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O projeto Colorido Pelo Sol olha para os varais da Afurada, no Porto, para o modo
como os hábitos de vida diária permanecem enraizados nos lugares, fazendo sobreviver
práticas ao longo do tempo e para o meu próprio lugar de vida, do qual levo uma
espécie de 'pele' para instalar nos espaços do Museu e da Quase Galeria,
estabelecendo novos diálogos com eles. É olhando para a minha circunstância pessoal
que relaciono corpo e pele. O corpo da obra, o do observador e o meu próprio corpo
surgem delimitados pelas camadas de superfície que os cobrem e protegem. São
algumas das minhas camadas que aqui dou a ver, porque é com a minha própria 'pele'
que me defino e apresento o meu lugar. A cada obra e lugar de exposição falta agora
ser habitado.
Rita Gaspar Vieira
O sol foi domado por Rita Gaspar Vieira. É um sol organizado, tranquilo e duradoiro; poucos
intervalos sem sol se detetam num primeiro olhar que se dirija às folhas de papel de moldes
1
Guarda minha fala para sempre, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996, p.211
nas paredes da Quase Galeria ou na instalação concebida para a Sala do 1º andar – que se abre
para o núcleo de pintura do séc. XX - no Museu Nacional Soares dos Reis.
O sol continua a acionar o pensamento enquanto ativa obra artística. Independendo das
múltiplas simbologias que lhe advêm, a sua persistência e a sua ausência condicionam e
alteram os resultados esperados.
Desde 2015 que ocorreram projetos artísticos – na tipologia de residência artística no Porto –
que convocaram os 4 elementos2: ar, água, terra e fogo. Refiro-me, em termos cronológicos a
Daniel Caballero (terra), Pedro Cappeletti (ar), Carlos Nunes (ar e água) e Tchelo (fogo). A luz
propaga-se, as cores instituem-se e nós delas nos apropriamos de acordo não somente na
ordem anatomofisiológica, mas psicofisiológica e cultural.
Salientem-se os estudos realizados por Michel Eugène Chevreuil, que proporcionaram aos
pintores do 3º e 4º quartéis do séc. XIX, uma nova assunção, transposta para em planos de
composição e perspetiva inovadoras. Por outro lado, uma atenção prestada À contemplação
da natureza, olhada como paisagem e, depois, como território. Associam-se ideias de cor(es)
proporcionadas pela atuação do sol (como luz) e a sua residência num espaço pré-definido,
solo, chão e terra – num território.
No caso da Artista portuguesa, a teoria da cor suspendeu-se por assim dizer, das noções de
contraste intermediais e focou-se na própria substância de incidência, numa combinatória à
matéria terra, ora num plano de verticalidade, ora na base inclinada para aceder ao descanso
horizontal. A terra – solo, chão e solo - que foi calcada por Rita Gaspar Vieira, nos itinerários
empreendidos diariamente no seu ateliê, como adiante se atenderá mais em pormenor.
Retenha-se que o sol se expande na leveza do ar; cai por terra intercalando sombras e
cintilações se assim lhe for permitido; reverbera na água, suscitando transparências mais
lúcidas ou deslumbrando até à condição de fotofobia a superfície de um qualquer mar;
enquanto fogo, o sol encontra um rival ou um cúmplice, pois pode o astro originar a
incandescência. Eis como nos 4 elementos se acha o sol.
2
CF. Maria de Fátima Lambert, “Caminhadas estéticas, intervenções artísticas: fruição estética da cidade”, Sensos 10
| Vol.V - n.2 | 2015, pp.127-151.
SEM SOL- a casa onde quase tudo não seja iluminado
Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente
Nada
(Manoel de Barros)
Na penumbra quase absoluta que se apropriou da casa, sequente à decisão de Eva Klabin
tomar a noite por dia (e vice-versa), a anfitriã e viajante embrenhou-se nessa dualidade
refletida por Gilbert Durand em Estruturas Antropológicas do Imaginário, após Gaston
Bachelard, entre outros. O noturno vê-se nos domínios do inconsciente, gerido por
consignações oníricas, por anuência a uma lógica que reduz a definição moldada pela razão do
diurno. É a consciência inconsciente, ativa na visualidade que esconde matérias e as faz
translúcidas. Seria quase um sol negro, pensando com Thomas Bernard: “um sol negro,
uma lua dos mortos...”3 Perduram lembranças individuais, pisadas por sombras, silhuetas e
pressentimentos transpostos.
Eva Klabin foi a colecionadora que legou a sua casa modernista (situada na avenida que
contorna a Lagoa no Rio do Janeiro) para que o público conhecesse o seu requintado espólio e
acervo. Depois do falecimento do marido, Eva Klabin viveu de noite, precavendo-se de que
durante o dia, nem uma única réstia de sol penetrasse na vivenda. À noite recebia amigos e
proporcionava tertúlias, recitais, onde intelectuais e artistas entreteciam um mundo menos
trágico e profícuo ao bem comum – o património e a memória do humano. Está-se perante
uma evidência aparentemente nos antípodas do convite do sol a entrar no espaço quotidiano
de trabalho, onde todavia primam resíduos, sinais, frottages [passeantes, porque acionadas
pelo peso do corpo em trânsito da Artista] e vestígios.
Nunca o sol-luz teria deliberado colorir o chão que Eva Klabin pisava. A densidade das cortinas
(blackout) impedia o calor de uma felicidade impossível que perdurasse. Os seus passos, o
calçado parisiense que usava, deixaram rastos subtis nos tapetes, nas carpetes e no soalho.
Ainda se perscrutam sons nas manchas desgastadas das tábuas de madeira além-tempo. Fala-
se pois de vestígios invisibilizados, pois ao sol não coube desgastar tecidos, móveis ou papéis.
3
“Por trás das árvores há um outro mundo”, Na Terra e no Inferno, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000, p.61
Todavia, mesmo sem a incidência do sol-luz, revela-se o enfraquecimento inexorável do
tempo. Donde, existirem sempre vestígios, ainda sem que a decisão ou a luz natural os
alimentem.
4
Guarda minha fala para sempre, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996, p. 207
5
Poema à duração, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, p.53
elementos visuais pregantes coincidem nesse poema, intitulado “L’Invitation au Voyage” (“O
Convite à Viagem”), publicado em Fleurs du Mal (1857). A viagem concebida, poeticamente
estruturada carece, por inerência de tipologias simbólicas de sóis que povoem a imaginação
dos leitores, que os encandeiem. Trata-se de uma exaltação da viagem, sobretudo
introspetiva, que pode não ser realizada ou sim – sendo destino transatlântico ou “já ali” – pois
existem tantos sóis e tantos sítios onde queiram ser inventados. O sol é tao maleável e
transmutado na poesia que quase se esgota e agrava o risco de ser sem sol. O sol e o solo, tão
próximos e concludentes. A compulsão em o solo – terra, madeira ou argila – agarrarem o sol
para se consumirem e edificarem mais solidários com a identidade daqueles que o pisam (ao
solo) e sob ele se destinam (o sol). O solo que suja a pele das pessoas que nele se roçam; o sol
que tinge a pele dos incautos. As marcas que persistem no corpo da pessoa, desenhando os
vestígios da roupa usada são uma espécie de desenho uniforme e compacto, com ou sem
linhas, consoante o design da roupa. Esse design-desenho é marcado no chão, como é
previsível nos moldes das revistas antigas de costura e moda.
No projeto Colorido pelo Sol existe um espaço poético que é dirigido pela Artista, ponderado
na planificação concetual, sendo cumprido mediante uma metodologia de trabalho que lhe é
peculiar, pautada pela passagem dos dias. Como se fora um diário escrito, cada dia reteve o
seu círculo em manchas, detalhes ínfimos que a fragilidade do papel que se vai constituindo
enquanto tal e se mantém. A matéria leve que é o papel escolhe maneiras subtis para persistir.
6
O Elogio da Mão, Rio de Janeiro, IMS, p.14
As dobras das folhas dos moldes implicam ações invisíveis de mãos ágeis. Estes moldes
correspondem à vigilância de décadas em que o corpo se ajustava a roupas que lhe eram
efetivamente destinadas ainda que servindo para quem soubesse. Ou seja, mediante o corte
que as tesouras rodeavam pelos contornos dos moldes de vestidos, mangas, casacos ou blusas,
assentava-se a perfeição sem qualquer engelha ou ruga inconveniente. O cuidado com os
moldes tornava-o uma pele de conforto onde os movimentos eram individuais. Imagina-se a
ação daquela ou daquele que se debruçava sobre uma grande mesa ou balcão, exercitando a
perícia de um corte perfeito, seguindo as linhas dos moldes, decifrando-lhe o futuro, pois sabia
poderem ser a pele preparatória de dias vividos. Esta curvatura do corpo, o pescoço dolorido e
os dedos enfiados nas argolas de uma tesoura, pressionavam ruídos sistemáticos concentrados
na tábua da mesa.
É também um elogio da mão, tratada com exigência e meticulosidade. A justa medida, para a
pessoa a quem se destinava: o reconhecimento do outro, nominado e cuja voz se ouvia e num
corpo que havia que alargar ou apertar. Rastos de alguém. Sem ser uma prática [apenas]
elitista confecionar por moldes escondidos dentro de revistas de moda servia costumes e
práticas de perfectibilidade que caraterizam um nicho da sociedade portuguesa na 2ª metade
do séc. XX.
7
“Trazes a Natureza para perto, /de tal modo que qualquer um a pode usar/Inventaste algo errado/…/Podes
desmembrar a Luz/ desenvolva Cores e Cores…” (tradução minha) - “Was es gilt Dem Chromatiker”, Zur
Naturwissenschaft überhaupt, 1817.
pessoas encorpavam/incorporavam-se/transfiguravam-se dentro dos tecidos recortados,
vistos de lado e de frente, confrontados em espelhos bamboleantes.
Os moldes denunciam sussurros e conversas sobre pequenas coisas, ânsias e uma compulsiva
exigência de rigor, onde a técnica de corte e costura era uma arte a subir até ser uma alta-
costura chez soi. Tantos sonhos de criança a decifrar um enredo de linhas sobrepostas,
coloridas agora desfeitas pelos tracejados impercetíveis e as sobreposições multiformes sem
destino. As folhas desdobradas em inúmeros moldes possíveis eram mapas para se
permanecer em casa ou entrar no carro elétrico para ir “à modista”. Como episódios intensos,
esbranquiçados pela emoção contida de atos repetidos, numa profissão ou diletantismo que
cumpriu uma época. Histórias que poderiam emergir dos parágrafos que legou Ruben A.,
muito possíveis de serem incluídas num dos três volumes do Mundo à minha procura.
8
A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes. 1988, p.214
na praia, próximo à foz do rio douro, possuem gradações de cor que se rebatem em
tonalidades altas e baixas, que descrevem a luz que se incorpora em cada objeto do acaso.
As folhas trabalhadas como tapetes de ideias endireitam-se em pausas transitórias,
espreitando qual o corpo em que possam servir. Remetem a uma dimensão qualitativa que
não precisava de tabelas de medidas estandardizadas, pois afinal o tempo ainda que
mensurável, não dura o mesmo para ninguém. Para que não se cansem, as pedras polme
esfregam-nas, enrugando-lhes alma e corpo. As faixas de tecido tocado pelo chão e pelas mãos
apertam os caules, os ramos de árvores que saíram da paisagem para dentro da alma pensada.
Consoante a luz que incida nas Salas - quer da Quase Galeria, quer do Museu Nacional Soares
dos Reis - as formas destacar-se-ão ou ver-se-ão desfocadas. Assim também as suas dimensões
e formatos se distorcem e transformam. Aceder à luz, olhar as paredes ou curvar-se para
observar a pele do papel sobre o chão, implicam uma dedicação morosa do espetador. É como
a ciência dúctil do tempo, a demorar irregularmente mesmo sendo confinado pelo mesmo
cálculo. Quanto tempo se expõe (atreve) o sol a estar presente?
Por outro lado, a ação da Artista vai à origem, controla o processo desde antes de seu início.
Ou seja, gera a matéria em si, neste caso o papel que, depois, irá acolher o desenho que
parece ter surgido de modo ocasional. O papel que Rita Gaspar Vieira irá calcar, percorrendo-o
em trajetos diários que se repetem, sem contagem certa embora espiada até que atinja a
saturação de resíduos conveniente – questão de concinnitas, dir-se-á.
A primeira tarefa consiste em fazer uma pasta bastante líquida com fio de algodão diluído em
água; espalha-a no chão, sem controlar até onde alastre. Repte o procedimento em locais de
9
Le Moi-peau. Paris: DUNOD. 1995, p.176
acesso ao exterior, ou de céu aberto, ainda que dentro da casa que é estúdio, verdadeira
extensão identitária de si. O fabrico do papel é imprescindível, para cumprir a intenção que se
propõe. É um ato tão primordial, quanto o cultivo de plantas ou podar uma árvore. Não será
por acaso que postes que são caules retificados pelo traçado de linhas precisas acondicionam
os papéis após terem experimentado a passagem dos corpos sobre a superfície. Os papéis,
após terem adquirido espessura, contêm, pois absorveram, todo tipo de partículas existentes
no chão ou no solo. Atendendo ao espaço em que foram “fabricados”, diferenciam-se
consoante o lajado, os tacos ou a tijoleira. Tomam indexações geométricas quase regulares
que contrastam com os contornos irregulares destes papéis tão orgânicos. Quando a mistura
que alastrou no chão – não conduzida - solidifica adquire morfologias abertas que se
instauram na sua final e nova condição de serem pele, epiderme protésica ancorada em que
induzem a discernir estruturas cristalográficas.
O processo, produto e receção do trabalho artístico de Rita Gaspar Vieira, podem convocar (ou
associar-se) a quatro, das oito aceções/funções adstritas ao conceito eu-pele (moi-peau),
desenvolvido por Didier Anzieu10. Enquanto Capacidade (Contenance), Individuação
(Individuation), Intersensoralidade (Intersensorialité) e Inscrição de vestígios (Inscription des
traces). Eu-pele remete para a condição de superfície suscetível de ser atingida pelo próprio e
por outrem, configurando relações intersubjetivas de profundidade. Remete para a formação
da identidade, no caso da arte, aplicando-o sob consignação estética: vivência, experiência,
perceção, receção e, inevitavelmente na ordem da emoção. O desenho como superfície e pele,
apela ao táctil, promulgando seduções de toque que, com frequência, nas sociedades
europeias é circunscrito em termos de padrões comportamentais, inibindo uma mais global
assunção identitária e autognósica – em termos de inter-idade e alter-idade.
A pasta de algodão que sustenta os desenhos é capaz de evocar nos espetadores as divagações
de eu-pele, ainda que sem instauração direta do conceito de Anzieu. Os desenhos, fixados na
pasta de papel preparada pela Artista, adquirem consistência, resultam da matéria que lhes
outorgou corporalidade. Serão uma espécie de tatuagens, ainda que não totalmente pré-
10
Le Moi-peau. Paris: DUNOD. 1995, pp.121-129
determinada, pois as poeiras e outros restos da casa identificadores do espaço – soalho, chão
e solo – agem por simpatia”. Unificados, curiosamente, pela identidade da Artista que
reverbera nessas matérias e as conforma, numa certa perspetiva – Aristóteles dixit.
O estímulo táctil que irradia destes papéis, sobretudo no caso das peças penduradas nos
estendais na instalação do Museu Nacional Soares dos Reis, é incontornável. A memória de
algum dia ter tocado em grandes lençóis a corar, ou que gotejam para o chão é ainda algo
comum. Cumpre sentir, não a lisura e suavidade do tecido de algodão, antes uma certa
rugosidade que um linho artesanal ainda carrega. São texturas que existem em termos de
imagens mentais e que desencadeiam sinestesias.
Os papéis são mapas [intocáveis] de geografias errantes, consubstanciados pelos pass[e]antes,
por ação daquela, neste caso, que os pisou.
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“Uma excursão milagrosa”, publicado originalmente em Jornal das Famílias, abril a maio de 1866.
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Machado de Assis. “Uma excursão milagrosa”, publicado originalmente em Jornal das Famílias, abril a maio de
1866.
lógica coerente que incorpora laivos, resíduos da evanescência de um sol negro (como foi
citado a partir de Thomas Bernhard) e de uma luz que reverbera sobre o imaginário conjunto.