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Em Busca de um Atestado de

(in)constitucionalidade nos novos


Recursos Administrativos Especiais

In Search of an Attestation of (in)


constitutionality in the new Special
Administrative Resources

Filipe Afonso Henriques Rocha1


Aluno de Licenciatura da Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa

1
Email do escritor: filipef33@outlook.com. Vencedor do 3.º Lugar do Prémio Jovem Talento Direito
Administrativo, atribuído pela AAFDL.

1
Resumo: O presente Artigo incide em toda a problemática constitucional que
o Artigo 199.º do Código de Procedimento Administrativo, com a sua
especialíssima configuração, poderá comportar. Desta análise jus- constitucional,
tentar-se-á perfurar o âmago dos Recursos Administrativos Especiais e, a par da
sua (i)razoabilidade, configurá-los problematicamente nas suas coordenadas
teleológicas, sistemáticas e literais. Tendo como pano de fundo o recurso
delegatório, o escopo do presente Artigo será o de questionar as articulações
remissivas, a coesão intratextual, os impactos constitucionais, legais e filosóficos,
de todo o complexo recursal que, agora, ao que parece, tem uma formulação sem
paradeiro.

Sumário: I. Objeto de Estudo. II. Introdução à propedêutica filosófica dos


Recursos Administrativos Especiais: análise e contexto. III. Intervenção do órgão
ad quem nas decisões/omissões do órgão ad quo. 1. Extensão e amplitude da
Reserva de Ato Legislativo: repercussões na dualidade intra e inter
administrativa. IV. Em Busca de um Atestado de (in)constitucionalidade. 1. O
Recurso Delegatório (n.º2). i. A conversão das problemáticas teórico-práticas da
solução do CPA, em sede de Recurso Delegatório, em razões de
Constitucionalidade. 2. Em Busca da Analogia para o Recurso Tutelar. V. A
solução atual que se poderá preconizar para o recurso delegatório: elementos para
uma interpretação conforme.

Palavras-chave: recurso administrativo; especialidade; delegação de


poderes; tutela administrativa; recurso delegatório; recurso supervisivo.

Abstract: This Article addresses all the constitutional issues that Article 199
of the Code of Administrative Procedure, with its very special configuration, may
contain. From this jus-constitutional analysis, one will try to drill the core of the
Special Administrative Resources and, along with its (i) reasonableness, to
configure them problematically in their teleological, systematic and literal
coordinates. Against the backdrop of the delegatory appeal, the scope of this
article will be to question the cross-referencing, intratextual cohesion,
constitutional, legal and philosophical impacts of the entire recursal complex that
now seems to have a formulation without any whereabouts.

Keywords: administrative appeal; specialty; delegation of powers;


administrative protection; resource delegation; supervisory resource.

2
Índice
1. Objeto de estudo.................................................................. 4

II. Introdução à propedêutica filosófica dos Recursos Administrivos


Especiais: análise e contexto ........................................................ 6

III. Intervenção do órgão ad quem nasdecisões/omissões do órgão ad


quo... ........................................................................................ 10

1.Extensão e Amplitude da Reserva de Ato Legislativo:


repercussões na dualidade intra e inter administrative ................ 18

IV. Em Busca de um Atestado de (in)constitucionalidade ..... 25

1. O Recurso Delegatório (n.º2) .......................................... 25

i. A conversão das problemáticas teórico-práticas da solução do


CPA, em sede de Recurso Delegatório, em razões de
Constitucionalidade ................................................................... 33

2. Em Busca de uma Analogia para o Recurso Tutelar ....... 36

V. A Solução que (não) se poderá preconizar para o recurso


delegatório: elementos para uma interpretação conforme .............. 39

Bibliografia .............................................................................. 41

3
1. Objeto de estudo
I. Com o surgimento da especialidade dos Recursos Administrativos Especiais torna-se
premente uma análise das coordenadas dogmáticas e constitucionais que o texto do Artigo 199.º
do Código de Procedimento Administrativo comporta. O presente excurso terá, como objeto
central de estudo, uma análise incidente nas razões teórico-práticas que poderão surgir na procura
por uma validade constitucional do atual Artigo 199.º do Código de Procedimento Administrativo.
Para além de uma busca por um atestado de constitucionalidade, todo o sentido fará em enquadrar
sistematicamente e materialmente a extensão, amplitude e a natureza de todas as normas contidas
no Artigo 199. º, sob pena das questões levantadas em sede de Recursos Administrativos Especias
ficarem descontextualizadas. Partindo de um “Anúncio da sua Própria Morte”2, iremos estabelecer
como primeira premissa lógica que, a par do que se possa questionar sobre a validade constitucional
dos restantes Recursos Administrativos Especiais, o novo “Recurso Delegatório”, figura com uma
configuração nova no atual Direito Administrativo, tem à priori a sua sentença de
constitucionalidade votada ao fracasso. E diremos, quanto a este ponto, que a sua morte se
configura como o primeiro capítulo de uma história - a das Garantias Administrativas – cada vez
mais mal contada e alvo de um enorme trauma, fruto de uma infância difícil3.

II. A premência da análise surgiu-nos por força de um comentário que o ilustre professor
FAUSTO DE QUADROS proferiu nas Conferências do CEJ 2014-20154: "O novo Código só admite
recurso dos atos do delegado e do subdelegado, respetivamente, para o delegante e para o
subdelegante, nos casos expressamente previstos na lei (artigo 199º, nº2). Trata-se de uma
novidade no Direito Administrativo português que não constava do Projeto da Comissão, que não
se sabe onde nasceu, que não faz qualquer sentido e que colide com o regime geral da delegação
de poderes definido nos artigos 44º e seguintes, especialmente no artigo 49º, nº 2. Espera-se, por
tudo isso, que na primeira oportunidade esta novidade seja eliminada". Este Artigo não nos
motivou apenas a questionar no passado e no presente os impactos deste problema, mas a procurar,
igualmente, os impactos reais que esta drástica alteração poderá repercutir no futuro, no quadro

2
cfr. GABRIEL GARCIA MARQUEZ, Crónica de uma Morte Anunciada, Tradução: Fernando Assis Pacheco,
Dom Quixote, 1998
3
Para uma análise “psicanalítica” da infância difícil do Direito Administrativo, no seu todo, cfr. VASCO
PEREIRA DA SILVA, Em Busca do Ato Administrativo Perdido, Almedina, 2016
4
Cfr. FAUSTO DE QUADROS, et al, “A Revisão do Código de Procedimento Administrativo: principais
inovações, in O Novo Código do Procedimento Administrativo, Jurisdição Administrativa e Fiscal, Coleção Formação
Contínua, Conferências do CEJ 2014-2015, Outubro 2016 pp. 28 ss, disponível em
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/Administrativo_fiscal/eb_novo_CPCA.pdf (acedido em 11.08 de 2018)

4
das Garantias Administrativas e dos Procedimentos de Segundo Grau. Contudo, percecionar o
problema isoladamente não nos pareceu correto – até porque, como tendencialmente sucede, os
problemas nunca existem isoladamente. A qualificação do problema surge, por isso, ligada a um
contexto sistemático, a uma articulação e a um pensamento específico que lato sensu abateu sobre
os Recursos Administrativos. Faremos, por isso, um grande excurso pelas articulações normativas
a que o Artigo 199.º remete: tanto para disposições constitucionais, como para todo o bloco de
juridicidade.

III. Resta-nos mencionar que, apesar das tentativas analógicas e interpretativas que no presente
excurso forem feitas, unânime é a ideia de que o Artigo 199.º cai em imensos vícios semânticos,
dogmáticos e lógicos, devendo ser liminarmente alterado. Alterando-se, pergunta-se: de que
forma?

5
II. Introdução à propedêutica filosófica dos Recursos Administrivos
Especiais: análise e contexto

I. Quanto à tipologia, é desde logo claro, ao se olhar para o Artigo 199.º, que passou a existir
uma unidade entre os diversos recursos administrativos (tipologia que já existia, quanto aos
recursos impróprios, onde, agora, o CPA de 2015 intensificou ao juntar o recurso tutelar). Esta
estratégia do CPA deu-se pela unificação, sob a designação de "recursos administrativos especiais",
dos antigos recursos hierárquicos impróprios5 (o antigo artigo 158 alínea b) do n. º1, do CPA de
1991, e o artigo 176. º) e do antigo recurso tutelar (alínea c) do nº.1 do artigo 158 e o artigo 177.º).
A unificação - sob o ponto de vista do seu objeto - de todas as modalidades de recursos
administrativos especiais obteu--se por apelo à configuração geral associada aos procedimentos
administrativos de segundo grau: qualquer recurso - e, portanto, também qualquer recurso
administrativo especial - poderá servir como meio impugnatório perante atos já praticados, mas
também como meio de reação perante omissões do órgão a quo - artigo 184.º.

II. A antiga designação presente no Código de Procedimento Administrativo de 1991,


identificada por “impropriedade hierárquica”, isto é, os denominados “Recursos Impróprios”,
fundou-se numa tradição e num contexto fundamentalmente doutrinal 6, que fora seguido pela
7
jurisprudência e que culminou na previsão que o antigo CPA de 1991 dispunha . Apesar da
"resistência" de alguma doutrina, a referência a uma hierarquia imprópria, embora denunciativa de
uma inexistência de reais relações hierárquicas entre órgãos, apurava um sentido cientificamente
8
pouco adequado . Esta aparente falta de adequação, do ponto de vista terminológico, sofreu

5
No seguimento, cfr. D. FREITAS DO AMARAL, Conceito e Natureza do Recurso Hierárquico, 1º ed., Atlântida
Editora, 1981, pp.117. O autor identificava os recursos impróprios como "recursos administrativos mediante os quais
se impugna um ato praticado por um órgão de certa pessoa coletiva pública perante outro órgão da mesma pessoa
coletiva que, não sendo superior do primeiro, exerça sobre ele poderes de superintendência".
6
Essencialmente, cfr. D. FREITAS DO AMARAL, Conceito, pp. 127 e ss. Ainda que já presente em ROBIN DE
ANDRADE, A Revogação dos Atos Administrativos, 2º ed., Coimbra Editora, 1985, pp. 288 ss, pese noutro sentido e
importado da doutrina italiana.
7
Que, como se vê no preâmbulo do DL que aprovou este último "introduziu-se, pela primeira vez, a distinção
entre o recurso hierárquico, o recurso hierárquico impróprio e o recurso tutelar"; lê-se no quarto parágrafo no ponto
12 do preâmbulo do Decreto-lei n.º442/91 de 15 de Novembro. Contudo, é de sublinhar que esta designação não era a
originária no Direito Administrativo português, tendo sido importada da terminologia italiana, terminologia ainda
usada, como forma de designar os recursos interpostos perante entidades que, apesar de não exercerem um vínculo
hierárquico sobre os recorridos, dispõem sobre esses de competências genéricas de vigilanza. ELIO CASETTA, Manuale
di diritto amministrativo, Giuffré, Milão, 1999, p.1014 E, desta noção tradicionalista, ainda cfr. D. FREITAS DO
AMARAL, Curso de Direito Administrativo, II, 3ºed.,Lisboa, Almedina, 2016, pp. 632-633 que "resiste" e se refere a
recurso hierárquico impróprio e a recurso tutelar
8
Cfr. PAULO OTERO, A Competência Delegada no Direito Administrativo Português: conceito, natureza e
regime, Lisboa, AAFDL, 1987, pp. 314 ss, produz um excurso pelas possibilidades de admissão dos recursos
delegatórios no quadro da hierarquia, concluindo que não poderão ser quer hierárquicos, quer tutelares, devido à sua
6
alterações. Em vez de “Recursos Administrativos Impróprios” o novo CPA refere-se a “Recursos
Administrativos Especiais”. A especialidade não se reporta, contudo, unicamente a uma mudança
terminológica ou meramente formal, sendo, aliás, o primeiro pronúncio de uma alteração de fundo
– ou, não o sendo totalmente, pelo facto de os recursos impróprios do CPA de 1991 serem
igualmente especiais, são-o parcialmente, já que a especialidade como nomenclatura apenas
introduz o recurso delegatório com uma nova configuração, a da sua especialidade.9

III. Fruto da nova alteração levada a cabo pelo DL nº4/2015, qualquer dos recursos agora
previstos no artigo 199.º só podem ser acionados nos casos especialmente previstos na lei. Esta
especialidade é uma especialidade normativa, na medida em que a possibilidade de interposição
recursal não se basta com a previsão do artigo 199º, exigindo-se sempre uma norma habilitante,
que o preveja. A especialidade do recurso tutelar - Artigo 199. n.º1 alínea c) e n.º3 - e do recurso
para o órgão colegial - Artigo 199. n.º1 alínea a) - era já a solução acolhida pelo CPA de 1991 -
respetivamente, n.º2 do Artigo 176 e n.º2 do Artigo 177.º (o mesmo não se poderá dizer do recurso
para o delegante, entre o CPA de 1991 e o de 2015 entendido como figura geral). Contudo, apesar
de especiais, todos os procedimentos administrativos de segundo grau previstos no artigo 199º são,
claramente, recursos no seu sentido mais próprio - por envolverem a apreciação da atuação ou da
omissão de um órgão - a quo – por outro – ad quem -, com poderes de ordenação, de
supraordenação, sobre o primeiro, apesar de não em termos hierárquicos, como resulta dos
recursos hierárquicos10. Para além de recursos, em sentido próprio, são também recursos

“autonomia conceptual”. Esta “autonomia conceptual” e substantiva faria com que, do ponto de vista terminológico,
fosse mais adequado designa-lo de “recurso delegatório” e não de o incluir nos “recursos impróprios”, cfr. PAULO
OTERO, A Competência Delegada, pp. 316, como se pode ver no subtítulo que o ilustre professor dá quando se prepara
para tratar dos meios de impugnação de atos do delegado perante o delegante, referindo que a impugnação graciosa
"dos atos do delegado [é] insuscetível de ser enquadrada em qualquer outro tipo de recurso". cfr. PAULO OTERO, A
Competência Delegada, p.317
9
O que responde a uma pergunta legítima que poderá surgir: se a nova unificação dos Recursos
Administrativos Impróprios se reconduz a uma nova forma de estruturar os recursos administrativos, ou a uma nova
unificação mas à manutenção da antiga forma dos mesmos se estruturarem? Efetivamente, do ponto de vista estrutural
e formal, reconduz-se o antigo recurso tutelar, antes em artigo autónomo, ao conjunto dos restantes – e antigos –
Recursos Impróprios, incluindo igualmente a transposição do antigo recurso delegatório, que antes permanecia em
Artigo não integrado nos recursos impróprios (Artigo 158.º n.º2 do CPA) Ora, esta unificação estrutural é uma
mudança, até porque introduz a ideia que se deverá tratar qualquer Recurso Administrativo não hierárquico como
sendo Especial – e, dos que sendo Especiais, todos como sendo iguais, “parte do mesmo pacote”. A nosso ver, esta
abordagem não é a mais correta. Em primeiro, quanto ao ponto de vista material, porque os fenómenos de
desconcentração e descentralização administrativa, quer sobre o prisma da Tutela, da Delegação de Poderes ou da
Superintendência, são distintos, merecendo enquadramentos diferentes e repensados, não devendo remeter-se para
todos “em bloco” como se tudo do mesmo se tratasse - já que, por exemplo, quanto ao recurso tutelar, não fará sentido
colocá-lo na mesma previsão legal que os restantes Recursos Administrativos. Quer, em segundo, quanto ao ponto de
vista formal, porque a unificação traduz a ideia de que se trata tudo do mesmo, quando na realidade em nada de igual
falamos quando nos debruçamos sobre as idiossincrasias de cada Recurso. O recurso tutelar e o recurso delegatório,
pela sua importância substancial, não deveriam sequer ser qualificados abstratamente como “especiais” ou
“impróprios”, mas como realmente se designam: por tutelares e por delegatórios. Por isso respondendo: nova
unificação e nova forma de estruturação, quer com impactos formais, quer com impactos materiais.
10
Cfr. D. FREITAS DO AMARAL, Conceito, pp. 134 ss. O ilustre professor descreve que, pelo facto de a
7
administrativos na medida que configuram mecanismos de controlo, quer de legalidade, quer de
mérito, da atuação administrativa.

IV. Quanto à sua localização e função, importante não esquecer que todos as normas da
Subsecção I (artigos 184.º a 190.º) também terão aplicação, em virtude da sua vocação geral, a
qualquer tipo de recurso administrativo especial, pois é nesta Subsecção que se encontram as
normas relativas ao objeto, à natureza, à legitimidade, aos prazos e ao modo da sua contagem, bem
como aos efeitos associados à sua utilização. A inserção dos Recursos Administrativos Especiais
numa Subsecção implica consequências não desprezíveis sob o ponto de vista da determinação do
regime aplicável, o que evidencia uma relativa insusceptibilidade de construção de um regime geral
que seja aplicável - sendo que, por outro lado, reforça o entendimento de acordo com o qual “os
recursos hierárquicos impróprios não têm um regime jurídico unitário: existindo apenas se e
quando disposições especiais os admitirem”11 . E isto significa, desde logo, que todas as normas
contidas no artigo 199.º se reportam tanto a normas de enquadramento, por fixar os traços de cada
um dos recursos administrativos especiais, como a normas de remissão, ao entregar a estas
disposições especiais a previsão do detalhe dos regimes de cada um dos recursos elencados.

V. Ainda no âmbito do seu enquadramento, apesar do artigo 199.º não fazer qualquer tipo de
explanação quanto à natureza necessária ou facultativa no âmbito dos diferentes recursos,
depreende-se que do artigo 185.º vale a regra do seu caráter facultativo, sendo apenas, não
facultativos, mas necessários, aqueles que a lei (especial) assim o denomina1213. No quadro desta
ideia facultativa/necessária de recursos administrativos, importa enunciar alguns recursos especiais
que o preveem: o artigo 46.º do Regime Jurídico das Federações Desportivas, o recurso das

autoridade para quem se recorre não assumir, perante a autoridade recorrida, a posição de superioridade hierárquica,
"o órgão ad quem não dispõe do poder de direção relativamente ao órgão a quo, nem este se encontra adstrito para
com aquele ao correlativo dever de obediência", o que faz com que, pelo mesmo motivo, o órgão ad quem não possua
nenhum dos poderes específicos do superior hierárquico, salvo em situações especiais. Contudo, no que nos interessa
como objeto de estudo, o ilustre professor fundamenta que, pelo recurso delegatório ser impróprio, e não se fundar na
hierarquia, ele passaria a ser admito apenas em casos excecionais, e não como figura geral - sendo que, neste sentido,
o ilustre professor aparenta fundamentar-se na doutrina italiana de GINNINI, Cfr. FREITAS DO AMARAL, Conceito, pp.
134 (especificamente, nota rodapé n. º2). Indica ainda o autor, na página citada, que os recursos impróprios apenas
serão admissíveis "nos casos em que a lei os preveja ou quando a sua existência resultar inequivocamente da natureza
da relação permanente entre os dois órgãos em causa". Ora, esta análise que o ilustre professor faz e refere é
contextualizada numa situação antes do CPA 1991, que, a meu ver, jamais poderá ser utilizada como um fundamento
justificativo para fundar a admissibilidade do pendor especial do recurso delegatório. Ora, a decisão atual de
especializar os recursos administrativos, essencialmente o recurso delegatório, não é só uma decisão que faz o Direito
Administrativo recuar até 1991. É uma decisão que faz com que o Direito Administrativo recue para além de 1991.
11
Sendo que os seus termos são naturalmente os que em cada caso forem estatuídos pelas normas
aplicáveis ou os que delas se puderem extrair Cfr. FREITAS DO AMARAL, Conceito, pp.283 e ss, com idêntica conclusão
quanto ao recurso tutelar, Idem, pp. 285 e ss.
12
Prevendo o CPA de 1991 isso mesmo, quanto ao recurso tutelar: parte final do antigo n.º2 do Art, 177.º.
13
Valendo igualmente, como critérios, os estipulados no n.º1 do artigo 3.º do DL n.º 4/2015.
8
decisões do Presidente da Câmara Municipal ou dos Vereadores para a Câmara Municipal, tomadas
ao abrigo da delegação de competências, ou o n.º2 do artigo 34.º do Regime Jurídico das Autarquias
Locais14 n.º 4/2015.
VI. Outra questão que poderá surgir diz respeito aos efeitos associados à interposição dos
recursos administrativos especiais. Regra geral, eles não divergem dos estabelecidos na regulação
do recurso hierárquico: o disposto nos artigos 189.º e 190.º aplica-se em toda a sua extensão15. Em
termos práticos isto significa que, caso se trate ato recorrido – n.º1 do artigo 188.º - ou, caso se
trate de um recurso facultativo, a sua interposição não irá suspender os efeitos do ato recorrido,
pese embora esse efeito possa vir a ser de um recurso administrativo necessário, a sua interposição
irá suspender os efeitos do atribuído - n.º2 a 4 do artigo 188.

VII. Também quanto ao fundamento de legalidade ou de mérito subjacente aos vários tipos
de recursos administrativos especiais existem variáveis. Salvaguardando-se a hipótese do recurso
delegatório, em que pela circunstância da competência ser um dado originário do delegante,
cabendo a este a "a responsabilidade pela totalidade da função"16, se impõe a possibilidade de o
recurso se poder fundar quer na ilegalidade quer na inconveniência da atuação do delegado (como
o confirma, de resto, o n.º 2 do artigo 49.º, que atribuiu ao delegante competências revogatórias e
anulatórias), tudo dependerá, quanto aos restantes, da concreta configuração das normas que
habilitem a interposição do recurso – obviamente, isto mesmo apesar de apenas em relação ao

14
Respetivamente, aprovado pelo DL n.º 248-B/2008, de 31 de dezembro, aprovado pela Lei n.º 75/2013 de
12 de setembro.
15
Da mesma forma, é por apelo ao regime do recurso hierárquico (artigos 193.º a 198.º) que se determinará
como tramitam e como devem ser decididos os recursos administrativos especiais. Um alcance, assim, do artigo
199.º n.º5 que corresponde à fusão dos antigos n.º3 do artigo 176.º e n.º5 do artigo 177.º. No quadro do recurso
delegatório, supervisivo, e de certa forma na maioria dos recursos administrativos especiais, a remissão para o
regime do recurso hierárquico (n.º5) tem o seguinte alcance. Primeiro, na falta de precisão especial, o prazo de
interposição dos recursos administrativos especiais é de 30 dias, em caso de recurso necessário, ou, em caso de
recurso facultativo, o correspondente ao prazo de impugnação contenciosa (n.º2 do artigo 193.º). Em segundo, os
recursos podem ser apresentados ao órgão a quo ou ad quem (n.º2 do artigo 194.º), sendo certo que devem ser
sempre dirigidos ao órgão ad quem (o órgão dotado das competências supervisivas sobre o órgão a quo). Por último,
os poderes decisórios do órgão ad quem são os que resultam do artigo 197.º, embora este preceito tenha que ser
interpretado com toda a relação aos diversos recursos administrativos especiais à luz das competências que o órgão
supervisor detiver em concreto – resultando que a intervenção substitutiva, seja primária ou secundária, ou
modificativa do órgão ad quem depende de a este se acharem cometidas competências dispositivas, sendo que, em
qualquer caso, pela inexistência do vínculo hierárquico, independentemente do grau de maior ou menor supervisão,
não parece que se admita que o órgão ad quem tenha o poder de, ao abrigo do n.º3 do artigo 197.º, determinar a
realização de uma nova instrução, embora possa promover a realização de diligências complementares. Contudo,
apesar da similitude de previsões que correm, no geral, os recursos administrativos, no caso do recurso delegatório,
e diferentemente do recurso hierárquico (n.º1 do artigo 194.º), o recurso não será dirigido ao topo da cadeia
delegatória: sê-lo-á, respetivamente, do delegado para o delegante, do subdelegado para o subdelegante, do
subsubdelegado para o subsubdelegante, e assim sucessivamente.
16
Expressão de cfr. ROBIN DE ANDRADE, A revogação dos atos administrativos, p.85, pese embora tenha
sido aí utilizada por referência à ideia de superior hierárquico. Contudo, nada obsta a que não se transponha para o
cenário da delegação de competências.

9
recurso tutelar se apontar (no n.º 3) a possibilidade (excecional) de tal recurso poder ser também
fundado na inconveniência da atuação ou omissão do órgão tutelado ou superintendido. Nas
hipóteses de recursos para o órgão colegial (alínea b) do n.º 1) e nas hipóteses de recursos
supervisivos (alínea a) do n.º 1), não é possível determinar qualquer padrão quanto à possibilidade
de os seus fundamentos assentarem ou só na ilegalidade, ou só na inconveniência, ou em ambos.
Vale por isso, quando se trate de recursos perante atos, o comando geral do n.º 3 do artigo 185.º:
sempre que a lei não determinar o contrário, poderão ter por fundamento a ilegalidade ou a
inconveniência do ato praticado. Estando em causa a reação perante omissões, o fundamento é,
apenas, a ilegalidade subjacente ao incumprimento do dever de decidir (alínea b) do n.º 1 do artigo
184.º).

III. Intervenção do órgão ad quem nasdecisões/omissões do órgão ad


quo
I. Da diversidade de recursos assenta, desde logo, várias caraterísticas quanto à sua
estrutura –sendo que, independentemente da estrutura a que nos possamos referir, qualquer um
dos recursos administrativos especiais deve, em harmonia com o disposto no artigo 184.º,
compreender como objeto quer a impugnação de atos praticados, quer a sua reação perante
omissões. Quanto ao binómio, podemo-nos referir a uma estrutura de reexame, quando se trata
de um recurso onde o órgão ad quem se substitui ao órgão ad quo e procede a uma reapreciação
da questão subjacente ao ato recorrido, podendo tomar uma decisão diferente à inicialmente
praticada, ou a uma estrutura de revisão, estrutura que funciona de forma mais “restrita”, devido
ao facto da intervenção do órgão ad quem não consubstanciar formas de substituição ao órgão
ad quo. quer, inclusive, formas de exercício da competência deste. Se o órgão ad quem dispuser
de competência dispositiva, poderá, perante os atos praticados, modificá-los ou substituí-los; não
dispondo, poderá apenas suspender, confirmar ou não confirmar (revogando ou anulando) o ato
recorrido. A aplicação da estrutura de reexame ou de revisão irá depender disso mesmo: da
circunstância de caber ou não ao órgão ad quem competência dispositiva sobre a matéria
envolvida no recurso - sublinhando-se que o órgão ad quem não terá de ser titular de competência
dispositiva primária, bastando-lhe ser titular de competência dispositiva secundária (de
substituição, modificação); justamente aquelas que, em sede de recurso (por isso são
secundárias) lhe permita estabelecer a disciplina jurídica relativa a determinada situação (por
isso são dispositivas). Neste sentido, o âmbito de intervenção do órgão ad quem dependerá de
como, em concreto, o recurso estiver construído.
10
Se nos debruçarmos sobre o Recurso Delegatório, é visível que nele impera uma estrutura
de reexame17. Esta estrutura é explicada pela circunstância de o delegante ser titular originário da
competência dispositiva18 e por isso poder, para além de revogar, anular, e suspender um
determinado ato, também substitui-lo, modifica-lo ou, perante omissões, praticá-lo. Com o
surgimento da especialidade normativa do recurso delegatório cria-se uma dissidência lógica
naquilo que seria a articulação entre o controlo espontâneo das atuações do delegado e o controlo
provocado dessas mesmas atuações/omissões. Ora, é por pertencer ao delegante (ou subdelegante)
a competência originária – donde resulta a sua estrutura de reexame, isto é, o seu poder de
intervenção espontânea -, que ao mesmo cabe, necessariamente, as competências substitutivas
que são atribuídas pelo fenómeno delegatório. E é justamente ao abrigo da sua competência
substitutiva (n.º2 do artigo 49.º) que o delegante poderá praticar, ex officio, os atos – então ilegais
ou então inconvenientes - omitidos pelo delegado, mal se compreendendo que o não pudesse fazer
provocadamente, isto é, na sequência de um recurso. Titular originário da competência, o órgão
delegante possui, por isso, plenas competências substitutivas: primárias (com a capacidade de
suprir as omissões do delegado) e secundárias (substituindo por outros os atos praticados pelo
delegado)19. Sendo o delegante titular originário da competência dispositiva este poderá, frisamos
de novo, sempre substituir-se ao delegado na prática do ato omitido20, não se percebendo, por via
desse facto, o porquê da falta de articulação entre as intervenções provocadas e as intervenções
espontâneas.
Questão não despicienda será a de, no quadro da estrutura de reexame do recurso
delegatório, perceber o impacto do que agora dispõe o n. º4 do artigo 169.º, isto é, de que os atos
do delegado só podem ser revogados ou anulados pelo delegante "enquanto vigorar a delegação".

17
Cfr. ESTEVES DE OLIVEIRA, COSTA GONÇALVES E PACHECO DE AMORIM, Código de Procedimento
Administrativo Anotado, 2º ed. 8.ºReimp., Almedina, 2010, p.799. cfr. PAULO OTERO, A competência Delegada, pp.
318 ss, defende que "O recurso delegatório é um típico recurso de reexame [...] já que o delegante independentemente
do caráter definitivo dos atos do delegado, pode sempre, alem de revogar o ato, emitir uma nova regulamentação
material do caso". Noutra questão, PAULO OTERO, A Competência Delegada, pp. 320 ss, o ilustre professor defende
que o recurso delegatório não tem efeito devolutivo, porque "se o delegante recebe da sua competência dispositiva o
poder de se substituir ao delegado, não necessita que o recurso lhe vá atribuir essa competência, porque já a tem
diretamente da lei de habilitação". Ao defender que o delegante não perde, com a delegação, o poder de exercício do
que atribuiu, o professor remata, concluindo que o recurso delegatório consagra um sistema de "reexame ampliado".
18
No seguimento das várias construções doutrinárias da natureza jurídica da delegação de poderes, cfr. A.
SALGADO DE MATOS. A natureza jurídica da delegação de poderes: uma reapreciação, in Estudos em Homenagem
ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, Volume II, Coimbra, Almedina, 2011, p.119
19
No discorrer sobre as competências substitutivas, cfr. PAULO OTERO, O Poder de Substituição em Direito
Administrativo, Vol II, 1995, LEX, pp. 506
20
Já que a delegação não comporta qualquer renúncia à competência. Neste sentido, afastando a teoria da
alienação, cfr. PAULO OTERO, O Poder de Substituição, VolI, pp. 420; cfr. PAULO OTERO, A Competência Delegada,
pp. 188; cfr. D. FREITAS DO AMARAL,Curso de Direito Administrativo Vol I, 4ºed., Almedina, 2016, pp. 680-681,
afastando a possibilidade de alienação de poderes na delegação. Da mesma forma, vai a jurisprudência, cfr. Ac. STA-
1 de 22 de Março de 1963.
11
Embora se discuta esta limitação temporal,21 os seus efeitos não deixam de repercutir-se quanto às
possibilidades de interposição de recurso para o delegante – exatamente na medida em que o
delegante só deterá competências revogatórias e anulatórias enquanto vigorar a delegação, o que
por maioria de razão configura que os recursos que impliquem a atuação dessas competências
apenas possam, igualmente, ser interpostos nesse período, sob pena da sua rejeição– ex vi alínea a)
do n. º1 do artigo 19622.
II. No âmbito do recurso tutelar, diferente da estrutura de reexame do recurso delegatório,
existe uma estrutura de mera revisão, salvaguardando em todo o caso a possibilidade de
as concretas normas habilitantes disporem em sentido mais alargado23. Em oposição ao recurso
delegatório, o recurso tutelar detém a abrangência que os entes alvo do fenómeno tutelar assim o
entenderem – diversamente do que sucede no recurso delegatório que será sempre um recurso de
reexame, aconteça o que acontecer o delegante poderá sempre intervir espontaneamente. Desta
forma, a lei que concede o recurso tutelar não é por si habilitadora de uma tutela revogatória lato
sensu como sucede com o recurso delegatório. O recurso delegatório, contrariamente, detém uma
estrutura que toma como requisito da sua natureza a possibilidade de intervenção na anulação dos
atos praticados pelo delegado, caso sejam inconvenientes, ou a sua revogação, através da
constatação da sua ilegalidade. Isto significa que a competência dispositiva do delegante é dado
originário da delegação de poderes, contrariamente ao que sucede com o fenómeno tutelar, já que
este ultimo apenas poderá admitir a revogação ou a anulação do ato administrativo em casos
expressamente permitidos por lei - Artigo 169.º n.º5 - ou, quanto à competência dispositiva
secundária, no quadro da modificação ou da substituição da atuação do órgão tutelado, se a lei
conferir poderes de tutela substitutiva - Artigo 199.º n.º4.

21
Já assim, perante o CPA de 1991, cfr. M. REBELO DE SOUSA E A. SALGADO DE MATOS, Direito
Administrativo Geral, III, 2ºed., Dom Quixote, 2009 pp. 203; perante o CPA de 2015, cfr. A. SALGADO DE MATOS,
“A Delegação de Poderes”, in C. A M ADO G OM E S , A. F. N E VE S E T. S E RR ÃO (coord,) Comentários ao novo
Código, Vol I, 3º ed., Lisboa, AAFDL, 2016, pp. 408 e ss
22
Se nos debruçarmos sobre a questão, conseguimos concluir que houve um propósito claro de corrigir aquilo
que seria uma “irregularidade”, pois como poderá o delegante ainda exercer os poderes que lhe são atribuídos por força
do fenómeno delegatório, perante o delegado, se a delegação deixou de vigorar? Percebe-se claramente que o legislador
quando alterou alguns aspetos da delegação de poderes se debruçou claramente sobre o assunto. Em abono desta
tentativa de correção de uma imperfeição técnica do antigo CPA de 1991, vê- se claramente que o legislador “olhou
com olhos de ver” para cada pormenor que poderia implicar um desprimor técnico com as suas inerentes
consequências práticas.
23
Cfr, e já neste sentido, o Parecer da PGR n.º 90/85, de 12 de janeiro de 1989 "Na falta de específica
disposição legal em sentido diverso, o recurso tutelar permitirá à entidade ad quem tão-só a mera revisão do ato
recorrido, a eliminação ou manutenção deste, em lugar do seu reexame, de uma nova apreciação e decisão na questão
subjacente". Também no sentindo da estrutura (prima facie) de revisão do recurso tutelar, cfr. D. FREITAS DO
AMARAL, Conceito, pp. 168 e cfr. ESTEVES DE OLIVEIRA, COSTA GONÇALVES E PACHECO DE AMORIM, Código de
Procedimento Administrativo Comentado, pp. 803.

12
III. Em acréscimo, será ainda relevante a análise da conjunção das expressões “tutela” e
“superintendência” na mesma previsão legal, presentes nos artigos 199.º e 169. n. º5 do CPA.
Apesar de existirem casos de tutela sem superintendência, os casos inversos, de superintendência
sem tutela, não são frequentes. A verdade é que a base das competências supervisivas dos órgãos
ad quem nestes casos são, fundamentalmente, competências tutelares (revogatórias, situação
regra). Da superintendência não assiste qualquer competência de controlo, mas unicamente de
orientação. Partindo desta análise, mesmo que se vislumbre entre duas pessoas coletivas a
subsistência de meras relações de superintendência, nem por isso se poderá considerar que o
recurso se funda na superintendência: a verdade é que, pressupondo a superintendência a relação
de tutela, a concessão desses poderes de revogação, anulação ou substituição pressupõe a
subsistência de uma relação de tutela - e, neste caso, comportando pelo menos as faculdades
revogatórias/substitutivas pelo órgão tutelar.

IV. No quadro dos recursos administrativos especiais, surge o recurso para o órgão que
exerça poderes de supervisão - o recurso supervisivo24 - alínea a) do nº1, Artigo 199.º. Para
estarmos diante de um recurso supervisivo é necessário que a esse órgão se encontrem atribuídas
algumas competências supervisivas, podendo estas atribuições resultar da própria norma que
permita o recurso – exemplo disto são os recursos para as Câmaras Municipais das deliberações
do conselho de Administração dos serviços municipalizados do n.º2 do artigo 33.º do Regime
Jurídico das Autarquias Locais. É assente nas competências supervisivas que o órgão ad quem
poderá controlar, através da revogação, da anulação, da suspensão, da substituição ou da
modificação, se detiver competências dispositivas primárias, as atuações/omissões do órgão ad
quo.
Igualmente ao que ocorria no antigo n.º1 do artigo 176.º do CPA, no nosso entender, pode
hoje continuar a admitir-se que o recurso supervisivo da alínea a) do n.º1 do artigo 199.º tenha um
entendimento misto: residual, no quadro geral das figuras recursais, e não residual, devido ao facto
das delegações intrasubjetivas se reconduzirem à sua previsão. A sua residualidade, pode ser
arguida pelo facto da sua estrutura se manter a mesma desde o CPA 1991. Isto significa, em termos
práticos, que os poderes de supervisão podem ocorrer no fenómeno tutelar, geralmente sob a

24
As típicas situações que a doutrina, durante o CPA de 1991, referia como sendo de recurso para o delegante
em situações de delegação intrasubjetiva. Cfr. A. SALGADO DE MATOS, “A Delegação de Poderes”, in C. AMADO
GOMES, A.F. NEVES E T. SERRÃO (coord,) Comentários ao novo Código, Vol I, 3º ed, Lisboa, AAFDL, 2016, pp. 419.
Em termos idênticos, ESTEVES DE OLIVEIRA, COSTA GONÇALVES E PACHEDO DE AMORIM, Código de Procedimento
Administrativo Anotado, artigo 158.º, pp.747 e ss, frisavam para o facto do artigo 158.º, 2, b) do CPA 1991 fazer
referência genérica ao recurso para o delegante, enquanto o artigo 176.º 1, CPA 1991 abrangia unicamente os recurso
para o delegante no caso de este e o delegado pertencerem à mesma pessoa coletiva.
13
possibilidade do órgão tutelar poder revogar as atuações do órgão tutelado, e que, no limite, o
mesmo não signifique que se trate de um recurso supervisivo, pois o cerne do recurso reporta-se à
tutela administrativa25 . A residualidade foi sempre, alias, algo evidente: se qualquer dos recursos
administrativos especiais assenta na titularidade por parte do órgão ad quem de competências
supervisivas sobre o órgão ad quo, e se é justamente ao abrigo dessas competências supervisivas
que o primeiro poderá controlar - revogando, anulado ou suspendendo - as atuações ou omissões
do segundo, o recurso supervisivo nunca foi configurado como uma figura geral, mas sempre como
residual.

V. Efetivamente, o confronto do recurso supervisivo com o recurso delegatório tem-se


mantido, quer quanto ao CPA 1991, quer quanto ao CPA de 2015, fora do âmbito da discussão
doutrinária. Pelo uso das expressões utilizadas no antigo Artigo 158.º n.º2 alínea b) não serem
idênticas àquelas presentes no atual Artigo 199.º n.º2, o recurso delegatório manteve-se não só um
recurso amplamente diferente, mas, inclusivamente, configurado de forma diferente. Fica a
questão, contudo, de saber se o recurso supervisivo se continua a manter enquanto recurso
delegatório nas relações intrasubjetivas. Acreditamos que existem indícios semânticos que atestam
este entendimento, e de que, portanto, o recurso delegatório quando disponha de relações
intrasubjetivas deva ser abrangido pelo n.º1 alínea a) do Artigo 199.º26
Do ponto de vista semântico, o atual artigo 199.º n.º2 faz menção às expressões “sem
prejuízo dos recursos previstos no número anterior” “pode[rá] ainda haver lugar” “a recurso para
o delegante ...”. Socorrendo-nos da lógica formal, o presente conjunto de expressões podem ser
subsumíveis ao seguinte esquema: sem prejuízo de X, poderá haver (ainda27) Y. Ou seja, sem
prejuízo da possibilidade da existência de recurso supervisivo, no que concerne às relações
intraadministrativas, poder-se-á operar o recurso delegatório, no âmbito interadministrativo.

25
O que nos confronta com uma questão: existindo recurso tutelar e, ao mesmo tempo, uma tutela revogatória,
haverá recurso supervisivo ou recurso tutelar? No nosso entender, haverá recurso tutelar.
26
Do pouco que se encontra escrito sobre a referida questão, problema será o de como qualificar, no atual
CPA de 2015, a autonomia do recurso supervisivo em relação ao agora n.º2, que aparenta esgotar todo o campo do
fenómeno delegatório. Caso o universo de situações intrasubjetivas seja esgotado pelo recurso delegatório, sentido
algum fará manter a figura supervisiva. Da doutrina nacional, cfr. A. SALGADO DE MATOS, “A Delegação de Poderes”,
in C. AMADO GOMES, A.F. NEVES E TIAGO SERRÃO (coord,) Comentários ao novo Código, Vol I, 3º ed, Lisboa,
AAFDL, 2016, pp. 419, mantém-se omisso a esta questão e limita-se a referir o entendimento doutrinal seguido no
CPA de 1991; JOSÉ DUARTE COIMBRA, et al, Questões Fundamentais para Aplicação do CPA, 2016, Almedina, pp.
307, usam a expressão “se inseriria” não se percebendo ao certo se se estão unicamente a reportar ao que o CPA de
1991 dispunha ou, pelo contrário, estão a afirmar que atualmente o entendimento se mantém
27
Este “ainda” mais não é do que a demonstração que, a nível provocado, as delegações intersubjetivas são
reais delegações de poderes, algo que tem todo o apoio legal na nova redação do Artigo 44.º n.º1. Desta forma, como
se vê, todas as expressões utilizadas no Artigo 199.º n.º2 foram cautelosamente pensadas e alvo de ponderação -
argumento que, a nosso ver, coloca de parte a possibilidade do atual artigo ter sido alvo de um “erro [involuntário]
legislativo”.
14
Contudo, a previsão do n.º1 alínea a) não será subsumível apenas no âmbito delegatório. Colocando
de parte a situação hierárquica, já que o superior hierárquico detém poderes supervisivos e que,
por isso, o mecanismo para os particulares reivindicarem provocadamente é configurado como
recurso hierárquico, o recurso supervisivo poderá também fazer parte daquelas situações entre
órgãos colegiais da mesma pessoa coletiva que detêm poderes supervisivos, de controlo (revogação
ou anulação), de um ente face a outro.
Os recursos supervisivos, como será demonstrado, - que apenas existem nos casos
normativamente, mas não legislativamente, previstos28 - permitem que um órgão controle
provocadamente as atuações/omissões de outro órgão da mesma pessoa coletiva. Estas
competências supervisivas podem dizer a respeito a qualquer tipo de atos em especial, seja no
quadro de uma atuação ou de uma omissão pelo órgão a quo29.
Parece poder supor-se, juntamente pela tradicional conotação associada ao conceito de
supervisão, restar ao órgão ad quem apenas revogar, anular ou suspender atos30, mas já não intervir
perante omissões do órgão a quo. Coloca-se a questão se se deverá depreender que do conceito
"poderes de supervisão", e apenas deste, a capacidade do órgão supervisor de reagir perante algum
tipo de omissões. Se analisarmos do ponto de vista histórico, percebemos que o surgimento do
poder de supervisão deu-se, por força da doutrina, numa época onde vigorava a regra geral do
indeferimento tácito, e que por isso, o problema da reação administrativa (seja, também,
contenciosa) perante omissões não se colocava. Contudo, no atual quadro do Direito
Administrativo, o indeferimento tácito desapareceu como figura geral e surgiram, in crescendo, as

garantias contenciosas e administrativas, alargando-se estas ao controlo das omissões31. Posto isto,

28
Já que o problema entre a especialidade e a conformação legal exigível, nos casos intra e
interadministrativos, prende-se com a questão da extensão da reserva da lei. Como será referido, nos casos de recurso
supervisivo o que está em causa é uma relação intraadministrativa (órgãos dentro da mesma pessoa coletiva), o que
irá flexibilizar a exigência de lei formal.
29
E aqui, como exemplos, o recurso para o Conselho Superior da Ordem dos Advogados das deliberações
dos Conselhos de Deontologia ou suas secções (n.º 1 do artigo 162.º do Estatuto da Ordem dos Advogados o recurso
para a Assembleia Geral das decisões do Conselho Diretivo da Ordem dos Biólogos que recusem a inscrição de
membros efetivos (n.º 2 do artigo 16.º do Estatuto da Ordem dos Biólogos
30
Sinalizando este aspeto, cfr. TIAGO ANTUNES “A decisão no novo Código de Procedimento
Administrativo”, in C. AMADO GOMES, A. F. NEVES E TIAGO SERRÃO (coord,) Comentários ao novo Código de
Procedimento Administrativo, 2º Edição, Lisboa, AAFDL, 2015, p. 795.
31
Poderá questionar-se se o desaparecimento do indeferimento tácito como figura central da decisão tácita
do procedimento teve realmente vantagens. Ora, como nos aponta cfr. D. FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito
Administrativo, Vol II, 3ºed., Almedina, 2016 p.301, o facto de se interpretar a atuação da Administração como forma
de silêncio faria com que o ato administrativo de indeferimento permitisse ao particular recorrer ao tribunal, através
da impugnação do não deferimento da sua pretensão. Contudo, refere o ilustre professor que, apesar de em teoria ser
uma questão belíssima, do ponto de vista prático ganhou-se consciência de que a garantia dada não seria assim tão
forte. Para análise mais aprofundada, por todos, cfr. D. FREITAS DO AMARAL, Curso, Vol II, p.300 a 302; JOÃO TIAGO
SILVEIRA refere, da mesma forma, que “a defesa do particular perante o indeferimento tácito é manifestamente
insuficiente … [pois] ele ver-se-ia obrigado a utilizar um recurso de anulação que seria inconclusivo quanto à sua
pretensão, dado os poderes jurisdicionais limitados à mera anulação”. O Deferimento Tácito, Tese de Mestrado em
Ciências Jurídico- Políticas, 1999, pp. 222
15
o conceito de supervisão tradicional não poderá ser conservado: supervisionar a atuação de um
determinado órgão implica, igualmente, reagir perante situações de omissão – ou seja, podendo a
entidade supervisora praticar os atos omitidos ou, caso assim se estipule, ordenar à sua prática.
Contudo, esta faculdade depende de saber se o órgão ad quem se encontra ou não cometido
de competências substitutivas primárias sobre a matéria objeto de recurso32. De igual forma, saber
se o órgão que exerça competências supervisivas, e não seja delegante, poderá ou não se substituir
ao órgão a quo depende de consoante este disponha, ou não, de competências substitutivas sobre a
matéria33.

VI. Na delimitação do recurso para órgão colegial, em regra, – alínea b) do n.º1 – estes não
dispõem de nenhum tipo de competências supervisivas sobre as atuações ou omissões dos seus
membros, comissões ou secções. Este poderá ser um argumento bastante viável para justificar a
especialidade deste tipo de recursos. Para além de não estarem em causa poderes supervisivos, e
de a justificabilidade do caráter especial do recurso ser algo que não sofre de quaisquer problemas,
a configuração deste tipo de recursos é extremamente variável: podem tratar-se quer de recursos
de mera revisão, como de reexame, dependendo da forma como estes se encontram estruturados.
Apesar de existirem exemplos, como o recurso para o plenário da assembleia de freguesia ou para
a assembleia municipal das deliberações das mesas – n.º3 do artigo 13.º e do n.º3 do artigo 29.º do
Regime Jurídico das Autarquias Locais -, escasso desenvolvimento dogmático e metodológico
deverá ser empreendido, enfim, neste tipo de recursos. Liminarmente se deverá admitir, pela sua
estrutura, que a sua especialidade não encontra qualquer problema.

VII. No que se refere a estes dois últimos recursos, ao recurso tutelar e ao recurso para o órgão
colegial, a excecionalidade da titularidade de competências substitutivas por parte do órgão ad
quem ditará, em regra, também a excecionalidade da possibilidade de interposição de recursos
perante omissões do órgão a quo. Neste tipo de interposição de recursos perante omissões do órgão
a quo, abrem-se duas hipóteses para o órgão ad quem: i) praticar o então ato omitido ou ii) ordenar
à prática do ato omitido (n. º4 do artigo 197.º). Como se viu, a prática do ato omitido é excecional;
a segunda hipótese está excluída por definição, pois não sendo superior hierárquico do órgão a

32
Para o conceito de substituição primária como a que se traduz na prática de atos primários, que se opõe à
substituição secundária, que unicamente habilita a prática de atos secundários - por exemplo, revogação e anulação -
e, por isso, pressupõe a prática desse ato pelo órgão substituído, cfr. PAULO OTERO, O Poder de Substituição Vol II,
p.506.
33
Sendo em que em regra não disporá. cfr. REBELO DE SOUSA E SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo
III, p.228

16
quo, o órgão ad quem nos recursos administrativos especiais não pode, em caso algum, ordenar a
este último a prática de qualquer ato, por força de não existir nenhum vínculo de hierarquia entre
ambos. Diferentemente é o que sucede nos casos de recurso delegatório ou perante delegações
hierárquicas, pois neste tipo de casos o delegante pode sempre, ao abrigo da competência
dispositiva que naturalmente conserva, praticar o ato omitido pelo delegado, devendo fazê-lo
sempre que concluir pela procedência do recurso34.

34
O que resulta em não ser relevante discutir-se se ao delegante que seja igualmente superior hierárquico se
abre a hipótese de "ordenar a prática do ato omitido", pois a resposta irá depender da perspetiva que se adote quanto
aos efeitos que a prática de um ato de delegação surte sobre relações hierárquicas pré-existentes. Na medida, como
vem sendo dito, o recurso delegatório é de reexame e ao delegante assistem plenas competências substitutivas, este
tem o dever de, caso conclua pela procedência do recurso, praticar o ato omitido
17
1. Extensão e Amplitude da Reserva de Ato Legislativo: repercussões na
dualidade intra e inter administrative

I. Para além da sua estrutura remissiva à qual o Artigo 199.º se debruça, por estar inserido no
capítulo das Reclamações e dos Recursos Administrativos, existem questões que não têm resposta
no regime geral. Uma deles é desde logo o apelo às expressões "lei" e "disposição legal" (n.º1 e
n.º2 respetivamente), que o Artigo 199.º faz menção. Será que daqui se poderá depreender que a
previsão de qualquer recurso administrativo especial depende sempre da sua consagração enquanto
lei em sentido formal (isto é, Lei, Decreto Lei ou Decreto Legislativo Regional) ou, pelo contrário,
se basta com a previsão de lei em sentido material (podendo ser, por exemplo, uma norma
regulamentar)?. CABRAL DE MONCADA considera, sem justificar e sem diferenciar as várias
estruturas-tipo de recursos administrativos especiais, que "a possibilidade dos recursos
administrativos especiais depende de fonte legislativa ou equiparada"35. A nosso entender, para
além do ilustre professor não diferenciar ambas as expressões, o mesmo não aprofundou os
impactos entre tomar como requisito um ato legislativo ou, por exemplo, uma fonte equiparada -
sendo que, dependendo do Recurso em análise, a resposta será diferente. O problema prende-se, a
nosso ver, não, como o ilustre professor refere, com a existência de uma fonte legislativa e
equiparada em qualquer recurso, mas com a existência de uma extensividade específica, própria
de cada Recurso, de um dado ato legislativo. Essa extensividade, por sê-lo, em primeiro, faz com
que se necessite do apoio das normas constitucionais, e em segundo, conduz a uma série de
soluções não unitárias - quer porque, ao que aparenta, a exigência de previsão em lei formal é
apenas imperativo do recurso tutelar36.
Partindo do início: enquanto o n.º1 parece apontar para uma maior flexibilização da
exigência de lei em sentido formal - podendo incluir-se normas regulamentares -, o n.º2 parece
reconduzir-se à ideia de reserva de lei em sentido formal, tendo por isso um pendor mais absoluto.
Contudo, poderá sempre arguir-se que o legislador, como tendencialmente sucede, utilizou
conceitos formalmente diferentes mas materialmente idênticos, e que, portanto, o problema da

35
Cfr. LUÍS CABRAL DE MONCADA, Código do Procedimento Administrativo Anotado, Coimbra Editora,
2015, p.691.
36
Pode ver-se que a exigência de previsão em lei formal está bem patente no recurso tutelar, por exemplo,
em resultado do n.º1 do artigo 242.º e na alínea d) do n.º1 do artigo 165.º (quanto às autarquias locais), do n.º2 do
artigo 76.º (para as relações tutelares com instituições de ensino superior) e do n.º2 do artigo 267.º (para a quase
generalidade das relações tutelares). Existe, para além disto, dois acórdãos identificadores deste entendimento. A
respeito da disposição do n.º2 do artigo 177.º do CPA de 1991, estabeleceu-se que "ao prescrever que o recurso tutelar
só existe nos casos expressamente previstos na lei, [a disposição] apenas pode reenviar para um ato legislativo, e nunca
para um regulamento, pois se trata de matéria em que a disciplina inicial e primária só pode caber à lei" Acórdão de
15 de dezembro de 1999, Proc.n.º 044588. Seguidamente, o Acórdão de 10 de fevereiro de 2000, Proc.n.º045421 que
refere que "o artigo 177.º, n.º2, do CPA ao prescrever que o recurso tutelar só existe nos casos expressamente previstos
por lei está a considerar apenas o ato legislativo formal".
18
extensividade da reserva de ato legislativo seria um problema interpretativo e não algo que, ab
initio, pudesse ser fixado ou tivesse apenas um significado37. Uma fração deste problema pode
ainda transportar-se para a possibilidade de a Lei Constitucional ou, inclusivamente, o Código de
Procedimento Administrativo, ser dotado de legitimidade bastante para habilitar a categoria dos
Recursos Administrativos Especiais38.

II. Contudo, semelhante conclusão tomada no âmbito do recurso tutelar não será aplicável
se nos referirmos aos demais recursos administrativos especiais, quer tomemos como consideração
o presente no n.º1, quer no n.º2. Aqui, novamente, ter-se-á que admitir a dualidade. Em relação aos
recursos intraadministrativos previstos no n.º1, a inexigibilidade de previsão em lei formal resulta
da ausência de norma constitucional que aponte nesse sentido, já que estando em causa o
funcionamento interno de pessoas coletivas, se admite a menor abrangência da precedência de lei 39.
No âmbito dos recursos delegatórios, como já fora explanado, a extensividade específica a
que o n.º2 indicia é reconduzida aos casos de delegações intersubjetivas - diferentemente das
situações intrasubjetivas que seriam reconduzidas à alínea a) do n.º1. Em termos práticos, a
diferença prende-se com a extensividade da lei exigida: enquanto que no primeiro caso será exigido
lei em sentido formal, pela aparenta exigência de se tratar de um recurso que operaria entre pessoas
coletivas diferentes40, no segundo caso esta exigência estará dispensada, sendo apenas necessário

37
Questão que nos parece legítima: será que o problema poderá reconduzir-se apenas à interpretação? Isto é,
de interpretar mais latamente ou restritamente ambas as designações, como forma de alcançar um determinado
resultando - p.e, fazendo com que a consagração em Regulamento da norma habilitante para um determinado Recurso
Administrativo fosse bastante. Quanto a esta questão em específico, não entendemos que o problema seja de
interpretação nem que possa se resolvido por esta via.
38
Apesar de legítima, a questão poderá cair no equívoco. A legitimidade provocada do Recurso tem de basear
em Lei autónoma àquela que, imperativamente, toma como requisito a existência de uma Lei que atribua legitimidade
para se operar o Recurso. O mesmo vale, quer para a Lei Constitucional, quer para o Código de Procedimento
Administrativo. Questão será a de, à semelhança do que sucede com os Regulamentos baseados na Constituição, poder
a especialidade ser configurada em norma constitucional. A questão fora levantada pela doutrina: cfr. D. FREITAS DO
AMARAL, Curso, Vol II ,pp.171; LUÍS PEREIRA COUTINHO, Regulamentos Independentes do Governo, in Perspectivas
Constitucionais – Nos 20 Anos da Constituição de 1976, org. JORGE MIRANDA, III, Coimbra Editora, Coimbra, 1998,
p. 979-1064, ao passo que se tem entendido que um cheque em branco ao Governo para este produzir regulamentos
independentes sem prévia fundamentação legal será violar o princípio da legalidade. Se a atuação do poder
regulamentar exige uma lei prévia, precedência de lei, então o mesmo raciocínio ter-se-á que aplicar à hipotética
atribuição de legitimidade bastante na CRP para fundar a admissibilidade de Recursos Administrativos. Apesar da
CRP contradizer totalmente esta possibilidade, já que vários imperativos constitucionais se colocam exatamente na
posição oposta, admiti-la seria violar a precedência de lei que, neste caso [infelizmente], todos os Recursos
Administrativos Especiais exigem.
39
Como o clarifica o CPA, ao remeter para a possibilidade de as soluções genericamente previstas na Parte
II serem afastadas por "disposição estatutária ou regimental". Desta forma, não parece padecer de qualquer
inconstitucionalidade uma norma regulamentar que preveja o recurso para o órgão colegial de atos ou omissões dos
seus membros, raciocínio que poderá ser extensível aos recursos previstos na alínea a) do n.º1 do artigo 199.º. Alguma
doutrina vai igualmente neste sentido. cfr., J. DUARTE COIMBRA, Questões Fundamentais,, pp. 304 e ss. Os autores
fundamentam a inexistência de expressa previsão legal como habilitante para se operar o recurso especial para o órgão
nos casos, primeiro, em que não há "proeminência hierárquica sobre o autor do ato", e, segundo, quando o órgão
"disponha de poderes de supervisão no interior da mesma pessoa coletiva".
40
E, veja-se, que o CPA com a nova formulação do Artigo 44. º admitiu como sendo reais delegações de
19
lei em sentido material - ou, qualquer tipo de lei, já que será através dessa tentativa hermenêutica
que se poderá traçar uma via de tentativa de interpretar o preceito conforme com a Constituição –
(Infra.º V, I) 41.
Quanto a esta questão, o CPA, apesar de pender para o equívoco, tentou solucionar o
problema (Supra.º III, IV) Contudo, razão terá quem invocar que, não fazendo menção do tipo de
delegação de poderes a que se refere o n.º2 do Artigo 199.º, dever-se-á presumir que o recurso do
n.º2 reporta-se quer a relações intraadministrativas quer às de tipo interadministrativo. Contudo,
colocar as coisas nestes moldes origina não só um conflito com a figura do recurso supervisivo -
que, assim, deixaria quase totalmente de ter qualquer valor, podendo, por esse hipotético facto, ser
eliminado através de uma interpretação ab rogante42, já que todas as situações que envolvessem
delegação de poderes deveriam ser resolvidas em sede de n.º2 e não de n.º1 - como um enorme
problema de apuramento da rácio de ambos os preceitos, o que culminaria numa incapacidade de
apreensão do sentido ultimo da alteração que o CPA de 2015 veio realizer no quadro dos recursos
administrativos.
Efetivamente, se o legislador pretendesse que o recurso supervisivo deixasse de existir
como figura reconduzida aos casos, principalmente, de delegações intraadministrativas, te- lo-ia
eliminado - e, depois de uma tradição administrativa que vai desde 1991 a 2015, o mesmo não foi
feito. Mais: se a intenção do legislador fosse reconduzir todos os casos de delegação de poderes ao
n.º2, teria estruturado não só o Artigo 199.º n.º2 de forma diferente, enunciando a sua previsão
ampla na articulação com o n.º1, como teria restringido o âmbito de aplicação do recurso
supervisivo

III. Tomando em abono da ideia que respostas apodíticas para este problema não são
configuráveis, a única verdade que se poderá arguir será a péssima estruturação que todo o
complexo recursal do Artigo 199.º dispõe. A previsão cai em vários vícios semânticos, em erros
sistemáticos que suscitam dúvidas, acabando por originar inúmeros problemas no seu âmbito de

poderes, Cfr. A. SALGADO DE MATOS, “A Delegação de Poderes”, in C. AMADO GOMES, A.F. NEVES E TIAGO SERRÃO
(coord,) Comentários ao novo Código, Vol I, 3º ed, Lisboa, AAFDL, 2016, pp. 409, já em A. SALGADO DE MATOS,
“A Delegação de Poderes”, in C. AMADO GOMES, A.F. NEVES E TIAGO SERRÃO (coord.), Comentários ao Novo Código
do Procedimento Administrativo, 2ºed., 2015, pp. 301 e ss. Enunciando, o mesmo autor, contudo, que a figura não é
nova e já se encontrava presente na doutrina mais remota, Cfr. EHRHDART SOARES, Direito Administrativo, Coimbra,
1978, pp.252-253. Efetivamente, comprova-o a sua não novidade na possibilidade que antes existia de, em casos de
delegações intersubjetivas, as mesmas serem reconduzidas ao preceito no Artigo 158 n.º2 do CPA de 1991 - e, bem
assim, de serem um tipo de delegações que comportavam sempre recurso
41
Uma das propostas que iremos problematizar será a adaptação da expressão "expressa disposição legal" de
forma a que aqui se inclua a própria norma habilitante da delegação de poderes. Desta forma, apesar de em regra se
manter a especialidade, isto é, a necessidade de uma concretização do princípio da liberdade de interposição de recursos
do delegado para o delegante, este (aparentemente) seria mais flexível..
42
Já que, assim, o recurso supervisivo se tornaria, quase por completo, um “nado morto”. cfr, OLIVEIRA
ASCENSÃO, O Direito, Introdução e Teoria Geral, Almedina, 13ºed., 2008, pp. 428 e ss
20
aplicação. O seu propósito, como fora referido, cai não só no erro de colocar “no mesmo saco” os
antigos recursos impróprios com o recurso tutelar, o que faz surgir a ideia de que a especialidade
do recurso delegatório intersubjetivo existe pelas mesmas razões que o recurso tutelar - que será,
diga-se, um tipo de relação intersubjetiva -, como cria uma grande dificuldade semântica em
percecionar o que se pretende, enfim, com o n.º2. Pela lógica sistemática, coloca-se o recurso
supervisivo no n.º1 e o recurso delegatório logo abaixo: quererá isto dizer que o recurso supervisivo
será aplicado preferencialmente nas situações intrasubjetivas sobre o delegatório?
Partindo de uma presunção de pensamento adequado e de racionalidade, o intérprete não
deverá, sem ter reais razões para isso, afastar-se da letra da lei - Artigo 9.º n.º3 do Código Civil43.
Contudo, devendo a lei ser comunicação, a interpretação deverá reconstruir, a partir dos textos, o
pensamento legislativo. E esse pensamento, no caso em apreço, enferma de ininteligibilidade em
quase todos os elementos interpretativos. Os trabalhos preparatórios não o desmentem, mas
também não o afirmam; ao nível sistemático, não parece poder arguir-se que o n.º1, por se encontrar
primeiro, deverá prevalecer sobre o n.º2, mas que a união do recurso delegatório na mesma
previsão que o recurso tutelar aponta para uma coincidência quanto à forma de operar o recurso -
já que se tratam ambas de relações interadministrativas; no campo teleológico, parece resultar que
a norma do n.º2, pela articulação que sofre alvo de existir um n.º1 que dispõe para relações
intrasubjetivas, será aplicável para as relações intersubjetivas. No nosso entender, a solução deste
problema deverá ser resolvido através de uma interpretação extensiva. O legislador, quando
elaborou o preceito, foi realmente traído: disse menos do que queria44. Sustentando-nos no
argumento literal, a formulação parece indiciar que, a par da existência do fenómeno recursal
supervisivo em delegações intrasubjetivas, que se reconduz ao n.º1, o n.º2 surgiu como previsão
para regular as situações intersubjetivas quando haja delegação de competências. Existe
inclusivamente alguma doutrina que parece indiciar que as delegações de tipo intersubjetivo podem
realmente obstruir o fenómeno hierárquico, já que porventura se poderia estar a interferir na relação
existente entre ambos45. Apesar de ANDRÉ SALGADO MATOS ter uma opinião quanto ao
desaparecimento do caráter genérico do recurso delegatório, o argumento com base no Artigo 44.º
n.º1 parece sustentar a posição (aqui) defendida. Partindo de uma distinção interna, pela falta de
unicidade, entre delegação intersubjetivo instrumentalizada e autónoma, o autor acaba por concluir
que nas relações de tipo autónomo, onde está presente o fenómeno da autodeterminação, no

43
Cfr. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil I, Introdução, Fontes do Direito,
Interpretação da lei, Aplicação das leis no Tempo, Doutrina Geral, 4º Edição, Almedina, 2012, p.699
44
Sendo que, neste tipo de interpretações, não se pretende corrigir o texto, mas ampliar o seu sentido e
significado. Para uma análise do fenómeno da interpretação extensiva, OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito, p.423.
45
Cfr. A. SALGADO MATOS, “A Delegação de Poderes”, in C. AMADO GOMES, A.F. NEVES E TIAGO SERÃO
(coord,) Comentários ao novo Código, Vol I, 3º ed, Lisboa, AAFDL, 2016, pp. 411.
21
exemplo entre a delegação de competências entre freguesias e entidades intermunicipais, não
deverá existir relações de supra-infraordenação, e, portanto, neste tipo de casos - como aponta o
Artigo.º 117 n.º2, 124.º - 136.º RJAL - não devemos abrangê-los na noção de delegação de
poderes46.
De certa forma, a união no Artigo 199.º do recurso delegatório e do recurso tutelar
aparentam dar razão a este argumento: regular as relações tutelares - relações, por isso,
interadministrativas - da mesma forma que a delegação no âmbito interadministrativo. A exigência
de reserva legal, nos recursos delegatórios, parece, assim, existir por razões paralelas com o recurso
tutelar: ao configurar-se relações de supervisão entre órgãos de pessoas coletivas diferentes, impõe-
se a intervenção primária da lei formal, fazendo com que a partir de "lei", no âmbito destes recursos
intersubjetivos, se deva entende-la em sentido formal. Semelhante fundamento se diga do recurso
para órgão colegial: a possibilidade de controlo supervisivo do órgão colegial sobre os seus
membros não resulta de nenhuma norma geral do ordenamento, dependendo, sempre, de previsão
especial, assim se compreendendo, também com base num raciocínio ad simile, que a
possibilidade de interposição de recurso dependa de previsão normativa específica47.
Ora, partindo de uma análise cautelosa da tutela, a doutrina tem entendido que uma procura
apodítica pela sua natureza e definição, com fundamento nos seus elementos diferenciadores,
torna-se muitas vezes insuficiente. Tem-se entendido que dois elementos caraterizam a tutela: o
elemento estrutural - como apogeu da relação jurídica administrativa de subordinação por via de
um controlo que mantém a autonomia - e o elemento teleológico - o da continuidade
administrativa48. Partindo da ideia que a tutela se desdobra num fenómeno entre duas pessoas
coletivas que integram a Administração Pública, de forma a realizarem tarefas administrativas,
sendo que uma delas toma uma posição de supremacia e dispõe de forma respeitosa pela autonomia
da segunda, acabando por manter o poder de controlar os seus atos e omissões em subordinação49
aos parâmetros de acordo com a respetiva lei habilitante, pergunta-se porque é que o argumento ad
simile entre a exigência de lei em sentido formal no recurso tutelar e no recurso delegatório

46
Idem, pp. 409 a 411. Concordamos com o ilustre professor quando o mesmo refere que a abrangência do
Artigo 44.º não deverá estender-se para todos os casos de delegação de competências, devendo evitar-se no âmbito
acima descrito.
47
Deve sublinhar-se que a previsão especial do recurso (tutelar ou para órgão colegial) não se confunde com
a previsão especial de competências substitutivas ou revogatórias. Um exemplo ilustra esta diferença: nos termos do
n.º 9 do artigo 41.º da Lei-Quadro dos Institutos Públicos, o membro do Governo da tutela goza, em algumas
circunstâncias, de tutela substitutiva sobre as omissões de órgãos dos Institutos Públicos. Da norma aí contida não se
extrai, no entanto, a possibilidade de os particulares poderem interpor recurso tutelar.
48
Cfr. ANDRÉ FOLQUE, A Tutela Administrativa nas Relações Entre o Governo e os Municípios,
Condicionalismos Constitucionais, Coimbra Editora, 2004, pp. 333
49
No seguimento dos conceitos de “controlo administrativo”, bem como daquilo que seja o fenómeno
teleológico da Tutela, como sendo a continuidade [da prossecução do interesse público], ANDRÉ FOLQUE, A Tutela
Administrativa, pp.334 e ss
22
interadministrativo deverá ser liminarmente excluído. Ora, em nada o recurso tutelar se assemelha
ao recurso delegatório50 (Supra,º III, II). Apesar de a lei facultar a possibilidade de interposição de
recurso de um órgão para outro, seja dentro ou fora da mesma pessoa coletiva, mesmo que não
exista o vínculo hierárquico, faltando por isso o poder de direção, não é por isso que se constitui
uma relação tutelar entre ambos. A diferença entre delegação de poderes e tutela não se configura
apenas no campo da sua natureza, finalidade ou objetivo. Todos os Recursos Hierárquicos
Impróprios pressupõem um poder genérico de supervisão sobre o órgão recorrido. Este poder
genérico de supervisão não existe no fenómeno tutelar, a não ser em casos excecionais51. Só em
situações especiais, isto é, habilitadas por lei, podem os atos administrativos praticados pelos
órgãos sujeitos a tutela serem alvo de revogação administrativa. Esta ideia é, aliás, algo inerente
ao próprio fenómeno tutelar: a lei de habilitação é que legitima a atuação do órgão tutelar52. É por
esta razão que existem vários tipos de tutela administrativa, quanto ao conteúdo: de tipo inspetivo,
integrativo, sancionatório, revogatório - sendo que, em abono da sua especialidade, o tipo
revogatório acaba por ser o mais excecional. Como refere o ilustre professor PAULO OTERO, a tutela
está inteiramente sujeita ao princípio da tipicidade legal, o que faz com que, por inerência, nunca
se possa presumir um tipo específico de tutela sem o mesmo estar expresso na lei de habilitação53.
Em total oposição a este entendimento da forte ductilidade da natureza da tutela, encontra-
se a delegação de poderes. Bem vistas as coisas, em nada a delegação de poderes se altera ou irá
alterar com a presença de uma lei de habilitação. Diferente do fenómeno tutelar, geralmente assente
no arbítrio das partes na sua configuração, a intervenção espontânea e a competência substitutiva
originária do delegante apontam no sentido de que a nível quer espontâneo quer provocado este
poderá sempre acionar os mecanismos primários ou secundários da sua competência originária –
mecanismos exercidos ex officio, Artigo 49.º CPA. Apesar da lei de habilitação ser o fator
atributivo da delegação de poderes, não podendo os órgãos exercerem entre si poderes de delegação
se não estiverem habilitados por lei - Artigo 44.º n.º1 -, nada referente a este entendimento pode
ser equiparado ao que sucede no fenómeno tutelar. São processos atributivos completamente
diferentes: em nada a lei que habilita a delegação de poderes irá influenciar os poderes que o
delegado tem em sede espontânea e provocada54.

50
Sendo inclusivamente uma enorme falha terminológica e uma enorme falta de rigor técnico incluir o
Recurso Tutelar nos Recursos Administrativos Especiais, pois estes em nada se assemelham. Com o mesmo
entendimento, ANDRÉ FOLQUE, A Tutela Administrativa p.428; indo alguma jurisprudência neste sentido, Ac. do STA
de 12-02-1976, in AD, 176/177, pp. 1065 e segs.
51
Artigo 169.º n.º5 do CPA de 2015, o que dispunha o antigo Artigo 142.º n.º3 do CPA de 1991
52
Sendo que, a tutela obedece a uma lógica de subordinação, seja à lei, seja às orientações dadas pelo órgão
tutelar, seja, igualmente, à aplicação e interpretação da lei operada pelo órgão tutelar, cfr. M. ESTEVES DE
OLIVEIRA, Direito Administrativo, I, Lisboa, 1977, pp. 219, 271.
53
Cfr. PAULO OTERO, O Poder de Substituição, Vol II, pp. 814
54
Sendo que, para os adeptos da tese da transferência do exercício, a competência delegada vem,
23
Posto isto, a vontade do legislador em colocar ad simile a tutela e a delegação de poderes
no mesmo Artigo, não só não faz qualquer sentido, como é inconstitucional. Vamos mais longe.
Também do ponto de vista dogmático não fará qualquer sentido: enquanto a tutela representa uma
de relação funcional de tipo geral, a delegação se refere-se a uma relação funcional de tipo
especial55.

inclusivamente, não da lei da habilitação mas da própria delegação - claro que, segundo esta doutrina, a delegação faz
com que se transfira o exercício dos poderes e não a sua titularidade.
55
Com apoio neste entendimento, FERNANDA OLIVEIRA E JOSÉ DIAS, Noções Fundamentais de Direito
Administrativo, 4º ed., Almedina, 2016, pp. 82-87.
24
IV. Em Busca de um Atestado de (in)constitucionalidade
1. O Recurso Delegatório (n.º2)

I. Como referido, o ordenamento jurídico concede vastas competências supervisivas ao


delegante (n. º2 do artigo 49.º), como é bem visível e justificável pela própria natureza da delegação
de poderes. Contudo, ao analisarmos a sua ampla extensão no âmbito espontâneo, isto é, no âmbito
em que o delegante aciona os seus poderes gerais presente nos Artigos 44.º a 50.º do CPA, ficamos
com a impressão de que a lógica se repete no âmbito provocado, isto é, quando um particular
recorre para o delegante das decisões/omissões praticadas pelo delegado. Efetivamente, as coisas
não se processam nesses moldes. Diferente do que dispunha o CPA de 199156, bem como a doutrina
mais ilustre57, o atual CPA quebrou com a regra do cenário relativo ao recurso para o delegante,
até agora entendido como uma figura geral, o que tornava com que este fosse sempre admissível.
Desde que se estabelecesse a relação de delegação de competências entre dois órgãos, poder-se-ia
acionar o recurso delegatório. É unânime que, contudo, com a entrada do novo CPA, o recurso
passou apenas a ser configurado como mecanismo excecional. Daqui se vê a inversão para com o
antigo entendimento: enquanto que antes os particulares podiam dispor sempre do recurso
delegatório, tendo apenas que provar a existência de delegação, atualmente terá que existir uma
norma habilitante que funde na excecionalidade a permissão de recurso.

II. No âmbito da especialidade, razão tem SALGADO DE MATOS ao referir que nem por apelo
do n. º1 do artigo 199.º se poderá ultrapassar a exigência de expressa disposição legal prevista no
n.º258. A estranheza desta solução tomada por base no CPA de 2015, a respeito da especialidade

56
Já que a conclusão que resultava no CPA de 1991 quanto à generalidade dos recursos delegatórios o incidia,
através da conjugação do n.º2 do artigo 39.º, da parte final da alínea b) do n.º1 do artigo 158.º e do n.º1 do artigo 176.º.
57
Cfr. PAULO OTERO, A Competência Delegada, p.316. Este autor não hesita em afirmar de que "o recurso
delegatório existe sempre que haja uma delegação de poderes, independentemente de expressa previsão legal nesse
sentido". Isto significa admitir que "as impugnabilidades dos atos do delegado junto do delegante constituem um
princípio geral, o qual encontra o seu fundamento direto na própria relação que se estabelece entre os órgãos envolvidos
no fenómeno delegatório" cfr. P. OTERO, "As garantias impugnatórias dos particulares no Código de Procedimento
Administrativo", in Scientia Iuridica, nºs 235-237, Jan.-Jun, 1992, p.67. Com idêntico entendimento, cfr. ESTEVES DE
OLIVEIRA, COSTA GONÇALVES E PACHECO DE AMORIM, Código de Procedimento Administrativo Anotado, p.800; M.
REBELO DE SOUSA E SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral III, p.228;. D. FREITAS DO AMARAL et al,
Código de Procedimento Administrativo Anotado - Com Legislação Complementar, 6º Edição, Almedina, 2007, p.299,
refere que "[se] pretendeu estabelecer como regra a possibilidade de reapreciação dos atos administrativos praticados
por órgãos sujeitos ao poder de supervisão de outros órgãos da mesma pessoa coletiva"
58
Cfr. A. SALGADO DE MATOS, “A Delegação de Poderes”, in C. AMADO GOMES, A.F. NEVES E TIAGO
SERRÃO (coord,) Comentários ao novo Código, Vol I, 3º ed, Lisboa, AAFDL, 2016, pp. 419. Com esta conclusão, cfr.
D. FREITAS DO AMARAL, Curso, Vol, I, pp. 706-707 (estranhando que se tenha eliminado o paralelismo entre a
possibilidade de revogação oficiosa – que permanece no n.º 2 do artigo 49.º – e a possibilidade de interposição de
recurso); A. RAQUEL GONÇALVES MONIZ, Direito Administrativo, textos e casos práticos resolvidos, 2º ed., Almedina,
2015, p. 189, nota 57; diferentemente – mas, segundo se julga, partido de uma leitura pouco atenta do n.º 1 do artigo
25
do recurso para o delegante, resulta de duas situações. Em primeiro, pelo facto de esta não vir nem
referida na lei de Autorização que precedeu a aprovação do DL n.º 4/2015 nem sequer explicada
no preâmbulo deste último. Apesar de se tratar de uma inovação no novo quadro do Direito
Administrativo, mais claro ficaria, até para termos de esclarecimento do elemento histórico,
conhecer os fundamentos que justificaram a sua consagração. Em segundo, aqui mais drástico, a
solução consagrada no CPA distancia-se de ambas as versões preparatórias do Código: tanto o
Anteprojeto preparado pela Comissão Revisora nomeada pelo Despacho n.º9415/2012, de 12 de
Julho, quer o projeto de Decreto-Lei autorizado que acompanhou a proposta governamental de Lei
de Autorização (Proposta da lei nº224/XII), que estabeleciam soluções inversas. Nos termos do n.º
2 do artigo 197.º do primeiro e do n.º 2 do artigo 199.º do segundo, estabelecia-se que “há sempre
recurso para o delegante ou subdelegante dos atos praticados pelo delegado ou pelo subdelegado”.
Mais do que diferente, a solução que veio a ser consagrada pelo CPA de 2015 é, como se percebe,
frontalmente contrária à projetada naquelas duas versões. De um cenário de generalidade do
recurso delegatório – ele existiria “sempre”59, isto é, sempre que existisse uma relação de
delegação, sem dependência de qualquer previsão específica – a versão final do Código passou
para um cenário de excecionalidade. Se o confronto entre o Anteprojeto de 2013 e a versão final
do Código revela um lote significativo de alterações, o mesmo não pode dizer-se no momento em
que se compare a versão final do Código com o projetado naquele articulado de Decreto-Lei
autorizado: a diferença que se regista na solução encontrada para os termos da admissibilidade do
recurso delegatório é mesmo um dos raríssimos aspetos em que a versão aprovada se afastou da
versão que o Governo juntou à sua proposta de Lei de Autorização, facto que adensa a dúvida sobre
quais as razões que estiveram subjacentes a esta inversão de sentido legislativo e qual o momento

199.º, que também exige a expressa previsão na lei – ANDRÉ FOLQUE, Notas sobre a Revisão do Ato Administrativo
no Novo Código, 1ºed., Almedina, 2017, pp. 92-93.
59
Nos termos em que surgia prevista no Anteprojeto de 2013 e no projeto de Decreto-Lei autorizado junto à
Proposta de Lei n.º XII/2014, a disposição colocava, no entanto, um eventual problema de articulação com os critérios
identificativos de impugnações administrativas necessárias. Como se viu no momento em que se comentou o artigo
3.º do DL n.º 4/2015, as expressões aí identificadas não devem deixar ser lidas em termos funcionais e, por isso,
meramente indicativos, significando isto que expressões semanticamente equivalentes às aí recortadas não podem
deixar de ser interpretadas como consagradoras de impugnações administrativas necessárias, como sucede, por
exemplo, com os casos de “há sempre” ou “cabe sempre”, semanticamente idênticas à expressão (recortada na alínea
b) do n.º 1 desse artigo 3.º) “existe sempre”. Por outro lado, e mesmo que, prima facie, a norma se destine à
interpretação de disposições anteriores à entrada em vigor do CPA de 2015, não pode olvidar-se o potencial expansivo
desse artigo 3.º quanto às possibilidades de interpretação de fórmulas previstas em diplomas contemporâneos ou
futuros ao CPA de 2015. Perante isto, a utilização da expressão “há sempre” no contexto dos projetados n.º 2 do artigo
197.º (do Anteprojeto) e n.º 2 do artigo 199.º (do projeto de Decreto-Lei autorizado) poderia suscitar a dúvida –
razoável – sobre se, assim formulada, a disposição não poderia querer a indicar o carácter necessário de todos os
recursos delegatórios. Não parece que fosse esse o caso. A colocação desta hipótese vem, no entanto, (i) reforçar as
dúvidas sobre a bondade da técnica legislativa utilizada no momento de formular o artigo 3.º do DL n.º 4/2015, e,
para o que agora mais interessa, (ii) colocar em evidência que o n.º 2 do artigo 199.º é, afinal, o resultado de uma
história legislativa nada feliz, isto é, nada cuidada.

26
em que a mesma terá surgido.
A radical inovatoriedade da versão aprovada do Código não passou desapercebida a um
dos membros da Comissão Revisora que, já depois da aprovação do CPA de 2015, fulminou desta
forma a solução prevista no n.º 2 do artigo 199.º: “o recurso para o delegante é sempre admissível,
tendo em conta a plenitude dos poderes do delegante relativamente aos atos do delegado,
decorrente de lhe pertencer a competência exercida – embora o artigo 199.º, n.º 2, do CPA, por
erro manifesto, que deve ser objeto de correção teleológica, exija para o efeito expressa disposição
legal”60. A nosso entender, apesar de bastantes indícios o apontarem, não cabe aprofundar uma
possibilidade de erro legislativo - até porque, como se pôde ver até agora, a estruturação do Artigo
199.º no âmbito delegatório foi pensada de determinada forma, havendo inúmeros indícios que o
justificam (Supra, III, IV). A problemática desta questão é muito superior a um mero “erro técnico”.
A grande irracionalidade desta questão prende-se com a própria estrutura, com os próprios efeitos
e com a própria natureza da delegação de competências61, sendo que é sobre esse eixo que o
problema deverá ser versado. A eliminação do caráter genérico do recurso para o delegante
implicou uma significativa redução das possibilidades de exercício efetivo dessas competências
supervisivas do delegante sobre o delegado62. É evidente que, ao abrigo do n.º 2 do artigo 49.º, tais
competências poderão continuar a ser exercidas de forma espontânea63. Facilmente se compreende,

60
cfr. VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, 4º Edição, Coimbra: Imprensa da Universidade
de Coimbra, 2015, p. 251; J. SILVA SAMPAIO E J. DUARTE COIMBRA, “Os Procedimentos Administrativos de Segundo
Grau no CPA”, in C. AMADO GOMES, A.F. NEVES E TIAGO SERRÃO (coord.), Comentários ao Novo Código do
Procedimento Administrativo, 2º ed., Lisboa, AAFDL, 2015, p.1141 (em específico, nota rodapé n.º 84) argumentam
que este "erro manifesto" tem algum sustento "a partir do momento em que se confronte a versão final do CPA com o
texto do Projeto de maio de 2013. Com efeito, no texto de 2013 a solução era, a respeito da possibilidade de recurso
para o delegante, precisamente a inversa: nos termos do então artigo 197/2, "Há[veria] sempre recurso para o delegante
ou subdelegante dos atos praticados pelo delegado ou subdelegado". Efetivamente, foi esta a solução que se acolheu,
e se manteve, na versão do projeto de Decreto-Lei autorizado que orientou a Lei de Autorização que deu origem à Lei
n.º 42/2014, de 11 de Julho. Como já foi dito, constatou-se que a posição inicial não foi a que se manteve no decorrer
do processo legislativo, tendo este sido, numa fase subsequente, alterado. Os mesmos autores, J. SILVA SAMPAIO E J.
DUARTE COIMBRA, argumentam, no final da nota de rodapé, que, quer se argumente que o artigo1 foi alvo de erro ou
se acentue a sua inconstitucionalidade, "o destino do artigo 199.º n.º2 será o de não ser aplicado e/ou [de] ser, a prazo,
revogado ou, quiçá, declarado inconstitucional”.
61
Argumentando, cfr. ANDRÉ FOLQUE, Notas sobre a Revisão do Ato Administrativo, p.93, que esta restrição
torna-se inconveniente, essencialmente pela consideração do "peso da confiança pessoal" que perfaz o vínculo
delegante-delegado. Neste sentido, já o ilustre Prof. PAULO OTERO, cfr. A Competência Delegada, p.217, afirmava que
"o vínculo que surge entre o delegante e o delegado tem por base uma relação de confiança entre dois órgãos" sendo
aqui que "reside o caráter intuitu personae da delegação de poderes". Daqui se extrai que o próprio regime da
especialidade dos recursos irá reconduzir a uma enorme diminuição da confiança que reside entre delegante-delegado,
uma confiança pessoal, já que o próprio ato de delegação pressupõe que o delegado se encontra apto, aos olhos do
delegante, para exercer determinados poderes.
62
Com o mesmo entendimento, no âmbito da diminuição das possibilidades de exercício pelo delegante, cfr,
JOSÉ DUARTE COIMBRA., et al, Questões Fundamentais p.304 e ss
63
Contribuindo, como afirma ANDRÉ FOLQUE, Notas sobre a Revisão do Ato Administrativo, p.93, para
"eliminar quase por inteiro o alcance da referida restrição". Com o devido respeito, não entendemos ser o caso. Não
se eliminam por inteiro as restrições do artigo 199.º n.º2 já que este diz respeito a uma faculdade que é dada,
essencialmente, aos particulares como forma de aferir da conveniência e mérito da ação do delegado, recorrendo ao
delegante de forma a que este tome posição - sendo que, a tomada de posição do delegante será a utilização dos
mecanismos do artigo 49.º n.º2. Vistas as coisas desta forma, caso não haja Recurso, não haja ida às vias contenciosas
27
no entanto, que a ilegalidade ou inconveniência das atuações (ou omissões) do delegado são mais
fácil e imediatamente percebidas pelos particulares cujas esferas sejam diretamente afetadas por
esses atos (ou omissões)64. Ora, é a esses particulares que é agora vedada, a título de regra, a
possibilidade de fazer valer essa ilegalidade ou inconveniência perante o titular originário da
competência dispositiva65. Facilmente se depreende que, com esta drástica redução, se limita em
grande medida o espetro das possibilidades de controlo sobre o modo de exercício pelo qual o
delegado exerce as suas competências. E isto gerará consequências em todos os casos em que exista
delegação de poderes. Surge, por exemplo, onde existe fenómeno hierárquico e fenómeno
delegatório, no caso típico de exercício de competências, por um funcionário, delegadas por um
determinado superior hierárquico. Sustentando o argumento de que "a delegação congela a
hierarquia"6667, por decorrência lógica a especialidade do recurso para o delegante vem criar uma
zona insuscetível de intervenção supervisiva pelo superior hierárquico, seja quanto a atos ou
omissões integradas no âmbito da delegação que fora efetuada. Esta zona mais não é do que um
vazio, legislativamente permitido, naquilo que são os procedimentos administrativos de segundo
grau. E, na extensão do argumento do congelamento da hierárquica pela delegação, se a delegação
não puder ser exercida, por não existir lei habilitante que funde na sua especialidade o recurso
delegatório, e já que o superior-delegante perdeu todas as suas faculdades de intervenções típicas
com fonte na hierarquia, o mesmo nada poderá fazer, a não ser reclamar ou agir contenciosamente.

e caso o delegante não tenha conhecimento da ação/omissão inconveniente ou ilegal do delegado, o comportamento
do delegado permanecerá incólume. Por isso, concordamos que o interessado "poderá exercer
o seu direito de petição junto do delegante, a fim de este exercer oficiosamente os poderes de revogação que lhe
assistem", Idem, ANDRÉ FOLQUE, p.93. Não obstante, entendemos que o referido autor não mencionou que o Direito
de Petição será fortemente limitado com o surgimento da especialidade do recurso por força da norma habilitante.
Desta forma, o particular não poderá, em qualquer caso, propor recurso para o delegante dos atos/omissões praticados
pelo delegado, mas apenas nos expressamente previstos em lei especial. Assim, o interessado não poderá
"simplesmente", como nos diz ANDRÉ FOLQUE, exercer o seu Direito de petição: o interessado poderá especialmente
recorrer para o delegante dos atos praticados pelo delegado. A tónica está invertida: a simplicidade da utilização do
recurso, que cria a ideia que este poderá sempre ser acionado, é algo que se extrai do caráter geral que o mesmo
comporta, o que não sucede no atual quadro dos recursos administrativos especiais; por sua vez, a especialidade funda-
se, já não na capacidade geral para acionar o recurso, mas na sua exclusividade.
64
Cfr. J. SILVA SAMPAIO E J. DUARTE COIMBRA, “Os Procedimentos Administrativos de Segundo Grau no
CPA”, in C. AMADO GOMES, A.F. NEVES E TIAGO SERRÃO (coord.), Comentários ao Novo Código do Procedimento
Administrativo, 2º ed., Lisboa, AAFDL, 2015, p. 1139
65
Enunciando igualmente esta tese, cfr. J. SILVA SAMPAIO E J. DUARTE COIMBRA, “Os Procedimentos
Administrativos de Segundo Grau no CPA”, in C. AMADO GOMES, A.F. NEVES E TIAGO SERRÃO (coord.), Comentários
ao Novo Código do Procedimento Administrativo, 2º ed., Lisboa, AAFDL, 2015, pp. 1139 e ss; Da mesma forma, cfr,
J. DUARTE COIMBRA, et al, Questões Fundamentais, p.305 e ss
66
Cfr, PAULO OTERO A Competência Delegada, pp.246-248. Igualmente, cfr. D. FREITAS DO AMARAL,
Conceito, pp.249-253. Em termos inversos, referindo que "a delegação de poderes não destrói [em princípio] a relação
hierárquica", cfr, GONÇALVES PEREIRA, Da Delegação de Poderes no Direito Administrativo, Coimbra Editora, 1960,
p.39.
67
Mas não pressupondo a delegação hierarquia, e distinguindo-se ambas pela superioridade da delegação,
expressa no "poder de avocar, e na faculdade de emanar instruções e diretivas, bem como na livre revogabilidade da
própria delegação" e dessa superioridade " por não comportar natureza hierárquica, por não comportar nem poder de
direção, com correlativo dever de obediência, nem implicar poder disciplinar" cfr. D. FREITAS DO AMARAL, Conceito
p.125
28
III. Do ponto de vista da natureza da delegação de poderes, adotamos a posição de que a
delegação de poderes se trata de um ato constitutivo competencial de duplo efeito68, quer por ser
constitutivo e modificativo de uma situação jurídica, quer competencial porque a modificação
incide na distribuição legal de competências, e bem assim, de duplo efeito, quer na produção
interna e externa de efeitos em relação ao delegado e ao delegante. A dimensão interna da
delegação de poderes é óbvia: uma vez que o destinatário do ato é um órgão ou um agente da
administração numa perspetiva da máquina administrativa e não na perspetiva/qualidade de
cidadão, o ato de delegação tem, por isso, um alcance interno69. Tendo alcance interno, cria-se,
excluindo os casos de delegação intersubjetiva, uma relação jurídica intraorgânica que,
independentemente de uma relação hierárquica extra, se reconduz a um comando impositivo para
que o delegado exerça as competências delegadas. Exercendo a competência delegada, reconduz-
se a delegação ao seu propósito: à observância de certas diretivas e instruções pelo delegado, de
forma a que este consiga prosseguir as competências atribuídas. Ao fazê-lo, o delegado passa a
inserir-se na esfera interna da própria delegação e, assim bem, fazendo parte da unidade da ação
administrativa - artigo 267.º n.º2 da CRP.
Contudo, é inegável que a delegação produza igualmente efeitos externos, isto é, efeitos
que extravasam o campo interno da relação delegado-delegante e se reconduzem a pessoas que não
são consideradas titulares de órgãos ou agentes da administração. Como aponta ANDRÉ SALGADO
DE MATOS70, tendo por base o Artigo 37.º n.º1 CPA, a competência fixa-se no momento em que se
inicia o procedimento e tendo a delegação operado uma modificação subjetiva de competências, é
ao órgão delegado e não ao delegante que os particulares passarão a se dirigir no âmbito das suas
pretensões relativas ao exercício da competência delegada – artigo 102.º n.º1 al a71). Ora, a nosso
ver, o quadro da especialidade dos recursos delegatórios esbarra, aqui também, com a própria
produção externa de efeitos da delegação de poderes. Ao produzir efeitos externos, o fenómeno
delegatório assume uma postura de exteriorização. A partir do momento em que o fenómeno passa
a ser exteriorizável, torna-se imperativo ressalvar a posição daqueles que são alvo dessa produção
de efeitos. E veja-se que, ao admitirmos a produção de efeitos externos da delegação de poderes72,
estamos a admitir que, no universo das situações jurídicas que ficam abrangidas pelos efeitos em

68
cfr. ANDRÉ SALGADO DE MATOS. A Natureza Jurídica da Delegação de Poderes, p.147
69
Com a enunciação, cfr. ANDRÉ SALGADO DE MATOS. A Natureza Jurídica da Delegação de Poderes, p.148,
nota de rodapé n,º 107.
70
Cfr. A. SALGADO DE MATOS, A Natureza Jurídica da Delegação de Poderes p.149
71
E igualmente é contra o delegado e não contra o delegante que deverá ser proposta a ação administrativa
especial com pedido de condenação à prática de ato legalmente devido – artigo 67.º n.º2 do CPTA, a fortiori
72
Como sendo indicativo o Artigo 47.º n.º2, sob pena de ineficácia, Artigo 158.º
29
causa, não será passível a determinação dos destinatários alvo no contexto em que o ato delegatório
é praticado. Desta forma, a modificação de uma competência, sendo ela atribuída por lei e em
termos gerais, redunda, não num caráter individual e concreto dos próprios destinatários que com
ela entrarão em contacto, como sucede no plano interno de delegação, mas na sua
indeterminabilidade – razão pela qual se associa o plano externo da delegação à natureza de
regulamento administrativo73, por oposição ao plano interno, associada à de ato adminstrativo74.
Desta forma, é indubitável que os particulares que, pela própria natureza da delegação, entrem em
contacto com as atuações/omissões do delegado, tenham de ser protegidos. E essa proteção passa
pela possibilidade dos mesmos poderem reivindicar para o delegante das ações/omissões levadas
a cabo pelo delegado. Criando o mecanismo da especialidade tudo se entorse: i) a natureza da
delegação de poderes, no seu elemento interno e externo, que na sua própria construção tem ínsita
as formas de proteção, pela sua produção de efeitos externos, dos particulares ii) bem como se
entorse os meios adequados à reivindicação dessas posições (ativas), pelos particulares.

IV. Paralelo a este problema surge, no quadro da insusceptibilidade da intervenção


supervisiva do superior hierárquico, o entendimento de que a imunidade no controlo das atuações
do subalterno apenas se reflete nos controlos provocados (que se dão através de recurso) e não nos
espontâneos (por iniciativa oficiosa, quer do delegante, quer do superior- delegante)75, o que torna
de difícil admissibilidade o argumento de que a possibilidade de interposição de recurso
delegatório "continua a ter uma base no próprio n. º2 do artigo 49.º do CPA, disposição que, no
confronto com este n.º2 do artigo 199.º parece apenas ter por objeto as intervenções espontâneas
do delegante e não as provocadas"76. Este tipo de dificuldades de redução das possibilidades de
convocação provocada do delegante aos casos expressamente previstos é da maior relevância, pois
perante recursos fundados na inconveniência ou inoportunidade da atuação do delegado, este será
o único modo pelo qual os particulares poderão reagir – pois, veja-se, que por via do n.º3 do artigo
3.º do CPTA, os tribunais não poderão apreciar o mérito da decisão. Contudo, se a atuação do
delegado gerar uma ilegalidade, esta poderá sempre ser controlada pelos Tribunais77. A

73
O que implica, aliás, imensos efeitos práticos. Cfr. E. FIGUEIRA JÚNIOR, O contencioso Administrativo,
Coimbra, Coletânea de Jurisprudência, 1985, p. 51; PAULO OTERO, A competência delegada, p. 172, REBELO DE SOUSA
E SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, III, p.267-269
74
No seguimento, do qual partilhamos o entendimento, A. SALGADO DE MATOS, A Natureza Jurídica da
Delegação de Poderes, p.151.
75
Entendimento nosso, apoiado pela tese defendida por J. SILVA SAMPAIO E J. DUARTE COIMBRA, “Os
Procedimentos Administrativos de Segundo Grau no CPA”, in C. AMADO GOMES, A.F. NEVES E TIAGO SERRÃO
(coord.), Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo, 2º ed., Lisboa, AAFDL, 2015, pp. 1139 e ss.
76
Cfr. J. SILVA SAMPAIO E J. DUATE COIMBRA, “Os Procedimentos Administrativos de Segundo Grau no
CPA”, in C. AMADO GOMES, A.F. NEVES E TIAGO SERRÃO (coord.), Comentários ao Novo Código do Procedimento
Administrativo, 2º ed., Lisboa, AAFDL, 2015, pp. 1139 e ss
77
Os recursos delegatórios serão sempre a contestação de uma tripla vertente (de legalidade) dos atos do
30
problemática gira, assim, não apenas em torno da ilegalidade dos atos/omissões praticados pelo
delegado, que configura sempre uma forma manifesta de recorrer à justiça, através de recurso aos
Tribunais Administrativos, mas igualmente do mérito da decisão - o que torna a especialidade do
recurso algo que limitará tanto a responsabilização como o controlo das atuações do delegado,
78
resultando numa "ausência da possibilidade genérica de intervenção do delegante" . Contra-
argumento em abono da especialidade, quanto à questão das vias contenciosas, será o de afirmar
que, com o desaparecimento da especialidade, cairia uma torrente de recursos administrativos sobre
os Tribunais. Acredito que uma questão que confronte a Celeridade administrativa com um direito
constitucionalmente garantido - Artigo 52.º n.º1 da CRP - não seja de todo algo
desmesuradamente complexo, inclusivamente à luz do vulgo, de percecionar. Referir que as coisas
se processem nesses moldes, partindo da ideia que assim os Tribunais iriam receber recursos em
demasia, será o mesmo que admitir que a forma deverá prevalecer sobre a matéria, ou melhor, que
a diminuição do tempo/trabalho dos magistrados deverá prevalecer sobre o princípio da tutela
jurisdicional efetiva - Artigo 268.º n.º4 da CRP - e bem assim, do direito à resolução material do
caso. Mas, mesmo admitindo o argumento da celeridade, a tónica inverte-se de novo: atualmente
um mero problema que possa surgir na produção de efeitos externos da delegação, e que assim lese
a posição de um particular, admitindo que não existe lei de habilitação para pode existir recurso, o
problema terá sempre que ser sindicável pelo particular nas vias jurisdicionais, quando
provavelmente seria uma questão que com muito maior celeridade o delegante poderia resolver.
Vistas assim as coisas, a especialidade não triunfaria sequer pelo argumento da celeridade
administrativa.

V. Um dos impactos em que o referido se irá repercutir será numa situação já consolidada
no nosso ordenamento: a de que os Secretários de Estado não detêm competências próprias quando
exercem as suas funções, mas apenas competências delegadas, em regra correspondentes ao
respetivo Ministério. Ao eliminar o caráter genérico do recurso delegatório, amputar-se-iam as
possibilidades de reação administrativa, provocada, como se viu, contra quer as atuações quer as
omissões dos Secretários de Estado79. Permanece, contudo, uma incógnita na procura por uma
“mais-valia” que cada Ministro, no seu respetivo Ministério, teria em eliminar a possibilidade dos
atos dos seus Secretários de Estados serem alvo de recurso para o respetivo Ministério. Apesar da

delegado: conformidade com i) a lei de habilitação; ii) o ato de delegação; iii) com o ordenamento jurídico no seu todo.
Cfr. PAULO OTERO, A Competência Delegada, p.303
78
Cfr. JOSÉ DUARTE COIMBRA, et al, Questões Fundamentais, pp. 306
79
O que para muitos faz surgir uma ideia presente no antigo CPA de 1991, segundo o qual “o recurso
[hierárquico impróprio] do ato do Secretário do Estado para o Ministro competente constituiu uma figura excecional
que só existe quando a lei expressamente o previr” Acórdão de 14 de maio de 1991, Proc. n.º 025990.
31
persistência, não encontrámos uma resposta que nos parecesse percecionar as razões que pudessem
estar por detrás desta aparente desvantagem.
Existe, inclusivamente, legislação que consagra regras diferentes no âmbito dos recursos
delegatórios e que se aproximam deste entendimento. O n.º2 do artigo 34.º do Regime Jurídico das
Autarquias, em vez de consagrar que o órgão competente para o conhecimento dos recursos das
decisões dos vereadores é a câmara municipal (o delegante), consagra que é o presidente da câmara
(subdelegante)80. Estranhamente, porém, o Regime parece não prever a possibilidade de recurso
de atos praticados pelos vereadores ao abrigo de delegação de competências próprias do presidente
(n.º 2 do artigo 36.º) ‑ embora o n.º 2 do artigo 34.º apele a decisões dos vereadores e, de forma
relativamente indistinta, “tomadas no exercício de competências delegadas ou subdelegadas”, seria
estranho que através dessa norma se atribuísse competência supervisivas a um órgão (a câmara
municipal) não detentor da competência originária (que é, nessas hipóteses, do presidente). Existe
claramente aqui um desequilíbrio do regime, semelhante ao que sucede no relacionamento entre
os Secretários de Estado e o respetivo ministério. Como se pode ver, há previsão do recurso dos
atos praticados em delegação do presidente para a câmara, de atos praticados em subdelegação dos
vereadores para a câmara e de atos praticados em delegação ou subdelegação pelos dirigentes para
o presidente ou para a câmara, mas estranhamente não há previsão de recurso de atos praticados
em delegação dos vereadores para o presidente. Eliminando-se o caráter geral do recurso
delegatório do CPA, estes processos anómalos de relacionamento entre delegante-delegado passam
a incorporar-se na ordem jurídica - o que vem, claramente, adensar a inconsistência da alteração.

VI. Ao explorar os meandros desta alteração, surgiu-nos uma questão que, efetivamente, é
central neste tema. Partindo do já referido Artigo 49.º n,º2 e da possibilidade de intervenção
espontânea do delegante, pergunta-se que articulação poderá existir entre a intervenção provocada
e a espontânea. Desvendando-se ambos os chavões, percebe-se que ambas mais não passam do
que caras da mesma moeda. Explicando: o delegante só poderá acionar os mecanismos do Artigo
49.º n.º2, em certas situações, quando obtiver conhecimento direto, por via dos particulares, das
atuações ou omissões do delegado - sob prejuízo das possibilidades de intervenção espontânea não
alcançarem o seu potencial máximo. Desta forma, impende uma quase intenção de classificar o
delegante como um sujeito omnisciente e omnipotente. A alteração levada a cabo pelo CPA
introduz-nos exatamente a ideia nesses moldes: que o delegante sabe sempre e deverá saber sempre

80
O próprio Artigo admite, no seu n.º3 do artigo 4.º, a possibilidade dos recursos se fundarem quer na
ilegalidade, quer no mérito, fixando um prazo de 30 dias para a sua decisão. Ou, ainda, o n.º5 do artigo 38.º, onde
prevê a possibilidade de interposição de recurso, para o presidente ou para o vereador, de atos praticados por dirigentes
autárquicos.

32
das situações ilegais ou inconvenientes levadas a cabo pelo delegado e de que em momento algum,
a não ser quando assim se disponha, os particulares poderão, provocadamente, levar a situação ao
conhecimento do delegante.

i. A conversão das problemáticas teórico-práticas da solução do CPA, em


sede de Recurso Delegatório, em razões de Constitucionalidade

I. Tendo em conta os argumentos expostos no decorrer do excurso, entendemos que, por três
razões, a norma do n.º2 do artigo 199.º e a norma do n.º1 alínea a) do artigo 199.º, no que se refere
aos recursos intraadministrativo, são inconstitucionais81 . Em primeiro, por ser contrária ao
princípio da unidade da ação da Administração (n.º2 do artigo 267 da CRP). Em segundo lugar,
pelo facto de com a especialidade os particulares não poderem exercer o seu direito constitucional
petitório (artigo 52.º da CRP). E, por terceiro e último, pelo desvirtuamento do fenómeno
democrático, especialmente da sua componente de responsabilidade.
1. Quanto ao primeiro fundamento há que referir que, apesar de se partir do n.º2 do artigo
267.º para referir a permissão ao Governo do exercício das competências intra e
interadministrativas de hierarquia, de superintendência e de tutela82, não se pode deixar de atender
a uma dimensão global da garantia de controlo da atividade, num panorama entre todos os órgãos
da Administração Pública. Como foi explanado, a especialidade não elimina os recursos
delegatórios, nem a intervenção supervisiva do delegante: apenas a limita. Esta limitação atinge,
em bom rigor, todo o complexo delegatório. Ora, esta limitação mais não é do que um desvio à
regra da unidade da ação da Administração, já que a delegação de poderes está integrada na
problemática da (des)concentração dos sistemas de organização administrativa. Este sistema tem
como pano de fundo a organização vertical dos serviços públicos, na ausência ou existência de
distribuição vertical de competência entre os diversos escalões, geralmente sob a forma de
hierarquia e com a correspondente sujeição à direção e à supervisão do delegado (caso de
desconcentração originária), ou diante de um fenómeno delegatório (desconcentração derivada).
Colocando a hipótese de acrescer ao fenómeno hierárquico o fenómeno delegatório, o problema
da presente especialidade abrangerá, em toda a sua extensão, o desvirtuar do sistema
administrativo desconcentrado - e, bem assim, todo o complexo presente no Artigo 267 n.º2 da

81
Para o reparo que, o que se pretende é tomar como inconstitucional todo o complexo que disponha da
especialidade no recurso delegatório, quer este seja intra ou interadministrativo. Como já se referiu, dispondo o
recurso supervisivo para os casos intraadministrativos, o mesmo deverá, igualmente, ser decretado inconstitucional.
82
Por todos, sobre os fundamentos e corolários do princípio da unidade de ação da Administração, Cfr. PAULO
OTERO, O Poder de Substituição, Vol. II, pp. 742 e ss

33
CRP.

2. É justamente sobre a perspetiva dos particulares que a especialidade surge como


limitativa. Surge, desde logo, pelo facto do meio pelo qual os particulares se dirigem ao delegante
ser permeado por um pedido que tem sobre si uma manifestação tendo em conta uma certa conduta
- quer de facto negativo ou positivo, respetivamente se for uma omissão ou ação - praticada pelo
delegado e que, pelo seu caráter lesivo, é alvo de contestação de legalidade ou de mérito, perante
o delegante. Apesar de a diferença ser clara, - sendo que aqui não se trata de qualquer confusão
dogmática entre Direito Petitório e Direito Impugnatório - o Direito Impugnatório, por via dos
Recursos, mais não é do que um desdobramento do Direito de Petição, Artigo 51 n.º2 da CRP83.
Procurando uma vertente de direito prestacional, o direito de petição corresponde a um status
civitatis, porquanto confere ao peticionário o direito de reclamar de um determinado órgão, neste
caso do delegado, exigindo uma certa diligência específica – reportando-se a questões de mérito
ou de legalidade, ou ambos – e uma dada tomada de posse, neste caso pelo delegante. É, assim,
uma forma de “tutela de direitos […] junto dos órgãos administrativos e políticos”84. Como forma
de tutela de direitos, o mesmo detém aplicabilidade direta em toda a sua extensão, especialmente
no que se refere a normas legislativas que disponham contrariamente85.
Admitindo a diferença clara entre ambas as garantias, não será desprezível considerar que
os particulares ao solicitarem uma dada conduta ao delegante, quer seja para este anular, substituir,
modificar ou revogar um dado ato administrativo, mais não fazem do que exercer um direito: o seu
Direito de Petição lato sensu. Apesar da diferença entre pedido e impugnação do ato já praticado
serem conceitos substancialmente diferentes, a cisão que é feita entre ambos não me parece ser, de
todo o modo, a mais correta. Até porque, tomando por base o binómio petição-impugnação, ambos
mais não são do que conceitos que se encontram em paralela ligação, por ambos fazerem parte das
Garantias Administrativas - e por, enfim, não se poder solicitar86 uma determinada conduta sem
essa manifestação ser permeada por um pedido. Por alguma razão, encontra-se o apogeu das

83
Efetivamente, do ponto de vista material a pretensão do particular é distinta: ao exercer o seu direito de
petição, incluindo-o em sentido estrito, e para além disso, o direito de representação, o direito de queixa, o direito de
oposição administrativa ou o direito de denúncia, o particular tem por base um pedido, em vez de uma impugnação, já
que na primeira hipótese ainda não haverá um ato administrativo a impugnar. Contudo, como nos diz o ilustre
professor, o CPA reconhece, quanto às garantias impugnatórias, expressamente o direito dos particulares solicitarem
a revogação, a anulação, a substituição ou a modificação dos atos ilegais ou inconvenientemente praticados, mediante
a utilização dos meios administrativos de natureza impugnatória - arts.184.º n.º1 e 185.º n.º3), cfr. D. FREITAS DO
AMARAL, Curso Vol II, p.618.
84
Cfr. JORGE MIRANDA, “Petição (direito de)“, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, Lisboa,
1994,, Vol. VI, p.374
85
Cfr. PAULO OTERO Legalidade e Administração. O sentido da vinculação administrativa à juridicidade,
Coimbra, Almedina, 2003, p.739
86
E frise-se, solicitar, já que a expressão vem do latim e significa tanto petere (pedir), como petitio (pedido).
MARIA LUÍSA DUARTE, O Direito de Petição, Cidadania, Participação e Decisão, Almedina, 2008, p. 17.
34
Garantias Administrativas nos procedimentos administrativos de segundo grau. E estes
Procedimentos Administrativos mais não consubstanciam do que a concretização do direito
fundamental de Petição. Não fará, por isso, qualquer sentido limitar um direito fundamental dotado
de aplicabilidade direta, tanto mais que o recurso delegatório tem como objetivo exclusivo a defesa
não só da juridicidade, mas da confiança atribuída no vínculo delegatório - e, bem assim, como
objetivo do respeito pela natureza da delegação de poderes.

3. Como terceiro e último fundamento para a inconstitucionalidade urge sublinhar o


fundamento democrático em que assenta a relação de delegação. Partindo do pressuposto que a
delegação de poderes se consubstancia num vínculo tipicamente praticado entre órgãos
democraticamente mais legitimados e órgãos democraticamente menos legitimados, é rapidamente
percetível que o fundamento democrático tradicionalmente entendido nesses moldes fique
drasticamente reduzido. A limitação não cai apenas no que se entende ser a relação de delegação,
mas igualmente nos mecanismos que asseguram esse controlo e essa responsabilidade. Permitir a
excecionalidade será pôr em causa o controlo dessa responsabilidade democrática a que o vínculo
entre delegante e delegado está sujeito. Ao se limitar a intervenção do delegante está a determina-
se um claro esvaziamento87, uma clara área de imunidade onde a reação administrativa irá ser
vedada. Em último grau, esta ideia de responsabilização culmina num imperativo constitucional
que se funda no princípio democrático. Este princípio de responsabilidade democrática parte da
própria delegação de poderes: sendo delegado um determinado poder, com ele acresce o modo pelo
qual esse poder será exercido e o escrutínio que o mesmo merece.

II. Anunciando a sua própria morte (Supra, I, I) só faltou mesmo percorrer o caminho até
lá chegar, por meio dos vários testemunhos e pistas que fomos encontrando pelo caminho - à moda
de SANTIAGO NASAR.

87
Com a mesma posição, à qual aderimos, J. SILVA SAMPAIO E J. DUARTE COIMBRA, “Os Procedimentos
Administrativos de Segundo Grau no CPA”, in C. AMADO GOMES, A.F. NEVES E T. SERRÃO (coord.), Comentários
ao Novo Código do Procedimento Administrativo, 2º ed., Lisboa, AAFDL, 2015, pp. 1139 e ss, indiciando, pelo menos,
alguns argumentos de inconstitucionalidade.

35
2. Em Busca de uma Analogia para o Recurso Tutelar
I. O ilustre professor PAULO OTERO teceu algumas linhas críticas quanto à possibilidade de
inconstitucionalidade da especialidade do Recurso Tutelar88. Pelo que ficou dito (Supra,º III, II e
IV, 1, III), a diferença entre delegação e tutela é diametralmente oposta. Declarando que o recurso
hierárquico existe no silêncio da lei89, é unânime que a tutela não se poderá presumir - sendo aliás
tradição administrativa nesse sentido, desde o CPA de 1991, que a relação tutelar compreende
sempre o respeito pelo princípio da tipicidade legal. Este respeito pela tipicidade legal, plasmado
no Artigo.º 177.º n.º2 do CPA de 1991, deve ser interpretado sistematicamente com a Constituição,
bem como tendo em conta as diferenças entre o fenómeno tutelar, o fenómeno hierárquico e o
fenómeno delegatório. Isto significa que, quer o princípio da desconcentração e da
descentralização, bem como a ideia de precedência de lei, deverão servir como elementos a ter em
conta na interpretação do Artigo 52.º n.º1 da CRP90.
Os fundamentos do autor para decretar como inconstitucional a especialidade do recurso
tutelar prendiam-se com os seguintes pontos: i) pela norma do Artigo 52.º n.º1 da CRP, ao
reconhecer um direito fundamental dotado de aplicabilidade direta, não deva ser limitado por um
mero princípio da organização administrativa; ii) pela ideia de que o direito de recurso tutelar vale
“contra a lei, e em vez da lei”, e que, por isso, dotado de aplicabilidade direta, o Artigo 52.º n.º1
deveria prevalecer; iii) pela argumento que, sendo o Governo o último guardião da Constituição e
da juridicidade, conferindo-lhe o artigo 202.º alínea f) competência expressa para “defender a
legalidade democrática”, a atribuição da tutela revogatória visa não só a defesa da juridicidade
como constitui um corolário da ideia da unidade no pluralismo91 ; iv) o princípio da norma
constitucional prevalece sobre a infraconstitucional, deverá aqui ser aplicado e servir de
justificação; v) e, bem assim, por último, que quanto menor forem os meios de intervenção
intraadministrativa do Governo, menor será o grau de responsabilidade política governamental
perante o Parlamento, culminando tudo isto num prejuízo para os particulares , já que o órgão

88
cfr. PAULO OTERO O Poder de Substituição, p.814 e ss; sem aprofundar, contudo, a Inconstitucionalidade
do Recurso delegatório, pelo facto de durante o CPA de 1991 a questão não se colocar por, como bem sabemos, o
recurso ser acionável sem lei especial concordante
89
Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 101/88, de 9 de Fevereiro de 1989, BMJ, n.º 384, 1989,
pp.148-149
90
Com o mesmo entendimento, apoiando que esta foi a opção do CPA de 1991 - e, acrescentando nós, a
opção do CPA de 2015, cfr. PAULO OTERO, O Poder de Substituição, p. 815
91
Já aqui em GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ºed.,
Coimbra Editora, 1993, p. 896 e ss. Apesar de ser um vetor essencial para explicar e caraterizar a tutela administrativa,
é preciso não esquecer que a seu lado se encontra a eficácia da ação administrativa - Artigo 267º n.º2. A nosso ver, o
ilustre professor PAULO OTERO esquece-se de mencionar que, na unidade e na eficácia, filia-se o princípio da
continuidade interadministrativa. Continuidade como omnipresença do essencial e como supremacia do interesse
regional, nacional e municipal nos atos do ente tutelado. Por esta, e com este argumento, em acréscimo, a especialidade
poderia continuar a ser discutida.
36
tutelado/tutelar é dotado de legitimidade política reforçada92.

II. O primor técnico com que o prof. PAULO OTERO elabora esta questão é realmente de
frisar. Contudo, apesar do respeito e admiração pelo ilustre professor, existem alguns pontos em
que discordamos, quer da abordagem exposta pelo professor quer pela tentativa de,
interpretativamente, justificar a inconstitucionalidade da exigência de lei de habilitação para se
operar o recurso tutelar93. Para além do que já fora frisado nas relações delegação-tutela, ao se
reconhecer um caráter geral ao recurso tutelar bastante dificuldade existirá em extraí-lo
interpretativamente, quer do fenómeno tutelar, quer da Constituição.
Quanto ao fenómeno tutelar, não existe qualquer competência revogatória ex officio detida
pela entidade tutelar, como sucede na relação hierárquica ou na relação delegatória - sem prejuízo
da tutela dispor nesse sentido. O vínculo tutelar passa, por isso, a ser um vínculo inteiramente
submetido à vontade das partes na forma como o constroem, como dispõe do seu conteúdo.
Efetivamente, só se poderá exercer, sem previsão legal nesse sentido, um recurso
administrativo, quando cabe ao órgão delegante/superior a possibilidade de o mesmo intervir
espontaneamente através dos seus largos poderes supervisivos. Um fenómeno tutelar em sede
geral, presumindo por isso a tutela revogatória, teria, por exemplo, bastantes problemas quanto aos
atos das autarquias locais, já que o Governo, que exerce poderes tutelar sobre a generalidade dos
entes da Administração Autónoma, iria poder sempre revogar as ações tomadas a cabo pela
autarquia94. Não será possível, por isso, permitir a não especialidade se o ente não tiver, no nível
espontâneo, competências dispositivas primárias e/ou secundárias.
Quanto ao fenómeno constitucional, o entendimento das coisas nos moldes anteriores tenta
permitir, em matéria dos poderes de revogação da entidade tutelar, a extração de uma competência
revogatória diretamente fundada na Constituição, onde o seu exercício estará condicionado à
efetiva interposição de um determinado recurso tutelar. Não achamos este entendimento o mais
correto. Em primeiro lugar, porque tem escasso apoio na lei e vai diametralmente contra uma ideia
já bem consagrada no nosso ordenamento95. Em segundo lugar, porque a entender-se assim as

92
No discorrer dos argumentos, PAULO OTERO, O Poder de Substituição, p.816
93
Sendo que o professor tenta justificar que entre Tutela e Hierarquia não existe realmente grandes diferenças
materiais. Vamos com a posição de cfr. ANDRÉ FOLQUE, A Tutela Administrativa, p.294 e 295. Não diferenciar a tutela
da hierarquia, ou querer encontrar semelhanças, é o mesmo que “criar incompatibilidades com o quadro jurídico-
constitucional vigente”.
94
Com posição idêntica, PAULO OTERO, O Poder de Substituição em Direito Administrativo, II, pp. 815-817;
identicamente, salvaguardando, porém, a hipótese do recurso tutelar de atos das autarquias locais, no qual o interesse
da autonomia local parece servir de justificação à restrição nas possibilidades das suas interposições e, por isso, à
restrição do direito fundamental de petição, cfr. ANDRÉ FOLQUE, A Tutela Administrativa, pp. 375-378
95
Parecer da Procuradoria-Geral da República nº 90/85 de 2 de Janeiro de 1989 “na falta de especificação da
disposição legal em sentido diverso, o recurso tutelar permitirá à entidade ad quem tão-só [unicamente,
exclusivamente] a mera revisão do ato recorrido, a eliminação ou a manutenção deste, em lugar do seu reexame, de
37
coisas, a tutela iria exigir sempre a intervenção do legislador ordinário.
III. Desta forma concluímos: nenhuma inconstitucionalidade existe em manter a
especialidade nos recursos tutelares.

uma nova apreciação e decisão da questão subjacente”.


38
V. A Solução que (não) se poderá preconizar para o recurso
delegatório: elementos para uma interpretação conforme

I. O processo de interpretação conforme com a constituição, mais do que um princípio


geral conexo com a fiscalização da constitucionalidade, constitui um princípio regra de aplicação
da lei na sua generalidade96. Este processo não é mais do que escolher uma de várias
interpretações que melhor corresponde às decisões do legislador constitucional - referindo-se,
por isso, a um tipo de argumento sistemático de conformação entre todo o sistema jurídico,
infraconstitucional e supralegal. Este processo faz-se, essencialmente, por apelo a uma presunção
iuris tantum da constitucionalidade das leis e através do princípio da conversação dos atos
jurídicos97. Este princípio presuntivo materializa- se na ideia de que se deverá presumir que o
legislador, quando se debruçou sobre a elaboração do texto, realizou a sua vontade mas fê-lo em
conformidade com a Constituição. Contudo, a interpretação conforme com a constituição tem
uma finalidade não meramente interpretativa, mas resolutiva: de alterar os dados constitucionais
sobre a matéria, expurgando certas partes da disposição legal, porque inconstitucionais, ou
interpretando de forma mais restrita ou lata certas disposições98. Esta finalidade terá que partir
de uma busca por uma coordenação unitária entre toda a ordem jurídica em geral, já que a tradicional
dicotomia constitucionalidade/ilegalidade se encontra superada99
Tendo em conta a metodologia exposta, o surgimento da tentativa de interpretar
conformemente a disposição legal dos Artigos 199.º n.º1 e n.º2 prende-se com todo o raciocínio
exposto até agora: a referência a relações intraadministrativas do fenómeno delegatório têm a
sua base no n.º1 do Artigo 199, enquanto as relações interadministrativas se reconduzem à
disposição do n.º2. Lendo as coisas nestes moldes, interpretar conforme com a Constituição não
será fazer uma de duas coisas.
i) Não será depreender que ao interpreter a expressão “nos casos expressamente
previstos na lei - n.º1 do Artigo 199.º - de forma a reconduzir a uma menor exigência de reserva
de lei, nos casos dedelegações intraadministrativas, se resolve algum tipo de problema.
ii) Interpretar que, para além da recondução a este tipo de casos, se poderia prever que

96
Por todos, cfr. RUI MEDEIROS, A Decisão de Inconstitucionalidade. Os Autores, o Conteúdo e os Efeitos
da Decisão de Inconstitucionalidade da Lei, Universidade Católica Editora, 1999, p.290
97
Idem, pp. 291 e ss
98
Cfr. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo II, Constituição e Inconstitucionalidade,
3ºed., Coimbra Editora, 1991, pp.264 e 265
99
Já que os princípios da constitucionalidade e da ilegalidade são elementos integrantes da juridicidade,
fazendo a Constituição parte da legalidade. Na transcrição de PAULO OTERO, O Poder de Substituição, p. 568; RUI
MEDEIROS, A decisão de Inconstitucionalidade, p.297

39
a legitimidade para operar o recurso delegatório pudesse estar presente na lei que habilitasse a
delegação de poderes, de forma a introduzir em uma única previsão, quer a legitimidade da
delegação, quer a possibilidade do recurso, não irá igualmente resolver nenhum problema.

II. A Inconstitucionalidade de especializar os recursos delegatórios é, em toda a sua


medida e extensão, impossível de minimizar. A resolução da questão terá que passar, não por
um mero remendo “interpretativo100 ou por uma tentativa de contornar o problema, mas por uma
real abordagem jurídico-constitucional que expurgue a enorme metástase que caiu sobre a
delegação de poderes.

100
Apesar de se já ter referido que se deverá interpretar extensivamente as expressões. Efetivamente, deverá
sê-lo feito, não para salvar a inconstitucionalidade, mas para procurar o pensamento legislativo levado a cabo pelo
legislador, de forma a tornar compreensível o relacionamento entre os vários tipos de recursos que o mesmo pretendeu
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