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Um discurso
inaugural
d
e Joseph Brodsky
Um discurso inaugural, de Joseph Brodsky
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Por mais ousados ou cautelosos que vocês decidam ser, no decorrer de suas
vidas estão destinados a entrar em contato físico direto com aquilo que é conhecido
como o Mal. Não estou me referindo aqui a um elemento do romance gótico, mas,
para dizer o mínimo, a uma realidade social palpável que vocês não têm como
controlar. Por mais que sejam pessoas de boa índole ou lancem mão de cálculos
precisos, não há como evitar este encontro. De fato, quanto mais calculistas e
cuidadosos formos, maior será a probabilidade deste encontro, e mais forte seu
impacto. A estrutura da vida é tal que aquilo que vemos como o Mal é capaz de uma
presença bastante difundida, mesmo porque tem a tendência de aparecer sob o
disfarce do bem. Vocês nunca irão vê-lo atravessando a soleira de suas portas e se
anunciando: “Olá, eu sou o Mal!”. Isto, é claro, indica sua natureza secundária, mas
o consolo que poderíamos extrair desta observação é obliterado pela frequência com
que se manifesta.
Uma medida prudente a tomar, portanto, seria submeter suas noções de bem
ao escrutínio mais meticuloso possível, percorrendo, por assim dizer, todo o seu
guarda-roupa, verificando quais dos seus trajes poderiam caber num estranho. É
claro que isso pode se transformar em uma ocupação em tempo integral, e talvez
devesse mesmo. Vocês ficariam surpreendidos com a quantidade de coisas que
consideram suas e boas, mas que poderiam ser facilmente usadas, sem muitos
ajustes, por seus inimigos. Podem até começar a se perguntar se ele não seria as
suas próprias imagens no espelho, pois o mais interessante a respeito do Mal é ele
ser inteiramente humano. Para colocar o problema em termos amenos, posso dizer
que nada pode ser virado e usado do avesso com mais facilidade do que nossas
noções de justiça social, consciência cívica, um futuro melhor, etc. Um dos sinais
mais seguros de perigo neste caso é o número daqueles que compartilham suas
opiniões, não tanto porque a unanimidade tem o hábito de degenerar em
uniformidade, mas devido à probabilidade – implícita nos grandes números – de que
os sentimentos nobres sejam falsos.
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Vinte anos atrás, a seguinte cena ocorreu num dos inúmeros pátios de prisão
do norte da Rússia. Às sete horas da manhã, a porta de uma das celas foi
escancarada e, na soleira, apareceu um guarda, que disse a seus prisioneiros:
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“Cidadãos! O coletivo dos guardas desta prisão desafia vocês, os prisioneiros, para
uma competição socialista para ver quem racha mais toras da lenha acumulada um
nosso pátio”. Nessas regiões, não existe aquecimento central, e a polícia local,
digamos assim, impõe a todas as madeireiras da região uma taxa equivalente a 10%
de sua produção. No momento que estou descrevendo, o pátio da prisão parecia
uma verdadeira serraria: as pilhas tinham de dois a três andares de altura, reduzindo
a proporções diminutas o quadrilátero da própria prisão, que tinha apenas um andar.
A necessidade de começar a rachar aquela lenha era evidente, embora competições
socialistas desse tipo já tivessem ocorrido antes. “E se eu me recusar a tomar
parte?”, perguntou um dos prisioneiros. “Bem, neste caso fica sem as refeições”,
respondeu o guarda.
Acho que aquele sujeito só foi capaz de passar doze horas seguidas
rachando lenha porque naquela época era bastante jovem. Tinha apenas 24 anos.
Era só um pouco mais velho do que vocês são agora. No entanto, acho que pode ter
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havido outra razão para seu comportamento daquele dia. É bem possível que aquele
jovem – justamente por ser jovem – tenha se lembrado do texto do Sermão da
Montanha melhor do que Gandhi ou Tolstoi. O Filho do Homem tinha o hábito de
falar em tríades, e o jovem pode ter-se lembrado de que aquele importante versículo
não acaba em:
mas se alguém te ferir na tua face direita, oferece-lhe
também a outra
Citados na íntegra, estes versículos têm na verdade muito pouco a ver com a
resistência não violenta ou passiva, com os princípios de não responder na mesma
moeda e de retribuir ao mal com o bem. O significado dessas linhas é tudo menos
passivo, porque sugere que o mal pode acabar ficando absurdo pelo excesso;
sugere que devemos tornar o mal absurdo, fazendo com que suas exigências se
tornem minúsculas diante do volume de nossa obediência a elas, depreciando o
sofrimento que nos causam. Este tipo de atitude deixa a vítima numa posição muito
ativa, a posição de agressor mental. E a vitória que se pode conquistar neste caso
não é moral, mas existencial. A outra face não se limita a manipular o sentimento de
culpa do inimigo (sentimento que ele é perfeitamente capaz de aplacar), mas
submete seus sentidos e suas faculdades à falta de sentido de todo o
empreendimento: do mesmo modo como toda forma de produção em massa.
Quero lembrar que não estamos tratando aqui de uma situação que envolva
uma luta justa, em condições de igualdade. Estamos falando de situações nas quais
nos encontramos desde o início em uma posição inevitavelmente inferior, em que
não temos a possibilidade de reagir lutando, em que as chances nos são
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Numa situação desse tipo, há pouco espaço para manobras táticas. Assim,
virar a outra face deve ser uma decisão consciente, fria, deliberada. Suas
possibilidades de vitória, por mais escassas que sejam, dependem totalmente da
consciência que vocês tenham ou não do que estão fazendo. Ao avançarem o rosto
com a face voltada para o inimigo, vocês devem saber que isto é apenas o início de
sua provação, bem como do versículo – e devem ser capazes de se ver durante toda
a sequência, através de todos os três versículos do Sermão da Montanha. De outro
modo, uma frase entendida fora do contexto pode deixá-los inutilizados.
A ética baseada neste versículo mal citado não mudou nada na Índia
pós-Gandhi, exceto a cor de seus governantes. Do ponto de vista do homem
faminto, porém, pouco importa quem provoque a sua fome. Admito que ele possa
até preferir que seja um homem branco o responsável por seu triste estado, mesmo
por que deste modo pode parecer que o mal social vem de outro lugar, e é menos
eficiente, talvez, do que um sofrimento que lhe fosse infligido por seus semelhantes.
Com um estrangeiro no poder, ainda sobra lugar para a esperança, para a fantasia.
Devo admitir que às vezes me sinto um tanto mal quando falo sobre essas
coisas: porque virar ou não virar a outra face é, afinal, uma questão de foro íntimo. O
confronto sempre ocorre em termos individuais, de um contra um. É sempre a sua
pele, a sua túnica e a sua capa, e suas pernas, que terão que sofrer as
consequências. Aconselhar, quanto mais insistir, sobre a maneira como cada um
deve usar essas propriedades é, se não inteiramente errado, pelo menos indecente.
Tudo o que pretendo fazer aqui, assim, é apagar de suas mentes um clichê que
tanto mal fez a tantos e rendeu tão pouco. Também gostaria de instilar em vocês a
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ideia de que, enquanto continuarem tendo suas peles, suas túnicas, suas capas e
seus pés, ainda não foram derrotados, por menores que sejam suas possibilidades.