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Número 37, Julho 2009

Indústria do pescado gestado artificialmente no Chile mostra que ausência


de sustentabilidade pode deteriorar condições de trabalho, de saúde e,
ainda por cima, ir parar na sua mesa

por Maurício Hashizume publicado , última modificação 28/07/2009 16:02

Todos os anos, o diário norte-americano The Wall Street


Journal e a Fundação Heritage fazem um ranking de
“liberdade econômica” dos países. As regalias que cada
nação oferece ao capital são medidas em pontos. O Chile é
o mais bem pontuado da América Latina e, na atual
classificação global, aparece na categoria dos
“majoritariamente livres” – em 11º lugar. O Brasil é o
105º. A citação do Chile como “paraíso liberal” dos
trópicos é comum. O que não é usual é conferir os
resultados práticos dessa liberalidade na vida das pessoas
que estão na base da população. O caso dos trabalhadores
da indústria do salmão é um prato cheio para essa prova
dos noves.
O salmão tornou-se um dos principais produtos chilenos
de exportação. “De uns 20 anos para cá, houve grande Campanha: más condições de trabalho e cultura não
impulso da salmonicultura”, diz Flávia Liberona, da sustentável (foto: Maurício Hashizume)
Fundação Terram, organização não governamental que
acompanha os impactos socioambientais nas regiões onde o pescado introduzido (a espécie não é originária
das águas chilenas) é cultivado, abatido e processado. A criação em cativeiro passa por duas etapas: a
reprodução de alevinos (embriões) em lagos e rios continentais e a engorda no mar, dentro de imensas gaiolas
posicionadas ao longo da costa. Na sequên¬cia, o salmão é transportado até as plantas industriais, onde uma
massa de trabalhadores entra em ação para que o produto fique pronto para a venda.
Até 2007, a salmonicultura gerava em torno de 55 mil empregos diretos e indiretos no sul do Chile. Naquele
ano, as vendas do pescado alcançaram US$ 2,4 bilhões. “Há uma concentração territorial. Portanto, os

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impactos sociais, trabalhistas e ambientais podem ser constatados sobretudo na região dos Lagos Andinos, que
produz 85% do salmão que o Chile exporta”, completa Flávia.
Pesquisas de entidades como o Centro de Estudos Nacionais de Desenvolvimento Alternativo (Cenda)
mostraram, porém, que essa pujança econômica não se converteu em benefícios proporcionais para os
trabalhadores. As remunerações mantiveram-se no nível do salário mínimo, com uma parcela adicional de 20%
vinculada a bônus por produtividade. Segundo Ana Becerra, do Cenda, muitas empresas não cumpriram
integralmente as leis trabalhistas nesse período de salto da indústria. Nas plantas industriais fechadas, as
temperaturas são baixas para preservar a qualidade do pescado. Cerca de 60% da mão-de-obra é de mulheres,
que cortam, limpam e refilam o salmão.
“Verificamos jornadas exaustivas em condições inadequadas, sem as devidas trocas de turnos. O trabalho na
linha de produção é repetitivo e sempre de pé”, relata Ana. A rotina tem causado tendinites e problemas
relacionados às baixas temperaturas, como reumatismos e cistites.
“Conheço histórias de trabalhadores que entregaram toda a sua energia à empresa e não podem colocar os
filhos na faculdade. Não se consegue poupar nada”, reclama John Hurtado, funcionário da Cultivos Marinos
Chiloé, em Ancud (na Ilha de Chiloé, a cerca de mil quilômetros de Santiago), e presidente do sindicato União
e Força. Segundo ele, gente com mais de 15 anos na indústria do salmão não tem casa própria. “Quando
colocamos isso nas negociações, os empresários riem da nossa cara e dizem para pedirmos teto ao governo.”
Empregados dos centros de cultivo no mar também enfrentam situações precárias, de acordo com investigação
do Cenda. Obrigados a permanecer semanas longe de terra firme para cuidar da engorda dos peixes, alguns
deles se protegem do frio, da chuva e do vento cortantes em pequenas embarcações sem estrutura adequada.
A Fundação Terram, o Cenda e uma organização chamada Canelo de Nos criaram em 2006 o Observatório
Laboral e Ambiental de Chiloé. Por meio de pesquisas próprias, as entidades detectaram ainda a ocorrência de
diversas práticas antissindicais e descobriram que a indústria do salmão tinha a segunda maior taxa de
acidentes de trabalho do Chile, atrás apenas da construção civil.

Vírus, crises e choques


Esse quadro de desequilíbrio agravou-se a partir de julho de 2007, quando o vírus ISA – que já infectara peixes
na Noruega – passou a contaminar os salmões chilenos criados em cativeiro. De lá para cá, os sindicatos
contabilizam cerca de 17 mil demissões. “O tema central hoje não é mais a condição de trabalho, mas a
situação dos que foram despedidos”, diz Flávia, da Fundação Terram.
Projeções indicam que a situação ainda está por piorar. “Muitas empresas estão falando que terão de reduzir
sua produção em 60%, com efeito proporcional no número de trabalhadores”, afirma Doris Paredes, presidente
da Central Unitária de Trabalhadores (CUT) na província de Llanquihue. A Cultivos Marinos Chiloé, que já
teve 1.300 empregados em suas linhas de produção, mantém agora 590.
Antes do salmão, a população da região dos Lagos sobrevivia basicamente da agricultura familiar e da pesca
artesanal. Com a chegada da indústria, boa parte mudou-se para os centros urbanos, atraída pelo setor em
expansão. Essa indústria foi pivô de um verdadeiro choque sociocultural de toda uma geração, já que muitos
trabalhadores hoje na casa dos 40 anos tiveram como única experiência de vida a lida nas salmoneras.
De acordo com o geógrafo e deputado Patrício Vallespín, membro da Comissão de Pesca, Aquicultura e
Interesses Marítimos, a crise do vírus ISA pode ser atribuída a um conjunto de fatores. Na avaliação do
parlamentar, a atividade do salmão não foi acompanhada no mesmo ritmo por ajustes normativos e houve
“excesso de liberdade” para as empresas, sem contrapartidas: “A liberdade das empresas deve ser exercida
com responsabilidade. Nesse caso, houve excesso. Colocar muitos peixes dentro de cercas favoreceu a
disseminação do vírus ISA. Foi um erro”.
Ana Becerra, do Cenda, alerta que os empresários tentam dar a entender que os problemas do setor se devem à
crise financeira. “É uma forma de se afastar das responsabilidades de uma crise provocada pelo mau manejo,

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pela produção a todo custo, sem se importar com o meio ambiente e com a degradação”, critica.
Em resposta aos diversos protestos por conta do desemprego, o subsecretário do Trabalho, Mauricio Jélvez,
anunciou um plano de investimentos públicos em capacitação e intermediação de mão-de-obra. O governo
articula ainda a aprovação de uma nova lei de pesca. Juan José Soto, assessor do Ministério da Economia e
integrante da Mesa do Salmão, instalada pelo governo federal, define as regras sanitárias e ambientais que
estão sendo propostas como “extremamente exigentes”. Para ele, não há melhor forma de cuidar dos empregos
do que recuperar a indústria com a adoção de novos padrões.
A perspectiva não é tão cor-de-rosa no chão de fábrica. O Observatório de Chiloé encontrou pessoas que foram
despedidas e recontratadas para trabalhar mais, por salário menor e tempo determinado. “Há casos de contratos
mês a mês. As pessoas se submetem a situações mais graves de exploração para garantir trabalho. Está em
curso uma mudança tecnológica disfarçada de um discurso de qualificação”, denuncia Ana Becerra. “A
produção de salmões no mundo está caindo porque o ambiente não suporta. É problemático engordar tantos
peixes nessa escala, com consumo de tantos alimentos e produtos químicos. Temos de pensar efetivamente no
que fazer com essa gente.”
“É preciso fomentar atividades diferentes para que haja variedade na geração de emprego. O dinheiro que
move essa região tem como base essa indústria, o que nos fez muito vulneráveis”, observa Doris, da CUT.
“Esperamos que as autoridades mudem suas políticas e incentivem outros setores produtivos para que não se
repita no futuro o que estamos sofrendo hoje.”

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