Há 82 anos, o aventureiro e espião Boris Skossyreff, autoproclamado “rei” de Andorra, refugiou-se em Portugal, depois de ser deposto pelas autoridades espanholas. Em Olhão, onde passou alguns meses, a figura extravagante e enigmática do “rei” Boris persiste na memória coletiva.
Original Title
Boris Skossyreff: a odisseia portuguesa do “rei” de Andorra
Há 82 anos, o aventureiro e espião Boris Skossyreff, autoproclamado “rei” de Andorra, refugiou-se em Portugal, depois de ser deposto pelas autoridades espanholas. Em Olhão, onde passou alguns meses, a figura extravagante e enigmática do “rei” Boris persiste na memória coletiva.
Há 82 anos, o aventureiro e espião Boris Skossyreff, autoproclamado “rei” de Andorra, refugiou-se em Portugal, depois de ser deposto pelas autoridades espanholas. Em Olhão, onde passou alguns meses, a figura extravagante e enigmática do “rei” Boris persiste na memória coletiva.
Boris Skossyreff: a odisseia portuguesa do “rei” de Andorra
Há 82 anos, o aventureiro e espião Boris Skossyreff, autoproclamado
“rei” de Andorra, refugiou-se em Portugal, depois de ser deposto pelas autoridades espanholas. Em Olhão, onde passou alguns meses, a figura extravagante e enigmática do “rei” Boris persiste na memória coletiva.
Sua Majestade entrou em Portugal em novembro de 1934, pela fronteira
do Alto Alentejo, de sapatilhas, mala na mão e um embrulho debaixo do braço. Por 12 pesetas, o contrabandista Vitoriano Escarcena Pires guiou-o pelos sinuosos trilhos da Serra de S. Mamede e pô-lo em território português com facilidade. Poucos reis terão viajado assim, tão leves de equipagem, mas Boris I de Andorra era um caso especial. Oito dias depois de tomar o poder naquele pequeno estado dos Pirenéus, administrado conjuntamente pela França e pela Espanha, Boris é detido pela polícia espanhola e condenado a deixar o país. O português Francisco Rolão Preto, líder do movimento Nacional-Sindicalista, exilado em Madrid, encoraja-o a refugiar-se em Portugal. Aqui poderia defender os seus direitos ao trono andorrano e, quem sabe, reconquistá-lo. Rolão Preto dá-lhe uma carta de recomendação e aconselha-o a entrar a salto pela fronteira alentejana. Quando estivesse em solo português, devia dirigir-se a Portalegre e apresentar-se às autoridades policiais. Boris segue as instruções. Ao anoitecer do dia 20 de Novembro de 1934, entra na esquadra da PSP de Portalegre um estrangeiro de ar simpático e pés inchados pela longa caminhada, que se identifica como Boris Skossyreff, príncipe de Andorra. Assim começou a odisseia portuguesa de Boris Mihailovich Skossyreff Mawrusow, aventureiro, espião, falso aristocrata e sedutor de damas endinheiradas. Os registos dão-no como nascido a 12 de janeiro de 1896, na cidade russa de Vilnius, originário duma família da pequena nobreza. Oficial do exército, durante a I Guerra Mundial esteve ao serviço duma unidade da Marinha britânica estacionada na Rússia. Quando eclode a Revolução de 1917, Boris exila-se em Londres. Perde a nacionalidade russa e torna-se apátrida. Terminada a guerra, é incorporado no exército britânico, exercendo funções de intérprete da missão militar japonesa no Reino Unido. No rescaldo do conflito, participa em missões de espionagem na Sibéria, Japão e EUA, por conta do Foreign Office, o Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico. Os primeiros sarilhos de Boris com a justiça datam de 1919, ano em que é preso por passar cheques sem cobertura. Incidentes como este mancham-lhe a reputação e levam-no a mudar-se para a Holanda, onde dá livre curso à sua personalidade megalómana. Afável, de maneiras distintas, monóculo e bengala, apresenta-se com os falsos títulos de conde de Orange e barão de Skossyreff. Atraída por ele, Marie Louise Parat de Gassier, uma marselhesa com meios de fortuna e dez anos mais velha, casa-se com Boris em 1931. É nessa época que o suposto aristocrata “descobre” Andorra, minúsculo estado encravado nos Pirenéus com um sistema político quase feudal. Governado por dois copríncipes, o chefe de Estado francês e o bispo da diocese espanhola de Urgel, com instituições arcaicas e uma população diminuta, era o cenário ideal para o audacioso golpe que Boris planeava. Acompanhado por Florence Marmon, uma milionária norte-americana que conhecera em Palma de Maiorca, instala-se em Andorra. Informa-se dos problemas locais e insinua-se junto da população. Apoiado nos dólares da companheira, lança uma forte campanha de marketing em que anuncia que pretende desenvolver o país através do turismo e do jogo e transformá-lo num paraíso fiscal, à imagem do Mónaco e do Luxemburgo. Dando mostras dum espírito liberal, redige uma Constituição que consagra a liberdade de religião, de imprensa, de pensamento e de circulação. A 7 de julho de 1934, o Conselho Geral dos Vales, órgão legislativo máximo da nação andorrana, aprova a Constituição de Boris e reconhece-o como príncipe, com um único voto desfavorável. Na tomada de posse, o novo soberano promete “proteção aos necessitados, ensino para todos e desporto, muito desporto. Mas nada de jogos proibidos…” O reinado dura apenas 12 dias, pois o bispo de Urgel manda a polícia espanhola prendê-lo. Conduzido a Madrid, permanece detido até 19 de novembro de 1934, data em que é expulso de Espanha. Entre ser recambiado para França ou para Portugal, Boris escolhe a segunda hipótese. Boris deixa Portalegre assim que pode, pois teme que os espanhóis voltem a prendê-lo. Logo no dia seguinte, 21 de novembro, pega na sua maleta e toma o comboio para Lisboa. O jornal “A Voz Portalegrense” dedicou breves linhas à presença do estrangeiro na cidade: “Passou por Portalegre com a sua barba de aristocrata na disponibilidade, o Rei Boris I a quem a Espanha pôs na fronteira sem a mais ténue sombra de consideração. O Rei Boris, com uma certa linha de cortesão, saiu da cadeia e entrou em Portugal com uma desluzida comitiva de contrabandistas!…” Chegado a Lisboa, apresenta-se à Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), na Rua António Maria Cardoso, para regularizar a sua presença no país. Como não tem passaporte, apreendido pelas autoridades espanholas, nem outro papel de identificação, segue o destino reservado aos indocumentados: registo e detenção no Governo Civil, até nova ordem. O médico algarvio Francisco Fernandes Lopes, que conheceu Boris em Olhão, relatou pormenorizadamente a sua estadia em Portugal, no semanário “O Diabo”. Sobre a detenção no Governo Civil refere: “Perguntado se desejava quarto particular, declarou decididamente que sim, pagou logo 10$00, e veio a ficar num quarto muito asseado, com boa cama e livre comunicação com o corredor”. A comida vinha “de um restaurante privilegiado; mas, diretamente, pôde saborear, também, deliciosas maçãs vendidas ali pelas mulheres detidas por multa, com os seus cabazes…” A imprensa não tarda a noticiar a presença em Lisboa do “pretendente ao trono de Andorra”. No Governo Civil, Boris recebe repórteres como o jornalista e escritor Ferreira de Castro, informando-os, num francês fluente, que não desiste das suas pretensões e quer voltar a Andorra tão breve quanto possível. A 23 de novembro, o “Diário de Notícias” publica uma foto do “rei” na sala de visitas do Governo Civil, elegantemente vestido, concentrado na leitura dum jornal. A PVDE liberta Boris passados três dias, com a condição de se apresentar no Governo Civil duas vezes por semana. Arrastando a sua inseparável maleta, hospeda-se no Hotel Francfort, na Rua de Santa Justa, pronto a batalhar pelos seus improváveis direitos ao trono de Andorra. A Baixa de Lisboa habitua-se a ver passar aquele sujeito “alto, forte, de monóculo no olho direito, barbicha negra, satânica, cabeleira negra penteada, ar desportivo, aristocrático”, na descrição de Fernandes Lopes. Para viajar até Andorra, Boris precisa que as autoridades espanholas lhe devolvessem o passaporte. Ferreira de Castro e o artista plástico Roberto Nobre apresentam-lhe o advogado Rui Santos, que se compromete a tentar reaver o documento. Durante três meses, o advogado troca cartas com o Ministério dos Negócios Estrangeiros espanhol, mas o passaporte não aparece. O rei sem trono desespera. “Príncipe exilado… longe, de resto, do seu lar, das suas afeições mais queridas, Boris – poderíamos aqui dizer o ‘pobre Boris’ – sofre da sua solidão”, escreve Francisco Fernandes Lopes. Teria passado o fim do ano de 1934 sozinho, se a proprietária do Hotel Francfort não o convidasse para um réveillon familiar. Foi a única vez que Boris diz ter visto os portugueses alegres, “na folia dos cinco minutos gratuitos, plenos de algazarra e movimento, no Rossio todo”. Farto de esperar, requer ao Ministério do Interior português a emissão de um passaporte Nansen, destinado aos refugiados e apátridas. Mas o pedido foi rejeitado, uma vez que Portugal não tinha subscrito a convenção da Sociedade das Nações que instituíra aquele documento. Boris resolve então pedir residência permanente no nosso país, para assim obter um passaporte português. Porém, consegue apenas um documento que lhe permite viajar até Paris, sem direito a regressar. Em desespero de causa, solicita um Bilhete de Identidade português, que lhe foi recusado por “decisão superior e confidencial”, segundo Fernandes Lopes. Para piorar a situação, em 1 de maio de 1935 é intimado a deixar Portugal no prazo de 15 dias. Fernandes Lopes atribui estas reviravoltas a informações contraditórias recebidas pelas autoridades portuguesas, as últimas das quais davam conta que “o bilhete de identidade na mão de Boris fora reputado coisa perigosíssima, pois assim poderia atravessar a fronteira espanhola”. Depois de prometer a si próprio “não mais pôr os pés em repartição pública alguma de Lisboa”, resolve ir para o Algarve, com o objetivo de alcançar Marrocos por via marítima e dali seguir para França. É o jornalista e escritor Mário Domingues quem recomenda a Boris que se dirija a Olhão e procure Francisco Fernandes Lopes, médico e figura prestigiada na vila. O médico recebe-o amigavelmente e prontifica-se a ajudá-lo. A população, essa, é que desconfia daquele estrangeiro de barbas, vestido com um casaco “às riscas vermelhas e pretas, as cores do Sporting Club Olhanense”. Seria um espião? Um bruxo? Um pobre diabo com a mania das grandezas? Aos poucos, porém, as gentes habituam-se à presença daquele bizarro “rei” e tratam-no com afeto. O advogado olhanense Carlos Fuzeta consegue prolongar para seis meses o direito de permanência de Boris em Portugal. Mas o embarque para Marrocos revela-se difícil, pois os mestres de embarcações temem problemas com as autoridades. Entretanto, os dias passam. “Visivelmente, Boris aborrece-se em Olhão”, reconhece Fernandes Lopes. “Passeios na área da vila, banhos na ria, petiscos nos pinheiros de Marim ou na ilha fronteiriça, com a rapaziada amiga que o trata com dignidade e com ele simpatiza – nada porém o distraí.” A sorte muda em 29 de outubro de 1935, quando Boris recebe do governo civil de Faro um passaporte de viajante. O documento, que o identifica como jornalista, permite- lhe viajar “por via marítima ou aérea” para França, Itália, Suíça e Marrocos. Boris deixou Portugal em novembro de 1935, não em direção a Marrocos, mas sim ao porto italiano de Génova. Por razões que se ignoram, não lhe permitem desembarcar, seguindo viagem para França. Só consegue pisar terra firme em Marselha, onde se junta à sua mulher, Marie Louise Skossyreff. Se até aí a vida de Boris tinha sido agitada, a partir desse momento entra em turbilhão. A 7 de janeiro de 1936, as autoridades francesas apreendem-lhe o passaporte. O cônsul português em Marselha intervém, mas o aventureiro é detido e encarcerado na prisão de Aix-en-Provence durante três meses. Reenviado para Portugal, chega a Lisboa em 12 de maio, com a mulher, os cães e alguma bagagem. No entanto, como já não tinha autorização de residência é expulso do país. Procura asilo em Espanha, mas o início da Guerra Civil leva-o a retornar a França, onde é novamente preso por falta de autorização de residência. Durante três anos, Boris alterna períodos de liberdade com situações de reclusão. Em 1939, encontramo-lo no campo de internamento de Rieucros, destinado aos republicanos espanhóis refugiados em França. Quando estala a II Guerra Mundial é transferido para o campo de Verner d’Ariége, do qual sai em 1942. Acusado de servir de intérprete aos invasores alemães, é preso no final da guerra pelas forças aliadas. Passa duas semanas no presídio alemão de Coblence-Metternich, onde sofre os maus tratos reservados aos colaboracionistas. No pós-guerra, o casal Skosyreff estabelece-se na cidade de Boppard, na Alemanha Ocidental. Certo dia, por razões que se ignoram, Boris entra clandestinamente na zona oriental do país, controlada pela União Soviética. Esta transgressão, somada ao seu passado colaboracionista, leva-o a ser condenado a 25 anos de trabalhos forçados num campo da Sibéria. Libertado em 1956, voltou a Boppard, onde vem a morrer em 1989. A passagem do “rei” de Andorra por Olhão pertence à memória urbana. A Associação de Valorização do Património Cultural e Ambiental de Olhão mantém viva a memória do “rei” Boris, recolhendo e divulgando informações. Em 2009, realizou-se na cidade um colóquio sobre a controversa figura de Boris Skossyreff, que contou com a presença do embaixador de Andorra.