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NOVEMBRO 2014

Texto para o livro Pesquisas Tributárias, Série CEU/Magister 02, coedição de


Centro de Estudos Tributários e Lex Magister, Porto Alegre, 2014, p. 175.

DATA: 24.11.2014
NOME: Ricardo Mariz de Oliveira
Bruno Fajersztajn
Fabiana Carsoni F. da Silva
Ramon Tomazela

ASPECTOS POLÊMICOS DO IMPOSTO DE RENDA E PROVENTOS DE QUALQUER


NATUREZA.

Apresentação

Com muita satisfação apresentamos nossa


contribuição para o XXXIX Simpósio Nacional de
Direito Tributário, informando que dividimos entre
nós os encargos de pesquisa e redação das
respostas às questões propostas, mas debatemos
todas elas e nos colocamos como seus subscritores
conjuntos.

Outrossim, queremos esclarecer que as citações a


trabalhos de alguns de nós não devem ser
consideradas como referências doutrinárias, mas
meras extensões do presente texto para eventual
consulta complementar.

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XXXIX - Simpósio Nacional de Direito Tributário do CEU – Escola de Direito

1) Haverá efeitos relevantes na apuração do IRPJ e de outros tributos, com a


utilização, como base para tanto, da contabilidade realizada segundo as regras do
IFRS? Os parâmetros fundamentais dessa contabilidade, calcados na maior atenção a
princípios do que a regras específicas, no subjetivismo responsável e na primazia da
substância econômica sobre a forma jurídica são consentâneos com os princípios
constitucionais que guiam a tributação?

A Lei n. 11638, de 28.12.2007, que iniciou o processo de convergência das


regras contábeis brasileiras aos padrões internacionais (“International Financial Reporting
Standards” - IFRS), representa uma revolução na cultura contábil brasileira, em virtude das
mudanças promovidas nas formas de reconhecimento, mensuração e evidenciação das
transações. A necessidade de desenvolvimento econômico e de expansão do mercado de
capitais brasileiro exigiu o resgate do papel inicial da contabilidade, a fim de que as
demonstrações financeiras refletissem de forma mais fidedigna e transparente a realidade
econômica da empresa. Assim, a contabilidade livra-se das amarras do direito tributário,
deixando de servir como simples instrumento para o cumprimento de obrigações tributárias
para buscar a essência econômica 1 das operações. A nova contabilidade resgata o seu
papel de instrumento para gerar informações e auxiliar os seus usuários na tomada de
decisão. Para fornecer informações econômicas ao mercado, a contabilidade passa a
apresentar uma visão prospectiva do patrimônio da entidade, afastando-se, em certa medida,
da noção geral de que as informações financeiras se reportam ao passado, como uma foto
que retrata a situação patrimonial da entidade em determinado momento.

O impacto das novas regras contábeis sobre a lei tributária dependerá do grau
de abertura concedido pelo próprio sistema jurídico. A ciência contábil e o direito constituem
sistemas autônomos e distintos, que constroem a sua própria realidade a partir dos eventos
que ocorrem na realidade social. Dessa forma, o mesmo fato social pode ser reconhecido e
processado de forma diversa pelo direito e pela contabilidade, uma vez que o processo de
conhecimento pauta-se em pressupostos distintos em cada campo do estudo.

Evidencia-se, assim, que tanto o direito quanto a ciência contábil captam fatos
concretos ocorridos na realidade social, em decorrência do exercício da atividade econômica
da sociedade. A forma utilizada pela contabilidade para retratar os eventos sociais, a partir

1
No presente trabalho, optamos por utilizar a expressão “essência econômica”, no lugar de
“substância econômica”, como consta na redação da pergunta. Isso porque a substância corresponde
ao conteúdo efetivo de qualquer ato ou negócio jurídico, assim entendidos os efeitos que ele produz
de acordo com as normas jurídicas pertinentes, atribuindo direitos e obrigações para as respectivas
partes (causa do negócio jurídico), conforme apontado na questão 2 abaixo.

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do subjetivismo responsável do contador 2 e da primazia da essência econômica, não


interfere na qualificação das relações jurídicas perante o direito positivo. É justamente por
isso que o registro contábil do arrendamento mercantil financeiro como ativo imobilizado da
pessoa jurídica arrendatária 3, independentemente da inexistência de título jurídico de
propriedade 4, não altera a natureza jurídica da operação perante o direito positivo, seja na
seara do direito comercial (por exemplo, no processo de falência), seja na seara do direito
tributário.

O produto do processo contábil somente poderá repercutir na área tributária na


hipótese em que capturado pelo direito positivo, enquanto sistema auto-referencial e auto-
reprodutivo. Observe-se que, neste processo de produção normativa, a lei tributária pode
tanto descrever situações fáticas a partir de critérios econômicos, como também pode
incorporar conceitos da ciência contábil e do direito comercial, previstos principalmente no
Código Civil (Lei n. 10406, de 10.1.2002) e na Lei das Sociedades por Ações (Lei n. 6404, de
15.12.1976), que disciplinam o reconhecimento de operações na escrituração comercial das
pessoas jurídicas.

Para exemplificar a interação entre a contabilidade e o direito tributário, pode-


se mencionar que, no regime do lucro real, a base de cálculo do IRPJ é determinada com
base no lucro líquido apurado de acordo com as leis comerciais, ajustado pelas adições,
exclusões e compensações prescritas pela legislação tributária 5. O lucro líquido do exercício,
2
Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, a contabilidade não é uma ciência exata. O
processo de reconhecimento, no qual o contador qualifica os eventos econômicos e os transforma em
fatos contábeis, pressupõe inegável carga valorativa. É principalmente neste contexto que se insere o
subjetivismo responsável. “Os que imaginam que a ciência contábil seja quantitativa ou exata, apenas
pelo fato do ativo ser igual ao passivo mais ou menos patrimônio líquido, não conseguem vislumbrar
quão complexa é a Contabilidade. Uma coisa é a escrituração, outra, totalmente diferente, a ciência
contábil propriamente dita”. (IUDÍCIBUS, Sérgio; MARTINS, Eliseu; LOPES, Alexsandro Broedel. Os
Vários Enfoques da Contabilidade. In: LOPES, Alexsandro Broedel; MOSQUERA, Roberto Quiroga
(coord.). Controvérsias Jurídico-Contábeis (Aproximações e Distanciamentos). 3º vol. São Paulo:
Dialética, 2012, p. 348).
3
O artigo 179, inciso IV, da Lei n. 6404, com a redação dada pela Lei n. 11638, prevê o registro, no
ativo imobilizado, de direitos “decorrentes de operações que transfiram à companhia os benefícios,
riscos e controle desses bens”. Registre-se que o arrendamento mercantil deve ser classificado como
financeiro na hipótese em que forem transferidos ao arrendatário os riscos e benefícios inerentes à
propriedade. O Pronunciamento Técnico CPC n. 06 estabelece que a classificação contábil do
arrendamento mercantil baseia-se na extensão em que os riscos e os benefícios inerentes à
propriedade do ativo arrendado permanecem com o arrendador ou com o arrendatário.
4
O registro contábil de um ativo pode prescindir do título de propriedade. Porém, isso não significa
que a nova contabilidade e a própria Lei n. 6404 adotaram um novo conceito de patrimônio, em
sentido econômico. Na verdade, a possibilidade de usar ou fruir de um bem exterioriza o exercício de
alguns dos poderes inerentes à propriedade, o que caracteriza o direito de posse.
5
Artigo 6º do Decreto-lei n. 1598/1977. Vale ressaltar que o “lucro líquido” utilizado como referência
pela lei tributária não coincide exatamente com aquele previsto no art. 191 da Lei n. 6404, pois, de
acordo com tal dispositivo legal, o lucro líquido do exercício é o resultado do exercício que remanescer
depois da dedução dos prejuízos acumulados, da provisão para o imposto de renda (art. 189) e das
participações estatutárias de empregados, administradores e partes beneficiárias.

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apurado segundo a legislação comercial e as regras contábeis em vigor, é o ponto de partida


para a apuração do lucro real. Assim, o direito aceita o resultado apurado com base nas
normas contábeis e, quando necessário, concebe normas tributárias que estipulam ajustes
específicos para a apuração do lucro tributável. Trata-se, na classificação proposta por José
Casalta Nabais, de um modelo de dependência parcial entre a contabilidade e o direito
tributário, no qual o resultado contábil é ajustado conforme as prescrições da lei tributária 6.

Em suma, a lei tributária utilizou o lucro líquido contábil como ferramenta para
a identificação do acréscimo patrimonial experimentado pelo contribuinte.

Como os ajustes prescritos pela lei tributária constituem um sistema de


exceções taxativas, o contribuinte somente pode efetuar adições (acréscimos) e exclusões
(decréscimos) ao lucro líquido, para efeito de determinação do lucro real, nas hipóteses
expressamente prescritas ou autorizadas em lei. Isso significa que as regras contábeis que
interfiram na apuração do lucro líquido contábil poderão alterar, como consequência, o lucro
real, caso a lei tributária não imponha a realização de ajustes específicos pelo contribuinte.
Melhor explicando, observe-se que, caso as novas práticas contábeis afetem a apuração do
lucro líquido, passa a existir a real possibilidade de verificação de efeitos tributários reflexos
na base de cálculo do IRPJ, sobretudo após a extinção do Regime Tributário de Transição
(RTT), uma vez que o marco inicial para a apuração do resultado tributário sofreu
modificação. Foi justamente esse potencial para gerar efeitos tributários que levou o
legislador a criar regras de neutralização das novas práticas contábeis no âmbito do extinto
RTT.

De qualquer forma, sem embargo do modelo de dependência parcial entre o


direito tributário e a contabilidade 7, é certo que os parâmetros das novas regras contábeis
não podem acarretar a tributação de substrato econômico que não seja compatível com os
parâmetros fixados pelo texto constitucional. A mudança de prática contábil jamais terá o
condão de transformar a materialidade passível de tributação, ao arrepio da Constituição
Federal.

Especificamente no que concerne aos princípios constitucionais que orientam


o sistema tributário nacional, o primeiro aspecto a ser destacado diz respeito ao princípio da
legalidade, previsto no art. 150, inciso I, da Constituição Federal, segundo o qual os entes
federados não podem exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça. A reserva de lei

6
NABAIS, José Casalta. Direito Fiscal. 3ª Edição. Coimbra: Almedina, 2005, p. 576.
7
Segundo Fernando Daniel de Moura Fonseca, a relação entre normas tributárias e regras contábeis
pode ser verificada em três diferentes situações, nas quais o legislador poderá: (i) empregar
vocábulos que se referem a institutos contábeis atribuindo a eles sentido diverso ou criando um
conceito tributário autônomo; (ii) incorporar, expressa ou implicitamente, conceitos contábeis, o que
pressupõe a manutenção do seu sentido original; ou (iii) fazer remissão ao fato contábil como
referência para a incidência da norma de tributação, tal como regulado na Contabilidade (reenvio
direto). (FONSECA, Fernando Daniel de Moura. Normas Tributárias e a Convergência Das Regras
Contábeis Internacionais. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo, 2013, p. 84).

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para a exigência do tributo envolve a definição dos seus aspectos essenciais, como fato
gerador, sujeito passivo, base de cálculo e alíquota, nos termos do art. 97 do Código
Tributário Nacional (“CTN”).

Ocorre que, na esfera contábil, há inúmeras normas regulamentares, com nível


hierárquico inferior às leis, que dispõem acerca do reconhecimento de operações na
escrituração contábil das pessoas jurídicas, como é o caso dos pronunciamentos técnicos,
orientações e interpretações editados pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (“CPC”) 8.
Embora o CPC não tenha competência normativa, os seus pronunciamentos técnicos,
orientações e interpretações passam a ser de observância obrigatória para as pessoas
jurídicas em geral, tanto em razão de sua aprovação pela Comissão de Valores Mobiliários
(“CVM”), no caso de companhias abertas, quanto em razão de sua aprovação pelo Conselho
Federal de Contabilidade, que detém competência para editar regras contábeis de natureza
técnica 9, que vinculam os profissionais da área contábil.

Apesar disso, é certo que os pronunciamentos técnicos do CPC e as formas de


contabilização neles estabelecidas não podem deflagrar efeitos tributários imediatos, tendo
em vista que as normas regulamentares contábeis não têm o condão de alterar o fato
gerador e a base de cálculo dos tributos, que estão sujeitos ao princípio da legalidade. Como
exemplo, podemos mencionar as aplicações em instrumentos financeiros classificados no
ativo circulante, que deverão ser avaliadas pelo seu valor justo, por meio de mecanismo de
“marcação a mercado” 10. Ora, o reconhecimento contábil da valorização do instrumento
financeiro não necessariamente produz efeitos tributários, na hipótese em que não há
disponibilidade econômica ou jurídica da renda para o investidor. Isso é assim porque as
regras societárias e contábeis que tratam da avaliação de investimentos não têm o condão
de alterar o fato gerador do imposto de renda, tal como definido no artigo 43 do CTN e nas
demais leis tributárias que regem a matéria. Assim, cabe à lei tributária disciplinar o momento
em que os rendimentos, os ganhos de capital e os ganhos líquidos auferidos em aplicações
financeiras serão computados na determinação do lucro real, presumido ou arbitrado, para
fins de tributação pelo IRPJ e CSL 11, independentemente da valorização contábil.

O mesmo raciocínio é aplicável na hipótese em que as regras contábeis


estabelecem o registro de determinados valores como receitas na demonstração de
resultados da pessoa jurídica. Antes da edição da Lei n. 11638, o prêmio recebido na
emissão de debêntures e as subvenções para investimento eram contabilizados como

8
O Comitê de Pronunciamentos Contábeis, ou simplesmente CPC, é o resultado da iniciativa conjunta
de diversas entidades brasileiras dos mercados financeiro e de capitais. Trata-se de organismo não-
governamental criado em 2005, com a atribuição de estudar, preparar e emitir pronunciamentos
técnicos de contabilidade, a fim de subsidiar a emissão de normas pelas entidades reguladoras
brasileiras (como a CVM e o Banco Central do Brasil), levando sempre em conta a convergência da
contabilidade brasileira aos padrões internacionais.
9
Art. 6º do Decreto-lei n. 9295, de 27.5.1946.
10
Cf. Pronunciamento Técnico CPC n. 38.
11
Cf. Lei n. 8.981, de 20.1.1995, e Instrução Normativa RFB n. 1.022, de 5.4.2010.

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reservas de capital. A mudança no procedimento contábil, com o registro dos respectivos


montantes em contas de receita ou em reservas de incentivos fiscais, não pode acarretar
alterações nas obrigações tributárias da pessoa jurídica, ao arrepio do princípio da
legalidade. Assim, o procedimento contábil não pode interferir ou alterar a natureza jurídica
de valores que, sob o prisma do direito positivo, correspondem a transferências patrimoniais
não tributáveis.

Logo, o mero registro contábil de determinado valor em contas de resultado,


destituído de substância econômica efetiva, não constitui receita para fins tributários, tendo
em vista que a contabilidade não é suficiente para determinar a ocorrência do fato jurídico
tributário (fato gerador em concreto), limitando-se a registrar e refletir os eventos ocorridos
na realidade factual, de acordo com a linguagem contábil 12. Neste sentido, o Supremo
Tribunal Federal, no julgamento do RE n. 606.107-RS, de 22.5.2013, no qual se discutia a
incidência de PIS e COFINS sobre créditos de ICMS transferidos a terceiros, acertadamente
registrou que “ainda que a contabilidade elaborada para fins de informação ao mercado,
gestão e planejamento das empresas possa ser tomada pela lei como ponto de partida para
a determinação das bases de cálculo de diversos tributos, de modo algum subordina a
tributação. A contabilidade constitui ferramenta utilizada também para fins tributários, mas
moldada nesta seara pelos princípios e regras próprios do Direito Tributário. Sob o específico
prisma constitucional, receita bruta pode ser definida como o ingresso financeiro que se
integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições”.

O segundo aspecto a ser ressaltado, ainda sob o enfoque constitucional, diz


respeito ao poder tributário atribuído a cada ente federativo. Sabe-se que, na configuração
do sistema tributário brasileiro, o poder constituinte distribuiu as competências tributárias
com base na materialidade dos respectivos tributos, indicando o âmbito nuclear do substrato
econômico passível de sofrer a imposição fiscal 13. Assim, retornando ao exemplo do imposto
de renda, pode-se dizer que o substrato econômico a ser submetido à tributação, ainda que
apurado a partir do lucro líquido contábil, jamais poderá ultrapassar o conceito jurídico de
renda definido no art. 43 do CTN, com fulcro no art. 146, inciso III, da Constituição Federal,
sob pena de a tributação recair sobre o patrimônio do contribuinte, em violação às regras
constitucionais de repartição das competências impositivas entre os entes federativos. Por
óbvio, o imposto de renda não pode incidir sobre renda fictícia ou meramente potencial.

O terceiro aspecto a ser levado em consideração diz respeito ao princípio da


capacidade contributiva, que tem o propósito de mensurar a aptidão econômica de contribuir
com o Estado mediante pagamento de tributos. A tributação conforme a capacidade

12
No mesmo sentido, leciona Marco Aurélio Greco: “Não é a maneira pela qual vier a ser
contabilizada determinada figura que irá determinar a sua natureza jurídica para fins de incidência. A
contabilidade retrata a realidade, mas não cria realidades jurídicas novas, desatreladas da substância
subjacente”. (GRECO, Marco Aurélio. “Cofins na Lei 9.718/98 – variações cambiais e o regime de
alíquota acrescida”. Revista Dialética de Direito Tributário n. 50. São Paulo: Dialética, 1999, p. 81).
13
GONÇALVES, José Artur Lima. Imposto sobre a Renda – Pressupostos Constitucionais. 1ª Edição.
2ª Tiragem. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 90.

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contributiva pode ser encarada como verdadeira projeção do postulado da igualdade


tributária, na consecução do ideal de justiça fiscal, pois se dirige à dimensão da base de
cálculo do imposto, a qual deve mensurar, da forma mais precisa possível, o conteúdo
econômico do fato gerador.

As normas constitucionais estabelecem limites normativos para a tributação da


renda segundo a capacidade contributiva, fixando como limite inferior a garantia do mínimo
existencial (princípio da dignidade da pessoa humana) e como limite superior a vedação ao
confisco (princípios da liberdade e da propriedade privada). A zona inserida entes os limites
inferior e superior pode ser objeto de tributação, com a repartição do ônus tributário em
conformidade com a capacidade contributiva subjetiva, que leva em consideração as
condições econômicas do contribuinte, a fim de identificar a riqueza passível de tributação 14.

O princípio da capacidade contributiva impede a tributação por ficção. Para a


cobrança do imposto de renda, contribuinte deve ter acesso efetivo, incondicional e atual ao
acréscimo patrimonial, o que afasta a possibilidade de tributação de renda ainda não
realizada. De fato, a aplicação do princípio da capacidade contributiva, em relação ao
imposto de renda, fundamenta o princípio da realização da renda, pois a subtração do
patrimônio do contribuinte somente pode ocorrer após a percepção da renda. A direta
vinculação do princípio da realização da renda com o princípio constitucional da capacidade
contributiva explica-se porque o imposto a ser recolhido aos cofres públicos somente pode
ser subtraído da própria renda auferida pelo contribuinte. Daí a necessidade de realização da
renda, para que dela o contribuinte possa retirar o imposto a ser entregue à União Federal.
Ora, se fosse possível a cobrança do imposto sobre renda não realizada, é certo que o seu
substrato econômico não seria a renda, mas, sim, o próprio patrimônio do contribuinte, o que
seria inconstitucional.

O quarto aspecto diz respeito à impossibilidade de utilização da classificação


contábil como elemento para a desconsideração ou requalificação dos negócios jurídicos
praticados pelos contribuintes. A lei tributária pode descrever situações fáticas a partir de
critérios econômicos, hipótese em que, por força de lei, a forma jurídica não será relevante.
Nesse caso, para a realização do processo de subsunção, caberá ao aplicador da lei
averiguar os fatos com base nos elementos econômicos previstos pelo legislador,
declarando, a partir daí, a ocorrência, ou não, do fato jurídico tributário na realidade social 15.
Por outro lado, o legislador tributário pode optar por vincular a norma de incidência a
determinado negócio jurídico, hipótese em que a observância da natureza jurídica da
operação passa a constituir elemento indispensável para que esteja completa a situação
jurídica descrita na lei como necessária e suficiente à ocorrência do fato gerador. Em tal
situação, a fiscalização não pode simplesmente estender a incidência tributária para outros
negócios jurídicos com idênticos efeitos econômicos por meio da interpretação dos registros
contábeis. Assim, se a lei tributária contempla negócios jurídicos privados como pressuposto
14
ÁVILA, Humberto. Conceito de Renda e Compensação de Prejuízos Fiscais. São Paulo: Malheiros,
2011, pp. 30-31.
15
SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 624-625.

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para a tributação, então caberá ao intérprete observar a sua estrutura jurídica,


independentemente dos registros contábeis. Observe-se que o aplicador não poderá sequer
utilizar a essência econômica refletida na escrituração contábil para efeito de interpretação,
eis que a lei tributária vinculou a tributação ao tipo contratual, que passa a ser indispensável
para a aplicação da norma jurídica. É justamente por isso que o artigo 149 do CTN permite a
requalificação de ato ou negócio jurídico pela Administração Tributária, entre outras
hipóteses, quando comprovada a existência de simulação. Ora, pudesse o intérprete
simplesmente estender a incidência tributária para outros negócios jurídicos com base na
qualificação contábil, é evidente que o legislador complementar não precisaria ter introduzido
no CTN o controle jurídico (e não econômico ou contábil) dos atos ou negócios jurídicos
simulados.

Em suma, entre os pilares das novas regras contábeis, consideramos que os


seguintes critérios exigem maior cuidado por parte do intérprete, a fim de que a interação
entre a contabilidade e as normas tributárias ocorra em conformidade com o texto
constitucional brasileiro e com os preceptivos legais inseridos no CTN e nas leis tributárias:

(i) a primazia da essência econômica sobre a forma jurídica;

(ii) a adoção de normas mais flexíveis, baseadas em atos normativos


infralegais e princípios contábeis, que conferem ao contador maior liberdade no processo de
reconhecimento contábil, a partir da ideia de subjetivismo responsável;

(iii) o reconhecimento contábil de ganhos não realizados, aferidos com base


em simples oscilações de valores; e

(iv) o progressivo abandono do custo histórico como base de valor e a adoção


do valor justo para a avaliação de itens patrimoniais.

Resposta: os parâmetros das novas regras contábeis não podem


acarretar a tributação de substrato econômico que não seja compatível com os
contornos e limites fixados pelo texto constitucional e pelo CTN, sendo imprescindível
a observância dos princípios constitucionais explícitos (legalidade e capacidade
contributiva) e implícitos (mínimo existencial), bem como das regras constitucionais
de discriminação das competências impositivas.

2) A determinação do registro contábil de negócios segundo a primazia da substância


econômica sobre a forma jurídica poderá ter o efeito de uma norma de antielisão, na
órbita tributária?

Só pode ser negativa a resposta à questão colocada. Os fundamentos jurídicos


que justificam essa conclusão são de ordem formal e material, como passamos a expor.

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Inicialmente, deve-se consignar que não há, no ordenamento jurídico, qualquer


comando normativo que atribua efeito de norma antielisão para a contabilidade. Pelo
contrário, o Decreto-lei n. 1598, de 26.12.1977, seu art. 9º 16, tratou expressamente do papel
da contabilidade para fins tributários, estabelecendo que a escrituração, se mantida em boa
ordem e suportada por documentação hábil, faz prova em favor do contribuinte, cabendo ao
fisco provar a inveracidade dos fatos registrados. Logo, por força de disposição de lei
expressa, a contabilidade protege o contribuinte e não pode ser utilizada como norma
antielisão.

Vale registrar que essa disposição legal, de grande valia, não foi alterada pelas
Leis n. 11638, de 28.12.2007 e 11941, de 27.5.2009, ou pela Medida Provisória n. 627, de
11.11.2013. As referidas leis e medida provisória trataram dos efeitos da nova contabilidade
em matéria tributária, tendo inclusive alterado diversos dispositivos do Decreto-lei n. 1598 e
mantiveram incólume o referido art. 9º.

Mais do que isso, como será exposto mais adiante, as referidas leis
estabeleceram como regra geral a neutralidade dos novos padrões contábeis para fins
fiscais. Ora, se a legislação consagra a neutralidade como regra, não há que se falar em
efeitos antielisivos.

Logo, por ausência de norma que atribua esse tipo de efeito à contabilidade,
ela não pode servir como norma antielisão. Entender o contrário seria violar o princípio
basilar da legalidade, estatuído no art. 5º, inciso II, e 150, inciso I, da Constituição Federal e
nos art. 3º, 97, dentre outros, do Código Tributário Nacional.

Ainda sob a ótica formal, uma lei ordinária, como são as citadas neste trabalho,
não teria o condão de introduzir uma norma antielisão, eis que essa é uma matéria reservada
a lei complementar, nos termos do art. 146, inciso III, da Constituição Federal.

Aliás, a despeito da existência de controvérsia a respeito, há forte corrente


doutrinária que se manifesta no sentido de ser o art. 116, parágrafo único, do Código
Tributário Nacional 17, com status de lei complementar 18, uma norma geral antielisão, a qual

16
“Art. 9º - A determinação do lucro real pelo contribuinte está sujeita a verificação pela autoridade
tributária, com base no exame de livros e documentos da sua escrituração, na escrituração de outros
contribuintes, em informação ou esclarecimentos do contribuinte ou de terceiros, ou em qualquer outro
elemento de prova. § 1º - A escrituração mantida com observância das disposições legais faz prova a
favor do contribuinte dos fatos nela registrados e comprovados por documentos hábeis, segundo sua
natureza, ou assim definidos em preceitos legais. § 2º - Cabe à autoridade administrativa a prova da
inveracidade dos fatos registrados com observância do disposto no § 1º (...)”.
17
”Art. 116. Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os
seus efeitos: (...) Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou
negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou
a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem
estabelecidos em lei ordinária.”
18
Tanto que introduzido no ordenamento jurídico pela Lei Complementar n. 104, de 10.1.2001.

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apenas aguardaria regulamentação por lei ordinária em relação aos procedimentos


necessários à sua aplicação, o que até o momento não ocorreu.

Seria muito imaginar que as leis que trataram dos novos padrões contábeis e
respectivos efeitos na órbita do IRPJ, CSL, PIS e COFINS, poderiam ser interpretadas como
as leis necessárias à regulamentação do art. 116, parágrafo único, do Código Tributário
Nacional.

Já tivemos a oportunidade de analisar a questão da norma antielisão na edição


XXXVI Simpósio Nacional de Direito Tributário, quando pontuamos o que seria uma norma
geral antiabuso, ou antielusão, a qual regulamentaria de forma clara e segura o direito
inquestionável à busca da economia tributária, inclusive prevendo as hipóteses de abuso no
exercício desse direito 19.

Como lá pontuado, não teria validade perante o ordenamento jurídico uma


norma que simplesmente impedisse a livre estruturação dos cidadãos e empresas de modo a
evitar a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária. Uma norma nesse sentido não
teria fundamento na Constituição Federal de 1988, que contempla rígida repartição de
competências tributárias e consagra os princípios da legalidade, livre iniciativa, segurança
jurídica, não confisco e proteção à propriedade privada. Nesse contexto, quando muito, seria
admissível uma norma antiabuso, mas nunca uma norma antielisão.

Impossível, portanto, atribuir efeitos de norma antielisiva à contabilidade, por


ausência de norma nesse sentido e pela duvidosa constitucionalidade que ela teria, se
houvesse.

Ademais, ainda que fossem superadas as questões formais acima apontadas,


o fato é que, materialmente, a essência econômica expressa na contabilidade não surtiria os
efeitos de uma norma antielisão.

Como é de conhecimento geral, a edição da Lei n. 11638 incorporou os


padrões internacionais de contabilidade no Brasil. Tal adoção foi implementada mediante
alterações na Lei n. 6404, de 15.12.1976, nas partes em que ela regula a escrituração e as
demonstrações financeiras das companhias. Além de algumas relevantes alterações no
próprio corpo da Lei n. 6404, a nova lei autorizou que órgãos como a CVM emitam normas
referentes às demonstrações financeiras de acordo com os padrões adotados pelos
principais mercados de valores mobiliários existentes (art. 177, parágrafos 3º e 5º). Na
prática, a edição dessas normas tem sido feita pelo CPC, sendo os respectivos
pronunciamentos aprovados pela CVM, por meio de atos específicos. Os Pronunciamentos

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OLIVERIA, Ricardo Mariz de, FAJERSZTAJN, Bruno, SILVA, Fabiana Carsoni Alves Fernandes da
Silva. In Coord. MARTINS, Ives Gandra da Silva. Questões Controvertidas no Processo Administrativo
Fiscal – CARF. Pesquisas Tributárias. Nova Série 18. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2012.

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do CPC vêm sendo emitidos desde 2008 e vêm introduzindo no Brasil regras contábeis
segundo o padrão IFRS.

Tais alterações implicaram uma verdadeira revolução nas demonstrações


financeiras das empresas brasileiras, inserindo o País no contexto internacional, que
majoritariamente adota o padrão IFRS. A contabilidade deixou de registrar apenas direitos e
obrigações de uma companhia (visão jurídica) e passou a evidenciar fatos a partir de sua
essência econômica. A visão jurídica, embora não abandonada 20, saiu do foco principal em
algumas situações, nas quais isto se demonstrou relevante para as finalidades das
demonstrações financeiras.

Os defensores dessa nova formulação da contabilidade sustentam que tais


alterações eram indispensáveis à inserção do Brasil na economia e no mercado de capitais
mundial, eis que o investidor estrangeiro terá maior familiaridade com as demonstrações
financeiras das empresas brasileiras.

Além disso, sustenta-se que, com a evolução do mercado de capitais, os


investidores de uma companhia passam a ser os mais importantes destinatários das
demonstrações financeiras e não mais o fisco, como historicamente ocorreu no Brasil. Para
os investidores, não é suficiente a demonstração do patrimônio de uma companhia apenas
na perspectiva jurídica, sendo relevante a perspectiva econômica. Nesse contexto, a exata
extensão do patrimônio de uma empresa, este definido como uma universalidade jurídica,
não deve excluir a demonstração da saúde financeira das companhias, muito relevante para
investidores 21.

A visão econômica espelhada pela contabilidade pode ser identificada em


muitos lançamentos contábeis que passaram a ser efetuados após a adoção do padrão
IFRS. O exemplo mais claro é o da contabilização das operações de arrendamento
mercantil, já citadas na resposta à pergunta 1 deste trabalho, cujos bens devem constar no
ativo imobilizado por conta dos riscos e benefícios gerados à empresa, mesmo que ela não
tenha propriedade sobre eles (Lei n. 6404, art. 179, inciso IV, com redação dada pela Lei n.
11638).

Com tais alterações, a contabilidade passou a contemplar uma visão


prospectiva do patrimônio, que olha para o futuro e antecipa possíveis efeitos econômicos,

20
Vide OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. “A tributação da renda e sua relação com a com os princípios
contábeis geralmente aceitos”. In MOSQUEIRA, Roberto Quiroga, LOPES, Alexsandro Broedel.
Controvérsias Jurídico-Contábeis (Aproximações e Distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010. p.
402 e seguintes.
21
Vide a esse respeito, dentre outros, MOSQUEIRA, Roberto Quiroga, LOPES, Alexsandro Broedel.
“Direito contábil. Fundamentos conceituais. Aspectos da experiência brasileira e implicações”. In
MOSQUEIRA, Roberto Quiroga, LOPES, Alexsandro Broedel. Controvérsias Jurídico-Contábeis
(Aproximações e Distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010. p. 56 e seguintes.

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refletindo-os desde já nas demonstrações financeiras. As novas práticas também atribuíram


ao contador a responsabilidade de analisar os fatos na perspectiva econômica e registrá-los
na contabilidade segundo o seu julgamento, o que atribuiu certo subjetivismo aos
lançamentos. O papel do contador, assim, passou a ser ainda mais relevante, contemplando
o que se convencionou chamar de subjetivismo responsável 22.

A todo rigor, não há nada de errado em retratar o patrimônio segundo uma


visão econômica, como faz o balanço levantado a partir do padrão IFRS. Trata-se apenas de
uma maneira diferente de se mostrar a realidade.

Por outro lado, a primazia da essência econômica poderá trazer dificuldades


quando o destinatário das demonstrações financeiras for um credor (em um processo de
falência por exemplo) ou quando esse destinatário for o fisco. Nesses dois exemplos, é
extremamente relevante a situação patrimonial (visão jurídica) de uma empresa e o balanço
terá que sofrer ajustes para se prestar adequadamente aos respectivos fins. Por outro lado, a
visão prospectiva e subjetiva da contabilidade é incompatível com a tributação ou com a
satisfação de uma dívida por um credor na órbita particular, o que confirma a necessidade de
ajustes.

Seja como for, o debate sobre as perspectivas jurídica e econômica refletidas


nas demonstrações financeiras fica para o campo pré-legislativo, político, pois a ênfase dada
ao aspecto econômico hoje é uma realidade, decorrente de escolha legislativa.

Pois bem. Em matéria tributária, a Lei n. 11941, em 2009, tratou de esclarecer


que nenhuma alteração decorrente das novas práticas contábeis terá efeitos tributários ao
instituir o Regime Tributário de Transição, o RTT. Na vigência do RTT, e salvo algumas
controvérsias existentes 23, imperou a neutralidade.

Esse regime foi posteriormente revogado pela Medida Provisória n. 627, em


2013, que ainda se encontra em tramitação até a conclusão deste estudo 24, e que regulou os
efeitos tributários dos novos padrões contábeis, de modo a adaptá-los à realidade jurídica
para fins de tributação. Salvo algumas exceções, a medida provisória seguiu por um caminho

22
Sobre o subjetivismo responsável, confira-se IUDÍCIBUS, Sérgio, MARTINS, Eliseu, LOPES,
Alexsandro Broedel “Os vários enfoques da contabilidade”. In MOSQUEIRA, Roberto Quiroga,
LOPES, Alexsandro Broedel. Controvérsias Jurídico-Contábeis (Aproximações e Distanciamentos) 3º
Volume. São Paulo: Dialética, 2012. p. 350/351.
23
É grande a controvérsia a respeito da possibilidade de se manter a isenção de imposto de renda
sobre dividendos pagos com base em um balanço apurado segundo padrão IFRS se esse balanço
implicar um lucro maior do que aquele apurado segundo as práticas contábeis anteriores (vide
Parecer PGFN 202/2013). Há também divergência sobre o cálculo de juros sobre o capital próprio na
vigência do RTT, isto é, sobre se as contas do patrimônio líquido a serem consideradas para tais
efeitos devem ser aquelas registradas segundo os novos padrões ou não, dentre outros. Vide
comentários a respeito na resposta à questão 6.
24
17.3.2014.

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correto de neutralizar, para fins fiscais, os lançamentos contábeis que refletem a essência
econômica, na visão prospectiva e subjetiva do IFRS. Ainda no exemplo acima dado, as
operações de arrendamento mercantil foram mantidas em geral como despesas
operacionais, para fins fiscais, a despeito de seu novo tratamento contábil de ativo
imobilizado.

Em suma, com a introdução do padrão IFRS, a contabilidade passou a


espelhar o patrimônio segundo a essência econômica, de forma prospectiva e subjetiva, o
que a distancia consideravelmente do patrimônio refletido na perspectiva exclusivamente
jurídica. É nesse contexto de que se coloca a questão formulada pela coordenação científica
do simpósio.

É preciso esclarecer que, a todo rigor, não é adequado o emprego da


expressão “primazia da essência econômica sobre a forma jurídica”. Como exposto, a
contabilidade espelha a essência econômica, algumas vezes em detrimento da visão jurídica
do patrimônio 25. São diferentes meios de se retratar um fato, uma realidade. Mas isso não
quer dizer primazia da essência sobre a forma.

Em direito, a substância jurídica também prevalece sobre a forma para todos


os efeitos. A forma jurídica é apenas o meio instrumental pelo qual um ato ou negócio
jurídico é documentado, e que serve também para provar a existência do ato ou do contrato,
além de ser o meio pelo qual as declarações de vontade são manifestadas. Já a substância
do negócio, sua essência, se exprime pela causa jurídica, que é a sua função prática (Código
Civil, art. 421). A substância corresponde ao conteúdo efetivo de qualquer ato ou negócio
jurídico, assim entendido os efeitos que ele produz de acordo com as normas jurídicas
pertinentes, atribuídos direitos e obrigações para as respectivas partes. Esta substância
jurídica ou causa prevalece sobre a forma 26. Vale também lembrar que, em matéria tributária,
o princípio da verdade material sempre permitiu que a realidade (jurídica) prevalecesse sobre
aspectos formais.

No exemplo do contrato de arrendamento mercantil, sua substância, causa, é a


detenção do direito de propriedade pelo arrendador, até o exercício, pelo arrendatário, da
opção de compra contra pagamento do respectivo preço, sendo que, antes do exercício da
opção, a substância negocial consiste no arrendamento da mesma coisa contra pagamento
de aluguel. O registro do bem arrendado no ativo imobilizado da arrendatária privilegia a

25
Também não se pode dizer que a visão jurídica tenha sido abandonada pela contabilidade. Como
não poderia deixar de ser, a contabilidade reflete o patrimônio a partir de direitos e obrigações, mas
em algumas situações, consideradas relevantes aos fins a que se destina, ela dá maior ênfase à
essência econômica, como no caso das operações de arrendamento mercantil.
26
Confira-se sobre o assunto OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. A tributação da renda e a sua relação com
os princípios contábeis geralmente aceitos. In MOSQUEIRA, Roberto Quiroga, LOPES, Alexsandro
Broedel. Controvérsias Jurídico-Contábeis (Aproximações e Distanciamentos). São Paulo: Dialética,
2010. p. 398.

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essência econômica, eis que os riscos e benefícios estão com ela, em detrimento da
substância jurídica do negócio, que não contempla transmissão da propriedade até a opção
de compra.

Como se vê no exemplo do contrato de arrendamento mercantil, a primazia da


essência econômica vai além da forma jurídica, alcançando e prevalecendo sobre a própria
substância jurídica do negócio.

Ou seja, nos casos em que se dá a primazia à essência econômica, a questão


não é exatamente de essência sobre a forma, mas sim de prevalência da essência
econômica sobre a substância jurídica.

Pois bem. Não se deve perder de vista que as leis que regularam os efeitos
tributários dos novos padrões contábeis estabeleceram a sua neutralidade como regra
geral 27. Se é assim, não há como se conceber a hipótese de a nova contabilidade possuir
efeitos de uma norma antielisão.

Mas não é só. Uma norma antielisão, para que possa atingir sua finalidade,
não deve simplesmente mostrar a essência econômica. Sem entrar no mérito de sua
validade constitucional 28, as normas gerais antielisivas tem como objetivo coibir o
planejamento tributário abusivo, preservando a arrecadação tributária. Esse tipo de norma
geralmente considera que determinados atos ou negócios, desde que atendidas algumas
condições, são inválidos para fins tributários, ou não seriam oponíveis ao fisco. A norma
antielisão requalifica o fato para fins fiscais, de modo a impedir ou reduzir as hipóteses de
elisão.

A essência econômica espelhada na nova contabilidade não surtiria tais efeitos


ou ao menos seria pouco útil para atingir esse desiderato.

A nova contabilidade apenas registra os fatos numa perspectiva econômica,


mas não os qualifica juridicamente a ponto de combater a elisão tributária, como geralmente
ocorre nas normas antielisivas. A contabilidade, mesmo após a incorporação dos padrões
internacionais, não deixou de ter o seu papel de registrar fatos. Desde sempre, a
contabilidade teve como objetivo constatar a existência dos fatos, interpretá-los como eles
são, e registrá-los pelo método das partidas dobradas com vistas a informações necessárias

27
A neutralidade é o princípio que norteou a Lei n. 11941 ao instituir o RTT. Ainda que se possa
discutir a exata extensão dessa neutralidade, é certo que ela é a regra geral. A Medida Provisória n.
627 não propõe neutralidade, mas também procurou anular os efeitos fiscais da maior parte das novas
regras contábeis que registram fatos segundo a primazia da essência econômica e que refletem
efeitos prospectivos.
28
Mas é necessário registrar que uma norma que impeça a busca da economia fiscal pelo contribuinte
não teria suporte na Constituição Federal.

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à gerência, ao público e ao fisco. 29 Em outras palavras, a contabilidade não cria fatos, muito
menos direitos, devendo simplesmente refletir fielmente a realidade fenomênica, o que não é
suficiente para uma norma antielisão 30.

Além disso, não se deve perder de vista que a perspectiva econômica,


apresentada na contabilidade, não exprime necessariamente uma realidade que implique
maior tributação, como se pretende em uma norma antielisiva. Como já dito, trata-se apenas
de uma forma de retratar os fatos, dentre outras possíveis, sem que isso possa
necessariamente justificar maior ou menor tributação.

Pode até mesmo ocorrer de a contabilidade registrar os fatos de tal forma que
seja mais vantajosa ao contribuinte do ponto de vista fiscal. Veja-se questão do ajuste a valor
presente, tratada no art. 183, inciso VIII, que implica o reconhecimento como receita
financeira de parte do preço de venda a prazo de uma determinada mercadoria.
Considerando-se que as receitas financeiras estão atualmente sujeitas à alíquota zero das
contribuições ao PIS e COFINS devidas no regime não cumulativo, a utilização do AVP para
fins tributários reduziria a tributação. Como admitir efeitos antielisivos nesse caso?

Seja como for, mesmo na situação inversa, em que determinado registro


contábil evidenciasse um fato que, segundo a primazia da essência econômica, implicasse
maior tributação, o simples registro contábil a partir da perspectiva econômica não poderia
justificar qualquer pretensão fiscal, por tudo o que já foi exposto.

Por fim, uma possível serventia que a contabilidade poderia trazer no âmbito
da tributação seria se houvesse previsão da chamada interpretação econômica, já
empregada em outras jurisdições, e que chegou a constar do projeto de lei que culminou na
edição do Código Tributário Nacional, em 1966 31, mas que foi rechaçada justamente por

29
Para ilustração, confira-se, por exemplo, o acórdão n. 103-10391, de 22.5.1990, da 3ª Câmara do 1º
Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, no qual se lê: “A circunstância inclusive de a
contabilidade da empresa não ter sido fiel e/ou imprecisa quanto aos fatos não é acontecimento
irreparável.... De regra, consoante é princípio geral, a contabilidade não cria nem modifica direitos,
apenas deve registrar os fatos... Mas a contabilidade, nem por isso, criou, extinguiu ou modificou
qualquer direito que antes não tivesse previsto, nem poderia, e mesmo que o tivesse, isso seria
absolutamente sem efeito, por não ser da sua natureza, esse qualificativo constitutivo, modificativo ou
extintivo de direitos” (inteiro teor em meu arquivo, p. 31 e 35; o grifo é do original). Mencione-se
também o acórdão n. 103-10472, de 21.6.1990, em cuja ementa consta que “a circunstância da
contabilidade registrar determinada rubrica como de empréstimo, por si só não tem o condão de
transformar a natureza das coisas, até porque a contabilidade apenas registra fatos, não lhe sendo
próprio a força de criar, extinguir ou modificar direitos” (DOU-I de 15.10.1990, p. 19574; grifos nossos).
30
O papel da contabilidade foi corretamente identificado pela Ministra Rosa Weber, em voto proferido
no julgamento do Recurso Extraordinário n. 606107-RS, de 22.5.2013 pelo Pleno do Supremo
Tribunal Federal, conforme mencionado na questão anterior.
31
O art. 74 do projeto dizia: “Art. 74 - A interpretação da legislação tributária visará sua aplicação não
só aos atos, fatos ou situações jurídicas nela nominalmente referidos, como também àqueles que
produzam ou sejam suscetíveis de produzir resultados equivalentes.”

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subverter a ordem natural da tributação, baseada no princípio da legalidade 32. Realmente,


se fosse possível a tributação baseada nos efeitos econômicos dos atos, a despeito de sua
estrutura jurídica, como se cogitou no projeto de lei referido, nesse caso, a nova
contabilidade teria utilidade, eis que, como já exposto, ela registra os fatos justamente nessa
perspectiva. Como, todavia, essa modalidade de tributação não chegou a entrar em vigor no
Brasil, a questão fica prejudicada.

Resposta: Não. A contabilidade elaborada segundo os padrões


internacionais não pode ter efeitos de uma norma antielisão, pois não há qualquer
comando normativo que lhe atribua repercussão dessa natureza. Ademais, a
contabilidade apenas registra o fato, agora também numa perspectiva econômica, mas
não o qualifica juridicamente a ponto de torna-lo ineficaz ou inoponível ao fisco, como
geralmente ocorre com as normas gerais antielisivas. Por fim, a essência econômica
registrada na contabilidade nem sempre implica maior tributação, podendo sua
aplicação para fins fiscais surtir o efeito contrário aos objetivos de uma norma
antielisiva.

3) O regime de tributação em bases universais (de controladas e coligadas no exterior)


está de acordo com a última manifestação do Supremo Tribunal Federal a respeito do
tema?

Esta indagação refere-se à Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2588-DF,


cujo julgamento finalizou-se em 10.4.2013, e diz (ou deveria dizer) respeito apenas ao art. 74
da Medida Provisória n. 2158-35, de 24.8.2001.

Algumas observações preliminares são necessárias.

Deve-se fazer uma distinção entre o que dispõe o parágrafo 2º do art. 43 do


CTN e a norma expedida pelo art. 74 da Medida Provisória n. 2158-35, dado que o CTN
apenas prescreve que, em se tratando de receitas ou rendimentos provenientes de fontes no
exterior, cabe à lei determinar o momento em que ocorre a respectiva disponibilidade
econômica ou jurídica. Deste modo, dificilmente se pode encontrar algum vício constitucional
nessa regra da lei complementar.

Destarte, a questão constitucional cinge-se ao art. 74 da referida medida


provisória, que instituiu uma ficção de disponibilidade de lucros, contrariamente à efetiva
disponibilidade disciplinada, tão bem e minuciosamente, no art. 1º da Lei n. 9532, de
10.12.1997.

32
Ainda assim houve quem tivesse pretendido propagar a interpretação econômica no sistema
brasileiro, mas a jurisprudência não acolheu a ideia. Basta citar Supremo Tribunal Federal, Pleno,
recursos extraordinários n. 94580-6-RS, julgado em 30.8.1984, e 116121-3-SP, decidido em
4.10.2000.

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Não obstante, por esta ou por aquela razão, a lide no Supremo Tribunal
descambou para a discussão sobre a constitucionalidade também da disposição que foi
inserida no art. 43 do CTN pela Lei Complementar n. 104, de 10.1.2001, a despeito de que a
finalização do julgamento tenha se concentrado no art. 74.

A segunda observação tem a ver com a ocorrência do julgamento em si.

Realmente, sobre matéria de tão ampla magnitude, o tribunal gastou mais de


dez anos para chegar a uma decisão final (o relatório e o voto da Ministra Ellen Gracie
portam a data de 5.2.2003, para uma ação iniciada muito antes).

Os reflexos daninhos dessa demora na prestação jurisprudencial foram


sentidos ao longo de todo esse tempo, e especialmente estão se sentindo agora com mais
intensidade, através do conhecimento do balanço das grandes corporações, relativos a 2013,
que apresentam o reconhecimento definitivo de grandes perdas, apesar dos benefícios de
reduções que foram concedidos (injustamente para os demais contribuintes) pela Medida
Provisória n. 627, de 11.11.2013.

Graças a essa demora, também não se teve um julgamento apropriado, mas


um veredicto composto por votos proferidos por ministros que há muitos anos deixaram a
corte, e de outros que vieram depois e não participaram dos debates iniciais.

Além disso, seis ministros da corte atual não votaram, um por se declarar
impedido e cinco porque substituíram aqueles que já se retiraram. Realmente, da atual
composição do Supremo Tribunal apenas quatro ministros votaram e, curialmente, três pela
inconstitucionalidade do art. 74 e apenas um pela inconstitucionalidade parcial. Nada menos
do que seis ministros na data de encerramento e sete atualmente, não participaram da
votação. 33

E, para agravar o quadro inusitado, entre os ministros participantes da votação


e ainda em exercício, a decisão que foi proclamada foi defendida pelo voto de apenas um
deles, contra os dos outros três.

Não à toa, pois, como resultante de tudo, o que se verificou foi uma junção de
votos sem qualquer coerência dialética, com o que a Suprema Corte desenvencilhou-se de
mais um processo, como se pode ver dos debates finais, em que os ministros buscaram
“entender” qual deveria ser o resultado.

33
Em síntese, da atual composição não votaram Gilmar Mendes, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz
Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Roberto Barroso; Celso de Mello, Marco Aurélio e Ricardo
Lewandowski votaram pela inconstitucionalidade total; apenas Joaquim Barbosa votou como resultou
a decisão.

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Ou seja, o resultado foi produto de um “Supremo do passado”! E isto causa


especial preocupação quanto ao futuro, ao se ter presente a atual volatilidade da
jurisprudência dos tribunais superiores.

Não é preciso dizer que o ideal de julgamento, tecnicamente falando e na


busca da justiça, forma-se quando todos os membros do tribunal ouvem as razões das
partes e prosseguem com o proferimento dos seus votos, concluindo-se o julgamento por
uma mesma composição de juízes, assim respeitando-se o princípio do juiz natural e
também o direito individual à razoável duração do processo e à garantia real do direito de
defesa e do contraditório, em sua plenitude e eficácia.

Uma terceira observação volta-se para as argumentações emitidas pelos


ministros cujos votos compuseram a decisão final, as quais demonstram a ingerência de
argumentações subjetivas divorciadas da técnica jurídica e dos princípios que norteiam a
tributação, sem que o Tribunal tenha manifestado um entendimento minimamente lastreado
em consistentes fundamentos jurídicos adotados por sua maioria.

Não à toa, também, que o veredicto final padeça dos vícios da insuficiência e
da contrariedade com volumosa doutrina predominante sobre o específico tema, além da
falta de coerência, que desaguam na continuidade da insegurança jurídica e dos conflitos de
interpretação.

Por todas estas razões, a resposta à questão proposta para debate no


Simpósio somente pode se cingir aos termos finais da decisão, contidos na ementa do
acórdão, que, afinal, condensa o que foi decidido e suplanta passagens “orbiter dictum” e
votos individuais.

É também exclusivamente nessa parte que a comunidade jurídica e os agentes


econômicos e fiscais encontrarão o pouco que puderem subtrair desse episódio judicial.

A síntese feita na ementa do acórdão, e também no resumo da decisão,


declara:

1 - a inaplicabilidade do art. 74 às pessoas jurídicas coligadas não sediadas


em países com tributação favorecida ou que não sejam “paraísos fiscais”;

2 – a aplicabilidade do art. 74 às pessoas jurídicas controladas que sejam


sediadas em países com tributação favorecida, ou que sejam desprovidos de controles
societários e fiscais adequados (“paraísos fiscais”, assim definidos em lei);

3 – a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 74, de modo que o texto


impugnado não pode ser aplicado aos lucros apurados até 31.12.2001.

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Destrinchando um pouco mais estes três itens, podemos concluir que:

- a alusão a “paraísos fiscais”, separadamente da alusão a países com


tributação favorecida, e a especificação de serem eles definidos em lei, somente leva à
conclusão de que o acórdão considerou como tais as jurisdições que guardem sigilo quanto
à identificação dos titulares das pessoas jurídicas ou à composição do seu quadro societário;

- o item 1 somente declarou a inaplicabilidade do art. 74 às coligadas sediadas


fora de países com tributação favorecida ou paraísos fiscais, deixando sem solução as
coligadas sediadas dentro dessas jurisdições;

- o item 2 somente admitiu a aplicabilidade do art. 74 às controladas sediadas


em países com tributação favorecida ou paraísos fiscais, deixando sem solução as
controladas sediadas fora dessas jurisdições;

- o item 3 é claro ao declarar a inconstitucionalidade do parágrafo único do art.


74, significando que o art. 1º da Lei n. 9537 rege a tributação dos lucros auferidos até o final
de 2001, quaisquer que sejam as datas em que tenham sido distribuídos, ou venham a sê-lo.

Desta última parte, que surpreendeu a todos, é inimaginável a quantidade de


conflitos que precisarão ser resolvidos, pois o parágrafo único do art. 74 foi cumprido em
incalculáveis vezes, e em todas passou a surgir o direito à repetição do indébito. Por outro
lado, haverá que se resolver o que fazer nos casos em que tenha havido efetiva
disponibilização de lucros gerados até 2001 e nos quais o art. 1º da Lei n. 9532 não tenha
sido aplicado.

Quanto aos dois primeiros itens da ementa, seria possível dizer que o acórdão
admite a aplicabilidade do art. 74 apenas às controladas em países com tributação
favorecida ou paraísos fiscais, pois, não fosse assim, o item 2 não teria sido restritivo a
essas jurisdições, bastando ter falado em controladas. Fosse esta a intelecção da decisão,
controladas fora dessas jurisdições não poderiam ser submetidas ao art. 74.

Do mesmo modo, e se fosse assim quanto às controladas, não faria sentido


não ser assim também quanto às coligadas, isto é, o art. 74 somente poderia ser aplicado às
controladas sediadas em paraísos fiscais ou em países com reduzida tributação, e não
aplicável às coligadas mesmo situadas em jurisdições de baixa tributação ou que sejam
paraísos fiscais. Isto porque, se para estas fosse aplicável o art. 74, o acórdão não teria feito
menção apenas às controladas, e deveria ter dito ser aplicável esse dispositivo tanto às
controladas quanto às coligadas quando localizadas naquelas jurisdições.

Porém, tal intepretação não se sustém tendo-se em conta que a decisão


proferida o foi em caráter “erga omnes” com efeito vinculante, de tal modo que a
proclamação do resultado limitou-se às situações em que se verificaram votos suficientes
para a obtenção deste efeito, ficando as demais situações sem prestação jurisdicional.

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Esta confusão fica bem ilustrada pelo entendimento que a Secretaria da


Receita Federal do Brasil exarou através da Solução de Consulta Interna COSIT n. 18, de
8.8.2013, a qual se permitiu fazer uma tabela distinguindo decisões com efeito vinculante e
decisões sem esse efeito, do seguinte modo:

- coligadas fora de paraísos: inconstitucionalidade com efeito vinculante “erga


omnes”;
- coligadas em paraísos: constitucionalidade sem efeito vinculante “erga
omnes”;
- controladas fora de paraísos: constitucionalidade sem efeito vinculante “erga
omnes”;
- controladas em paraísos: constitucionalidade com efeito vinculante “erga
omnes”.

Claro que tal posição do fisco depende de futuros julgamentos dos itens sobre
os quais ainda não houve qualquer decisão, que são aqueles dados pela constitucionalidade
sem efeito vinculante “erga omnes”.

Dito isto, podemos voltar à questão do Simpósio.

Como a indagação não pede a apreciação do que foi decidido, mas, sim, da
congruência da decisão com o regime de tributação em bases universais, fica-se
dispensado, para este fim, de adentrar em outras falhas que se verificam na leitura do
acórdão e dos seus votos, a despeito de que, para responder outras questões, estejamos
adentrando nos fundamentos jurídicos que devem (ou deveriam) ser considerados para a
apreciação da (in)constitucionalidade da indigitada norma.

Destarte, atendo-se ao que é indagado, pode-se fazer uma análise em nível


jurídico e uma segunda análise que confronte a decisão com as novas normas editadas pela
Medida Provisória n. 627.

Juridicamente, a decisão proferida encontrar-se-ia conforme ao disposto no


inciso I do parágrafo 2º do art. 153 da Constituição Federal, que submete o imposto de renda
ao princípio da universalidade, o qual conduz à tributação da renda mundial, dado que
requer a incidência do imposto sobre a universalidade da mutação patrimonial. Mas este não
foi o foco do Supremo Tribunal Federal, que se ocupou da renda fictícia ou da disponibilidade
ficta de renda, portanto, de uma renda inexistente e que, na verdade, não integra a
universalidade das rendas adquiridas no período de apuração. Destarte, se formos por este
lado, concluiremos que o tribunal concedeu mais do que o princípio constitucional.

Por outro lado, a decisão não se coaduna com o Sistema Tributário Nacional,
mas não é oportuno, nesta resposta, renovar a demonstração de todos os fundamentos que
levaram a doutrina a esmagadoramente afirmar a contrariedade do art. 74 com esse conjunto

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de normas constitucionais e a sua incompatibilidade com o art. 43 do CTN, devidamente


interpretado como sempre foi.

Basta aqui dizer que admitir a existência de disponibilidade econômica ou


jurídica de renda nas circunstâncias desse dispositivo legal é fazer tábula rasa da profícua
construção doutrinária e jurisprudencial, inclusive do próprio Supremo Tribunal, ao longo de
quase cinquenta anos, sobre o que seja disponibilidade econômica ou jurídica de renda, a
qual pressupõe, como é óbvio, haver renda para poder estar disponível.

A própria alusão à disponibilidade econômica ou jurídica apenas permite


chegar à conclusão de que a maioria dos votos entendeu haver uma ou outra daquelas
disponibilidades, mas o acórdão não afirma qual delas seria, o que não deixa de refletir um
mal entendimento do conceito legal.

Igualmente, a distinção entre controladas e coligadas, e a distinção entre


controladas situadas em países de baixa tributação ou em paraísos fiscais, e as sediadas em
outras localidades, foram construções de parte dos votos, não existentes no art. 74, e,
ademais, incompatíveis com a noção de disponibilidade econômica ou jurídica de renda, que
existe ou não existe, independentemente do local de origem da renda ou da sua fonte
produtora, aliás, como proclama corretamente o próprio parágrafo 1º do art. 43 da lei
complementar.

Assim, neste caso, a maioria dos votos, contrariando a doutrina tradicional do


mesmo Supremo Tribunal, permitiu-se ser legislador positivo, distinguindo onde a lei não
distingue, e ignorando que a distinção existe em outros dispositivos legais que disciplinam
outras situações, contrariamente à generalidade do art. 74.

Também vale uma alusão ao argumento relacionado ao método da


equivalência patrimonial, o que mais parece ser um argumento lançado em alguns votos
para aparentar um possível fundamento legal, mas que não resiste à mínima análise crítica,
porque:

- o referido método somente reflete os lucros quando ainda não estejam


disponibilizados pela pessoa jurídica existente no exterior, isto é, exatamente na contramão
do argumento de que os lucros por ele refletidos já estão no patrimônio da investidora;

- por isso mesmo, a lei continua a declarar mandatoriamente (norma ignorada


na invocação do argumento) que os acréscimos decorrentes do referido método não são
tributáveis;

- o referido método aplica-se tanto às controladas quanto às coligadas, de


modo que, se fosse determinante da tributação, deveria sê-lo também para estas;

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- o referido método aplica-se às controladas existentes em qualquer lugar do


mundo, inclusive no Brasil, de modo que, se fosse determinante da tributação, não
comportaria a distinção feita para os investimentos em controladas sediadas em países de
tributação reduzida ou paraísos fiscais.

Em suma, juridicamente a decisão foi paupérrima sob o ponto de vista jurídico.

Seja como for, estas são breves observações válidas num encontro científico
de juristas, mas inócuas para solucionar a insegura realidade em que vivemos, na qual o
Supremo deu sua palavra parcial mas final, pelo menos até a mudança da sua atual
composição, ou mesmo até que a sua atual composição tenha a oportunidade de votar por
inteiro sobre o assunto, ainda que tolhida pela força do efeito vinculante, que precisaria ser
substituído numa outra ação apta para tanto.

Quanto à Medida Provisória n. 627, tal como editada 34, não se pode dizer que
as diretrizes adotadas no seu capítulo intitulado “Da Tributação em Bases Universais”
estejam de acordo com a decisão da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2588-DF.

Não se adentrando em particularidades relativas à consolidação de resultados,


rendas ativas, controladas diretas e indiretas e outras matérias não constantes da decisão, o
texto legal distingue as controladas das coligadas, prevendo a tributação imediata, tal e qual
o art. 74 da Medida Provisória n. 2158-35, apenas para as controladoras, mas em relação a
todas as suas controladas, e não apenas àquelas sediadas em países de baixa tributação ou
que sejam paraísos fiscais.

Quanto às coligadas, embora a regra seja a de tributação conforme a efetiva


disponibilização dos seus lucros, nos mesmos termos da Lei n. 9532, também não há
concordância com o que foi decidido pelo Supremo Tribunal, pois é atribuído igual tratamento
ao previsto para as controladas nos casos em que a coligada esteja em jurisdição com
tributação favorecida ou que se submeta à subtributação, ou tenha regime fiscal privilegiado,
entre outras hipóteses.

Ocorre que a Secretaria da Receita Federal do Brasil carreou para o texto da


Medida Provisória n. 627 o entendimento que retirou da decisão proferida na ação direta de
inconstitucionalidade e de votos isolados, conforme a já mencionada Solução de Consulta
Interna COSIT n. 18/13.

Assim, soma-se às deficiências do julgamento da referida ação judicial a


insegurança da contrariedade entre o que foi admitido como válido pela Suprema Corte e o

34
Não se considera aqui as possíveis alterações feitas durante a sua tramitação pelo Congresso
Nacional, porque este texto foi entregue ao editor antes da sua possível conversão em lei, ou da
promulgação da respectiva lei de conversão.

22
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que está estatuído na nova medida provisória, sinalizando-se, portanto, a continuidade das
lides fiscais.

Resposta: a tributação em bases mundiais, especificamente quanto aos


lucros de controladas no exterior, não pode ser feita nos termos do art. 74 da Medida
Provisória n. 2158-35, a despeito do que foi decidido a Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 2588-DF, por contrariar o Sistema Tributário Nacional, e muito
menos conforme a Medida Provisória n. 627, que sequer está de acordo com essa
decisão judicial; a tributação dos lucros de coligadas no exterior pode ser feita nos
termos da Lei n. 9532, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal ao afastar o art.
74, porque está em conformidade com o Sistema Tributário Nacional, mas não pode
ser feita como prescreve a Medida Provisória n. 627 nas partes em que se afasta da
decisão judicial.

4) A sistemática de tributação segundo a qual os resultados de controladas, diretas e


indiretas, como regra, são tributados individualizadamente, sendo restrita a
possibilidade de sua consolidação, está de acordo com a Constituição Federal e com
o CTN? É aceitável tributar os resultados de uma controlada indireta, sobre os quais o
investidor brasileiro não tem acesso direto e que para ele não geram registro contábil
de equivalência patrimonial?

A primeira parte da questão proposta está diretamente relacionada aos


princípios informadores do imposto de renda. O art. 153, parágrafo 2º, inciso I, da
Constituição Federal estabelece que o imposto sobre a renda será informado pelos critérios
da generalidade, da universalidade e da progressividade, na forma da lei. Para examinar a
possibilidade de tributação individual dos resultados das controladas diretas e indiretas,
interessa-nos especificamente os critérios da generalidade e universalidade.

Em linhas gerais, o critério da generalidade contrasta com a seletividade,


exprimindo a ideia de que a legislação deve tratar por igual todo e qualquer tipo de renda ou
provento, sem distinções derivadas de critérios discriminatórios. Com isso, veda-se qualquer
forma de distinção de tratamento em razão da ocupação profissional do contribuinte, da
modalidade do rendimento, da sua fonte de produção ou da denominação jurídica dos
rendimentos, dos títulos e dos direitos de que derivem. Como a seletividade é vedada para o
imposto de renda, o aumento patrimonial deve receber o idêntico tratamento para efeito de
incidência do imposto, independentemente dos tipos de renda ou de proventos que
contribuam para a sua formação 35.

35
OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. “Princípios Fundamentais do Imposto de Renda”. In: Direito Tributário
– Estudos em Homenagem a Brandão Machado. Coord. Luís Eduardo Schoueri e Fernando Zilveti.
São Paulo: Dialética, 1998, p. 214.

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Por outro lado, o critério da universalidade estabelece que o imposto de renda


deve considerar a totalidade dos elementos positivos e negativos que compõem determinado
patrimônio, bem como a totalidade dos fatores que atuam para aumentar e diminuir o referido
patrimônio em determinado período de tempo, fixado pela lei. Exige-se, assim, a incidência
do imposto sobre todo o aumento patrimonial auferido no período previsto em lei, por inteiro
e em conjunto, sem fracioná-lo e, novamente, sem distinguir as espécies de rendas e
proventos 36. A universalidade, ao preconizar a tributação conjunta e global dos rendimentos
auferidos em determinado período, ainda permite que se possa aferir a real capacidade
contributiva do sujeito passivo, a ser submetida à tributação pelo imposto de renda de forma
progressiva 37.

Após as considerações teóricas acima, podemos passar à análise acerca da


possibilidade de tributação individual dos resultados de controladas, diretas e indiretas, no
exterior, sem a consolidação dos respectivos resultados para fins de tributação no Brasil.

No plano conceitual, há diferentes mecanismos para o reconhecimento dos


resultados auferidos por controladas e coligadas no exterior. Para facilitar a compreensão, as
formas de consolidação serão explicadas com base na estrutura societária reproduzida
abaixo:

ESTRUTURA SOCIETÁRIA

BR
Brasil

Exterior
A B C

B1 B2

36
OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008,
p. 215.
37
QUEIROZ, Mary Elbe. Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza. Barueri: Manole,
2004, pp. 36-37

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(i) tributação individual: a empresa controladora no Brasil deve reconhecer,


de forma individualizada, os resultados auferidos pela controladas diretas (empresas A, B e
C), bem como os resultados auferidos pelas controladas indiretas (B1 e B2).

(ii) tributação mediante consolidação vertical: a empresa B deve consolidar


os resultados e os tributos pagos por B1 e B2, para então submeter o resultado líquido
apurado em B à tributação pelo imposto de renda devido no país de sede da empresa
controladora. Os resultados das empresas A e C são reconhecidos diretamente na empresa
controladora no Brasil, sem qualquer consolidação.

(iii) tributação mediante consolidação horizontal: a empresa B não pode


consolidar os resultados e os tributos pagos por B1 e B2, caso a consolidação vertical não
seja admitida. Porém, os resultados auferidos e os tributos pagos pelas empresas A, B e C
poderiam ser reconhecidos de forma consolidada na empresa controladora no Brasil, caso a
consolidação horizontal fosse admitida.

(iv) tributação mediante consolidação completa: a empresa B pode


consolidar os resultados e os tributos pagos por B1 e B2 e a controladora no Brasil pode
consolidar os resultados auferidos e os tributos pagos pelas empresas A, B e C.

Diante das diferentes formas de consolidação explicadas acima, o primeiro


aspecto a ser destacado no presente estudo diz respeito à necessidade de uniformidade e
paridade no tratamento tributário atribuído aos lucros e aos prejuízos auferidos no exterior,
sob pena de irretorquível distorção do resultado a ser oferecido à tributação no Brasil.

É sabido que tanto os lucros quanto os prejuízos concorrem para a


determinação da situação patrimonial da coligada ou controlada no exterior e, por
consequência, para a mensuração da renda do exterior a ser tributada no Brasil. Por isso,
não há qualquer justificativa razoável para a imposição de tratamento tributário distinto aos
respectivos lucros e prejuízos. Aliás, caso assim não seja, a legislação tributária estará
fadada a agasalhar e legitimar a tributação de resultados fictícios, o que contraria o aspecto
material das hipóteses tributárias do IRPJ e da CSL, bem como o princípio da tributação com
base na capacidade contributiva.

É justamente por isso que Alberto Xavier 38, Heleno Torres 39, João Francisco
Bianco 40, Luís Eduardo Schoueri 41 e Marco Aurélio Greco 42 têm defendido a

38
XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 427.
39
TÔRRES, Heleno Taveira. “Compensação de prejuízos de controladas e coligadas no exterior. In:
Estudos Avançados de Direito Tributário. Estudos Avançados de Direito Tributário – Tributação
Internacional: normas antielisivas e operações internacionais. Coord. Clovis Panzarini Filho; Daniel
Vitor Bellan, Fernando Tonanni et all. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, pp. 107-128.
40
Particularmente, Bianco considera que o direito à compensação de prejuízos depende de norma
legal expressa que o preveja, mas não deixa de registrar sua opinião no sentido de que a vedação
contida no parágrafo 5º do artigo 25 da Lei n. 9249/1995 é “inadequada, incoerente, inconsistente e

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incompatibilidade do parágrafo 5º do artigo 25 da Lei n. 9249/1995 com o regime de


tributação automática dos lucros do exterior. Esse dispositivo legal, que não foi revogado
com a edição da Medida Provisória n. 627, de 11.11.2013, veda a compensação de prejuízos
de controladas ou coligadas, no exterior, com os lucros auferidos pela pessoa jurídica
controladora no Brasil. Na realidade, o vício que atinge dispositivo legal em pauta reside na
falta de razoabilidade de considerar apenas os lucros do exterior, sem determinar o cômputo
também dos prejuízos 43. O legislador brasileiro foi arbitrário ao adotar o princípio da
universalidade para os resultados positivos e o princípio da territorialidade pura para as
perdas 44.

Acrescente-se, ainda, que a tributação ficta de lucros não disponibilizados viola


o princípio da universalidade duplamente, tanto ao incluir na base de cálculo do IRPJ valores
que não integram o patrimônio do contribuinte, quanto ao restringir ou limitar a possibilidade
de consolidação de resultados na esfera patrimonial do sujeito passivo, escolhendo os
elementos que serão computados na determinação do suposto acréscimo patrimonial. As
mutações patrimoniais experimentadas pelo contribuinte em determinado período devem ser
consideradas em conjunto, a partir da consolidação de todos os elementos patrimoniais
positivos e negativos, sem a imposição de restrições injustificadas pelo legislador.

A segunda parte da questão diz respeito à possibilidade, ou não, de tributação


dos resultados auferidos pelas controladas indiretas, sobre os quais o investidor brasileiro
não tem acesso direto e não há o registro contábil de equivalência patrimonial.

Antes de qualquer outra consideração, parece-nos importante registrar que o


método da equivalência patrimonial (MEP) consiste em mera técnica contábil de avaliação de
investimentos, com o objetivo de evidenciar, no balanço patrimonial da sociedade
investidora, o seu futuro direito de participação nos ativos líquidos da sociedade investida.
Assim, o MEP não tem o condão de indicar a existência de disponibilidade econômica ou
jurídica da renda para os sócios ou acionistas, pois esse critério de avaliação de participação
societária não atribui à sociedade investidora direito aos lucros da investida, assim como não

contrária ao que é praticado nos países desenvolvidos” (BIANCO, João Francisco. “O Regime de
Compensação de Prejuízos e Perdas Sofridas no Exterior”. In: Grandes Questões Atuais do Direito
Tributário. 6º Volume. Coord. Valdir de Oliveira Rocha. São Paulo: Dialética, 2002, pp. 209-224).
41
SCHOUERI, Luís Eduardo. “Princípios no Direito Tributário Internacional: Territorialidade, Fonte e
Universalidade”. In: Princípios e Limites da Tributação. Coord. Roberto Ferraz. São Paulo: Quartier
Latin, 2005, pp. 373-374.
42
GRECO, Marco Aurélio. “Globalização e Tributação da Renda Mundial”. In: Revista Fórum de
Direito Tributário n. 2. Belo Horizonte: Fórum, 2003, pp. 86-90.
43
OLIVEIRA, Ricardo Mariz. “A Disponibilidade Econômica ou Jurídica de Rendas e Proventos
Auferidos no Exterior”. Revista Fórum de Direito Tributário n. 4. Belo Horizonte: Fórum, 2003, p. 27.
44
SCHOUERI, Luís Eduardo. “Princípios no Direito Tributário Internacional: Territorialidade, Fonte e
Universalidade”. In: Princípios e Limites da Tributação. Coord. Roberto Ferraz. São Paulo: Quartier
Latin, 2005, p. 374.

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a obriga a suportar os respectivos prejuízos 45. Além disso, o MEP não deve ser utilizado
sequer para mensurar o resultado do exterior a ser submetido à tributação no país. Isso
porque esse método não reflete apenas os lucros e os prejuízos das pessoas jurídicas
controladas ou coligadas no exterior, mas também mutações patrimoniais distintas (v.g.
transferências registradas em reservas de capital e variações cambiais do investimento) 46.

Feitos esses comentários iniciais a respeito do MEP, parece-nos importante


registrar que as principais críticas às regras de distribuição ficta dos lucros auferidos por
controladas diretas são aplicáveis, com ainda maior razão, às controladas indiretas. Como
tais aspectos são amplamente conhecidos dos profissionais que atuam na área tributária e já
foram abordados na questão 3 acima, optamos por apenas reiterá-los em caráter
sistemático, antes de seguirmos adiante na análise do tema:

- violação ao art. 153, inciso III, bem como ao art. 195, inciso I, alínea “c”,
ambos da Constituição Federal, em virtude da exigência do IRPJ e da CSL sobre acréscimo
patrimonial não disponível para a pessoa jurídica no Brasil;

- inobservância do conceito de aquisição de disponibilidade econômica ou


jurídica da renda, previsto no art. 43 do CTN, mesmo após a adição do parágrafo 2º pela Lei
Complementar n. 104, de 10.1.2001, que deve ser compreendido, interpretado e aplicado no
contexto do caput, uma vez que os parágrafos não têm existência autônoma;

- impossibilidade de utilização de ficção jurídica para a tributação dos lucros


das controladas e coligadas em 31 de dezembro de cada ano, em violação aos diversos
princípios e regras constitucionais que orientam a tributação da renda no Brasil;

- falta de proporcionalidade e de razoabilidade das regras brasileiras de CFC


(“Controlled Foreing Companies”), que não restringem o seu âmbito de aplicação às rendas
passivas auferidas por sociedade controladas sediadas em país com tributação favorecida,
sem o exercício de atividade econômica substantiva;

- indevida desconsideração da personalidade jurídica das sociedades


controladas e coligadas no exterior, cujos patrimônios não se confundem com os de seus
sócios, salvo em situações excepcionais de desvio de finalidade ou confusão patrimonial;

45
OLIVEIRA, Ricardo Mariz. “A Disponibilidade Econômica ou Jurídica de Rendas e Proventos
Auferidos no Exterior”. Revista Fórum de Direito Tributário n. 4. Belo Horizonte: Fórum, 2003, pp. 19-
23.
46
Como exemplo, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Recurso Especial n.
1.211.882-RJ, de 14.04.2011, considerou que a legislação tributária somente autoriza a tributação do
lucro auferido por controladas e coligadas no exterior, na proporção da participação da pessoa jurídica
brasileira no capital social da investida. Em consequência, a Corte considerou que é ilegal a utilização
do MEP para a tributação de valores que superam o lucro efetivamente auferido pela sociedade
investida no exterior.

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- atribuição de tratamento tributário distinto aos lucros e aos prejuízos


apurados no exterior, distorcendo o resultado passível de tributação no Brasil;

- ofensa ao princípio da universalidade que orienta o imposto de renda, seja


por determinar a tributação de lucros que não pertencem à universalidade patrimonial do
contribuinte, seja por incluir na base de cálculo apenas os fatores positivos (lucros);

Com base nas considerações acima, percebe-se que a lei tributária não pode
determinar a adição dos lucros das controladas indiretas ao lucro real e à base de cálculo da
CSL da pessoa jurídica brasileira. Vale dizer, a pessoa jurídica brasileira não pode ser
obrigada a reconhecer diretamente a sua participação nos lucros da controlada indireta,
tampouco pode ser compelida a aplicar o método da equivalência patrimonial para
reconhecer a sua participação sobre as contas do patrimônio líquido das controladas
indiretas. A rigor, o MEP não pode ser considerado como índice para a tributação dos lucros
auferidos pelas controladas diretas no exterior, pois o seu reflexo no patrimônio da empresa
investidora no Brasil não representa acréscimo patrimonial efetivo e disponível. No caso de
controladas indiretas, a impossibilidade de tributação dos lucros apurados no seu balanço
fica ainda mais evidente, pois não há sequer ajuste contábil via equivalência patrimonial para
refletir os lucros apurados no balanço da sociedade estrangeira.

É importante relembrar que o lucro apurado pertence à sociedade estrangeira


enquanto não ocorrer a sua efetiva destinação social, no encerramento do período de
apuração. Embora o sócio tenha o direito de participar dos lucros sociais e, em certos casos,
reclamar a distribuição do dividendo obrigatório, é preciso reconhecer que, antes da
deliberação societária que declarar a sua distribuição, há mera expectativa de direito por
parte do investidor. Note-se que a sociedade ainda pode atribuir outro destino aos lucros,
como a capitalização ou a constituição de reservas, assim como a própria lei estrangeira
pode determinar a retenção de lucros ou a constituição de reservas legais. É por isso que a
apuração de lucros é condição necessária, mas não suficiente para a distribuição de
resultados sob a forma de dividendos.

Outro aspecto a ser mencionado diz respeito à descabida extensão da lei


tributária brasileira, a fim de tributar de modo ficto os lucros auferidos e mantidos por
sociedades controladas indiretas sediadas no exterior, sem qualquer elemento de conexão
com o território brasileiro. É sabido que o crescente desenvolvimento do comércio
internacional e a consolidação do fenômeno da globalização aumentam a possibilidade de
realização de atos, fatos ou negócios jurídicos que estejam conectados, por elementos de
estraneidade, a mais de Estado soberano dotado de poder de tributar. O elemento de
estraneidade, que evidencia a conexão do fato concreto com determinado ordenamento
jurídico, pode conferir maior dimensão ao critério espacial da norma de incidência tributária.
Assim, o critério espacial da norma tributária poderá superar o seu campo de validade e de
vigência territorial, desde que os elementos de conexão adotados pelo Estado na
conformação do seu sistema tributário vinculem a materialidade a ser tributada ao

28
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ordenamento jurídico 47. Daí a afirmação de que o exercício do poder de tributar por parte do
Estado brasileiro pressupõe a existência de relação entre o fato econômico e o seu
ordenamento jurídico (como exemplo, o vínculo de residência fiscal serve como elemento de
conexão para a tributação, no Brasil, da renda auferida no exterior). Note-se que a exigência
de elemento de conexão diz respeito ao próprio alcance abstrato da norma tributária
(“jurisdiction to prescribe”), independentemente da questão relativa à eficácia da sua
execução administrativa (“jurisdiction to enforce”).

Assim, é preciso identificar os elementos que conectam o fato econômico com


o território de um determinado Estado, para justificar a imposição fiscal. Daí decorre que as
leis internas não podem extrapolar os limites da jurisdição do Estado brasileiro, a qual é um
pressuposto para a aplicação de suas normas jurídicas 48. Com efeito, ainda que a pretexto
de preservar a arrecadação fiscal, não se pode admitir a expansão da soberania tributária
brasileira e a violação da territorialidade em sentido material, a fim de que a lei brasileira
alcance fatos ocorridos no exterior, sem que haja qualquer elemento de conexão com o
Brasil. O fato de as empresas transnacionais exercerem as suas atividades em diferentes
jurisdições, como uma unidade econômica integrada, não permite a desconsideração das
personalidades jurídicas das entidades autônomas, para a tributação de seu lucro global 49.

No plano do direito comparado, Reuven S. Avi-Yonah acrescenta que, em


relação às normas tributárias com repercussão internacional, os Estados não têm ampla
liberdade na conformação do seu sistema tributário, sendo indispensável a utilização de
critérios de conexão que exprimam um vínculo efetivo entre o fato com elementos de
estraneidade e o Estado com pretensão de tributário. Assim, a necessidade de conexão do
fato com o território pode ser considerado um costume internacional 50, motivo pelo qual os
Estados soberanos somente podem exercer a sua potestade tributária diante da existência
de elemento de conexão indicativo de vínculo jurisdicional, que poderá ser pessoal ou
47
Nas palavras de Heleno Tôrres: “os limites especiais dentro dos quais a norma pode produzir
efeitos, pela eficácia da norma tributária no espaço, não devem ser confundidos com a localização de
fatos imponíveis, que podem ser extraterritoriais”. (TÔRRES, Heleno Taveira. Direito Tributário
Internacional Aplicado. Coord. Heleno Taveira Tôrres. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 79). No
mesmo sentido, conferir: VITA, Jonathan Barros. Teoria Geral do Direito: Direito Internacional e Direito
Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 286.
48
SCHOUERI, Luís Eduardo. “Relação entre Tratados Internacionais e a Lei Tributária Interna”. Direito
Internacional, Humanismo e Globalidade. Coord. Paulo Borba Casella et all. São Paulo: Atlas, 2008,
pp. 567-568.
49
É interessante lembrar que o método unitário de tributação consiste em examinar a empresa em
sua unicidade econômica, mediante a consolidação dos resultados dos diversos entes que a
compõem, para determinar, por meio de fórmulas de alocação, a parcela dos resultados que deve ser
atribuída a cada ente (cf. ANDRADE, André Martins de. A tributação universal da renda empresarial:
uma proposta de sistematização e uma alternativa inovadora. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 297).
50
Sabe-se que o costume, enquanto norma de direito internacional, é composto por dois elementos. O
primeiro, chamado de elemento material, consiste no uso geral e constante da prática social, ao
passo que o segundo, conhecido como elemento psicológico, diz respeito à convicção generalizada
de sua obrigatoriedade (“opinio iuris vel necessitatis”) (BORGES, Thiago Carvalho. Curso de Direito
Internacional Público e Direito Comunitário. São Paulo: Atlas, 2011, p. 82).

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subjetivo (residência, domicílio ou nacionalidade) ou real ou objetivo (fonte de produção,


fonte de pagamento, local do estabelecimento permanente, local do exercício da atividade ou
da situação do bem, entre outros) 51. Reuven S. Avi-Yonah assevera que existe um regime
tributário internacional, incorporado ao direito internacional público como um costume, que
resulta da prática reiterada e consistente de normas sedimentadas, que são seguidas pelos
Estados com o senso de obrigação jurídica. O caráter vinculativo e obrigatório do costume
internacional alcança, na opinião do autor, a chamada “jurisdiction to tax”, segundo a qual o
alcance abstrato lei tributária que dispõe sobre fatos (internos ou externos) deve possuir um
elemento de conexão com o território do Estado 52.

Como se pode notar, a lei brasileira não pode determinar a “desconsideração


da personalidade jurídica” das entidades estrangeiras, a fim de obrigar a pessoa jurídica
brasileira a reconhecer diretamente os lucros auferidos pelas controladas indiretas, antes da
efetiva disponibilização. É verdade que a lei brasileira pode tributar os lucros de controladas
indiretas efetivamente recebidos pela pessoa jurídica brasileira, bem como os lucros de
controladas indiretas consolidados no balanço patrimonial da controlada direta. Entretanto,
mesmo a eventual exigência de consolidação dos resultados deve partir das regras
contábeis locais, salvo na hipótese de inexistência de norma contábil na jurisdição
estrangeira. Assim, a lei brasileira não pode determinar a tributação ficta e per saltum dos
lucros auferidos pelas controladas indiretas, sem que haja acesso atual, direto e
incondicional à renda por parte da pessoa jurídica controlada no Brasil.

Na tentativa de refutar a construção jurídica acima, poder-se-ia sustentar que a


tributação per saltum das controladas indiretas não viola a territorialidade material, sob o
argumento de que a norma jurídica que determina a tributação ora examinada produz efeitos
apenas sobre a pessoa jurídica brasileira, a fim de permitir a tributação dos lucros apurados
pelas controladas indiretas, mas sem atingir outras jurisdições soberanas. A nosso ver, o
argumento não convence. Conquanto se possa dizer que, na hipótese ventilada, a lei
tributária brasileira seria aplicada nos limites do seu território, sem violação à soberania de
outro Estado, o fato é que o legislador tributário não pode lançar mão de um artifício jurídico
para tributar lucro inexistente no balanço patrimonial da pessoa jurídica brasileira.

Não há dúvida de que o Estado brasileiro pode tributar os seus residentes por
fatos econômicos praticados no exterior. O ponto é que o lucro da controlada indireta não
pode ser considerado um fato econômico atribuído à pessoa jurídica brasileira. Aliás, se a
simples constatação de que o contribuinte é a pessoa jurídica brasileira fosse suficiente para
justificar a tributação, então seria forçoso reconhecer que a lei tributária brasileira poderia
determinar a inclusão, no lucro real e na base de cálculo da CSL, dos lucros auferidos por
quaisquer sociedades constituídas em outros Estados soberanos, mesmo sem domicílio ou

51
Para uma análise detida do princípio da territorialidade, conferir: SCHOUERI, Luís Eduardo.
“Princípios no Direito Tributário Internacional: Territorialidade, Fonte e Universalidade”. Princípios e
Limites da Tributação. Coord. Roberto Ferraz. São Paulo: Quartier Latin, 2005, pp. 323-374.
52
AVI-YONAH, Reuven. International Tax as International Law - An Analysis of the International Tax
Regime. New York: Cambridge. University Press, 2007, p. 5; 22-37.

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atividade econômica no país (nesta visão, a lei poderia determinar, por exemplo, que a
empresa brasileira adicionasse à base de cálculo do IRPJ e da CSL os lucros auferidos por
um distribuidor no exterior, sem que essa forma de tributação ferisse a territorialidade
material). Ora, não há dúvida de que não é a sociedade controlada indireta no exterior quem
suporta a carga do tributo. Afinal, o imposto é cobrado da pessoa jurídica controladora
sediada no Brasil. Ocorre que os lucros auferidos por empresas estrangeiras, enquanto não
distribuídos, estão fora do alcance da jurisdição brasileira, em razão da ausência de
elemento de conexão, motivo pelo qual não se pode determinar a sua adição aos resultados
da controladora no país. A mera circunstância de a sociedade estrangeira ser controlada por
uma sociedade controlada direta não é elemento de conexão com território nacional, para
efeito de legitimar o exercício da soberania fiscal do Estado brasileiro.

Sem embargo da exegese acima, cabe registrar que, no acórdão n. 101-


97.070, de 17.12.2008 (Caso “Eagle 2”), o antigo Primeiro Conselho de Contribuintes
decidiu que os lucros auferidos por controladas indiretas deveriam ser adicionados
diretamente aos resultados da sociedade investidora no Brasil. Segundo o relator Valmir
Sandri, a lei brasileira determina a tributação dos lucros auferidos no exterior por
intermédio de empresas controladas, o que abarcaria a tributação tanto dos lucros
auferidos por controladas diretas quanto dos lucros auferidos por controladas indiretas.
No caso concreto, essa linha de interpretação foi adotada para evitar a aplicação, aos
lucros auferidos pelas controladas indiretas (Uruguai e Argentina), do acordo de
bitributação celebrado entre o Brasil e o país sede da controlada direta (Espanha). Para
facilitar a exposição, transcreve-se trecho da ementa:

“LUCROS AUFERIDOS NO EXTERIOR POR INTERMÉDIO DE


CONTROLADAS INDIRETAS - Para fins de aplicação do art. 74 da
MP n °2158-35, os resultados de controladas indiretas consideram-
se auferidos diretamente pela investidora brasileira, e sua tributação
no Brasil não se submete às regras do tratado internacional firmado
com o país de residência da controlada direta, mormente quando
esses resultados não foram produzidos em operações realizadas no
país de residência da controlada."

Ousamos discordar da intepretação acima, pois não há base legal para que os
lucros das controladas indiretas sejam adicionados diretamente (“per saltum”) ao lucro real
e à base de cálculo da CSL da pessoa jurídica brasileira. Como visto, a pessoa jurídica
brasileira não está obrigada a reconhecer diretamente a sua participação nos lucros da
controlada indireta, tampouco autorizada a aplicar o MEP para reconhecer a sua participação
sobre as contas do patrimônio líquido das controladas indiretas.

Em sentido diverso, o CARF, no acórdão n. 1101-000.811, de 2.10.2012


(“Caso Gerdau”), asseverou que, para alcançar os lucros das controladas indiretas, seria
preciso ignorar o texto legal do art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35, extrapolando o seu
limite objetivo. Além disso, para que prevalecesse essa interpretação, seria necessário
admitir a desconsideração tácita da personalidade jurídica da controlada direta. Assim, com
base no voto proferido pelo conselheiro Carlos Eduardo de Almeida Guerreiro, o CARF

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NOVEMBRO 2014

cancelou o lançamento realizado pela fiscalização, que desconsiderou a controlada direta na


Espanha, para tributar os lucros apurados diretamente pelas controladas indiretas.

Já no acórdão n. 1401-000.832, de 8.8.2012 (“Caso Brasil Foods”), o CARF


considerou que os resultados auferidos no exterior por meio de participações societárias
indiretas devem ser previamente consolidados no balanço da filial, sucursal, controlada ou
coligada, antes de sua adição ao lucro real e à base de cálculo da CSL da beneficiária no
Brasil. Eis a ementa da decisão:

“Os resultados auferidos por intermédio de outra pessoa jurídica, na


qual alguma filial, sucursal, controlada ou coligada, no exterior,
mantenha qualquer tipo de participação societária, ainda que
indiretamente, devem ser previamente consolidados no balanço da
filial, sucursal, controlada ou coligada para efeito de determinação do
lucro real e da base de cálculo da CSLL da beneficiária no Brasil”.

De qualquer forma, ressalvamos que, em nossa opinião, a consolidação dos


resultados das controladas indiretas na controlada direta somente deve ocorrer na hipótese
em que a lei interna do país da controlada direta exigir a consolidação de resultados ou a
avaliação de investimentos em participações societárias pelo MEP.

Resposta: a tributação ficta e individualizada de lucros não


disponibilizados viola o princípio da universalidade duplamente, tanto ao incluir na
base de cálculo do IRPJ valores que não integram o patrimônio do contribuinte,
quanto ao restringir ou limitar a possibilidade de consolidação de resultados na esfera
patrimonial do sujeito passivo, escolhendo os elementos que serão computados na
determinação do suposto acréscimo patrimonial. As principais críticas às regras de
distribuição ficta dos lucros auferidos por controladas diretas são aplicáveis, com
ainda maior razão, às controladas indiretas, devendo-se destacar, também, que é
descabida extensão da incidência da lei tributária brasileira para além dos seus limites
territoriais, a fim de tributar de modo ficto os lucros auferidos e mantidos por
sociedades controladas indiretas sediadas no exterior, sem qualquer elemento de
conexão com o território brasileiro.

5) Está de acordo com a Constituição Federal a determinação de tributação no sócio


pessoa física dos lucros decorrentes de participações em algumas sociedades
controladas domiciliadas no exterior na data do balanço no qual tais lucros tiverem
sido apurados?

A resposta a essa questão tem como pano de fundo os conceitos de renda e


sua disponibilidade, previstos no art. 153, inciso III, da Constituição Federal, e definidos no
art. 43 do Código Tributário Nacional.

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Tais conceitos, extraídos a partir dos citados dispositivos, são aplicáveis tanto
a pessoas jurídicas como para pessoas físicas, eis que referidos comandos não
contemplaram qualquer distinção que justifique tratamento diferenciado. E faz sentido que
assim seja, eis que os conceitos de renda e a aquisição de sua disponibilidade estão
umbilicalmente ligados com o conceito de patrimônio, que é aplicável igualmente a pessoas
físicas ou jurídicas.

Mais precisamente, a matéria em questão diz respeito ao momento em que se


considera ocorrido o fato gerador do imposto de renda, ou seja, se a simples apuração de
lucro, no balanço de uma empresa controlada no exterior, seria suficiente para desencadear
a ocorrência do fato gerador do imposto e se uma lei que assim dispusesse estaria de
acordo com a Constituição Federal.

Pois bem. No âmbito das pessoas jurídicas, essa matéria vem sendo discutida
desde 2001, quando o art. 74 da Medida Provisória n. 2158, de 24.8.2001 estabeleceu o que
se convencionou chamar de “disponibilização ficta” de lucros auferidos por intermédio de
investimentos detidos no exterior.

Nossa opinião, assim como da esmagadora maioria da doutrina, sempre foi no


sentido da inconstitucionalidade do art. 74, tendo em vista que a simples existência de
lucros, no balanço da empresa investida no exterior, não implica direito definitiva e
incondicionalmente adquirido aos lucros por seus sócios e não representa acréscimo
patrimonial passível de tributação pelo imposto de renda. Isto é assim pelas razões que já
expusemos nas questões 3 e 4 deste trabalho e que não serão repetidas para não torná-lo
excessivamente longo.

Por aquelas mesmas razões, não está de acordo com a Constituição Federal a
determinação de tributação no sócio pessoa física dos lucros decorrentes de participações
em sociedades controladas domiciliadas no exterior na data do balanço no qual tais lucros
tiverem sido apurados. Isto em virtude do conceito de renda e de sua disponibilidade
aplicável, como dito, tanto às pessoas físicas como às jurídicas.

Vale registrar que a constitucionalidade do art. 74, na perspectiva da pessoa


jurídica, foi submetida ao Supremo Tribunal Federal no conturbado e demorado julgamento
da Adin n. 2588, tendo sido recentemente disponibilizado ao público o inteiro teor do
respectivo acórdão. Os fundamentos de sua inconstitucionalidade, tais como colocados nas
respostas anteriores, não foram acolhidos, ao menos em sua maior parte. O assunto já foi
tratado na questão 3, e na essência, como lá se viu: (i) houve declaração de
inconstitucionalidade da tributação para o caso de investimentos e empresas coligadas (sem
controle), situadas fora de paraísos fiscais; e (ii) foi reconhecida a constitucionalidade do art.
74 para investimentos em controladas situadas em paraísos fiscais.

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Como já apontado na questão 3, a composição atual do Supremo Tribunal


Federal já é muito diferente daquela em que se deu o citado julgamento, o que sugere a
possibilidade de mudança de posicionamento, se e quando a matéria for novamente
submetida a julgamento, como já ocorreu em outras ocasiões.

De qualquer modo, na quadra atual, o mínimo que se pode dizer com alguma
segurança é que os investimentos detidos por pessoas físicas, sem controle e fora de
paraísos fiscais, não podem ser tributados antes de sua efetiva disponibilização.

Em suma, considerando que, na essência, não há diferença entre pessoas


físicas e jurídicas para efeito de definição do conceito de renda e de sua disponibilidade, os
limites estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal em relação à validade do art. 74 da
Medida Provisória n. 2158 são aplicáveis à tributação das pessoas físicas.

Mas como visto na questão 3, a decisão proferida na referida Adin não


solucionou parte das situações, como as de ausência de controle em empresas situadas em
paraísos fiscais e as de empresas controladas fora de paraísos.

Resposta: Não, pois, assim como no caso das pessoas jurídicas, a


simples existência de lucros, no balanço da empresa investida no exterior, não implica
direito definitiva e incondicionalmente adquirido aos lucros por seus sócios e não
representa acréscimo patrimonial passível de tributação pelo imposto de renda.

6) A anterioridade e a irretroatividade das leis tributárias podem ser expressa e


voluntariamente abdicadas pelo cidadão, como direitos fundamentais disponíveis
(arts. 70 e 71 da MP 627/2013)?

A Medida Provisória n. 627, de 11.11.2013, estabeleceu uma série de


mudanças na legislação tributária relativa ao IRPJ, à CSL, à contribuição ao PIS (Programa
de Integração Social) e à COFINS (Contribuição para o Financiamento da Seguridade
Social). Como muitas destas mudanças tiveram o condão de majorar os referidos tributos, o
art. 98 da Medida Provisória n. 627, acertadamente, previu que a quase totalidade de seus
dispositivos deverá entrar em vigor somente em 1º.1.2015, como determina o art. 62,
parágrafo 2º, da Constituição Federal, segundo o qual medida provisória que implique
instituição ou majoração de impostos, exceto os nela previstos, só produzirá efeitos no
exercício financeiro seguinte se houver sido convertida em lei até o último dia daquele em
que foi editada.

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No entanto, o art. 71 da Medida Provisória n. 627, em vigor desde sua


publicação (art. 98 53), estabeleceu que a pessoa jurídica, à sua escolha, poderá optar pela
aplicação das inovações introduzidas pela referida medida provisória em seus art. 1º a 66
para o ano-calendário de 2014. A opção, de acordo com o mesmo dispositivo, é
irretratável 54. Eis o que se verifica de sua leitura:

“Art. 71. A pessoa jurídica poderá optar pela aplicação das


disposições contidas nos arts. 1º a 66 desta Medida Provisória para
o ano-calendário de 2014.

§ 1º A opção será irretratável e acarretará a observância de todas as


alterações trazidas pelos arts. 1º a 66 e os efeitos dos incisos I a VI,
VIII e X do caput do art. 99 a partir de 1º de janeiro de 2014.

§ 2º A Secretaria da Receita Federal do Brasil do Ministério da


Fazenda definirá a forma, o prazo e as condições da opção de que
trata o caput”.

Note-se que, buscando contornar ou evitar uma possível inconstitucionalidade


da Medida Provisória n. 627(ou de eventual dispositivo dispondo sobre sua eficácia), que
aconteceria se ela passasse a produzir efeitos em 1º.1.2014, sem ser convertida em lei até o
encerramento do ano anterior, o art. 71 conferiu aos contribuntes a opção de aplicar as
novas normas fiscais a partir de 2014, se assim o desejarem.

Se, por um lado, a regra do art. 71 é opcional, de outro, é certo que algumas
normas da Medida Provisória dispondo sobre a não incidência tributária em determinadas
situações, além daquelas disciplinas nos art. 1º a 66, abrangidos pela opção, só têm
aplicação aos sujeitos passivos que efetivamente adotarem antecipadamente o novo regime
fiscal.

É o caso, por exemplo, dos art. 67 e 68 da Medida Provisória n. 627. De


acordo com estes dispositivos, os lucros, dividendos e juros sobre o capital próprio
calculados entre 1º.1.2008 e 31.12.2013, se pagos pela pessoa jurídica com base no
resultado ou no patrimônio líquido mensurados conforme as novas normas e padrões
53
“Art. 98. Esta Medida Provisória entra em vigor em 1º de janeiro de 2015, exceto os arts. 67 a 71 e
92 a 100, que entram em vigor na data de sua publicação.
§ 1º Aos contribuintes que fizerem a opção prevista no art. 71, aplicam-se, a partir de 1º de janeiro de
2014:
I - os arts. 1º a 66; e
II - as revogações previstas nos incisos I a VI, VIII e X do caput do art. 99.
§ 2º Aos contribuintes que fizerem a opção prevista no art. 95, aplicam-se, a partir de 1º de janeiro de
2014:
I - os arts. 72 a 91; e
II - as revogações previstas nos incisos VII e IX do caput do art. 99”.
54
De acordo com o art. 95 da Medida Provisória n. 627, a pessoa jurídica também tem a faculdade de
optar, para o ano-calendário de 2014, pelo regime instituído pela Medida Provisória n. 627 de
tributação em bases universais, previsto nos art. 72 a 91. No entanto, centrando-se a pergunta objeto
do Simpósio na opção de que trata o art. 71, e não o art. 95, é sobre aquele que nos debruçaremos.

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contábeis, introduzidos após as sensíveis alterações promovidas pelas Leis n. 11638, de


28.12.2007, e 11941, de 27.5.2009, na Lei n. 6404, e não com base nos critérios contábeis
vigentes em 31.12.2007, não ficarão sujeitos à incidência do IRRF, tampouco integrarão a
base de cálculo do imposto de renda e da CSL do beneficiário, caso o montante pago supere
aquele que seria apurado com lastro nas normas e padrões contábeis em vigor em
312.12.2007.

Pode-se dizer que a norma dos arts. 67 e 68 foi editada com o mister de
espancar controvérisas sobre a aplicação da norma de isenção atinente aos lucros e
dividendos (art. 10 da Lei n. 9249, de 26.12.1995) e também sobre a forma de cálculo dos
juros sobre o capital próprio (art. 9º da Lei n. 9249), surgidas em função das modificações
inseridas na lei societária pelas Leis n. 11638 e 11941. Isto porque, com as alterações dos
critérios e padrões contábeis, discutia-se se a isenção abarcava os lucros e dividendos
calculados com base no novo resultado societário, ou naquele que seria apurado caso as
regras contábeis em vigor em 31.12.2007 ainda produzissem efeitos. Também havia dúvidas
sobre a forma de cálculo dos juros sobre o capital próprio, mais precisamente se o
patrimônio líquido, que é referência de sua apuração, deveria ser mensurado pelas novas
regras e padrões contábeis, ou pelas regras existentes antes das alterações implementadas
pelas Leis n. 11638 e 11941 na Lei n. 6404.

Essas controvérisas eram oriundas da interpretação do art. 16 da Lei n. 11941,


que estabeleceu, no contexto do RTT, a neutralidade fiscal das novas normas e padrões
contábeis. Seria a neutralidade fiscal plena, ou ela cederia, ou não teria lugar, em
determinadas situações, notadamente naquelas em que a incidência tributária seria mera
decorrência da nova realidade societária e contábil?

Mais do que servirem para espancar essas controvérisas em torno da


extensão da neutralidade fiscal estatuída no art. 16 da Lei n. 11941, os art. 67 e 68 da
Medida Provisória n. 627 buscaram legitimar manifestação da Receita Federal do Brasil
(RFB) sobre o tema 55. É que, em 16.9.2013, a pretexto de disciplinar o RTT, a RFB baixou a
Instrução Normativa RFB n. 1397 cujos art. 14 e 26 a 28 determinaram que o regime fiscal
previsto nos art. 9º e 10 da Lei n. 9249 só alcançaria os lucros, dividendos e juros sobre o
capital apurados até o montante oriundo da aplicação dos critérios contábeis vigentes em
31.12.2007, sem interferência dos novos critérios e padrões contábeis.

No entendimento da RFB, manterializado em caráter normativo, a neutralidade


fiscal seria plena, de tal sorte que lucros, dividendos e juros sobre o capital próprio,
conquanto apurados sobre grandezas da realidade societária e contábil, para fins de
incidência das normas tributárias, deveriam ser calculados conforme as normas contábeis
em vigor em 31.12.2007.

55
A Procuradoria da Fazenda Nacional, em relação aos lucros e dividendos, também se posicionou de
igual maneira, conforme pode ser colhido pela leitura do Parecer PGFN/CAT n. 202/2013.

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Grande celeuma foi criada em torno da edição da Instrução Normativa RFB n.


1397, já que a interpretação conferida por muitos estudiosos, e por nós encampada, é
diversa daquela externada pela RFB. Por esta interprertação, a neutralidade fiscal não é
plena, quer dizer, o resultado societário, que é base para a apuração dos lucros e dividendos
passíveis de distribuição, e o patrimônio líquido, que é referência para a apuração dos juros
sobre o capital próprio, constituem realidades societárias e contábeis, donde aquelas
grandezas só podem ser mensuradas em conformidade com as novas normas contábeis. É
que não há um “balano patrimonial tributário”, ou para fins fiscais, como pretende a RFB na
Instrução Normativa RFB n. 1397. Existe, isto sim, um único balanço patrimonial, que é
aquele apurado em consonância com as normas contábeis em vigor 56.

Deixaremos de minudenciar os fundamentos que alicerçam a constatação de


que não há um “balanço patrimonial tributário”, embora ela seja importantíssima para os fins
deste estudo, na medida em que contextualiza o cenário em que se inserem os art. 67 e 68
da Medida Provisória n. 627. Lembre-se de que estes dispositivos, isoladamente, albergam a
aludida constatação. No entanto, as disposições neles contidas somente se aplicam aos
sujeitos passivos que fizerem opção pela aplicação, a partir de 1º.1.2014, das normas dos
art. 1º a 66 da medida provisória. Diferentemente, e ao que tudo indica, para quem não fizer
a opção, deverá prevalecer o entendimento externado pela RFB na Instrução Normativa RFB
n. 1397, como parece admitir o art. 70, cuja redação é a seguinte:

“Art. 70. O disposto nos arts. 67 a 69 aplica-se somente às pessoas


jurídicas que fizerem a opção de que trata o art. 71”.

É nesse contexto que se coloca a questão formulada para o Simpósio: é


legítimo que os sujeitos passivos, voluntariamente, abdiquem de direitos fundamentais, a
exemplo da anterioridade, como aconteceria se eles optassem pelo novo regime tributário a
partir de 2014, a despeito da não conversão da Medida Provisória n. 627 até o encerramento
de 2013?

Antes de responder à indagação proposta, é digno de registro que as


limitações ao poder de tributar, como os princípios da irretroatividade e anterioridade em
matéria tributária (art. 150, inciso III, da Constituição Federal) 57, constituem cláusulas

56
Para outras considerações sobre o tema, vide: SANTOS, RAMON TOMAZELA. “A avaliação de
investimentos pelo método da equivalência patrimonial e os impactos tributários das novas regras
contábeis”, Revista Tributária e de Finanças Públicas, Ano 21, vol. 112, set-out. 2013, p. 269/293.
57
A despeito de não ser ponto pacífico na doutrina, a nosso ver, as limitações ao poder de tributar
constituem verdadeiros princípios, conforme acenou Ricardo Mariz de Oliveira, ao afirmar que: “as
limitações ao poder de tributar são prescrições decorrentes de superiores princípios adotados pelo
constituinte, sendo expressos em forma negativa, enquanto que outros princípios contêm valores de
igual estrutura, sendo todavia expressos em forma afirmativa. Ou, por outras palavras, tanto os
princípios quanto as limitações exprimem e espelham valores fundamentais prestigiados na
Constituição Federal, e tão somente a sua maneira de expressão é diversa”. (“Fundamentos do
Imposto de Renda”, São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 244).

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pétreas, é dizer, direitos ou garantias fundamentais, mesmo que, topograficamente, não


estejam localizados no Título II do texto constitucional, que cuida destes direitos e garantias.

Foi o que proclamou o Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, no


julgamento da Adin 939-7 ao reconhecer a possibilidade de o Poder Judiciário decretar a
inconstitucionalidade de emenda constitucional que fere garantias fundamentais dos
contribuintes estampadas no art. 150 da Constituição Federal, a exemplo da anterioridade e
da imunidade tributária recíproca, e não somente quando ela desrespeita as garantias ou
direitos individuais compreendidos, por exemplo, no artigo 5º 58. Em tal oportunidade, o
Supremo Tribunal Federal assentou a inconstitucionalidade do Imposto Provisório sobre a
Movimentação Financeira – IPMF, instituído pela Emenda Constitucional n. 3, de 17.3.1993,
por ofensa desta, dentre outros postulados, ao princípio da anterioridade de que trata o artigo
150, inciso III, ‘b’, da Constituição Federal. O Ministro Celso de Mello, a este propósito, disse
o seguinte:

“Dentro desse contexto, tenho por irrecusável que a norma inscrita


no art. 2º, §2º, da Emenda Constitucional n. 3/93 – ao reduzir, ainda
que temporariamente, a abrangência da cláusula de proteção
representada pelo princípio da anterioridade – vulnera, nas
múltiplas dimensões em que ele se projeta, o regime jurídico-
constitucional dos direitos e garantias individuais dos contribuintes.

A norma questionada desconsidera – ante o que prescreve,


cogentemente, o art. 60, §4º, IV, da Constituição – o fato de que a
anterioridade tributária, traduzindo limitação constitucional ao poder
impositivo das pessoas políticas, constitui direito público subjetivo
oponível ao Estado pelos contribuintes que dela se beneficiam.

Dentro dessa perspectiva, o ato normativo em causa efetivamente


agride e afronta o regime dos direitos fundamentais dos
contribuintes, na medida em que viabiliza a imediata exigibilidade
desse novo imposto – típico ou nominado – incluído, mediante
emenda à Constituição, na esfera de competência impositiva
ordinária da União Federal” (destaques do original).

Se as limitações ao poder de tributar podem ser consideradas como


verdadeiros direitos ou garantias fundamentais dos contribuintes, de conseguinte, é inerente
a elas a irrenunciabilidade.

Mas o atributo da irrenunciabilidade não obsta a que o indivíduo, “sponte


propria”, deixe de exercer seu direito. Uma coisa é abdicar do próprio direito, outra é abdicar
de seu exercício. Os direitos e garantias fundamentais, porque ínsitos e inerentes ao
indivíduo, e na condição de pilares do Estado Democrático de Direito, não podem ser objeto
de renúncia. No entanto, o indivíduo, diante da liberdade que lhe é assegurada (art. 5º,

58
Lembre-se de que o art. 60, parágrafo 4º, inciso IV, da Constituição Federal não autoriza seja objeto
de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir direito ou garantia fundamental.

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“caput”, da Constituição Federal), pode deixar de exercê-los, se assim lhe convier 59, e desde
que sua manifestação de vontade seja expressa 60, voluntária e legítima, não sofrendo
influência de coerção ou coação de qualquer ordem.

Como explica J. J. Gomes Canotilho acerca do atributo da irrenunciabilidade


dos direitos e garantias fundamentais: “(a) os direitos fundamentais, como totalidade, são
irrenunciáveis; (b) os direitos, liberdades e garantias, isoladamente considerados, são
também irrenunciáveis, devendo distinguir-se entre renúncia ao núcleo substancial do direito
(constitucionalmente proibida) e limitação voluntária ao exercício (aceitável sob certas
condições) de direitos (...)” 61 (destacamos).

Logo, a anterioridade, enquanto direito ou garantia fundamental, pode, sim, ter


seu exercício abdicado pelo contribuinte. Daí porque, sob o ponto de vista teórico, poder-se-
ia considerar legítima a norma do art. 71 da Medida Provisória n. 627 ao dispor que, para os
sujeitos passivos que assim se manifestarem, o regime tributário instituído em seus art. 1º a
66 terá eficácia a partir de 2014, e não em 2015, como deveria ocorrer segundo o princípio
da anterioridade insculpido no art. 62, parágrafo 2º, da Constituição Federal 62, obedecido
pelo art. 98 da referida medida provisória.

59
Essa frase não pode ser tomada em caráter absoluto, eis que alguns direitos fundamentais, na
medida em que podem abalar o Estado Democrático de Direito e a dignidade do homem, devem, sim,
ser exercidos, sob pena de comprometimento à sociedade e à liberdade dos demais indivíduos. É o
caso, por exemplo, dos direitos que resguardam a vida do ser humano. Como explica Humberto Ávila,
distinguindo os direitos fundamentais em individuais e coletivos (ou comunitários), “Quando se
tratarem, portanto, de direitos fundamentais marcadamente individuais, o cidadão pode abdicar do
exercício de determinados elementos concretos desses direitos. (...) Quando, no entanto, se estiver
diante de direitos fundamentais acentuadamente coletivos, porquanto vinculados a elementos
estruturais do Estado de Direito, a disponibilidade total do indivíduo desaparece, não podendo ele nem
renunciar ao direito como tal, nem mesmo abrir mão de elementos concretos do seu exercício, nos
casos em que os princípios estruturantes do Estado de Direito forem atingidos, quer pela intensidade
dos efeito provocado, quer pela plausibilidade de que a falta do seu exercício venha a comprometer a
própria eficácia do sistema de direitos fundamentais” (“Confissão cria tributo? Apontamentos sobre a
disponibilidade do contribuinte sobre direitos fundamentais”, in “Grandes questões atuais do direito
tributário”, 12º volume, São Paulo: Dialética, 2008, p. 259/260). Não nos parece, no caso ora
examinado, tratar-se de direito fundamental cujo não exercício possa abalar o Estado Democrático de
Direito ou que possa criar distúrbio no seio da comunidade. Daí afirmar-se que é possível ao
contribuinte deixar de exercê-lo.
60
Sobre a impossibilidade de renúncia tácita, vide MASAGÃO, “A presunção de renúncia tácita pelo
pagamento de JCP acumulados - análise da hipótese à luz do Código Civil”, Revista Dialética de
Direito Tributário n. 222, 2014, p. 49.
61
“Direito Constitucional”, Coimbra: Almedina, 5ª edição, 1991, p. 636.
62
Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco consentem que
o art. 62, parágrafo 2º, da Constituição Federal consolida outro princípio da anterioridade, ao
afirmarem que ele: “Estabeleceu que, para fins do atendimento do princípio da anterioridade, deve ser
considerada a data da conversão em lei da medida provisória” (“Curso de Direito Constitucional”,
Editora Saraiva, São Paulo, 2007, pg. 843). Trata-se, como se pode ver, de outra limitação
constitucional ao poder de tributar, que convive ao lado das demais limitações contidas no art. 150 da
Constituição Federal.

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Ocorre que, se o direito ou garantia fundamental, conquanto irrenunciável,


pode deixar de ser exercido, o seu não exercício não pode ocorrer sob coerção, ameaça,
erro ou coação de nenhuma espécie. E não há dúvidas de que, a prevalecerem as
disposições da Medida Provisória n. 627, mediante sua conversão em lei, muitos sujeitos
passivos farão escolha pela adoção do novo regime tributário a partir de 2014, premidos pela
disposição do art. 70 do mesmo instrumento normativo, o qual condiciona a não cobrança de
possíveis diferenças de imposto de renda e de CSL sobre lucros, dividendos e juros sobre o
capital próprio à opção de que trata o art. 71.

Ora, em que pese o art. 71, no plano teórico, atenda à premissa geral de que
os direitos e garantias fundamentais, em geral, podem deixar de ser exercidos pelo
contribuinte à sua livre escolha, é possível que o não exercício destes direitos e garantias e,
pois, a adoção antecipada do novo regime de tributação não se dê mediante manifestação
de vontade livre e por um fim nobre, justo ou legítimo. É que a opção pela antecipação do
novo regime fiscal, em muitos casos, dar-se-á por coerção criada pela própria Medida
Provisória n. 627 em seu art. 70, quando condiciona a não incidência tributária à opção.

A abdicação do exercício de um direito não será válida quando ocorrer sob


coerção, coação, erro ou quando o ato volitivo do indivíduo estiver de qualquer maneira
comprometido. Ou seja, a manifestação de vontade, que é voluntária, há de ser legítima, e
não viciada.

Tamanha é a importância do ato volitivo que o Código Civil considera


defeituoso o negócio jurídico cuja manifestação de vontade tenha sido externada sob erro,
ignorância, dolo, coação, estado de perigo ou lesão, definidos em seus art. 138 a 157. E isto
não é à toa. A vontade, segundo Washington de Barros Monteiro, é base e fundamento dos
atos ou negócios jurídicos, sua razão de ser, sua alma, de modo que o elemento volitivo,
além de ter de estar presente, deve funcionar normalmente, ensejando a produção dos
efeitos jurídicos almejados pelas partes 63.

Nesse contexto, a opção pela aplicação das novas normas tributárias em 2014,
e não em 2015 e, pois, pela abdicação do exercício do direito ou garantia fundamental do art.
62, parágrafo 2º, da Constituição Federal (princípio da anterioridade), conquanto seja
possível no plano teórico, somente será válida se a manifestação de vontade do sujeito
passivo for legítima, é dizer, se não estiver eivada de vício de qualquer ordem.

A essa altura, socorremo-nos uma vez mais das lições de J. J. Gomes


Canotilho, para quem a manifestação voluntária do indivíduo acerca do não exercício de
direito fundamental deve estar sujeita a revogação a qualquer tempo e, mais, deve ser
exteriorizada à luz de uma justificativa ou de finalidade legítima, ou razoável, como se infere
do seguinte excerto de sua obra: “(e) a autolimitação voluntária ao exercício de um direito

63
“Curso de Direito Civil”, Parte Geral, 1º volume, São Paulo: Saraiva, 37ª edição, 2000, p. 194.

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num caso concreto (uma renúncia geral de exercício é inadmissível) deve considerar-se
sempre sob reserva de revogação a todo tempo; (f) uma solução diferenciada exige ainda
que se tome em atenção o direito fundamental concreto e o fim da renúncia” 64.

Na mesma toada, Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo


Gustavo Gonet Branco afirmam que: “A respeito da indisponibilidade dos direitos
fundamentais, é de assinalar que, se é inviável que se abra mão irrevogavelmente dos
direitos fundamentais, nada impede que o exercício de certos direitos fundamentais seja
restringido, em prol de uma finalidade acolhida ou tolerada pela ordem constitucional” 65.

Colhidos esses ensinamentos, e considerando o teor das regras constantes


dos art. 70 e 71 da Medida Provisória n. 627, pode-se afirmar que o exercício da opção pelo
novo regime fiscal em 2014, independentemente da observância do princípio da
anterioridade, insculpido no art. 62, parágrafo 2º, da Constituição Fiscal, em conformidade
com o art. 71, é possível, tendo em vista que a irrenunciabilidade dos direitos e garantias
fundamentais não obsta sua autolimitação, ou o seu não exercício voluntário 66.

Diferentemente, quando condiciona a não incidência do imposto de renda e da


CSL sobre lucros, dividendos e juros sobre o capital próprio ao exercício da opção de que
trata o art. 71, o art. 70 o faz mediante coerção, impingindo ao sujeito passivo o receio de
que, na hipótese de não aderir antecipadamente ao novo regime tributário, venha o ocorrer a
cobrança de tributos não pagos em exercícios anteriores.

A opção, nesses casos, será fruto de manifestação de vontade comprometida


ou viciada e não ocorrerá por uma finalidade justa ou nobre.

Na verdade, a opção será exercida pelo sujeito passivo sob ameaça, ou


coerção, apenas para que ele (ou terceiro) possa se furtar à tributação de eventual diferença
de imposto de renda e de CSL. Realmente, como a não opção pela pessoa jurídica que
distribuiu lucro ou dividendo ou que pagou juros sobre o capital próprio poderá causar efeitos
indesejados não só a ela própria, como também a outros, isto é, aos beneficiários 67, sócios

64
Op. cit., p. 636.
65
Op. cit., p. 233-234.
66
Não obstante essa autolimitação seja, em tese, possível, é questionável a cláusula de
irretratabilidade contida no art. 71, na medida em que, como ensina J. J. Gomes Canotilho, o não
exercício de um direito ou garantia fundamental deve, em qualquer caso, estar sujeito a revogação a
qualquer tempo. Se esta cláusula de irretratabilidade, a todo rigor, não é bastante para macular a
regra do art. 71 em sua totalidade, no mínimo é possível entrever inconstitucionalidade parcial no art.
71.
67
Isso é assim, na medida em que a pessoa jurídica, nessa situação, atua como responsável tributária
pela retenção e recolhimento do imposto de renda. Nestes casos, quando a incidência na fonte tiver a
natureza de antecipação do imposto a ser apurado pelo contribuinte, a responsabilidade da pessoa
jurídica pela retenção e recolhimento do imposto extinguir-se-á, no caso de pessoa física, no prazo
fixado para a entrega da declaração de ajuste anual, e, no caso de pessoa jurídica, na data prevista
para o encerramento do período de apuração em que o rendimento for tributado, seja trimestral,

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ou acionistas que receberam lucros, dividendos ou juros sobre o capital próprio, e que são os
contribuintes dos tributos incidentes sobre estas grandezas, não há dúvida de que, a
prevalecerem as regras da Medida Provisória n. 627, muitas pessoas jurídicas adotarão
antecipadamente o novo regime fiscal apenas com o objetivo de evitar que elas e também os
seus sócios ou acionistas venham a ser autuados, o que torna a norma do art. 70 ainda mais
nociva e desarrazoada 68.

Daí a invalidade da norma do art. 70, que de maneira alguma poderia compelir
o sujeito passivo à adoção antecipada do novo regime de tributação unicamente para que ele
ou terceiros escapem à incidência tributária sobre determinados eventos ocorridos no
passado 69.

A invalidade do art. 70 é reforçada pela circunstância de que, conforme foi dito


anteriormente, é altamente duvidosa a posição da RFB, manifestada na Instrução Normativa
RFB n. 1397 e, de certa forma, franqueada pela Medida Provisória n. 627 em seus art. 68, 69
e 70, de que ficam sujeitos à tributação os lucros e dividendos pagos até 2013 com lastro no
resultado societário e os juros sobre o capital próprio pagos com referencial no patrimônio
líquido mensurado pelas novas normas contábeis, sem expurgos de qualquer ordem,
harmonizados às normas contábeis em vigor em 31.12.2007.

Ora, o art. 70 busca atribuir foros de legitimidade, de validade, à posição da


RFB materializada nos art. 14 e 26 a 28 da Instrução Normativa RFB n. 1397, a despeito de
esta posição ser altamente questionável. Mais do que isto, o art. 70 admite que a tributação
recaia sobre fatos pretéritos, em franco desrespeito a outros direitos ou garantias
fundamentais, quais sejam, os princípios da anterioridade e da irretroatividade, assegurados
pelo art. 150, inciso III, da Constituição Federal. Isto porque, a não ocorrer a opção de que
cuida o art. 71, a Medida Provisória n. 627, por seu art. 70, a todo rigor, permitirá a cobrança
de eventuais diferenças de imposto de renda e de CSL sobre dividendos, lucros e juros

mensal estimado ou anual, embora a fonte pagadora, nesses casos, fique sujeita à cobrança de multa
e juros. Se a hipótese for de retenção exclusiva na fonte, como ocorre, por exemplo, nos casos do art.
9º, parágrafo 3º, inciso II, da Lei n. 9249, a responsabilidade da fonte subsistirá, mesmo que ela não
tenha retido o imposto. Essas orientações podem se colhidas no Parecer Normativo COSIT n. 1, de
24.9.2002.
68
O art. 70 é ainda mais nocivo e desarrazoado se se pensar que muitos beneficiários, ou não terão
conhecimento se a pessoa jurídica que lhes distribuiu lucros, dividendos ou juros sobre o capital
próprio fez, ou não, a opção de que trata o art. 71, ou, se o souberem, não terão condições de
oferecer à tributação, (se este for o caso, inclusive se a hipótese não for a de retenção exclusiva na
fonte) a quantia recebida em montante superior ao que lhes seria pago caso ainda vigorassem as
normas contábeis de 31.12.2007, o que não poderão fazer por absoluta falta de conhecimento desta
quantia.
69
Como explica Humberto Ávila, “Quanto mais vulnerável estiver o cidadão, e quanto mais depender
da relação, mais cautela se deve ter com relação a efetiva voluntariedade da manifestação de
vontade” (Op. cit., p. 262). É justamente o que parece acontecer com os sujeitos passivos que fizerem
a opção pela adoção antecipada do novo regime de tributação em decorrência do conteúdo da norma
do art. 70 da Medida Provisória n. 627.

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sobre o capital próprio pagos no passado, não obstante esta incidência tributária seja
altamente duvidosa.

Não se poderia legitimar eventual pretensão do fisco de exigir tributo sobre


fatos pretéritos, sob o argumento de que a regra que admite tal cobrança (art. 70 da Medida
Provisória n. 627) pode ser aplicada retroativamente, dada sua natureza meramente
interpretativa (art. 106, inciso I, do Código Tributário Nacional). Não se trata de norma
interpretativa, não apenas porque ela não se declara como tal, como também, e
principalmente, porque ela inova, ou inaugura uma nova regra, eis que a incidência tributária,
naquelas hipóteses, não era franqueada pelo ordenamento jurídico.

As normas interpretativas são excepcionais, raras 70, porque a lei, quando


promulgada, como regra, inova a ordem jurídica, seja para inaugurar um novo regramento
legal, até então inexistente, seja para dispor contrariamente, aumentar ou reduzir o alcance
daquilo que antes disciplinava o ordenamento.

Justamente por isso é que a lei nova, como regra, vale somente para o futuro,
isto é, tem efeitos prospectivos, de modo que haja segurança jurídica, mediante a
preservação do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e da coisa julgada (princípio da
irretroatividade, previsto no art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal).

A lei, apenas em circunstâncias excepcionais, carrega conteúdo meramente


interpretativo, ainda que se autodeclare detentora de tal atributo.

A esse respeito, o Superior Tribunal de Justiça, por sua Corte Especial, não
tardou em decretar a inconstitucionalidade do art. 4º, segunda parte, da Lei Complementar
n. 118, de 9.2.2005, que declarou a natureza interpretativa do art. 3º desta mesma lei, o
qual, modificando a jurisprudência iterativa daquele Tribunal no sentido de que o prazo
para a restituição de tributos sujeitos a lançamento por homologação é de dez anos, dispôs
que tal prazo é de 5 anos (Argüição de Inconstitucionalidade nos Embargos de Divergência
em Recurso Especial n. 644736-PE). Na ocasião, o Ministro Relator, Teori Albino Zavascki,
com acuidade, destacou, a propósito das leis interpretativas, que:

“(...) a edição, pelo legislador, de lei interpretativa, com efeitos


retroativos, somente é concebível em caráter de absoluta
excepcionalidade, sob pena de atentar contra os dois postulados
constitucionais já referidos: o da autonomia e independência dos
Poderes (art. 2º, da CF) e o do respeito ao direito adquirido, ao ato

70
Também se pode dizer que a lei interpretativa é rara, ou excepcional, porque decorrente do que se
chama de “interpretação autêntica”, que é aquela realizada pelos órgãos legislativos, de forma
anômala, porque alheia à sua função típica, que é editar leis, e não interpretá-las, esta, sim, tarefa
típica do Poder Judiciário, ou oriunda de sua atividade típica de zelar pelo cumprimento da lei. Daí que
as leis interpretativas, ainda que desta forma se declarem, só podem ser editadas excepcionalmente,
sob pena de ofensa à tripartição dos Poderes (art. 2º da Constituição Federal), sem prejuízo de outras
inconstitucionalidades.

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jurídico perfeito e à coisa julgada (art. 5º, XXXVI, da CF). Lei


interpretativa retroativa só pode ser considerada legítima quando se
limite a simplesmente reproduzir (= produzir de novo), ainda que com
outro enunciado, o conteúdo normativo interpretado, sem modificar
ou limitar o seu sentido ou o seu alcance. Isso, bem se percebe, é
hipótese de difícil concreção, quase inconcebível, a não ser no plano
teórico, ainda mais quando se considera que o conteúdo de um
enunciado normativo reclama, em geral, interpretação sistemática,
não podendo ser definido isoladamente. ‘Interpretar uma norma’,
escreveu Juarez Freitas, ‘é interpretar um sistema inteiro: qualquer
exegese comete, direta ou obliquamente, uma aplicação da
totalidade do Direito’ (FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática
do Direito, SP, Malheiros, 1995, p. 47). Ora, lei que simplesmente
reproduz a já existente, ainda que com outras palavras, seria
supérflua; e lei que não é assim, é lei que inova e, portanto, não
pode ser considerada interpretativa e nem, conseqüentemente, ser
aplicada com efeitos retroativos”.

Portanto, a lei interpretativa, realmente, é excepcional, devendo ser admitida


tão-somente com vistas a corrigir ou esclarecer a redação de uma determinada norma que,
de tão falha, dela não se possa extrair nenhuma conclusão segura do seu texto. Do
contrário, a lei nova, a todo rigor, inova, como fez o art. 70 da Medida Provisória n. 627, ao
admitir, por vias transversas, a incidência tributária sobre lucros, dividendos e juros sobre o
capital próprio pagos em períodos anteriores à sua vigência, caso não haja a opção de que
trata o art. 71, autorizando tributação antes não permitida pelo ordenamento jurídico, em
ofensa à irretroatividade e à anterioridade (art. 150, inciso III, da Constituição Federal).

Nesses termos, e para arrematar, a nosso ver, no plano teórico, o art. 71 não
padece de nenhum vício 71, dada a possibilidade de o contribuinte abdicar do exercício de um
direito ou garantia fundamental, como se dá em relação ao princípio da anterioridade. No
entanto, o não exercício de um direito ou garantia fundamental deve ocorrer de forma livre,
espontânea, sem influência de coerção de qualquer espécie, de vez que a regularidade do
ato volitivo é inerente e indispensável à validade da opção pela aplicação antecipada do
novo regime de tributação.

Assim, se o sujeito passivo exercer tal opção em decorrência do fundado


receio de que, não o fazendo, venham a ser exigidos, dele ou de terceiros, tributos não
pagos no passado, sua manifestação de vontade estará viciada, sendo possível a
contestação, ou o cancelamento desta opção. Este vício possivelmente existirá em função da
norma do art. 70 da Medida Provisória n. 627, que cria condicionante à não tributação de
lucros, dividendos e juros sobre o capital próprio discutível sob o ponto de vista da
interpretação da legislação tributária e também sob o ponto de vista da irretroatividade das
leis e da anterioridade (art. 150, inciso III, da Constituição Federal).

71
Exceção feita à cláusula de irretratabilidade, conforme explicado em nota anterior.

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Resposta: As limitações ao poder de tributar constituem autênticas


cláusulas pétreas, é dizer, direitos ou garantias fundamentais protegidos
constitucionalmente. Estes direitos e garantias, conquanto sejam irrenunciáveis, de
um modo geral, podem não ser exercidos pelos contribuintes, a seu critério, desde
que a manifestação de vontade, nestes casos, e a finalidade do seu não exercício
sejam livres, legítimos ou nobres e não estejam comprometidos por vício de qualquer
espécie, inclusive coerção, mesmo quando criada pelo legislador, como ocorre com o
art. 70 da Medida Provisória n. 627.

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