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OLIVEIRA, Joevan. Autobiokhraphia: uma proposta de autoperformação enquanto procedimento de subjetivação do ator.

Graduação
em Teatro – Licenciatura da Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa – PB, 2018.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA


CENTRO DE COMUNICAÇÃO, TURISMO E ARTES
DEPARTAENTO DE ARTES CENICAS
TEATRO – LICENCIATURA

Joevan Silva de Oliveira Júnior

AUTOBIOKHRAPHIA
Uma proposta de autoperformação enquanto procedimento de subjetivação do ator

Relatório final apresentado como pré-requisito


do componente disciplinar Experimentos
Cênicos, ministrado pela prof. Drª Marcia
Chiamulera no período 2018.1.

João Pessoa
2018
OLIVEIRA, Joevan. Autobiokhraphia: uma proposta de autoperformação enquanto procedimento de subjetivação do ator. Graduação
em Teatro – Licenciatura da Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa – PB, 2018.
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RESUMO

O presente relatório trata do experimento, “Autobiokhraphia, uma proposta de


autoperformação enquanto procedimento de subjetivação do ator”, realizado na disciplina
Experimentos Cênicos, componente curricular obrigatório do curso de Licenciatura em
Teatro, ofertado no período 2018.1 e ministrado pela professora Drª. Marcia Chiamulera.
Nosso objetivo inicial foi problematizar os processos de subjetivação do ator/performer
por meio da construção de uma narrativa vivencial, ou escrita de si, como coloca o filósofo
francês Michel Foucault(2004). Como estratégia, procuramos deslocar as noções de
identidade e representação do campo da ambivalência opositiva persona/personagem,
real/ficção para o território da indecidibilidade, das liminaridades, partindo da seguinte
questão: Como pensar o processo de subjetivação do ator/performer no contexto em que a
cena contemporânea se localiza em territórios liminares onde performance, teatralidade,
imprevisível, rituais irreprodutíveis, extra cotidianos, efêmeros se atravessam transbordando
as taxonomias tradicionais responsáveis por enquadrá-la em campos culturais nitidamente
definidos?
Como resposta inicial, lançamos a hipótese de que o processo de subjetivação do
ator/performer se da por meio de procedimentos de autoperformação que consideramos como
um jogo de criação e recriação de identidades para além das dicotomias ator x performer,
máscara ritual x máscara cotidiana, persona x personagem, real x ficcional, público x privado.
Ao se autoperformar, o sujeito da cena assume um processo contínuo de identificações
temporárias com uma série de ficções que ele cria para si e vão se acumulando e sobrepondo,
até perder o caráter de referência estável, de verdade passível de verificação, de original.
OLIVEIRA, Joevan. Autobiokhraphia: uma proposta de autoperformação enquanto procedimento de subjetivação do ator. Graduação
em Teatro – Licenciatura da Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa – PB, 2018.
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CONTEXTO

Autobiokhraphia tem início com o artista/pesquisador entrando em cena, vestido com


jaleco branco, luvas e óculos transparentes. Ele se aproxima do Ipanda1 localizado no fundo
do palco, acopla um celular que tira do bolso e, ao som de uma música incidental, procura
criar referências estáveis que possibilitem localizar o evento que, ali, tem início.

“No princípio fez-se o verbo... Universo... Via Láctea... Sistema Solar. Terra... Latino
América... Brasil. Paraíba... João Pessoa... UFPB... Quatro paredes... Público...
Apresentação”

Na primeira cena do trabalho, que também funciona como uma introdução para o que
será proposto, procurei jogar com a ideia de experiência e experimento, termos debatidos
durante as aulas e que me pareceu interessante explorar, principalmente, no que consiste em
pensar a relação entre esses dois termos no campo da arte.

Se o experimento é genérico, a experiência é singular. Se a lógica do


experimento produz acordo, consenso ou homogeneidade entre os
sujeitos, a lógica da experiência produz diferença, heterogeneidade e
pluralidade [...]. Se o experimento é repetível, a experiência é
irrepetível, sempre há algo como a primeira vez. Se o experimento é
preditível e previsível, a experiência tem sempre uma dimensão de
incerteza que não pode ser reduzida. (BONDÍA, 2002, p. 28)

A partir dessa oposição proposta pelo ensaísta espanhol Jorge Larrosa Bondía (2002)
proponho para o público participar de um experimento científico e, como tal, carregado de
toda a seriedade que seus procedimentos metodológicos pressupõe, ao mesmo tempo em que
tento problematizar esse conceito, no campo da arte, dando a metodologia empregada um tom
ridículo e desnecessário.

“Bom (dia/ tarde/ noite). Estamos aqui, hoje, para que eu possa apresentar o
experimento cênico – CIENTÍFICO, como podem ver pela minha roupa, no qual
venho trabalhando e que dei o nome de AUTOBIOKHRAPHIA.

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Caixa de som no formato da cabeça de um urso panda.
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“Antes de continuarmos eu preciso verificar se todos estão aptos à acompanhar


o experimento. Para isso realizarei um pequeno teste. Não se preocupem é rápido e
indolor.
Ação: mostra o dedo o dedo indicador à plateia, como se fosse fazer um exame de
próstata, e a faz seguir com os olhos para diferentes localizações no espaço em
diferentes velocidades.
Parabéns! Todos passaram, portanto, podemos prosseguir.”

A ideia é pensar como um experimento, no campo da arte, ganha outra lógica, diferente
colocada pelo estudioso espanhol acima citado, porque pode ser entendido como um espaço
de experiência, ainda no sentido dado por Bondía (2002), uma vez que funciona como uma
atividade permanentemente provisória, lacunar, ensaística. Ensaio que assume o caráter de
preparação, repetição, termos característicos do fazer teatral, mas, também, o sentido literário
que se caracteriza pela liberdade formal, abertura, hibridez, fragmentação.
Enquanto modalidade da escrita, o ensaio, por suas características, possibilita a mescla
entre a ciência, a estética e a ética, sem o desejo de totalizações ou o estabelecimento de
certezas pré-concebidas, o que a possibilita um grau de liberdade que pode funcionar como
dispositivo contra a repressão do pensamento.

“Para que vocês entendam melhor a natureza do trabalho começarei, pelo


„inicio‟, explicando o título. Autobiokhraphia é um trocadilho formado por três
palavras: Auto, prefixo grego para „si mesm‟; bio, palavra, igualmente, grega que
significa vida e Kharaphia, termo árabe para delírio, senilidade, merda. Ou seja, o
experimento compreende minha autobiografia de merda.

Nesse sentido, como coloca Bondía (2003) o ensaio teria como caráter a
provocação, o transbordamento dos padrões oficiais, o exagero, a caricatura apontando
para além dos limites e das formas.
É esse caráter ensaístico que o experimento propõe. Por isso a opção pelo tom
burlesco dado à encenação, a começar pelo título que propõe uma brincadeira com a ideia
de uma autobiografia de merda. Também está presente na opção pela narrativa
fragmentada, composta por uma série de pequenas histórias que, apesar de se
relacionarem, mantém um sentido próprio. Assim como na liberdade de composição que é
proposta, uma vez que a dramaturgia do espetáculo resulta das escolhas feitas pelo público
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em relação a que narrativas serão apresentadas e em que sequência serão dispostas.


Dramaturgia, aqui entendida, enquanto termo expandido que, desde o século XX
tem se desvinculado da palavra escrita e se reposicionado no âmbito do funcionamento e
articulação dos diversos elementos presentes na cena.
Partindo do pressuposto que “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece,
o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece ou o que toca.” (BONDÍA, 2002, p.
21), o experimento que proponho é uma experiência em que me permito, enquanto sujeito
e artista, dividir com o público o processo de articulação das diversas vozes que me
atravessam, me afetam e me compõem enquanto sujeito/artista.

A QUESTÃO

Como pensar o processo de subjetivação do ator no contexto em que a cena


contemporânea se localiza em territórios liminares onde performance, teatralidade,
imprevisível, rituais irreprodutíveis, extra cotidianos, efêmeros se atravessam transbordando
as taxonomias tradicionais responsáveis por enquadrá-la em campos culturais nitidamente
definidos?
Enquanto processo de criação a ser adotado, e tendo em vista o objetivo principal que
é o de problematizar os processos de subjetivação, trabalhei com procedimentos de
autoperformação, entendido aqui como dispositivo auto representacional que assume o caráter
de instabilidade do que chamamos de identidade, seja do ator/performer, da personagem, da
persona ou do self, que passa a ser compreendida enquanto uma construção continua a partir
do fluxo de relações do eu com o outro, seja esse outro externo, ou não, ao sujeito.
Denomino autoperformance como o processo de “escritura do eu”, parafraseando o
filósofo francês Michel Foucault (2004), no qual o ator, ao se autoficcionalizar, vai assumindo
máscaras, personas, selfs, com os quais se identifica temporariamente, num processo de
constante transformação. Procedimento que problematiza a noção de identidade que, sem o
caráter de estabilidade, se mantém em constante formação.
Como coloca o filósofo, igualmente francês, Jacques Derrida (1999), somos incapazes
de sermos nós mesmos o tempo todo, mas também não conseguimos ser outro totalmente,
assim como a palavra que carece de significado ou é sobreposta por várias outras
evidenciando seu caráter citacional. Nesse sentido, acreditamos que a máscara do sujeito/ator
está em contínuo e ininterrupto processo de formação de um eu habitado pela alteridade.
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A noção de escrita de si como escritura, relaciona-se às mudanças que a noção de


sujeito e representação tem sofrido, mais especificamente, desde a década de 70. A escrita do
eu, antes relacionada à autobiografia, torna-se auto ficção pela constatação de que o sujeito
pleno é substituído pela noção de fragmentos em constante criação.
Transpondo para o contexto artístico, partimos do pressuposto, segundo o pensamento
desconstrucionista2, de que todo objeto artístico institui uma singularidade, uma identidade
porque deixa marcas, um ponto de vista, uma experiência específica, a pessoalidade que
caracteriza a autoria. Contudo, sem a possibilidade de contar com referências estáveis que
possibilitem o resgate de um original garantidor do status de verdade, nossa perspectiva
assume a impossibilidade de empreender uma escrita de si, sem que seja por meio de uma
série de auto ficções.
Esse sujeito fragmentado, ao escrever sobre si, torna-se escritura e assume o caráter de
indeterminação proposto pela desconstrução. O próprio sujeito num entre lugar, indecidível 3,
porque está na esfera da différance4, configura a autoperformance como processo de escritura
de um eu que se configura como espaço sem centro ou mesmo estrutura determinada, passível
de conexões e reconexões que propiciam um processo contínuo de construção do eu.
Pensando, especificamente em Autobiokhraphia, podemos comparar o conjunto de
placas coloridas apesentados para a escolha do público como a própria realidade, exposta e,
ao mesmo tempo, invisível, assim como o conteúdo/temas que elas contêm. Ao escolher uma,
o público destaca um fragmento desse real e a partir dele, o sujeito/ator começa a traçar,
representar sua própria biografia.
Contudo, não podemos dizer que o sujeito/ator se configura como uma identidade já
formada, ao contrário, ela vai se descortinando perante nós. Sua constituição acontece durante
a apresentação e depende de que fragmentos são escolhidos pelo público e em que ordem eles
são apresentados.
Fragmentos de um todo que, assim como a identidade do sujeito da cena, se constitui
como um efeito com o qual ele se identifica durante aquele momento. Identificação que vai

2
Operação própria ao funcionamento do pensamento baseado na lógica da inversão e deslocamento incessante e
inarredável.
3
Elemento ambivalente sem natureza própria que não se deixa compreender nas oposições binárias. Sem
referente permanente, está sempre no meio contendo dois termos simultaneamente e oscilando entre eles sem
cair em sínteses
4
Neo-grafismo criado por Derrida que, ao substituir “e” de différence por “a” criando uma marca muda que
funciona no interior do sistema da escrita fonética escapando da ordem do sensível fixando uma relação
invisível. Marca uma diferença que não pertence nem a voz, nem a escrita em sentido corrente.
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sendo construída por um conjunto de referências materiais (temas) e subjetivas (rastros, outros
que habitam o próprio sujeito).
As histórias contadas, produtos da memória, são rastros5, referências que, pela lógica do
rastro, não são rememorações de um passado enquanto referência fechada, mas enquanto
criação e, portanto, original em si mesmo (ficção).
Não representam uma verdade externa ao ato de conta-las. Ao contrário, se constituem
no momento mesmo em que acontecem. E continuarão depois do momento de seu
apagamento, continuam em movimento, se remetendo a outros, à alteridade que há no próprio
sujeito, passado sempre heterogeneizado pelo outro.
Ao tentar me autografar por meio do traço, das memorias que conto, retraço pela
impossibilidade de afastamento dessa sombra que impede, mascara o meu próprio
autorretrato; pela impossibilidade de ter acesso a esse passado enquanto verdade e que, por
isso, se configura como autoficionalização.

“Nesse percurso prometo dividir minhas histórias de vida, lições de sabedoria e


outras narrativas, por mim criadas [...] Esclareço que não assumirei qualquer
responsabilidade ou compromisso com a veracidade dos fatos, seja ela exterior,
anterior ou posterior às narrativas aqui desenvolvidas.”

Como coloca Derrida (2010), não é possível a intuição direta do originário ao homem.
Por esse motivo, ao tentar traçar meu autorretrato, opto por mostrar que se trata de um ponto
de vista (tema), como que atestando a insuficiência de toda obra, em tornar presente o que
pretensamente estou tentando representar. Contudo, assim como no mito de Perseu que mata a
Medusa por meio de um olhar enviesado, procuro evitar a metáfora que o olhar fixo produz
sobre o real e dificulta a reflexão sobre o mesmo. Ao contrário, tentei me deixa levar pelas
referencias pessoais, de outros, criadas, a partir de outras referencias, mantendo-me em fluxo
no processo de construção de uma dramaturgia cujo conjunto de narrativas que a compõem
mantém-se sempre em fluxo, seja em relação a que temas serão abordados, seja em relação a
ordem das narrativas que estruturam o processo de constituição do experimento e, por
consequência, do meu processo de identificação.

5
Conceito que substitui o signo por abalar a ideia de um original sobre a cópia. Seria um vestígio, marcas
deixadas por uma ação ou passagem
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ÂNCORA

Chamo de âncora o veículo utilizado para discutir a questão motivadora desse


experimento. Neste caso, optei por construir uma narrativa vivencial tendo como base o
fascínio pela celebridade, tão característico da nossa época e que parece refletir a crescente
publicização do espaço privado. Este, revertido em espetáculo, se torna sucesso
mercadológico na forma de talk shows, reality shows, selfs, facetime, facebook, youtube e seus
digital influencers, diferentes formas de exibição de memórias autobiográfica, registros
biográficos e perfis de todos os tipos.
A ideia é explorar essa ideia de show do eu, como colocado pela antropóloga argentina
Paula Sibila (2008) em que adotamos o espetáculo como forma de vida, visão de mundo e o
modo como nos relacionamos. Relações que, mediadas por imagens, segundo o filósofo e
sociólogo polonês Zigmunt Bauman (2001), se liquefazem e acabam gerando um mundo
baseado na aparência e apoiado numa economia do visível.
Esse é o tom que proponho, por exemplo, imprimir a cena da temática do corpo que,
entendido enquanto uma referencia estável, é exibido, reafirmado em sua materialidade,
vendido enquanto atrativo, mesmo que seja produto de modificações impressas pela
tecnologia, pela vontade do homem, o que lhe destitui, do seu caráter de “originalidade”,
também é cópia, de um outro, de um desejo outro impresso pela normatividade, pela
publicidade, pelo mercado.

“Agora, o homem assume a responsabilidade por turbinar seu corpo.


Exoesqueletos e engenharia genética nos deixam mais fortes... uhhhhhhh....;
Tecnologia de armazenamento e processamento de dados nos deixam mais
inteligentes.... Toma! E, principalmente, a infinidade de procedimentos estéticos nos
deixa mais e mais bonitos. Qual a importância disso? Essa é uma pergunta idiota!”

E as transformações que as novas tecnologias trouxeram para o nosso cotidiano


indicam importantes mudanças nos paradigmas sociais e, por consequência, nas formas de
subjetivação do sujeito e no próprio regime de poder. Se Foucault chama de disciplinar as
sociedades do século XVIII até meados do século XX, podemos verificar uma mudança nesse
tipo de organização. “Nesse movimento, transformam-se também os tipos de corpos que são
produzidos no dia a dia, bem como as formas de ser e estar no mundo que são „compatíveis‟
com cada um desses universos.” (SIBILA, 2008, p.16)
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Se o sujeito moderno foi constituído para ser dócil e útil, apenas uma peça capacitada
para funcionar de maneira eficaz no grande motor que foi o projeto histórico do capitalismo
industrial, a crise do humanismo, a partir da década de setenta, constata a falha do projeto
modernista. O que entra em crise é a metafísica ocidental, como pensamento ligado à busca
pela presença mesma da coisa em sua essência.
Nesse novo contexto, a arte contemporânea, cada vez mais cotidianizada, se interessa
de maneira mais contundente pelos rituais do cotidiano, autobiografias e formas de tornar
público o privado revelando intimidades.
Narrativas vivenciais, sucesso mercadológico das memórias, autobiografias e
biografias, testemunhos. Registros biográficos na mídia, retratos, perfis, entrevistas,
confissões, talk shows, reality shows, surto de blogs e fotologs, webcans, orkuts e youtube.
Textos não literários da cultura contemporânea evidenciam a ficção em sintonia com época.
As novas tecnologias, com destaque para a Web, se tornaram uma área produtiva para
a construção de novas subjetividades o que possibilitou a criação de outras formas de ser e
sentir para o ser humano. Esses novos meios de comunicação com tecnologia eletrônica,
interconectados por redes digitais a nível global, se consolidam e o ciberespaço passa a ser o
local para rituais cada vez mais diversos.

Primeiro foi o correio eletrônico, uma poderosa síntese entre o telefone e a


velha correspondência, que se espalhou a toda velocidade na última década,
multiplicando ao infinito a quantidade e a agilidade dos contatos. Em
seguida se popularizaram os canais de bate papo ou chats, que logo
evoluíram nos sistemas de mensagens instantâneas do tipo MSN, ou Yahoo
Messenger; e em redes de sociabilidade como Orkut, MySpace e Facebook.
(SIBILA, 2008, p.13)

O computador passou a ser um portal sempre aberto para uma enorme quantidade de
pessoas que se conectam simultaneamente. Como resultado surge um fenômeno cada vez
mais comum, que são os diários íntimos publicados na web, onde os usuários contam sobre o
seu cotidiano por meio de textos, fotos, vídeos. É interessante pensar que quando se está na
frente de uma webcam, o indivíduo se performa, se projeta e atua como ele mesmo.
Atualmente esse tipo de procedimento passou a ser usado mais para o entretenimento,
de modo a reforçar modelos de consumo e competição, onde a privacidade é sujeitada às
forças de controle, cujas câmeras de circuito interno se tornaram o maior símbolo.

Deleuze já há algumas décadas preconiza a sociedade que ele chama de


controle, um regime apoiado nas tecnologias eletrônicas e digitais: uma
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organização social ancorada no capitalismo mais desenvolvido da atualidade,


que se caracteriza pela superprodução e pelo consumo exacerbado, no qual
vigoram os serviços e os fluxos de finanças globais. Um sistema articulado
pelo marketing e pela publicidade, mas também pela criatividade
alegremente estimulada, “democratizada” e recompensada em termos
monetários. (SIBILA, 2008, p.23)

É possível verificar que desde o fim do século XX que há uma exacerbação do “eu”. A
internet permite que, cada vez mais, as pessoas comuns se mostrem e tornem-se
personalidades. Numa época onde se pensa no diferente, ser diferente é uma das maneiras de
tornar-se visível no mundo cibernético de uma sociedade extremamente midiatizada. Verifica-
se uma crescente publicização do espaço privado e um fascínio pelas celebridades criando
personalidades voltadas para o exterior, para o olhar do outro.
Daí a ideia de falar sobre assuntos relacionados a mim, como num grande diário, ou
confessionário, ou palanque público, lugar de exposição do que me constitui enquanto
identidade oficial, enquanto sujeito público, experiência privada, corpo, artista e tantos outros
aspectos/vozes. Estes me constituem enquanto sujeito, mas também são constituídos enquanto
narrativas e, portanto, criações, ficções criadas por mim e atravessadas pelo outro, mas que
quando expostas são sempre formuladas, reformuladas para causar determinado efeito em que
vê.

“Nasci no dia 21 de agosto de 1980, às 11horas e 45 minutos de uma gloriosa


manhã ensolarada, no hospital São Vicente de Paula na capital paraibana. Passados
quase 20 dias da data prevista e pesando pouco mais de três quilos, vim ao mundo
com meu pescoço, elegantemente envolto no cordão umbilical e, segundo minha mãe,
bem roxinho, com um bico enorme e muito... Muito cabelo. Sou um leonino solteiro
com leve tendência a procrastinação e ascendente em escorpião, seja lá o que isso
signifique. Naturalmente assertivo e simpático, me sinto confortável em dizer
inteligente, além de um amigo leal, um amante quente e aberto a experiências.!”

Esse tipo de procedimento é, normalmente, usado para expor a intimidade


publicamente nas redes globais, a exemplo do Twitter onde o usuário procura falar sobre algo
no momento em que está acontecendo, ou dos blogs que servem para relatar cada
acontecimento de cada dia. Registros de memórias individuais, a publicação das mesmas
torna público o que era privado dando permissão para que essas memorias sejam reformuladas
pela interferência de outros abrindo espaço para coautorias.
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A ESTRUTURA

Enquanto estrutura, no processo de autoperformação, a escritura da cena, ao se abrir


para o outro procura estabelecer um sistema complexo, múltiplo de discursos que são
organizados enquanto um sistema sem espaço pré-determinado ou fixado, feito de rastros
disseminados. Como um jogo de referencias de sentidos, funcionando como hipertexto, a cada
apresentação é possível criar deslocamentos dessa estrutura e dos sentidos por ela produzidos
porque dependem das escolhas empreendidas pelo público. Escolhas feitas às cegas, porque o
conteúdo é desconhecido, assim como a articulação desses elementos, que são descobertos
pelo ator na apresentação.
Nesse processo de se autoperformar, o sujeito dá à sua vivencia um caráter muito mais
abrangente à medida que, ao jogar com os elementos que o movem inicialmente; suas
experiências, seus selfs, seus outros “eus”, ele cria um jogo com o outro, onde outras relações
são construídas, subjetividades e interpretações são articuladas, tomam caminhos inesperados.
É essa constante mutação que mantém o próprio jogo vivo.
Nesse jogo de reinvenção, reescrita das histórias pessoais o fato real é apenas um
subtexto, um pretexto. O próprio ensaísta francês Philippe Lejeune (2008) que trata do pacto
de referencialidade que caracteriza uma obra autobiográfica afirma que esse discurso fundado
sobre a memória do sujeito, foge à possibilidade de verificação. Isso significa dizer que o
texto autobiográfico se realiza mediante o estabelecimento de uma relação com o receptor e
não pela sua validade referencial, o que o caracteriza como relacional, à medida que o autor
propõe um jogo de faz de conta, no qual o público finge que crê. Até porque, mais do que
uma simples asserção, a autobiografia se configura como um ato de linguagem, performativo,
ou seja, faz o que diz.
Como não está sujeito a qualquer verificação, pode ser entendida como uma
dramatização de si, ou uma auto ficção. Como coloca a pesquisadora brasileira Diana Irene
Klinger, “podemos dizer que na ficção o “eu” é suporte para a invenção ao passo que na
autobiografia o “eu” é uma experiência a ser transmitida, ou seja, a autobiografia e a ficção se
distinguem pelo horizonte de expectativas que geram.” (2007, p.42). Ao assumir a falta de
pactos referenciais que contenham informações sobre uma realidade exterior, passiveis de
verificação, que distingue a autobiografia da ficção, a auto ficção resulta de um
descentramento do sujeito que o torna incapaz de realizar uma alteridade plena, o levando a
criar o que falta, a preencher as lacunas presentes numa experiência, desde o início,
impossível.
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Essa problematização da noção de identidade estável aponta para um processo contínuo


de disseminação, base sobre a qual se dá a escritura de Autobiokhraphia, de um eu
descentrado, cuja estrutura é passível de conexões e reconexões em continuum.
A princípio apenas cinco narrativas foram construídas durante a disciplina, das quais
três foram escolhidas para serem apresentadas. Cada narrativa é encenada com elementos
específicos, música, figurino, adereços que ficam dispostos na cena e são utilizados de acordo
com a necessidade. Como num jogo onde a presentificação de diversos “eus” são colocados
em diálogo entre si e com o público num processo de collage6, onde as diversas vozes, agindo
simultaneidade se influenciam e se transformam.
Ao estruturar Autobiokhraphia, a partir do caráter aporético7 de uma alteridade baseada
na diferença entre os participantes do diálogo, a performer abriu mão da referência de um eu
centralizador. Ao trabalhar com a fragmentação do sujeito, a autoperformance assumiu um
caráter de indeterminação, misturando ordem e anarquia. Situado no entre lugar da différance,
toma para si o espaço em branco resultante da impossibilidade de apropriação completa. Por
esse motivo, enquanto escritura, mantém-se em constante reformulação (deslocamento) do
que está apresentando (visível). Essa operação possibilita a evidenciação dos aspectos não
marcados da identidade, do que está invisível, do que permanece escondido.
A ideia é que o experimento seja composto por um conjunto abrangente de 10, 20, 30
narrativas que seriam divididas em temas. A cada apresentação, o ator faz a cena inicial e
introdutória e nela são apresentados os temas, escondidos em placas coloridas. Ao público
seria dada a função de escolher um conjunto de sete cores a partir de perguntas aleatórias,
assim como em que sequência essas escolhas seriam encenadas pelo ator. Como
consequência, cada vez que o experimento fosse apresentado, sua composição, partilhada,
seria sempre diferente, porque outra(s) narrativa(s) estaria em jogo.
Essa estratégia propicia o aumento no grau de interação entre os eus do performer,
considerados em seu caráter de différance. Por consequência, possibilita trabalhar dentro de
um contexto de coautoria entre os seus diversos eus, caracterizados como pontos de múltiplas
conexões dentro de um sistema constituído pelo experimento.
Como resultado, a dramaturgia é fragmentada, composta por cenas curtas que se fecham
em si, mas que, ao mesmo tempo, mantém relação umas com as outras. Podendo ser

6
Segundo Renato Cohen, “a essência da collage é promover o encontro das imagens e fazer-nos esquecer que elas se
encontram”. (2002, p.64) Trata-se de um processo de codificação, já incorporado às artes contemporâneas, por meio da
sobreposição, dispersão, junção ou justaposição de fragmentos originalmente dispersos.
7
Refere-se à experiência do impossível e funciona como uma não passagem que é o impedimento e a
prerrogativa para qualquer realização. Condição que se abre para a espera, a invenção do outro, a experiência do
impossível.
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trabalhadas em diferentes posições, o que torna sua montagem mais dinâmica. Não há uma
linha temporal mestra, ao mesmo tempo, não há preocupação em se criar ligações diretas
entre as narrativas, dar a ideia de veracidade.
Por outro lado alguns problemas foram detectados nesse primeiro momento de
apresentação, das narrativas existentes. Um relaciona-se ao processo de escolha e organização
das histórias, como seria a melhor forma? A principio decido que as escolhas do publico se
dessem no início do experimento, na cena introdutória, mas o meio escolhido para isso não
parece ser o suficiente, principalmente se pensar que, ao invés de três narrativas, serão
escolhidas um total de sete que, ainda terão que ser ordenadas, o que pode se tornar monótono
e repetitivo, de um jeito não proposital. Por outro lado, a transição entre as cenas ainda não é
eficiente o bastante para o que está sendo proposto, não há ação que as ligue de maneira mais
orgânica. Talvez, assumir o lapso entre as partes seja algo interessante, mas mesmo assim,
ainda não tenho certeza de como seria a melhor maneira de fazê-lo. Não posso perder de vista
que essa, podendo ser entendido como entre lugar dentro de experiência que estou propondo,
pode funcionar como um espaço privilegiado de criação.
Da mesma forma identifico uma heterogeneidade muito grande entre as narrativas
criadas, seja em relação ao tamanho, ao fato de algumas serem mais narrativas, outas terem
mais ação, o que pode resultar numa dramaturgia truncada e sem ritmo. Ao mesmo tempo,
penso que, talvez, seja uma possibilidade assumir a possibilidade da montagem não ser a
melhor a cada apresentação. De qualquer maneira a questão que fica, nesse momento,
relaciona-se a que mecanismo empregar para que, independente da montagem, eu consiga
criar um conjunto dinâmico que envolva a maioria dos elementos presentes no conjunto geral
de cenas.

CONSIDERAÇÕES INCIAIS

A ideia de reality enfatiza o caráter voyeur do espectador que acompanha a narrativa


da minha vida, não pelo que ela tem de “realidade”, mas pela ilusão de realidade proposta,
uma vez que o mostrado é uma produção, montagem assumida como tal e da qual o público
participa diretamente. Eles me conhecem pelo que eles conseguem acompanhar e pelo modo
como estou sendo editado. Nesse processo, o sujeito do espetáculo, vai sendo constituído pela
audiência e para a audiência, não de maneira prévia, mas durante a encenação, a partir dos
elementos que são mostrados, da forma que são mostrados e na sequencia em que são
arranjados.
OLIVEIRA, Joevan. Autobiokhraphia: uma proposta de autoperformação enquanto procedimento de subjetivação do ator. Graduação
em Teatro – Licenciatura da Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa – PB, 2018.
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Texto mosaico, constituído por sons, texturas, vazios, tempos, silêncios que, pela sua
mobilidade e multiplicidade, funciona como hipertexto. Provisório e sempre em fluxo torna-se
imprevisível porque se propõe indecidível, está além das dicotomias metafísicas, num outro
lugar, território de derrisão, indecisão, indefinição, transbordamento, transtorno, caos, sempre
disseminando.
A interatividade é um processo natural presente em tudo o que conhecemos, seja na
dimensão macro ou micro, porque está ligado ao próprio movimento de transformação.
Pensando no campo da arte, é responsável tanto pela transformação do objeto artístico, quanto
pela diluição do caráter autoral da obra e, por consequência, dos papeis de público e do ator
durante o processo de jogo. Por isso, em Autobiokhraphia a escritura não se resumiu ao
roteiro, a ação, ou mesmo a cena descrita no papel, mas sim, ao tipo de organização que ele
evidencia. Um sistema em que múltiplas imagens do artista se acumulam e se sucedem, a
partir da organização de um outro, externo ao artista, em camadas infinitas, sobrepostas e em
fluxo, interconectadas com a situação local, processo de identificação e o contexto geral na
qual estava inserido

REFERÊNCIAS

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BONDÍA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de
Educação, Rio de Janeiro, n. 19, 2002.
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Sul (UFRGS), n. 28, jul.-dez. 2003.
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cinema. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 264-298.
KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada
etnográfica: Bernardo Carvalho, Fernando Vallejo, Washington Curcuto, João Gilberto Noll,
César Aira, Silviano Santiago. Rio de janeiro: 7letras, 2007
LEJEUNE. Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte:
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SIBILA, P. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de janeiro: Nova Fronteira,
2008.

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