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‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 21): 49-74, 1? sem. 1990 MODERNIDADE COM FEITIGARIA: CANDOMBLE E UMBANDA NO BRASIL DO SECULO Xx* Reginaldo Prandi** RESUMO: A umbanda € considerada a mais genufna religigo brasileira de origem africana. Neste artigo procura-se mostrar como a formacao da umbanda no Rio de Janeiro dos anos 30 deste século est estreitamente ligada ao proceso de mudanga social em cur- so. Por volta de 1950, a umbanda jé se encontrava difundida por todo o pais como uma re- ligiéo para todos, a despeito de cor, classe social e origem geogréfica, enquanto 0 candom- bié, religido da qual a umbanda se formou, mantinha-se limitado a grupos negros, sobretu- do no Nordeste. A partir dos anos 60, entretanto, parcelas significativas de umbandistas passaram a professar o candomblé, sobretudo nas cidades grandes ¢ desenvolvidas do Su- deste. Encontrar sentido para esses movimentos, como elementos das préprias mudancas que se dao na sociedade brasileira, é objetivo do presente trabalho. UNITERMOS: Brasil, re africanas, umbanda, candomblé, mudangas sociais. Prélogo & umbanda na velha capital federal Rio de Janeiro, 1900. Anténio guia Jo&o do Rio por velhas ruas da capital fede- ral: So Diogo, Baréo de Séo Félix, do Hospicio, do Nuincio e da América. Ruas, * Este artigo apresenta, de forma pouco modificada, trés dos dezesseis capftulos da tese de livre- docéncia em Sociologia, Os Candomblés de Sdo Paulo, que 0 autor defendeu na Faculdade de Filosofia, Letras ¢ Ciéncias Humanas da Universidade de S80 Paulo, em novembro de 1989, tese baseada em pesquisa realizada em 60 terreiros de candomblé situados na regio metropoli- tana de Sao Paulo. * Professor do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP. 50 PRANDI, Reginaldo. Modemnidade com feiticaria: candomblé ¢ umbanda no Brasil do século XX. ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 2(1): 49-74, 1.sem. 1990. seguindo 0 relato de Joao do Rio, “onde se realizam os candomblés e vivem os pais de santo”. Dos antigos escravos, ele escreve, “restam uns mil negros. Séo todos das pequenas nagées do interior da Africa, pertencem aos igesd, oié, ebd, aboun, haussé, itagua, ou se consideram filhos dos ibouam, ixdu dos gege ¢ dos cambindas. Alguns ricos mandam a descendén- cia brasileira A Africa para estudar a religido, outros deixam como dote aos filhos cruzados daqui os mysterios e as feiticarias. Todos, porém, fallam entre si um idioma commum: — 0 eubd. (...) S6 08 cambindas ignoram 0 eubd.” (Rio, 1906, p. 1-2). Joao do Rio fica sabendo por seu informante Ant6nio que os orixés s6 falam ioru- ba (eub4). E nos conta sobre sua presenga no Rio de Janeiro na virada do século’ “Os negros guardam a idéia de um Deus absoluto como 0 Deus catholico: Orixd- aliim. A lista dos santos € infinddvel. Ha 0 orixald, que € 0 mais velho, Axwn, a mae d’agua doce, Ye-man-jd, a sereia, Exii, 0 diabo, que anda sempre detrés da porta, Sapanam, o santissimo sacramento dos catholicos, 0 /rocd, cuja apparicéo se faz na arvore sagrada da gameleira, 0 Gunocd, tremendo € grande, o Ogun, S. Jorge ou o Deus da guerra, a Dadd, a Orainha, que sio invis(veis, € muitos ou- tos, como 0 santo do trovdo e 0 santo das hervas.”’ Jodo do Rio cita também os “heledas ou anjos da guarda” (Rio, 1906, p. 2-3). © candomblé nessa cidade € um culto organizado. Continuemos a ler mais um pouco de Joao do Rio. Ele conta sobre os “babalads, mathematicos geniaes, sabedores dos segredos santos ¢ do futuro da gente”, que jogam 0 “opelé”, ¢ fala dos “babds, que atiram 0 endilogum; sto babaloxds, pais de santos veneraveis. Nos lanhos da cara puzeram o p6 da salvacdo e na bocca tém sempre 0 obi, noz de kola. (...) Ha os baba~ lads, 08 acoba, 0s aboré, grfo maximo, as mais pequenas, os ogan, as agibonam..." € as iaud, evidentemente, a quem Joao do Rio dedica muitas paginas de deliciosa preci- sio e explicitissimo preconceito. Pais ¢ mées-de-santo citados por Jofo do Rio séo muitos: Oluou, Eurosaim, Alamijo, Odé-Oié, os babalaés Emygdio, Oloé-Teté, Tor- quato, Obitaié, Vag6, Apotijé, Veridiana, Crioula Capitio, Rosenda, Nosuanan, Xica de Vavé, Josepha, Henriqueta da Praia, Maria Marota, Flora Céco Podre, Dudu do Sa- cramento, ¢ “‘a que est agora guiando seis ou oito filhas, a Assiata”, moradora da rua da Alfandega 304, a quem o informante do jomalista acusa de farsante. Diz que ela “ndo tem navalha (ndo iniciada), finge ser mdi de santo e trabalha com trez ogans PRANDI, Reginald. Modemnidade com feitigaria: candomblé ¢ umbanda no Brasil do século XX. 51 ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 2(1): 49-74, 1.sem. 1990. falsos” (Rio, 1906, p. 19-20). Este mesmo autor conta do grande trénsito entre o Rio € a Bahia, de gente que vai e vem para tratar de questées dessa religiao. Os elementos descritivos (pantedo, hierarquia, préticas rituais) que temos de Joao do Rio sobre 0 candomblé no Rio de Janeiro no comego deste século coincidem em muito com aqueles de Nina Rodrigues ¢ Manuel Querino para a Bahia, ¢ com os de Vi- cente Lima e Gongalves Fernandes para Pernambuco de alguns anos depois (Rodrigues, 1935 ¢ 1976; Querino, 1938; Lima, 1937; Fernandes, 1937 ¢ 1941). Esses elementos constitutivos descrevem perfeitamente tragos importantes dos candomblés de hoje, cujo modelo ideal est4 descrito no livro de Bastide, O candomblé da Bahia (Bastide, 1978). Grandes pais ¢ mAes-de-santo da Bahia passaram parte de suas vidas religiosas no Rio, como Aninha, fundadora dos Axé do Opé Afonjé de Salvador € do Rio de Janeiro (Santos, 1988, p. 10-11; Lima, 1987, p. 61). Mae Aninha, Eugénia Ana dos Santos (1869-1938), baiana, foi iniciada em Salva- dor, em 1884, por Maria Jilia, do candomblé da Casa Branca do Engenho Velho, con- siderado mais antigo terreiro de candomblé de que se tem registro no Brasil, tendo participado de sua iniciagao o africano Bamboxé Obitiké, trazido da cidade iorubana de Keto (no atual Benin) para a Bahia por Marcelina Obatossi, ambos pilares fundantes do candomblé brasileiro. Saida da Casa Branca do Engenho Velho, Aninha ficou algum tempo no terreiro de Tio Joaquim, sacerdote de origem pernambucana. Em 1910, jé se- parada de Tio Joaquim, funda em Salvador 0 Centro Cruz Santa do Axé do Op6 Afon- |j4. Segundo pesquisa de Monique Augras e Joao Batista dos Santos (Augras € Santos, 1983), Aninha teria estado no Rio antes de 1910, onde teve intensa atividade religiosa junto a um grupo de familias baianas residentes na Pedra do Sal, perto do cais do porto. Nessa época circulavam pelo Rio figuras importantes como o proprio Tio Joaquim. Jodo do Rio tem um capitulo de seu livro, aqui tantas vezes citado, dedicado aos feiticeiros da cidade (Rio, 1906, p. 25-35). Entre eles inclui Alabé, 0 Joao Alabé da rua Bardo de Sao Félix, onde ele chefiava um candomblé nag6, ponto de referéncia para os baianos que chegavam a0 Rio. E citado também Abedé, que nada menos € que 0 baba- 1a6 Cipriano Abedé, que inicia o professor Agenor Miranda para a deusa Eué; Agenor Miranda que ja antes Aninha iniciara para Oxalufa. Isso no Rio de Janeiro por volta de 1910. O professor Agenor Miranda, nascido na Africa onde seu pai se encontrava a servigo do corpo diplomAtico brasileiro, criado e sempre residente no Rio, até hoje € considerado uma das maiores autoridades vivas na prética do oréculo nagé (Silva, 1988, p. 16-17). Foi ele, por exemplo, que fez 0 jogo de biizios que indicou para 0 trono do Opé Afonjé baiano sua atual ialorix4, Mae Stela de Oxéssi. £ assim muito antiga essa presenga de tantos sacerdotes de candomblé no Rio, fa- zendo filhos-de-santo, mantendo casas. Entre eles também era freqiiente no Rio 0 ba- balaé Felizberto Américo de Souza, o Benzinho Sowzer, que dividiu com Martiniano

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