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Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Instituto de Letras – Departamento de Línguas Modernas


LET02012 – Figurações de gênero no cinema e na literatura
Professor: Rita Terezinha Schmidt/ Rafael Eisinger Guimarães

Análise do filme Tomboy: o “culturalmente


motivado”

Marina Marostica Finatto

Porto Alegre, 08 de Janeiro de 2013.


[1]

“Nenhum ‘destino anatômico’ determina sua sexualidade.” (BEAUVOIR, 1990: 144).

Essa e tantas outras afirmações de Simone de Beauvoir no sentido de enfatizar o problema em

considerar o gênero como naturalmente e geneticamente desenvolvido nos seres humanos,

ilumina a teorização no campo feminista das gerações seguintes. Chegamos, então a Judith

Butler que, no século XXI, traz o “tripé” no qual estão baseadas as relações de gênero e

questiona o heteronormativismo que baseia a sociedade. O filme Tomboy (2011) provoca, já

no título: a definição de “tomboy”, gíria bastante popular na língua inglesa, é de “menina que

se interessa por atividades masculinas” (Dicionário Michaelis). O filme como um todo abre

um leque bastante grande de possibilidades de análise, contudo, o presente trabalho pretende

analisar cenas e questões levantadas pelo filme que tangenciam algumas teorias feministas.

A narrativa cinematográfica é historicamente fonte de representações de gênero e

muitos dos estudos acerca do cinema como tecnologia de gênero situam-se no estudo da

representação da mulher e do feminino nas telas. No entanto, no campo do queer e das

representações de gênero com relação à sexualidade e à homossexualidade ainda há bastante a

desenvolver-se e analisar. Percebendo a necessidade cada vez mais urgente de trazer à tona

essas questões, o presente trabalho pretende contribuir para o campo dos estudos de

representação de gênero no cinema, bem como aumentar a informação acerca da filmografia

disponível a qual possa ser trabalhado a partir da perspectiva de problematização do gênero.

[2]

A definição de “tomboy” é bem clara no Oxford English Dictionary: “A girl who enjoys

rough, noisy activities traditionally associated with boys.” (Uma menina que gosta de

atividades barulhentas e que exigem esforço físico, tradicionalmente associadas aos meninos.
Tradução minha), ou seja, uma menina que gosta de “coisas de menino”. O filme Tomboy,

conta alguns dias na vida de Laura, uma criança de 10 (dez) anos do sexo feminino que gosta

de “coisas de menino” como usar o cabelo curto, vestir-se de camiseta e calção, pedir que o

quarto na casa nova seja pintado de azul... logo no início do filme podemos perceber essa

preocupação em colocar essas características de oposição entre o feminino e o masculino. É

no início também que aparece a irmã mais nova de Laura, Jeanne, a qual representa a menina

que gosta de “coisas de menina” em oposição à irmã “tomboy”. É interessante notar como

Jeanne está ligada às artes, como a dança, a pintura, a literatura, enquanto Laura está muito

mais ligada à atividade física.

A família se completa com o pai, que é quem provém o sustento financeiro da família e

aparenta ser mais próximo de Laura, e a mãe que, grávida, fica presa à casa e aos afazeres e

questões domésticas. Eles acabam de se mudar para um pequeno bairro de uma cidade

francesa, e moram em um grande condomínio de pequenos apartamentos. No início, as

crianças ficam somente dentro do apartamento, mas algum tempo depois, Laura decide

aproveitar o restante das férias escolares e explorar os arredores, o que pode ser considerada

outra tentativa de caracterização do eixo masculino-atividade-público, atribuídos em nossa

sociedade aos indivíduos do sexo masculino, e que fazem parte da personalidade de Laura. É

então, no âmbito do público que Laura, ao ser chamada de menino por uma criança vizinha

que não a conhecia, assume uma “identidade” masculina que vale naquele círculo de

amizades em que ela passa a frequentar. Ela, então, passa a se chamar Michael.

O filme segue mostrando as duas identidades assumidas por Laura que, no ambiente

privado, dentro de casa é menina, mas não possui as características culturalmente ligadas ao

feminino como sua irmã, e no ambiente público, quando sai para brincar, é menino. Sobre

isso, podemos pensar acerca da motivação cultural que cerca não apenas o gênero, mas

também o sexo, segundo Judith Butler:


Seriam os fatos ostensivamente naturais do sexo produzidos discursivamente
por vários discursos científicos a serviço de outros interesses políticos e
sociais? Se o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o próprio
construto chamado “sexo” seja tão culturalmente motivado quanto o gênero;
a rigor, talvez o sexo sempre tenha sido o gênero de tal forma que a distinção
entre sexo e gênero revela-se absolutamente nenhuma. (BUTLER, 2003: 25)

A proximidade entre sexo e gênero que Butler afirma existir, possibilita pensarmos que

o sexo também é uma construção social. Em Laura fica claro que a influência familiar atua

tanto no sentido de fazê-la gostar de “coisas de menina”, mas que também a deixa livre para

escolher o modo de se vestir, de andar, com quem vai brincar, quando vai sair de casa...

Entretanto, percebe-se um ar de crítica aos modos de ser de Laura em algumas falas da mãe,

como quando Laura diz que conheceu Lisa e a mãe lhe diz que é bom, pois ela “sempre brinca

com os meninos”, ou quando Laura/ Michael se deixa maquiar por Lisa e, chegando em casa,

a mãe diz que ela ficou bonita, que lhe cai bem a maquiagem.

O pai, por outro lado, parece gostar das características masculinas da filha, tanto que

parece passar muito mais tempo com Laura do que com a mulher ou com Jeanne. É ele quem

dá espaço para Laura fazer “coisas de homem”, como dirigir o carro junto com ele, beber

cerveja e jogar poker.

No entanto, essa “liberdade” vai até o momento em que a mãe descobre que Laura está

se passando por um menino, quando ela tenta impor “feminilidade” à Laura vestindo-a com

um vestido e fazendo Laura ir à casa de todos os amigos com quem brincava falar que, na

verdade, se chama Laura e é uma menina. Sobre a relação entre mãe e filha, Simone de

Beauvoir escreve que

E até uma mãe generosa que deseja sinceramente o bem da criança pensará
em geral que é mais prudente fazer dela uma ‘mulher de verdade’, porquanto
assim é que a sociedade a acolherá mais facilmente. (...) Para ser graciosa ela
deverá reprimir seus movimentos espontâneos; pedem-lhe que não tome
atitudes de menino, proíbem-lhe exercícios violentos, brigas; em suma,
incitam-na a tornar-se, como as mais velhas, uma serva e um ídolo.
(BEAUVOIR, 1990: 23)
Levando isso em consideração, podemos perceber que, nitidamente, a atitude mãe se

caracteriza como uma forma desesperada de, sabendo que o ano letivo iria começar em breve,

fazer a filha ser aceita.

[3]

Foi escolhido utilizar os termos “coisas de menino” e “coisas de menina” entre aspas

por acreditar na construção social por trás desses termos e suas atribuições à crianças do sexo

masculino e do sexo feminino. Simone de Beauvoir (1990), no ensaio intitulado “Infância”

enfatiza como os diferentes modos de criação do menino e da menina pela família e pela

sociedade constroem a relação de gênero na qual o masculino é o ativo e sujeito e o feminino

é o passivo e objeto. Segundo ela, é após a puberdade que a distância entre os sexos se dá de

forma mais óbvia: “O que ocorre nesse período perturbado é que o corpo infantil, se torna

corpo de mulher, faz-se carne” (p.47).

É interessante notar, então, a fase da vida de Laura/ Michael que é retratada no filme:

situando-se perto dos dez anos, ainda não iniciou sua experimentação e experiência da

sexualidade; o corpo que tem ainda não carrega características aparentes do corpo de mulher,

como seios. Seria um corpo desprovido de sexo? Ou, pensando na teoria de Butler, sexo e

gênero estariam tão intrinsecamente relacionados que seu corpo poderia assumir ambos os

sexos e, então, haveria a necessidade de romper com o binarismo que rege tanto sexo quanto

gênero? Notamos, nas demais crianças que fazem parte do círculo de amizades de Laura um

certo “conhecimento” das distinções entre homem e mulher, entretanto, nas ocasiões em que

alguém fala no assunto, Laura não se pronuncia. Isso se daria pelo fato de não conseguir

localizar-se nem no eixo mulher-feminino, nem no homem-masculino? Podemos, então,

retornar à discussão iniciada por Simone de Beauvoir retomada por Teresa de Lauretis

Embora a criança tenha um sexo “natural”, é só quando ela se torna (i.e.,


quando é significada como sendo) menina ou menino que adquire um gênero.
O que a sabedoria popular percebe, então, é que gênero não é sexo, uma
condição natural, e sim a representação de cada indivíduo em termos de uma
relação social preexistente ao próprio indivíduo e predicada sobre a oposição
“conceitual” e rígida (estrutural) dos dois sexos biológicos. (LAURETIS,
1994: 211)

Lisa é a personagem que apresenta as características do feminino no ambiente público

frequentado por Laura. Ambas têm a mesma idade, entretanto, Lisa aparenta ser um pouco

mais velha pelo desenvolvimento do corpo (que já tornou-se “carne”, ou está no início da

puberdade). É ela quem conversa com Laura pela primeira vez na vizinhança e é também

através da pergunta de Lisa que Laura passa a ter uma identidade masculina naquele espaço:

Lisa pergunta se Laura é “novo” no local, se é “tímido”, ou seja, é a partir do olhar de Lisa

que entende Laura como um menino, que Laura percebe que poderia ser tratada como um

menino.

Seguindo na questão da caracterização das “coisas de menino e de menina” as quais o

filme apresenta, podemos observar que Lisa, na maioria das cenas está de saia, tem cabelo

comprido, veste-se de cores que estão diretamente ligadas à feminilidade e não joga futebol

porque os meninos não deixam e alegam que ela seja ruim, por exemplo.

[4]

“Você não é como os outros” diz Lisa para Michael quando estão assistindo aos

meninos jogando futebol. No entanto, observa-se a vontade de Laura/ Michael de se tornar um

deles, então, ela observa os trejeitos que identificam atitudes masculinas no círculo de

amizade que frequenta e tenta imitá-los: olha-se no espelho para encontrar semelhanças e

diferenças entre seu corpo e o dos meninos, tira a camisa quando vai jogar futebol, cospe...

A cena em que Laura/ Michael observa os meninos que conseguem facilmente urinar

de pé e com muito mais facilidade expõem seus órgãos genitais, nos remete novamente à

Simone de Beauvoir e seu ensaio “Infância”, no qual a autora aponta as motivações que levam

ligar o falo à ideia de masculinidade.


Contrariamente à afirmação de Freud, de que “Elas [as meninas] notam o pênis de um

irmão ou companheiro de brinquedo, notavelmente visível e de grandes proporções, e

imediatamente o identificam com o correspondente superior ao seu próprio órgão pequeno e

imperceptível; dessa ocasião em diante caem vítimas da inveja do pênis” (FREUD, 1925),

Simone afirma que a “inveja do pênis” que a menina sente, quando sente, é motivada pelas

facilidades encontradas pelos meninos no momento de utilizar o pênis nas funções urinárias.

Nestes [nos meninos], a função urinária apresenta-se como um jogo livre que
tem a atração de todos os jogos em que a liberdade se exerce; o pênis deixa-
se manipular e através dele pode-se agir, o que constitui um dos interesses
profundos da criança.
(...) Parece às meninas que o menino, tendo o direito de bulir no pênis, pode
servir-se dele como de um brinquedo, ao passo que os órgãos femininos são
tabus. (BEAUVOIR, 1990: 15-16)

No entanto, a ausência do pênis nas meninas não deve ser ignorada como fato

importante na construção do gênero, pois o valor que a sociedade coloca no pênis como

símbolo do masculino implica também nas relações de poder e submissão. O fato de o órgão

sexual masculino ser muito mais facilmente manipulado e visível, ao passo que o feminino é

sempre tratado como algo misterioso gera a possibilidade de o menino alienar-se em seu

órgão, preocupando-se muito mais com o “externo” a ele do que com o “interno”, como

ocorre com a menina.

Laura deseja ter um pênis. Mais do que isso, ela sente a necessidade de tê-lo, afinal, no

mundo fora de casa, a comodidade de poder urinar na frente dos outros e de pé, e ter mais

controle sobre as funções urinárias tem grande valor. O valor dado à virilidade que está ligado

à exibição do pênis está expresso na fala de Jeanne quando ela diz que “é melhor ter um irmão

mais velho, pois ele pode defender você” e inventa uma história na qual alguns meninos a

estavam incomodando e Laura/ Michael bateu neles.

O filme traz algumas cenas bastante emblemáticas para pensarmos nessa teoria da

“inveja do pênis” e da valorização do órgão sexual masculino: a primeira ocorre após o jogo

de futebol, na qual Laura/ Michael sente vontade de urinar, vê os meninos que o fazem com
extrema facilidade e vai para dentro da floresta urinar escondida de todos e agachada. Porém,

ela é seguida e ao perceber que alguém se aproxima, levanta-se rapidamente e acaba não

conseguindo segurar a urina, fazendo com que um dos meninos visse que ela havia urinado

nas calças e provocando uma situação embaraçosa para Laura/ Michael; outra cena que chama

atenção para o fato do pênis ser um fator importante na representação do gênero é quando a

turma de amigos decide ir a um lago perto dali. Nas cenas anteriores a essa, pode-se notar a

preocupação de Laura/ Michael em usar roupas de banho e poder ser identificada como

menina por não ter um pênis, então ela molda uma espécie de pequena forma cilíndrica em

massa de modelar e coloca dentro da sunga que ela mesma faz, cortando um maiô seu.

[5]

Para comprovarem que Laura é mesmo uma menina, as crianças pedem que Lisa veja

seu órgão sexual. O fato de ela ser menina choca de tal forma a todos que ela passa a ser

tratada de forma diferente pelos amigos. Se esquecem que ela jogava futebol muito bem, que

podia brincar de “lutinha” enfrentando qualquer menino de igual para igual pelo simples fato

de, agora, saberem que ela é uma menina. Com isso, o filme enfatiza o quanto o gênero é

carregado de marcas e representações socialmente construídas e como, de alguma forma, sexo

e gênero estão fortemente ligados.

Dentre todas as observações, fica ainda por ser feito um trabalho mais aprofundado

acerca da relação estabelecida entre Laura e Lisa, entretanto podemos pensar que Lisa sente-

se atraída pela representação do masculino que Laura proporciona: ela repudia o sexo de

Laura. Ou, talvez, sexo e gênero estejam, sim, tão ligados que não devem ser entendidos

como coisas diferentes, mas as relações sociais construídas a partir de uma matriz

heterossexual impediram Lisa de aceitar seu desejo por Laura.


Tomboy traz muitas questões e deixa diversas ambivalências e interpretações em

aberto. Procurou-se, então, relacionar algumas das cenas com certas teorias e chamar atenção

para as diferentes representações do feminino e do masculino no filme.

Referências Bibliográficas:

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo vol.2 – A experiência vivida. 7ª edição. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero – Feminismo e subversão da identidade. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

FREUD, Sigmund. Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos.

1925

LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.).

Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p.

206-242

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