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A ESCUTA ANALÍTICA DO CRIMINOSO

Paula Martielle Martins Ramos Moitinho


Regina Pacis Sant´Ana Figueiredo
Faculdade Guanambi
TEMA: Criminologia e Psicanálise
RESUMO
A clínica analítica se reinscreve frente aos novos paradigmas da sociedade contemporânea
num contexto em que o Outro tende a ser refutado e o sujeito se submete aos objetos de
desejo que o leva para além da satisfação de suas necessidades, tornando imprevisível a
ordem. O presente trabalho de revisão de literatura pretende investigar a possibilidade da
intersecção entre psicanálise e criminologia e as contribuições decorrentes dessa relação
diante da fragilidade do laço social e dos novos sintomas advindos, e da operação do discurso
psicanalítico na escuta do criminoso dentro do sistema correcional que atua a partir do
processo de repressão e despersonalização do sujeito. O ato criminoso surge a partir do
impasse conflituoso entre a lei, o gozo e o Outro e pode ser visto como uma defesa contra a
angústia que ali se firma. O psicanalista atuará neste contexto a fim de promover uma
mudança subjetiva a partir da investigação sobre a significação e motivação para a passagem
ao ato criminoso, e posteriormente promover a responsabilização do sujeito colocando-o
frente ao seu real, demonstrando o caráter simbólico do crime. Ao incluir a psicanálise numa
abordagem transdisciplinar dos fenômenos criminológicos, o criminoso é considerado sujeito
humanizado, deixando falar o “saber não sabido” do inconsciente, dando subsídios para
formular as angústias ao invés de atuá-las.
Palavras-chave: Psicanálise; Criminologia; Criminoso.

INTRODUÇÃO
A psicanálise aplicada ao contexto criminológico permite elucidar hipóteses aos
questionamentos formulados por Salum (2009) sobre como pode ser possível sustentar a
responsabilidade num contexto em que o Outro não existe, em uma época onde os ideais de
massa pretendem conduzir ao gozo sem restrições e à imprevisibilidade da ordem. A clínica
que se reinscreve frente aos novos paradigmas da sociedade contemporânea aliada ao modo
de viver capitalista, deve considerar os sintomas sociais advindos da relação de submissão do
homem aos objetos de desejo que disseminam a falsa promessa de felicidade, dessa forma,
segundo Zeitoune (2009) a renúncia ao prazer se faz necessária, pois implica em um sujeito
dividido, marcado pela falta, tornando a completude um desejo inalcançável.
Ao considerar o ato criminoso como uma forma de sintoma que demonstra a falha no campo
do Outro familiar surge a possibilidade de intersecção entre psicanálise e criminologia, Cottet
(2008 apud SALUM, 2009, p. 14) afirma que “não seria possível considerar a criminalidade
dos jovens daquela época sem conceber seus atos como consequência da particularidade do
contexto familiar na instauração da instância superegóica”. As contribuições decorrentes
dessa relação diante da fragilidade do laço social e dos novos sintomas advindos estão em
contemplar a singularidade e subjetividade do gozo e da solução sintomática como invenção
singular e estruturante do sujeito, resgatando-o da condição reducionista de objeto em que,
repetidas vezes, é tratado nos dispositivos institucionais.
O ato criminoso surge a partir do impasse conflituoso entre a lei, o gozo e o Outro (SALUM,
2009) e pode ser visto como uma defesa contra a angústia que ali se firma. É importante
questionar quais subsídios o discurso psicanalítico pode fornecer na compreensão dos motivos
que levam à prática de atos infracionais, bem como na elaboração de intervenções eficazes
(PETRACCO, 2007). Dessa forma deve haver uma investigação sobre o que motivou a
passagem ao ato criminoso e sua significação subjetiva, através da elaboração da fala ocorre
uma atribuição de valor ao ato que antes permanecia incompreendido e recalcado, o sujeito
passa a ressignificar conceitos e valores, a demonstrar o caráter simbólico do crime e,
consequentemente criar novos laços sociais.
“Cada vez mais plural, em um mundo globalizado, encontram-se diversas formas de o homem
expressar seu destino: existir fundeado na ausência, na falta. (...) Inúmeras formas para o
homem expressar o que nele se faz necessário — a castração.” (MAIA, 2009, p. 125). Ao
considerar a integração do sujeito no universo da falta, psicanálise e criminologia traçam
juntas o caminho que possibilita a entrada do Outro da lei, podendo a responsabilidade penal
levar à responsabilidade no sentido psicanalítico.
A prática psicanalítica inserida no contexto transdisciplinar criminológico vem desempenhar
diversas funções, entre elas está a comprovação do caráter “simbólico do crime” onde o
sujeito é reinscrito no universo edipiano, e à descoberta da “função criminogênica” da
sociedade revelada por suas próprias tensões (COTTET, 2009).
Coincidindo com esta ideia Petracco (2007) alude a hipótese de que mesmo incomodando a
sociedade, a violência é produto da mesma, de acordo a teoria lacaniana é necessário o
reconhecimento do outro para existência do sujeito, então como se dá a existência dos sujeitos
socialmente invisíveis? Os questionamentos levam a refletir sobre o ato infracional como uma
alternativa para conferir existência psíquica àqueles que são invisíveis socialmente.
O presente trabalho de revisão de literatura pretende investigar a possibilidade da intersecção
entre psicanálise e criminologia, as contribuições decorrentes dessa relação diante das
peculiaridades que envolvem o mundo contemporâneo e em que condições é possível operar o
discurso psicanalítico na escuta do criminoso dentro do sistema correcional.

DISCUSSÃO
Em seus pressupostos a criminologia positivista disseminava a ideia de que através da
erradicação da violência poderia levar a sociedade à civilização, diante disso o criminoso é
visto como um ser anormal e seu delito uma patologia. Em meados do século XX a
criminologia passa a investigar as condições da criminalização e suas formas de construção
social com o controle social formal e o controle social informal. Mas só ao abandonar a ilusão
de alcançar uma verdade absoluta sobre sujeito e seu crime, é que a criminologia passou a ser
utilizada como uma ferramenta interpretativa dos sintomas contemporâneos, surgindo a
necessidade de uma abordagem transdisciplinar dos fenômenos criminológicos (FELDENS,
2011). A atribuição social da psicanálise está em considerar o mal-estar social (VIGANÒ,
2006) que se manifesta de diferentes formas e configurações, dessa forma, o fenômeno
criminal que gera intenso incômodo na sociedade passa a ser compreendido com elevado
nível crítico e a teoria freudiana dos criminosos por sentimento de culpa vem permitir o
acesso ao processo de despatologização do sujeito que transgride a lei. Cristina Rauter diz que
“a psicanálise criminal é o discurso que vai aproximar de tal forma as noções de homem
honesto, normal/homem criminoso, anormal, que a oposição entre elas deixará de existir”
(2003 apud FELDENS, 2011, p. 52). Ainda segundo Cottet (2009, p. 108) “a contribuição
específica da psicanálise à criminologia reside, essencialmente, na refutação dos “instintos
criminosos””.
Ao penalizar o sujeito em sofrimento psíquico por transgredir a lei, uma das alternativas
possíveis é o encaminhamento aos manicômios judiciários, instituições de tratamento
calcadas na rigidez do saber/poder cientificista e nos princípios de normatização e adequação
do sujeito. A instituição estabelece o sujeito como um ser posto, destituindo-lhe a
subjetividade e o pensar sobre si, enquanto que, ao possibilitar a mudança de discurso, o ato
analítico vê o sujeito representado em uma cadeia significante e implicado em uma falta.
Cottet afirma que “no cruzamento da clínica e da política, o crime questiona uma realidade
social que tem, na época, o papel que será atribuído mais tarde ao Outro simbólico” (2009, p.
108). Assim a clínica do ato criminoso vai trabalhar com a noção de responsabilidade, um
lugar onde o Outro vai existir instituindo o sujeito do discurso, dando lugar a uma
responsabilização subjetiva da relação no campo do Outro, essa clínica tem como alicerce
para seu trabalho a transferência, possibilitando a emergência e reconhecimento da
particularidade de cada sujeito. Este trabalho leva a uma agregação da demanda subjetiva ao
dispositivo regulador, trata-se de uma clínica que inclui o sinthoma sem buscar silenciá-lo,
partindo do pressuposto de que a psicanálise se refere ao “falta-a-ser” já que o sujeito é
concebido como ser da linguagem que passa por um movimento constante de criação de
significações e valores (KEHL, 2002 apud PETRACCO, 2007).
Para Forbes (2009) o “homem desbussolado”, sem norte, é resultado do mundo globalizado,
com isso surgem os novos sintomas que não passam pelo circuito da palavra, sendo
necessário que lhe apresente a noção de responsabilidade para que consiga seguir uma
direção, se responsabilizando frente ao seu real e implicado perante as consequências de seus
atos, essa prática advoga a causa do sujeito do inconsciente, conferindo-lhe cidadania e
humanização. O processo civilizatório surge como consequência de adequação ao mundo
contemporâneo e exige do homem grandes sacrifícios, pois a satisfação individual encontra
obstáculos que provocam incômodo ante as imposições da vida em sociedade, este ciclo tem
como resultado o mal-estar na modernidade. Segundo Bauman (1998 apud FELDENS, 2011,
p. 30) “dentro da estrutura de uma civilização que escolheu limitar a liberdade em nome da
segurança, mais ordem significa mais mal-estar”, com isso cada contexto faz emergir formas
diferentes de simbolização à violência, bem como variados níveis de tolerância às frustrações
decorrentes da lei externa, na abordagem transdisciplinar dos fenômenos criminológicos,
deixar falar o “saber não sabido” do inconsciente é dar subsídios para formular essas
angústias ao invés de atuá-las.
A horizontalidade que marca a contemporaneidade nas relações sociais como um todo e no
âmbito familiar em particular, escancara a inviabilidade de práticas que foram úteis em um
mundo verticalizado que está deixando de existir, pois “a liberação da sexualidade e o
afrouxamento das obrigações sociais” reforça o individualismo que incrementa a violência
entre as pessoas, como acentua Tania Coelho dos Santos no editorial da revista Sephora nº 8
(2009). É pertinente também o questionamento de Salum (2009): “como sustentar a
responsabilidade na época do Outro que não existe, numa época que preconiza a satisfação
sem restrições? (...) O ato criminoso empurra para uma satisfação direta, que não entrou nos
circuitos do desejo, da simbolização e da castração como falta”.
Referenciando Lacan, Maria José Gontijo atesta:
Servindo-se da distinção entre os conceitos de passagem ao ato e acting-out,
demonstra que se pode fazer uma clínica do ato criminoso. Embora tenha
abordado com essas ferramentas a diferença entre o crime na neurose e na
psicose, pretendeu destacar a dimensão do ato criminoso na perspectiva dos
novos sintomas. (Santos, 2009)

Nesse contexto o acting-out ou mesmo a passagem ao ato dá vazão à emergência dos


conteúdos reprimidos que a fantasia não deu conta de encobrir para a aceitação da castração.
Segundo Cecarelli (2013) hoje o indivíduo é mais subjugado pelas paixões e tratado como
doente, corroborando a tese aristotélica em que elas são inerentes à natureza humana ao
contrário de Platão que as tem como obstáculo à razão que devem ser domadas. Para Freud
(1930 apud Ceccarelli 2013), a criança tem que se adaptar à cultura do seu mundo via
recalcamento renunciando satisfações narcísicas, porém cada ser humano vai se haver com
sua falta de modo diverso a depender das sempre incompletas “séries complementares” como
hereditariedade, influências acidentais, experiências particulares, constitutivas do psiquismo,
sendo umas das mais óbvias injustiças sociais exigir uma conduta homogênea a todos.
E aqueles/as que possuem uma constituição recalcitrante não aceitarão os
limites impostos pela cultura às satisfações pulsionais e reagirão contra isso
por “desobediência às injunções morais”; tornar-se-á um ‘criminoso’.
(Ceccarelli, 2013, p. 411).

Segundo Freud (apud Cotett 2008) cada um de nós tem a presença do criminoso que precisa
ser canalizado com a superação do Édipo. Diante da complexidade e singularidade de cada
sujeito, existem vários fatores motivacionais ou desencadeantes para passagem ao ato
criminoso, entre eles destaca-se a falta da lei paterna, ausência do pai simbólico e a
importância da função do nome-do-pai em introduzir a palavra como significante da lei, além
disso deve-se destacar a necessidade dos pais terem passado pelo complexo de Édipo e
assumirem a castração (GOLDENBERG, 1990). Para Lacan (1957-1958 apud PETRACCCO,
2007) nomear a função paterna enquanto metáfora significa incluí-la na ordem do registro do
simbólico permitindo falar do objeto mesmo em sua falta. Percebe-se que devido à destituição
do sujeito, alienado e submisso ao objeto, a lógica do excesso passa a orientar os crimes, o ato
criminoso pode então ser visto como uma defesa contra a angústia que se firma em
consequência do mal-estar na modernidade (SALUM, 2009). Em relação ao sentimento de
culpa, Freud (1916 apud FELDENS 2011) defende em seus estudos que o mesmo preexiste à
passagem ao ato criminoso se justificando com o estabelecimento do complexo de Édipo,
como resultado dos dois grandes instintos criminosos (matar o pai e ter relações sexuais com
a mãe).
Com isso não se quer isentar do criminoso a responsabilidade pelos seus atos, pois há uma
implicação dele nesse gozo, mesmo que a passagem ao ato seja uma forma de fugir da
loucura.
... centremo-nos nessa ideia de irresponsabilidade. É irresponsável quem não
pode dar razão a seus atos, quem não pode responder por eles. A própria
palavra “responsabilidade” inclui resposta, é a mesma raiz. A
responsabilidade é a possibilidade de responder por si mesmo. Se, para a
psicanálise, é tão interessante a Criminologia é porque coloca o problema de
se a enfermidade mental chega a suspender o sujeito de direito (Miller,
1999).

A psicanálise atuando no caso a caso evitaria que em um extremo, se coloque todo louco na
prisão, e em outro extremo se puna todo criminoso como ciente do seu ato, sem contudo, se
distanciar “dos preceitos de autonomia, liberdade e singularidade da psicanálise” (Macedo &
Falcão, 2005).
Na escuta analítica do criminoso ao conseguir trazer humanização no contexto criminológico,
consequentemente estará trazendo a noção de responsabilidade, tornando a implicação no seu
ato um elemento fundamental da penalização. Caso não se consiga alcançar essa noção o
sujeito é mantido como alienado de sua condição. Neste sentido “é necessário construir uma
política de atendimento onde, além do acesso aos direitos e às políticas públicas, seja possível
fazer surgir o sujeito implicado nas suas ações e responsabilizado por elas, retirando-o da
posição de vítima” (ZEITOUNE, 2009, p. 44).
Bem questionado também por Ceccarelli (2013), é o desejo de vingança que impera na
sociedade em relação ao criminoso, e essa sedenta justiça pode advir do recalcamento que
todos sentem em não poder dar vazão aos próprios instintos violentos. Em relação ao
adolescente infrator, Bruno e Giovani (2009), levantam a hipótese de que “existe uma
demanda popular de natureza punitivista e de defesa social”, essa natureza punitivista segundo
Luís Flávio Gomes (2008, apud Buonicore & Saavedra, 2009), seria um “clamor social no
sentido de aumento de pena ou diminuição de garantias processuais ao réu, de modo que ao
atender tal demanda o Estado passa a utilizar o direito penal como instrumento de vingança
pública”. E essa defesa social, nas palavras de Baratta (2002, apud Buonicore & Saavedra,
2009), seria
A ideologia de segregar aquele que comete fato criminoso considerando-o
um ente danoso para a sociedade, vilipendiando seus direitos fundamentais
individuais em nome de uma duvidosa segurança coletiva, criando a ilusão
de que o Estado é o “bom” que defende a sociedade dos “maus”.

O interesse da fusão psicanálise/criminologia é justamente evitar que essa pretensa justiça


desumanize a pessoa do criminoso, é fazer com que ele ressignifique seu ato, pois “ao mesmo
tempo, ao ser escutado pelo analista, o próprio sujeito que fala se escuta” (Alonso, 1988, apud
Macedo & Falcão, 2005).
Em pesquisa em um hospital geral Zeila e Abílio (2003), enfatizaram que “a Psicologia
Hospitalar sustenta que a atuação junto ao paciente deve ser absolutamente focal às questões
da hospitalização/adoecimento...”, não sendo diferente no âmbito da criminologia em que o
foco deve estar no ato criminoso, com o intuito de humanização do criminoso e
ressignificação do ato, não de um processo analítico, da ocupação do lugar de suposto saber.
Na medida em que temos clara a noção de que o inconsciente é atemporal e
está sempre presente na cadeia discursiva, não há porque pensarmos em
impropriedade de um trabalho de escuta analítica, ou seja, daquele que se
volte para a emergência do sujeito do inconsciente e, portanto, para a
implicação subjetiva e possível mudança no posicionamento subjetivo, assim
como não há impropriedade quando sabemos a respeito da responsabilidade
ética de nossa escuta... (Torezan & Rosa, 2003).

No entanto, essa humanização e ressignificação para a mudança no posicionamento subjetivo


são dificultadas no atual sistema prisional Brasileiro que não atende aos seus fins como sendo
a correção dos que ali se encontram para posterior ressocialização. “Surgia para nós, de modo
inédito, um movimento, mais do que uma proposta, que não pretendia adicionar remendos na
renitente, porém combalida justiça penal, mas se opor criticamente a ela.” (Endo, 2008). Ele
ressalta também que a vítima merece uma atenção especial para que se rompa o ciclo de
sofrimento, vingança e violência. Para isso é preciso trabalhar com transparência e verdade,
não negando que a dor precisa ser vivida e assimilada sem a pretensão de eliminá-la, pois
“funda o território do irreparável”, mas ela se torna mais branda na medida em que se faça
justiça sem recorrer à lei do talião, “do olho por olho e dente por dente”.
...ao promover e provocar o encontro entre a vítima e o agressor, o círculo
restaurativo propõe, como princípio ordenador, perturbar essa dicotomia que
o direito penal no limite consagra. Isso é, a tese de que a justiça será feita
quando aquele que agrediu for também agredido, penalizado ou violentado.
(Endo, 2008).

Shimizu (2012) pergunta “Vitória ou derrota da repressão?”, a respeito do caso Saldanha,


integrante de uma facção criminosa que morreu sem se render mesmo não tendo a mínima
possibilidade de fuga e “segundo a imprensa, a operação consumira cerca de 150 bombas de
gás lacrimogêneo, 15 granadas e quantidade incalculável de munição, que destruíram 12
apartamentos”. Isso mostra o descaso para com a pessoa do criminoso e sua restauração,
atestando a teoria freudiana em Totem e Tabu (1913-1914), de que o suposto medo de
infecção do crime na sociedade encobre a fantasia da prática criminal por parte dos membros
dessa sociedade ao punir severamente aquele que não conteve essa repressão.
A abordagem psicanalítica da temática das facções criminosas, portanto, leva
à conclusão de que uma política criminal repressiva e racionalmente
desorientada, que excepciona direitos humanos e esbarra em um sem-
número de inconstitucionalidades, não tem outro efeito que não o
agravamento do problema. (...) Em sentido contrário, contudo, apenas uma
política criminal que se preocupasse com a abertura de espaços de linguagem
e comunicação poderia fazer face ao fenômeno (Shimizu, 2012).

A escuta analítica pretende “dar voz ao cárcere e estar disposto a ouvi-la e a atender suas
demandas legítimas, fomentando a dignidade humana do encarcerado...” (Shimizu, 2012),
essa é uma demanda urgente na realidade brasileira. Segundo a proposta de “reintegração
social” elaborada por Baratta (1999, apud Shimizu, 2012), ao contrário do crime que resulta
de uma ação individual e irracional para um problema social, as políticas sociais viabilizariam
uma resposta racional para emergir as demandas de uma classe em desvantagem.
Há aí uma atenção especial ao fato de que não se quer esgotar o processo
apenas no âmbito pessoal e subjetivo, embora isso seja importante e mesmo
fundamental, mas a tarefa é alçar essa vivência importante e pessoal para um
redimensionamento da própria posição do sujeito no espaço público e sua
responsabilidade para com ele. (...) Portanto, quando se fala em justiça
restaurativa fala-se também numa mudança de paradigma, que enseja uma
mudança social e política de largo alcance. (Endo, 2008).

“A situação analítica é, por excelência, uma situação de comunicação: nela circulam


demandas nem sempre lógicas ou de fácil deciframento, mas as quais, em seu cerne,
comunicam o desejo e a necessidade de serem escutadas.” E mais, “ao abrir caminhos para
que o homem repense sua história, a própria psicanálise escreve sua história de
transformações e ampliações” (Macedo & Falcão, 2005). Já no início desse escrito fala-se da
necessidade de mudanças frente às novas demandas da sociedade contemporânea, daí o
plantão de escuta analítica se estender para além do atendimento às vítimas, contemplando
também aos réus, e uma “busca pela historização do indivíduo torna-se imprescindível. Freud
sempre manteve a aspiração de recuperar a verdade histórica a partir da narrativa do paciente”
(Macedo & Falcão, 2005). Implica aí a capacidade de mudança do sujeito e assim efetivar um
trabalho correcional de fato como se propõe o sistema carcerário.

CONCLUSÃO
Todo aparato tecnológico especialmente os de comunicação que dominam o mundo na
atualidade, mudou radicalmente os paradigmas relativos às relações sociais, particularmente
no que tange às leis dentro e fora do âmbito familiar.
A horizontalidade dos poderes recrudesceu a violência antes bem contida pelo recalcamento
imposto pela sociedade. Essas mudanças não foram seguidas por inovações nos setores
criminológicos, no sentido de buscar entender os motivos mais íntimos daqueles considerados
criminosos.
Com o objetivo primeiro de corrigir e ressocializar o indivíduo, o sistema prisional deixa de
cumprir o seu papel, e na maioria das vezes, faz um trabalho inverso, coisificando o homem e
capacitando-o para o crime. Neste sentido é necessária a criação de novas políticas que
consideram a punição como fator que possibilite uma retificação subjetiva por meio da
responsabilização dos seus atos.
Daí advém a importância da interseção entre a psicanálise e a criminologia, no sentido de
compreender esse sujeito em sua singularidade, e não obstante essa ação ser individual e
irracional, o social é ao mesmo tempo causador e vítima do problema.
A escuta analítica humanizaria o criminoso tão vilipendiado em seus direitos, não se furtando
de responsabilizá-lo pelo seu ato a partir da mudança subjetiva e ressignificação dos motivos
que o levaram à passagem ao ato.
Nesse processo de investigação e de escuta há a possibilidade do estreitamento ou criação dos
laços sociais comprometidos ou inexistentes. Considera-se inclusive a possibilidade de
contato com as possíveis vítimas na tentativa do rompimento do ciclo de violência que se
instaura frente a um acontecimento dessa natureza. Isso viabilizaria a ressocialização do
sujeito beneficiando a ele, as vítimas e toda a sociedade.
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