brasil, Argentina e Cuba;
de, principalmente quanto à presença da voz e de- b) nos anos 1940, figuram entre os países inter-
cisão dos grupos populares e à inclusão de novas médios, cujas medidas foram incidentes em
responsabilidades sociais públicas pelo Estado. concomitância às iniciativas europeias, orien-
Centraram-se mais no processo de derrubada do tadas pelos princípios do Relatório Beveridge:
autoritarismo e da privatização no interior do Esta- Costa Rica, Equador, Peru, Panamá, Paraguai,
do do que, propriamente, no alcance da univer- Colômbia, México, Venezuela. Na Costa Rica,
salização e equidade de direitos humanos e sociais. foi fortalecido o padrão universal das políticas
Estes direitos permanecem mais avançados “no sociais, mas a tendência nos países foi de ins-

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talação de sistemas paralelos de atenção, isto produtiva não será motivo para excluir pessoas de
é, o sistema focalizado ao lado do universal; sua proteção” (SPOSATI, 2008).
c) ao final dos anos 50 e início de 60, destacam- Na análise das políticas sociais latino-americanas,
se seis países considerados de tardia iniciati- tenho me valido da construção da categoria regulação
va, onde as políticas sociais aparecem, de for- social tardia2 (SPOSATI, 2002). Essa categoria de-
ma residual e excludente: República Domi- monstra que as políticas sociais na região se confor-
nicana, El Salvador, Guatemala, Nicarágua, mam em um movimento histórico, distinto do euro-
Haiti, Honduras. peu, marcado por características próprias de sua his-
Franzoni (2005), em estudo sobre as políticas soci- tória, do seu estágio de desenvolvimento econômico
ais nos países latino-americanos, concluiu pela pre- no contexto mundial, pela hegemonia de forças polí-
sença de três tipos de regimes de bem-estar social na ticas antidemocráticas, impostas pela força e violên-
região. Levou em conta princípios de Esping-Andersen cia de ditaduras militares. Nos países latino-ameri-
(1990) como: a desmercadorização, a desfamiliarização canos, as políticas sociais são instaladas de forma
e os seus efeitos na estrutura social. fragmentada, setorizada e em geral, com acesso li-
O primeiro regime é de caráter estatal, nele o mitado ao operariado urbano, e fortes sinais de bran-
Estado é provedor da maior parte dos recursos vol- queamento no acesso a seus benefícios.
tados para serviços universais. Costa Rica e Uru- Grande parte dos países latino-americanos ao pro-
guai concretizam esse modelo. Os dois são países por políticas sociais buscou seguir modelos europeus,
com menor índice de desigualdade econômica na re- sem levar em conta suas marcas históricas quanto à
gião, com coeficientes Gini menores a 0,50. Esse presença da escravatura negra e da servidão indíge-
modelo vem sendo fragilizado pela ampliação da pre- na. Essas regulações seletivas produziram uma apar-
sença do mercado na provisão de serviços de educa- tação social de tal gravidade, que impediu a consti-
ção, saúde e previdência social. tuição de sistemas latino-americanos igualitários como
Um segundo regime é de caráter liberal. Nele os experimentados pelas iniciativas europeias,
ocorre forte e acelerado deslocamento da ação esta- abrangentes no reconhecimento dos direitos. Aliás é
tal para a prestação privada de serviços em educa- bom que se relembre que, neste século 21, alguns
ção, saúde e previdência social. Para Franzoni (2005), países europeus como a França vêm tomando medi-
México, Chile e Argentina estão nessa condição. A das de segregação étnica3.
inversão pública por habitante, embora alta, reflete a Os países da região, que manifestaram compor-
combinação de regimes contributivos na previdên- tamento hostil aos afrodescendentes ou aos de as-
cia, com regimes focalizados na saúde e educação. cendência indígena, instalaram sistemas de prote-
O terceiro regime de bem-estar latino-americano ção social contributivos direcionados ao apoio da
tem marcas de autonomia, nele o modelo de Estado industrialização e ao trabalho formal no meio urba-
social é informal com baixa capacidade institucional. no, com predomínio do acesso a brancos. Uma gran-
As formas de provisão são múltiplas. Isto ocorre em de distância ocorreu (e ocorre ainda) para a inclu-
Guatemala, El Salvador e Nicarágua. As mulheres são da população rural nos direitos sociais. Estima-
têm que responder a alta demanda do seu papel in- se que a população indígena na América Latina es-
formal e familiar como cuidadoras. Os países que teja entre 40 e 50 milhões e os afrodescendentes
praticam esse regime têm altos níveis de desigualda- em 150 milhões. Estas populações são particular-
de, seus índices Gini têm incidência acima de 0,60. mente vulneráveis.
Apresentei, como uma das contribuições para Somente no Uruguai e na Argentina, e na fase
a Pré-Conferência Brasileira à Conferência Inter- anterior às ditaduras, é que cresceu o alcance do sis-
nacional de Bem-Estar Social (SPOSATI, 2008), a tema de proteção, uma vez que essas sociedades se
análise do conteúdo de Constituições de países la- aproximaram do pleno emprego.Todavia, sua
tino-americanos quanto aos direitos sociais, com regulação social foi baseada na condição do trabalho
base no banco de dados da Universidade de formal e não na cidadania. Portanto, sob o predomí-
Georgetown (2008). Essa análise mostrou que pa- nio da regulação social do trabalho, que tem por
íses da região mantêm sua responsabilidade social centralidade a reposição da capacidade de consumo
centrada na legislação social do trabalho. A cida- do trabalhador no mercado através de benefícios, a
dania é fragilmente afirmada como garantia de di- ênfase é a monetarização da política social manten-
reitos humanos e sociais. A noção de seguridade do, ao mesmo tempo, o poder de consumo do traba-
social restringe-se à política contributiva da previ- lhador e o fluxo da economia. Essa opção fica dis-
dência social. No caso da Venezuela, o artigo 55 tante da política social como efetivadora de garanti-
de sua Constituição faz menção direta ao apoio às as sociais a todos os cidadãos através de redes quanti
situações de ameaça ou risco à integridade, espe- qualitativa de serviços públicos que provê atenções a
cificando no artigo 86 a responsabilidade do Esta- todos os membros de uma família, respeitado seu
do e afirmando que, a “ausência de capacidade estágio no ciclo vital e suas singularidades.

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Os Estados latino-americanos se ativeram até quase políticas sociais está determinada pela globalização
o final do século 20 à legislação social do trabalho e à econômica ou se existem espaços e autonomia para
educação e só nos últimos 20 anos é que ampliaram o construções nacionais? Conseguiram os países lati-
alcance das políticas sociais para as áreas de saúde, no-americanos sob a gestão de governos democrá-
habitação e assistência social, entre outras. ticos fazer avançar políticas sociais que garantam
direitos de cidadania? Com certeza, o avanço da
política social sob governos democráticos é uma
Heranças do século 20 grande questão. Sua efetivação poderá desenhar
novos tipos de Estados sociais latino-americanos
O último quartil do século 20 teve associações para este terceiro milênio.
perversas para a política social latino-americana, Tanto o Mercado Comum do Sul (Mercosul) quan-
pois combinou dois grandes ingredientes contrári- to a União das Nações Sul-Americanas (Unasul) não
os à extensão da agenda dos direitos sociais provi- demonstram intenção ou capacidade para desenca-
dos pelo Estado: as ditaduras militares e a subordi- dear força unitária no âmbito das políticas sociais. O
nação ao neoliberalismo do Consenso de Washing- desempenho das políticas sociais permanece no âm-
ton. A autonomia dos Estados latino-americanos bito de cada país. No Mercosul, predominam os acor-
foi subordinada pela sua dívida externa ao FMI, dos sobre as relações econômicas entre os países e,
impedindo o crescimento das responsabilidades na Unasul, o forte é o seu caráter político fortalecedor
públicas com o social, negadas pela prevalência da autonomia latino-americana. Não temos ainda,
do conceito de Estado mínimo. uma unidade latino-americana articulada pela defesa
De um lado, a superação necessária face ao ar- de direitos humanos e sociais.
rocho salarial e a violência das ditaduras militares, Não se dispõe na América Latina de locus de
com a redução do alcance das responsabilidades es- defesa de direitos sociais mesmo com a emergência
tatais com o social e, de outro, o confronto com a de governos com agenda centradas em interesses
agenda neoliberal reforçadora do Estado mínimo fo- democráticos e populares.
ram marcas a enfrentar ao final do século 20 Os movimentos sociais, fortes nos anos 1980 e
(HUBER,1996). A conjuntura de negação de direitos, 90, e hoje mais diluídos, colocaram-se no âmbito da
trabalhistas ou sociais, a agudização do empobreci- democracia social e política. Reclamaram e conquis-
mento, o crescimento da desigualdade social, e a ins- taram, ainda que pontualmente, a introdução de novo
talação da nominada “dívida social” foram fortes formato participativo na gestão das políticas sociais,
heranças do período. incorporado à descentralização e à presença da par-
Ocorreu a recentralização do social no mercado ticipação popular e do controle social. Embora o con-
tornando-o locus privilegiado de ofertas sociais o trole social ainda seja relativo, pode-se afirmar que
que ampliou a privatização da educação, saúde, pre- ele cresceu na luta pela transparência na gestão de
vidência social, assistência social, quer para o cam- pleno acesso pela internet.
po lucrativo, como para o não lucrativo. Enfatizo o Esse novo formato participativo exigiu a descen-
não lucrativo ou filantrópico, valorizado pela tralização da gestão de modo a possibilitar o exercí-
regulação neoliberal, na medida em que acentua a cio do controle social popular. É fato que essa des-
não responsabilidade pública pela valorização das centralização colaborou com os desejos neoliberais
iniciativas da sociedade que não asseguram direitos de redução das responsabilidades do Estado cen-
sociais. O enquadramento neoliberal imposto pelo tral. Com a presença da globalização e o desman-
FMI aos países latino-americanos subordinou a che do modelo nacional-desenvolvimentista, onde o
ampliação da agenda pública ao mercado e à Estado nacional é que centralizava o gerenciamento
filantropia e configurou a oposição entre o Estado e de políticas sociais (mesmo que poucas ou frágeis),
os reclamos dos movimentos sociais. ocorreu a transferência de responsabilidades soci-
Essa subordinação colocou uma questão política ais para a gestão dos municípios. Esta passagem
quanto à autodeterminação da agenda social de cada soou ao ideário neoliberal como uma redução da
país. Estaria ocorrendo uma subordinação da autono- responsabilidade estatal. O aparato institucional
mia dos povos à regulação internacional no âmbito do gestor do município não era concebido como Esta-
social? Haveria espaço para a autonomia nas políticas do propriamente dito. Dele não se esperavam res-
sociais de cada país face às regulações econômicas ponsabilidades assumidas como as do Estado cen-
das agências internacionais? (DEACON, 2000). tral. Tradicionalmente este estatuto foi destinado ao
Considero serem estas questões de relevância órgão nacional. Aos movimentos sociais, o sentido
ao tratar das políticas sociais de uma região que foi da descentralização não descolava a função de Es-
historicamente subordinada aos centros econômi- tado das gestões municipais. Pelo contrário, a ges-
cos mundiais. Em outros termos, cabe discutir se a tão local ou municipal consistia no Estado próximo
agenda pública dos países latino-americanos nas e palpável que se viu impelido a dar respostas soci-

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ais e, ao mesmo tempo, a pressionar outras instân- ceiras na execução de respostas. Muitas delas con-
cias de governo estatal a lhes dar apoio. sideravam que assim deveria ser, pois o Estado, e
Para os movimentos, a desconfiança no Estado seus agentes institucionais, não sabiam e não tinham
autoritário exigia novo formato de gestão participativa efetivas condições, ou compromisso, em realizar uma
e descentralizada. A gestão local ganhou novo peso ação na direção dos interesses populares.
e presença só que mediada, muitas vezes, por orga- Por decorrência do enfrentamento ao autoritarismo
nizações sociais o que, paradoxalmente, atendia aos no interior do Estado, uma herança para o século 21
reclamos participativos do processo de democratiza- foi a experiência real da gestão democrática do soci-
ção e aos intuitos neoliberais de restrição da ação al, mas com uma insuficiente formação de agentes
estatal direta. A ação pelos municípios diluía a res- institucionais públicos. Com certeza, essa forma de
ponsabilidade nacional e proporcionava a fragmen- travar a luta social trouxe novos protagonismos. Re-
tação de experiências, pois respondia às demandas presentantes de segmentos sociais, antes invisíveis,
articuladas ou organizadas e não ao direito à satisfa- ocuparam a cena política, lugares no parlamento, prin-
ção de uma necessidade de todos os cidadãos que cipalmente em âmbito local.
viviam naquela cidade, estado ou país. Todavia, o movimento pela constituição democrá-
Portanto, ao mesmo tempo, o Estado central redu- tica das políticas sociais, de alto significado para a
ziu suas responsabilidades em assumir novos compro- retomada do Estado de Direito, não teve forças para
missos delegando-os às gestões locais. Se, aparente- confrontar a incrível desigualdade social no interior
mente, estava em curso um processo participativo dos países latino-americanos onde os altos índices
ampliado, o limite dos orçamentos públicos municipais Gini permaneciam inamovíveis ou de lenta redução.
e sociais reduzia (e reduz ainda) as possibilidades re- As liberdades políticas decorrentes dos regimes
ais de políticas públicas sociais universais que permi- democráticos de direito continuaram a conviver pa-
tissem incluir a todos. Muitas novas experiências fo- radoxalmente com a precarização e privação nas
ram desencadeadas, mas sempre pontuais, sem con- condições de vida e de viver de muitos.
dição de produzir a igualdade de possibilidades a todos A desigualdade, historicamente assentada desde
que demandavam respostas às suas necessidades. a colonização dos países latino-americanos e não
Não se constituiu a leitura da totalidade de de- superada nos movimentos de independência, ou na
mandas que ficou abafada pela esperança de algu- sua conformação republicana, teve sua manifesta-
mas inclusões limitadas. A questão não era a supera- ção deslocada do campo das necessidades sociais (a
ção da desigualdade e sim a demonstração de possi- serem providas por políticas sociais universais) para
bilidades reais de inclusão. Um outro mundo se mos- a atenção a necessitados sociais. Esse deslizamento
trava possível por meio de algumas experiências e encobria a cidadania e os direitos sociais por “boas
não pela sua universalização. Estes registros não são ações” aos mais frágeis.
uma crítica a iniciativas como a do Fórum Social O jogo neoliberal do Estado mínimo desenhou nova
Mundial, mas a necessária interlocução de suas con- acrobacia. Trata-se agora, de identificar os mais
quistas com a efetiva universalização dos direitos precarizados e criar formas de sua “melhoria social”
sociais e humanos. ou redução de sua indigência e não de estender a
A luta social e política não era marcada pelo pre- todos as condições dignas de respostas às necessi-
domínio do alcance amplo dos resultados, mas so- dades sociais como marca de reconhecimento da ci-
bretudo, pelo modo de produção desses resultados dadania. O enfrentamento da desigualdade, cuja pre-
sob a presença da participação, do controle social e sença é de ordem fortemente econômica, passou a
da democratização das decisões. O controle social, a ser tratado no âmbito da ordem social. Por decorrên-
presença dos conselhos participativos de gestão, as cia, a democracia, embora presente como reclamo
demandas corporativas dos agentes institucionais dos movimentos sociais na gestão das políticas soci-
sugavam a maioria das forças em luta. A batalha pelo ais, não alcançou abrangência ou velocidade a ponto
desmanche do autoritarismo predominou. de se confrontar com a desigualdade social e econô-
Permaneceu a fragmentação de experiências que mica que se manifestava (e manifesta ainda) na con-
marcou as políticas sociais nos países latino-ameri- figuração das políticas sociais.
canos desde os pioneiros na introdução das políticas As políticas sociais por sua restrita cobertura ou
sociais. Cada política social se desenvolveu como um pela diferenciação de padrões de acesso e inclusão
universo em separado. (entre uma e outra política social) são geradoras de
Neste cenário as ONGs, resultantes dos movi- desigualdades entre os cidadãos no alcance de seus
mentos sociais, ganharam forte protagonismo, toda- direitos de cidadania.
via, e perversamente, isto significou um certo O jogo entre a ordem econômica e social, soma-
descompromisso do Estado nacional, regional e local do a distância entre os direitos formais e os reais,
em ampliar seu quadro de agentes institucionais pú- refreou a possibilidade da leitura da totalidade das
blicos. Não raras vezes ONGs passaram a ser par- demandas da sociedade. Este é o momento da con-

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versão das políticas sociais de direitos em políticas e desprovidos de acesso a condições básicas é por
de combate a pobreza que se voltam para a redução vezes operado de forma apartada. Isto é, como uma
da miséria sem alcance de direitos sociais. política a parte para atender a indigentes e pobres.
A proposição do IDH em 1990 confrontou a falsa Por vezes, o modelo de gestão desloca a atenção às
construção do PIB per capita, mas terminou por (pré)condições para o campo da assistência social,
centrar forças nas piores situações (analfabetismo, caracterizando-a como espaço de apartação dos
baixa escolaridade, baixos ingressos, baixo índice de precarizados. Nessa situação, essa possível política
longevidade, e o despreparo da mulher). Sem dúvida, pública de direitos se transforma em mecanismo de
situações indignas, mas que terminaram por centrar, apoio, processante de condições “para indigentes e
ou no termo neoliberal focalizar, as necessidades soci- pobres frequentarem as políticas fundamentais”. Al-
ais como manifestação de alta precarização, sem apon- guns defendem, inclusive, que a assistência social deva
tar seu contraponto com a alta acumulação, demar- se conformar como uma política auxiliar das demais,
cando os níveis de desigualdade social existentes. isto é, um mecanismo mediador de acesso, e não uma
Políticas de combate/superação/erradicação da política social de direitos.
pobreza, da extrema pobreza ou da miséria tenderão A construção do Sistema Único de Assistência
a ser focalistas e emergenciais, como propõe o velho Social (SUAS) vai em direção oposta a essa con-
rito neoliberal, caso não se articulem com mecanis- cepção e estabelece provisões próprias da assistên-
mos redistributivos que alterem a alta acumulação cia social. O âmbito desta política como campo de
ou concentração de riquezas. Combater a miséria e direitos é, ainda, um campo de luta contra aqueles,
a pobreza implica em política econômica e não só de direita ou esquerda, que a caracterizam de forma
social. Supõe o enfrentamento de desigualdades so- desqualificada como assistencialista ou compensató-
ciais que se expressam, inclusive, nos acessos das ria. A democratização das políticas sociais exige aten-
políticas sociais tradicionais. der a todos, o que inclui os mais precarizados. Há
A alarmante precarização, ou desapropriação das ainda em voga a concepção (talvez elitista) que toma
condições de vida e de viver, passa a exigir novas res- essa extensão como deterioração da política social
postas das políticas sociais consideradas fundamen- chegando a nominar essa ocorrência de “assis-
tais, como educação e saúde. Não basta a educação tencialização da política social”. Análises latino-ame-
propor a escola, a condição do docente ou a disponibi- ricanas aplicam o designativo político “assis-
lidade de vagas em salas de aulas. É preciso afiançar tencialização da política social”, no sentido de mos-
condições para que se dê a presença do aluno. É pre- trar a focalização da política aos mais pobres (SOTO;
ciso construir o acesso a transporte escolar, alimenta- TRIPIANA, 2009). Seja em uma ou outra forma, ocor-
ção, material escolar, uniforme, pois o baixo poder aqui- re uma crítica à assistência social, negando-a enquan-
sitivo das famílias não possibilita essas (pré)condições. to política de direitos sociais.
Torna-se necessário desmercadorizar condições que Sem dúvida, todos deveriam ter condições básicas
permitam a frequência à escola, isto, todavia, não pode e dignas de vida. Mas, também, as políticas sociais
significar uma ação discriminatória da política setorial deveriam ser provedoras das condições implícitas nos
direcionada aos mais pobres. O mesmo ocorre na saú- resultados de seus serviços e atenções, sem que, para
de. Não basta ter a Unidade Básica de Saúde ou ter a tanto, dependam do mercado ou do poder aquisitivo do
presença do médico. É preciso ter o acesso a medica- usuário. Ampliar a cobertura das políticas sociais aos
mentos, a nutrição e a próteses. cidadãos passa, necessariamente, pela aproximação
Dois desafios se colocam à universalização de dos procedimentos de inclusão das políticas sociais às
políticas sociais tradicionais em contexto de desigual- condições concretas de vida desses cidadãos.
dades sociais: precisam se expandir em quantidade e Acesso à infraestrutura, como energia elétrica,
qualidade, mas também, desmercadorizar condições água, coleta de lixo, coleta de esgoto, passa a com-
de serem acessadas e efetivadas. Isto é, a operação por o quadro das urgências sociais. Em áreas de seca,
da política precisa atentar para as condições objeti- contar com açudes, transporte, e luz elétrica, são
vas de vida dos usuários dos serviços para que pos- exigências para a extensão do acesso a melhores
sam de fato, contar com os procedimentos desses condições de vida.
serviços. Não existem condições para que indivíduos O acesso ao alimento ainda se apresenta no sé-
ou famílias sejam provedores de pré-condições de culo 21 como uma das lutas para ampliar a produção
políticas sociais. É preciso romper com os dispositos e sua distribuição às demandas, de modo a oferecer
pelos quais a família (leia-se mulher) é quem exerce segurança alimentar.
a gestão de acessos parcelares de seus membros a
diversos programas e políticas, substituindo a coe- A promoção de segurança alimentar na América
rência entre as políticas públicas. Latina e Caribe está diretamente ligada ao campo,
O alongamento da atenção de cada política social onde se localiza a metade da população indigente
para novos segmentos de trabalhadores precarizados da região.

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Das 53 milhões de pessoas que atualmente sofrem as diretrizes do grupo no poder, o peso da corporação
de fome na região,entre 15%e 20% são crianças hegemônica, os movimentos das demandas impac-
menores de cinco anos de idade, cujo crescimento taram o desenho de cada uma delas. As políticas so-
e desenvolvimento serão prejudicados se elas não ciais setoriais tendem a constituir universos e cultu-
tiverem acesso a uma alimentação adequada. Na ras próprias que terminam por estabelecer barreiras
Guatemala, na Bolívia, no Peru, em Honduras, no de articulação na oferta e na dinâmica dos serviços
Haiti e no Equador, a subnutrição infantil crônica na ponta, ou na relação com a população.
afeta mais de 30% das crianças (FAO, 2009, p. 3-6). Outra questão fundamental e nova diz respeito ao
debate intersetorial sobre a universalidade, ou univer-
A redução de assimetrias no acesso a recursos, salismo, estendido ao conjunto das políticas sociais.
como terra e água, maquinário e tecnologia para fo- Em outros termos, o caráter setorizado das políticas
mentar a produção, torna-se urgente no confronto sociais, a partir de referências próprias, coloca impe-
das desigualdades entre o urbano e o rural. dimentos à interdependência dos acessos entre elas.
Pode-se dizer que o grau de destituição dos po- Essa questão se torna mais evidente com a aplica-
vos latino-americanos trouxe como exigência não só ção de análises territorializadas das demandas e do
a introdução de respostas sociais, mas também a ur- alcance das respostas das atenções de cada política
gência de acesso aos meios para que possam ser social.
incluídos nessas respostas quando existentes. Não A leitura territorial das condições de vida do cida-
se torna factível propor políticas sociais sem levar dão vem se mostrando útil à necessária ampliação
em conta as condições objetivas da população que de cobertura de cada política social e a interse-
será sua usuária (SPOSATI, 2009). torialidade entre as ações das políticas. Não é fato
O lineamento das políticas sociais tende a se apro- que a abordagem territorial nas políticas sociais frag-
ximar da legislação social do trabalho e da vida do menta a leitura da realidade e, com isto, dissolve a
trabalhador formalmente assalariado. O pacto que perspectiva crítica de totalidade. A leitura territorial
sustenta essas políticas não ocorre em direção a to- não tem por propósito o localismo e, sim, a relação
dos os cidadãos, o que incluiria reconhecer o estatu- concreta com as condições de vida real daqueles que
to de destituição em que se encontram. Recortam a estão nos territórios. A análise territorial restringe
sociedade pelo fio dos trabalhadores formais. Os rotas de fuga da desigualdade real e impede leituras
demais permanecem apartados. que centram responsabilidades no indivíduo, como se
Por essa leitura, baseada na prevalência do tra- fosse o responsável pela dívida social que o vitimiza.
balho formal, como se fosse real o pleno emprego, os
dispositivos das políticas sociais partem de supostos
como: a existência de uma família onde a mulher Desafios do século 21
permanece em uma casa, com água, luz, alimenta-
ção, acesso à informação etc. O real, todavia, é a O maior desafio do século 21 é o de reposicionar
luta por um lugar para morar, luta pela instalação de o lugar das políticas sociais no enfrentamento das
energia elétrica, rede de água, rede de esgoto. desigualdades sem se transformar em paliativos à
Uma alternativa de gestão, adotada com o objeti- pobreza, gerando atenções de segunda categoria.
vo de criar uma dualidade de cobertura para os mais Outro grande desafio é a incorporação nas políti-
pauperizados, ocorre pela mediação de entidades cas sociais tradicionais, como saúde e educação, das
sociais substituindo a possibilidade do direito social demandas de direitos humanos e de direitos sociais,
pela benemerência ou filantropia. voltadas para gênero, ciclo de vida (crianças, adoles-
Outra herança da gênese das políticas sociais la- centes, jovens, adultos, idosos), pessoas com defici-
tino-americanas que alcança o século 21 é a ausên- ência, por ascendência étnica, culturais, para neces-
cia de articulação, intersetorialidade entre as áreas sidades especiais, entre outras. Trata-se da introdu-
de ação de cada uma das políticas sociais. A ção do campo da equidade no âmbito das políticas
institucionalização setorializada e fragmentada das sociais, cuja matriz é pautada principalmente na igual-
políticas sociais mostra seu limite na operação em dade. A universalidade passa a pressupor a composi-
contextos de desigualdades sociais. A interse- ção entre as garantias de igualdade e de equidade.
torialidade na operação das políticas sociais torna-se Há aqui um forte imbricamento com as políticas de
uma exigência pela necessária interdependência das defesa de direitos de proteção social.
coberturas de atenções de cada política social A universalidade põe em questão não só a dimen-
(SPOSATI, 2006b). são da demanda atendida e da reprimida, mas tam-
A emergência e a institucionalização de cada po- bém o alcance de resultados nas políticas sociais. Este
lítica social ocorreram em tempos e marcos próprios processo exige alcançar a diversidade na entrada dos
à conjuntura sociopolítico-econômica de cada país. serviços e a equidade nas respostas ou na saída da
Mais ainda, a maturação do conhecimento científico, atenção e dos cuidados prestados.

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Tendências latino-americanas da política social pública no século 21 111

Esse conjunto de situações somadas à tradição sultados ou condicionalidades ocorrem por ferramentas
do universalismo sem universalidade do século 20 informatizadas e cartões plásticos.
vai trazer novas demandas a serem incluídas no Os agentes institucionais são solicitados para o de-
âmbito das políticas sociais, bem como uma con- sempenho de novas funções na informatização da ges-
cepção de universalismo que faça o diálogo entre tão, sendo reduzida sua participação no processo de aten-
as diferentes políticas sociais, seus acessos e a pers- ção direta.
pectiva da equidade. O cidadão fica secundado ao indivíduo que deve
Ao final do século 20, por decorrência do Estado ser fornecedor de dados, documentos e um agencia-
mínimo, houve uma redução do alcance de políticas dor de atenções de diferentes serviços públicos para
sociais e sua transmutação em políticas de combate cumprir condicionalidades. A monetarização da polí-
à pobreza. Claro que há aqui uma mistificação, en- tica social passa a dar papel secundário ao agente
tendendo que uma política social possa superar a social e seu papel educativo e faz sobressair sua fun-
pobreza. A pobreza é uma questão multidimensional, ção de distribuidor de benefícios por critérios progra-
ou uma questão lastreada no modelo econômico e mados. Ele passa a ser mais um informante do siste-
não do alcance da política social. ma informatizado sem interferência sobre as deci-
O debate social focado na pobreza destitui a condi- sões do programa eletrônico. Seria uma forma de
ção de direito e cidadania. Somente quando as causas robotização do social?
da pobreza forem criminalizadas é que de fato se po- A Previdência Social em sua trajetória histórica
derá discuti-las como violação de direito humano. Por perdeu sua função de ser responsável pela provisão
adotar essa perspectiva é que se destacou a diferença de diversas necessidades do trabalhador, como con-
que é tornar cada política social alcançável a todos, dições habitacionais, de alimentação, de saúde, de
independentemente de sua condição real, e não a de lazer, entre outras. Na sua condição inaugural ela era
constituir atenções paralelas aos mais pobres. a política social e não uma das políticas sociais. Com
Volta-se a chamar atenção para o comportamen- o desenvolvimento das demais políticas sociais, ela
to de culpabilização do indivíduo pobre pela sua po- vem se tornando cada vez mais uma política
breza, descolando-o das condições reais que deter- monetarizada, com gestão dentro desses padrões.
minaram sua situação. O trabalhador pobre ocupa Exemplo típico no Brasil é a gestão do salário famí-
empregos precários cujos salários não permitem su- lia. Como sua operação se dá pelo empregador que
perar as condições em que vive. Sua vulnerabilidade presta contas à Previdência Social, nada se sabe so-
resulta também da subordinação ao trabalho precá- bre as crianças e os adolescentes filhos dos traba-
rio. O que se quer apontar é que o enfrentamento da lhadores abrangidos pelo salário família. Esse mode-
miséria ou da pobreza não se dá somente pela renda lo é aplicado em outros países latino-americanos.
do trabalho, mas por um conjunto de suportes que No modelo de monetarização da política social
envolve a presença e qualidade de políticas públicas. ocorre a mercadorização da atenção. O benefício
Tem-se aqui duas frentes, a precariedade do traba- tem por efeito a dinamização da economia através
lho e a ausente proteção social, como reforçadoras do mercado. Muito já se discutiu sobre a distribui-
da superação da pobreza. ção de tíquetes, vales para obter alimentação, ser-
A redução da política social ao conceito de políti- viços de saúde, entre várias alternativas de substi-
ca de combate à pobreza provocou uma transmuta- tuição do acesso em bens ou em condições de aqui-
ção: a prestação de serviços foi substituída pela sição no mercado.
monetarização de benefícios. Tem-se aqui uma alte- Com certeza estamos diante do fenômeno da
ração da materialização das políticas sociais. Ela se financeirização do social que toma o mercado como
torna ao mesmo tempo apoio ao beneficiário e inves- o grande agente regulador. De fato, estamos diante
timento na circulação de mercadorias. A aplicação de um novo avanço de campo da acumulação capi-
do benefício se dá no mercado e, pela incidência de talista. O que põe em dúvida se a monetarização do
impostos regressivos nas mercadorias (quem menos social é, de fato, já que não é de direito, uma política
tem, paga mais), uma parte do benefício retorna ao econômica capitalista ou uma política social de
Estado na forma de taxações. Uma das mãos esten- enfrentamento de desigualdades?
de e a outra recolhe. Portanto, a monetarização da A via mais atual, em toda a América Latina, é a de
política social tende a ser mais uma política econômi- combinação da política de combate a pobreza com a
ca com efeito social pela ampliação das condições monetarização da política social através dos progra-
de consumo. O gerenciamento de políticas monetári- mas de transferência condicionada de renda (PTCR).
as é similar ao da gerência financeira. A relação di- Esta via se distingue de outra em curso que pro-
reta entre o agente institucional e o requerente se dá põe a renda universal de cidadania, objeto de rede
no momento de preencher cadastros e apresentar internacional, que tem no belga Van Parijs um de seus
documentos. A partir daí, a gestão de cadastros, o ban- precursores e é nominada Basic Income Earth Net
co de dados, a seleção para inclusão e controle de re- (BIEN). Dela fazem parte o argentino Ruben Lo

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Vuolo e o senador Eduardo Suplicy, do Brasil, entre Outro desafio ainda presente não só no Brasil mas
muitos outros. em outros países latino-americanos é o deslizamento da
Os PTCRs têm sido objeto de múltiplas experiên- responsabilidade estatal pelo social para o âmbito das
cias como o Progresa/oportunidades, no México esposas dos governantes, as primeiras-damas. Esta es-
(2000); Chile Solidário/Puentes (2002), no Chile; o tratégia desloca o “possível” direito social não só para
Bolsa Família (2003), no Brasil; o Plano de Assistên- o campo da benemerência como do patrimonialismo da
cia Nacional a La Emergencia Social (Panes), do política do favor. Pior ainda é que esse embaraçamento
Uruguai; o Asignacion Universal per Hijo (AUH, público/privado (quase intimista) reafirma uma negati-
2009), na Argentina. Cada um tem suas peculiarida- va feminilização do social, repassando a responsabilida-
des e possibilidades no apoio às famílias empobrecidas de da administração direta, gerida pelo governante, para
para a educação de seus filhos. o coração da sua esposa que opera com recursos públi-
Em muitos países, a alocação familiar é um direi- cos, fora das regras públicas.
to a partir do segundo filho e é considerada uma con- A questão de gênero é importante na decodifi-
tribuição necessária à igualdade de condições na edu- cação do social. Uma de suas expressões se dá pela
cação das crianças. feminilização da pobreza e, com isto, uma
O crescimento da via monetarizada da política centralidade da relação dos programas sociais com
social coloca em questão o financiamento da expan- a mulher enquanto provedora de cuidados. No ima-
são e qualificação dos serviços. A relação serviços- ginário, a mulher é considerada mais confiável, me-
benefícios precisa ser construída sob pena de a polí- nos praticante do desperdício, mais vinculada à pro-
tica social transformar-se na co-gestão de cartões teção da família e da criança.
plásticos de forma integrada ao setor bancário. As desigualdades raciais são também uma das
A expansão dos serviços retoma, no século 21, a dimensões a enfrentar nas políticas sociais, princi-
velha questão da combinação entre provisão pública palmente pelo fato de que na maioria dos países lati-
estatal e atenções privadas de entidades sem fins lu- no-americanos foram instaladas sob o padrão de bran-
crativos que pretendem financiamento público. A res- queamento dos usuários. A multicultura e a etnia dos
ponsabilidade pública volta a ficar embaraçada nesta povos latino-americanos exigem que políticas sociais
teia que provoca uma retração de direitos sociais e confrontem o preconceito e a discriminação.
dever estatal. Por outro lado, algumas ONGs, isto é Há, ainda, outra dimensão a ser destacada. As
também entidades não lucrativas, permanecem em políticas sociais setoriais desenvolvem seu olhar para
luta com o Estado na exigência de cumprimento de o indivíduo, o cidadão que está num certo momento
direitos sociais. Esta complexidade do campo não do ciclo de vida. Todavia, a articulação das atenções
lucrativo (que se quer público não estatal) exige no- das políticas sociais se dá no marco da família.
vas formas de regulação de modo que relações de Franzoni (2005) considera que a família opera uma
parceria não signifiquem perdas de direitos sociais ação reequilibradora das formas assimétricas com
ou recuo, quer da responsabilidade do estado quer da que o Estado e o mercado incluem cada um de seus
fiscalização da sociedade civil. membros. A família endogeniza as presenças e au-
Iniciativas não lucrativas da sociedade civil podem sências de apoio das atenções das políticas sociais,
encobrir a exigência de incorporação das atenções na através de seu trabalho e de suas relações parentais,
agenda pública para que se tornem direitos sociais. vicinais e sociais. Opera a divisão sexual do trabalho
Outra dimensão, própria do século 21, que afeta e dos cuidados que tendem a sobrecarregar a mu-
as políticas sociais é a articulação entre direitos hu- lher. Ela termina por constituir o locus do regime de
manos e sociais que exige a convergência de pautas. bem-estar em operação.
No movimento social há, por vezes, a concepção, que Cresce a incidência da chefia feminina nos domicíli-
considero enganosa, de que os direitos humanos são os, colocando em questão se a responsabilidade
éticos e revolucionários e os direitos sociais refor- uniparental garante, ou não, os níveis adequados de cui-
mistas e enganosos. As lutas de gênero, deficiência, dados de proteção social na família. Outra tendência é
etnia, ciclo de vida são transversais às políticas soci- a de remunerar o trabalho da mulher como cuidadora
ais. Nesse sentido, áreas de gestão governamental da unidade familiar, para além de trabalhadora formal
criadas para atenção a gênero, etnia, idoso, criança e ou informal. A mediação da mulher nas demandas da
adolescentes etc. ganham presença como controle dinâmica familiar e a sobrecarga de seu trabalho têm
social das demais políticas, o que gera conflitos de levado a intensificar propostas de desfamiliarização de
gestão. Os serviços estruturados como respostas a alguns cuidados, passando sua provisão para progra-
necessidades sociais, no âmbito de políticas setoriais, mas sociais. São exemplos, os centros dia para apoio a
tendem a uma dificuldade em se adaptar a deman- idosos, a pessoas com deficiência, creches, entre outras
das transversais. Tem-se aqui uma zona de conflito atenções infantis que permitem a frequência a dia. É
entre segmentos sociais e necessidades sociais no preciso objetivar a dimensão real da capacidade protetiva
desempenho das políticas sociais. das famílias de baixos salários.

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Tendências latino-americanas da política social pública no século 21 113

A desfamiliarização significa reduzir a carga da trabalho e a hegemonia do Estado. Percebe-se a


família na provisão de cuidados e não de aumentá- crescente incorporação de demandas sociais pelo
los. A familiarização segue caminho oposto. Por Estado, mas essa inclusão, não raras vezes, dá-se
exemplo, demanda da mãe que cumpra as condi- de forma articulada aos interesses de acumulação
cionalidades de um programa, ou procedimento, sem do capital e, nas políticas de transferência de renda,
verificar suas condições objetivas para operá-lo. em apoio ao capital financeiro. É de se questionar,
Nesse caso, aumenta a carga da família retirando a ainda, se essa incorporação vem se dando, ou não,
responsabilidade do Estado. por meio de formas precarizadas que não consoli-
Como se percebe, convivemos com incertezas, dam a condição da cidadania ou dos direitos sociais
oscilações nas alternativas das políticas sociais para combinados aos direitos humanos.
o século 21. O que se percebe é que quanto mais Uma das avaliações que se faz no Brasil é que o
precarizada a vida do cidadão e de sua família, mais traço democrático-popular do governo Lula desen-
o caráter especializado de uma política social se lhe cadeou em quase todos os ministérios nacionais a
apresenta como barreira ao acesso e inclusão. expansão da atenção das políticas sociais para seg-
Um novo desafio que vem se manifestando é a mentos populares antes invisíveis aos olhos do Es-
existência de intervalos de cobertura das políticas tado – são os quilombolas, as populações ribeirinhas,
sociais. A alternativa de combate à pobreza, ao ope- os pequenos grupos extrativistas ou as formas de
rar por seletividade de meios e estabelecer limites agricultura familiar, entre outros. Ocorreu uma ex-
por faixa de renda, gera a ausência de cobertura àque- pansão do acesso à documentação, à energia elétri-
les que são limítrofes (board line) à condição, em- ca, ao crédito e à ampliação da renda familiar. Isto
bora tenham necessidade significativa de acesso. vem permitindo nova condição de reconhecimento
A análise comparada da social e de pertencimento
cobertura da política de pro- (SPOSATI, 2010).
teção social contributiva com ... a América Latina, que é Acesso, visibilidade, equi-
a não contributiva permite dade entre rural e urbano pas-
identificar “gaps” de aten- qualificada como a região mais saram a ser uma nova aqui-
ção. O avanço da política de sição que, junto com a parti-
proteção social exige a inter-
desigual do mundo (o que é cipação democrática, consti-
relação entre suas formas diverso de ser a mais pobre), tuem elementos formatado-
contributivas e não contribu- res da dinâmica das políticas
tivas. Este desafio decorre caminha significativamente em sociais. Todavia, é preciso
não só pelo crescente enve- avançar em padrões de al-
lhecimento, mas também pe- seu processo de cance dos resultados dessas
las restrições impostas pelo políticas no campo dos direi-
neoliberalismo às formas de democratização e ruptura com tos humanos e sociais.
benefícios no sistema contri- Com certeza, a América
butivo. a violência política. Cresce sua Latina, que é qualificada como
Nesse conjunto há que se a região mais desigual do mun-
discutir o novo sindicalismo
capacidade de consumo, mas do (o que é diverso de ser a
como a Central de los Tra- não cresce no mesmo ritmo o mais pobre), caminha signifi-
bajadores Argentinos (CTA), cativamente em seu processo
o movimento sindical PIT- trabalho digno. de democratização e ruptura
CNT no Uruguai e as cen- com a violência política. Cres-
trais sindicais brasileiras quan- ce sua capacidade de consu-
to às suas demandas para a política de proteção so- mo, mas não cresce no mesmo ritmo o trabalho digno.
cial. Instalou-se no Brasil a Confederação Nacional Há na região formas combinadas que são ao mesmo
dos Trabalhadores em Seguridade Social (Cntss), que tempo paradoxais, principalmente para a concretização
vem provocando o debate conjunto entre saúde, pre- da cidadania e dos direitos humanos e sociais.
vidência social e assistência social. Trata-se da unifi- É preciso politizar a política social para que se possa
cação de propósitos entre os trabalhadores que ter- continuamente avaliar seus caminhos e sua direção.
minam por viabilizar a cultura da intersetorialidade.

Referências
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Tendências latino-americanas da política social pública no século 21 115

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