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Uma visão do Direito: Direito Público e

Direito Privado

SEBASTIÃO ALVES DOS REIS

O Direito é um fato histórico-cultural,


dinâmico e dialético, que se forma e se
desenvolve, estrutura-se e aperfeiçoa-se,
multifurca-se, em um esforço permanente, no
tempo e no espaço, modelando-se numa
unidade sistemática, num todo orgânico,
refletindo a vida do homem em sociedade, na
sua homogeneidade e diversificação.
Configura uma realidade humana e univer-
sal, ordenada normativamente, objeto de
conhecimento científico, enquanto fato social,
bem como filosófico, enquanto idéia, conceito,
produto da razão, do sentimento de justiça, da
consciência e experiência jurídica, enfim, o
Direito na sua imanência e transcendência, na
sua ontologia e nos seus valores. Seus desíg-
nos consistem na disciplina da convivência
social e da conduta do homem, enquanto mem-
bro da sociedade política, a realização dos com-
pro-missos com os ideais de justiça e de res-
peito à dignidade humana, sendo de acentuar-
se que a experiência jurídica desdobra-se, am-
plia-se, afirma-se e reafirma-se numa tensão
contínua de valores, que se implicam e se exi-
gem, numa íntima correlação, num nexo lógico
entre o Direito e a vida.
No seu processo institucional e sociológico
de criação e de evolução, na sua elaboração
científica e construção lógica, na sua fenome-
nologia geral, exposto às transformações
políticas, culturais e sócio-econômicas, em
diferentes épocas e lugares, o Direito, alter-
nando teses e antíteses, compondo sínteses,
Sebastião Alves dos Reis é Ministro aposentado estrutura-se em princípios induzidos do seu
do Superior Tribunal de Justiça, Professor apo-
sentado da Faculdade de Direito da UFMG, Membro sistema orgânico, formula regras dispositivas
do Conselho Superior do Instituto dos Advogados – e coativas, modela, formal e materialmente,
MG, Membro da Academia Internacional de Direito seus institutos, normatiza fatos e valores,
e Economia e Presidente do Centro Jurídico concebe doutrinas que o informam e edita
Brasileiro (CJB). jurisprudência que o fecunda e renova.
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Nesse quadro, prevendo e provendo, sus- diretivas gerais próprias, atestando a expe-
tenta-se na sua validade, vigência e eficácia, riência jurídica, no curso do tempo, a interação
na sua efetividade, na certeza e na segurança ocorrente nos dois círculos, manifestada na in-
jurídica que oferece, concretiza-se, em densifi- terpenetração de princípios, de institutos, de
cação crescente, na lei, na sentença, nos atos modelos e procedimentos, processando-se uma
de governo e de administração, nos ajustes en- verdadeira “migração de idéias” entre as duas
tre as partes, regula as relações hominis ad esferas, para usar a expressão do Professor
hominem, interesses e negócios, e, em tentati- Edgar Godói Mota Machado, bastando para
vas múltiplas, procura adequar-se às novas re- tanto lembrar a influência recíproca que se
alidades circundantes, para o que suscita refle- processa entre o Direito Constitucional –
xões renovadas que o enriquecem e atualizam. Direito Público por excelência – e o Direito
Ou, em outras palavras, a vivência jurídica Civil, por excelência Direito Privado.
é um momento significativo da experiência do Prosseguindo, afirmam, ainda que se ad-
homem, nos vários estágios da civilização e da mita, apenas para argumentar, que a dimensão
cultura, constituindo sempre o Direito uma pertinente aos dois territórios não seja captável
realidade in fieri, em constante “vir a ser”, a priori, em razão, principalmente, da
espelhando as incertezas e oscilações do organização político-jurídica de cada povo e sua
homem, frente aos desafios que se lhe antolham, problemática econômico-social e cultural, não
em demanda da racionalização do poder menos certo é que, em toda ordem jurídica
político, das limitações da potestas estatal, da ampla e complexa, haverá sempre temas que,
realização das liberdades públicas e da pela sua própria índole ou por força do direito
afirmação da consciência da constitucio- positivo, serão qualificáveis num ou noutro
nalidade e da cidadania, da construção de uma setor.
sociedade livre, solidária e justa, numa visão. Correlatamente, embora variável o conteúdo
Aliás, Cícero (Da República, livro III) já da matéria apropriada a uma ou outra área e
advertira-nos acerca das mutações históricas do levando-se em conta as dificuldades técnicas
Direito, em função das tendências e neces- no estabelecimento de fronteiras entre os dois
sidades de cada povo e época, consoante já o segmentos, a tese da bifurcação tem sobre-
fizera Aristóteles, em A Política (IV a IX). vivido, no curso do tempo, apoiada, em geral,
Nessa moldura do cosmos jurídico, insere- por juspublicistas e jusprivatistas, como
se a tradicional divisio do Direito em Público e princípio relevante por seus fundamentos, sua
Privado, formulada em Roma por Upiano, re- utilidade prática, metodológica e didática.
petida nas Institutas, de Justiniano (I, I § 4º), Ocorre, todavia, que os partidários da tese
adaptável à sociedade e ao espírito de então, dicotômica, quando procuram construir o
fragilizada na Idade Média, em razão das pe- critério técnico distintivo, divergem na sua
culiaridades do regime feudal, em que os “di- fundamentação, levantando ampla contro-
reitos da realeza” se confundem com o bonum vérsia, sendo ilustrativo, a esse respeito,
commune, teorizada no Renascimento, afirma- frisar-se que Hollinger, em 1904, arrolou 114
da e reafirmada, sob vários critérios, a partir critérios, Roubier refere-se a 17 (MACHADO,
do século XIX, sem embargo das impugnações Edgard G. Mota, Elementos da Teoria Geral
que se lhe opuseram respeitados juristas. do Direito, p. 160), Pontes de Miranda alude a
Detendo-se nessa concepção dual do mais de 20, Mota Machado noticia 9, enquanto
Direito, inicialmente, é de assentar-se que, à outros reduzem a enumeração a itens mais
luz do pensamento geral de seus doutrinado- simplificados.
res, a tese não conflita com a visão do Direito Fixando-se, nesse particular, numa visão
como um complexo orgânico, inteiro e coeren- geral de início, como atrás anotado, é de
te, sendo de anotar-se que sua aceitação não assentar-se que a teoria das duae positiones é
implica em seccionar o estudo do direito em atribuída a Ulpiano, em texto acrescido de in-
duas disciplinas autônomas, em duas áreas terpolações, segundo o qual o Direito Público
estanques, incomunicáveis. Antes, cuida-se de diz respeito ao Estado Romano (quod ad statum
uma ótica em que, substancialmente, consi- rei romanae spectat) e o Privado, aos interesses
deram-se dois aspectos básicos de uma só dos indivíduos singulares (quod ad singulorum
ciência jurídica, duas perspectivas de uma utilitatem). A tese ressurge, mais tarde, na
realidade una e solidária. São dois domínios teoria dos “interesses protegidos”, conforme a
que se compenetram, embora informados por qual as normas que protegem o interesse
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público pertencem à órbita publicística, cabendo Direito Privado.
ao campo privatístico as que disciplinam Ainda, cabe referir-se à distinção em razão
interesses dos indivíduos. Esse pensamento é da matéria, vale dizer, se a norma é organi-
revigorado na teoria do “interesse predo- zatória de direito, o campo é de Direito Público,
minante” orientada no sentido de que a norma se é atributiva de direito, situa-se na órbita de
se insere no Direito Público, quando protege Direito Privado.
direta e imediatamente o interesse público e só De outro lado, registra-se a posição de
indireta e mediatamente o interesse particular, juristas que admitem a divisão somente na
invertendo-se o raciocínio, quando a norma é esfera do Direito objetivo, afastando-a do campo
de Direito Privado, tudo na dependência da do direito subjetivo.
intensidade ou densidade do interesse preva- Por fim, resta anotar-se o critério formal,
lecente. orientado no sentido de que são normas de jus
Tentativa de inserção no direito positivo do privatem aquelas cuja violação dá origem a uma
núcleo dessa ótica vamos encontrá-la no Projeto ação privada, de iniciativa do lesado, e de jus
do Código Civil francês (Livre Preliminaire), publicum, se a iniciativa pertence ao Estado
o qual, após acentuar que as leis, quaisquer que lato sensu, autorizando atuação ex officio.
sejam, interessam ao mesmo tempo ao setor A bipartição, sob comentário, projeta-se na
público e privado, frisa que as que interessam
interpretação e aplicação do Direito, bem como
imediatamente à sociedade (plus immediate-
ment à la société) formam o Direito Público, em seus princípios gerais ou específicos,
tocando ao Direito Privado as que interessam prolongando-se no âmbito dos atos jurídicos e
mais imediatamente aos indivíduos (plus im- da própria técnica legislativa.
mediatement aux individus que la socié té). Nessa ordem de idéias, a exegese, na área
De outro lado, cabe trazer à colação a privatística, tende, precipuamente, ao signi-
corrente teleológica, preocupada com a ficado patrimonial da norma, ao seu conteúdo
finalidade da norma: se o destinatário é o Es- de vontade autônoma, em contraste com os
tado, a situação é de Direito Público, se é o propósitos publicísticos, em que a vontade do
indivíduo, enquadra-se no terreno privatístico. indivíduo cede aos imperativos do Estado e da
Avizinha-se dessa perspectiva, a orientação sociedade. Na seqüência desse pensamento,
voltada para a mens legis, consoante com a qual fixando-se no princípio da legalidade, vê-se que
a nota distintiva coloca-se no escopo direto da sua compreensão no Direito Privado se centra
lei, se a utilidade pretendida é pública ou na autonomia da vontade, em ordem a enten-
privada. der-se que será permitido o que não for
Cogita-se também a teoria da patrimo- proibido. Já no Direito Público, realça-se a
nialidade e, em sua consonância, inclui-se no vontade heterônoma, a sua unilateralidade, no
âmbito privatístico os direitos materialmente sentido da tese segundo a qual o que não é
avaliáveis, e, no publicístico, os despidos desse permitido é proibido, prevalecendo a submissão
caráter. à lei, podendo a interpretação ser rígida ou
Certos historicistas sustentam a convicção ampla, construtiva, em função dos interesses
de que as relações de Direito Público têm em subjacentes, explícitos ou implícitos.
conta a pessoa, enquanto membro da sociedade, Por igual, o princípio teleológico da
e o Direito Privado, o indivíduo, como tal. finalidade das leis e dos atos jurídicos, em
Igualmente, há juristas que situam no termos gerais, sugere conotações diferentes,
círculo do Direito Público as relações de numa ou noutra área, pois a ordem privatística
subordinação, em que ocorre a presença de tende a realizar livremente o bem jurídico
dominantes e dominados, exigência de normas pessoal, particular, gerando direitos dispo-
imperativas, cogentes, criadoras de deveres, e níveis, ao passo que o Direito Público é
as de Direito Privado, em que ocorre a presença vocacionado para os valores comunitários, o
de pessoas iguais, regidas por normas dispo- bem comum, o interesse coletivo, criando-se
sitivas, estabelecedoras de faculdades. Da aqui poderes jurídicos indisponíveis, poderes-
mesma sorte, para certa doutrina, o relevante é deveres ou deveres-poderes, como prefere Celso
a qualidade dos sujeitos da relação, se um ou Antônio Bandeira De Mello, sendo inválido o
ambos estão armados de jus imperii, está-se na desvio ou abuso de autoridade.
esfera do Direito Público, se ambos estão des- Outrossim, as concepções do Estado, na sua
pidos dessa prerrogativa, delineia-se a área do estrutura, nas suas funções, na sua filosofia
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política e econômico-social, estão mais expostas ciência jurídica; sublinhe-se, todavia, que o
às transformações correlatas, em função de consagrado jurista do normativismo lógico,
múltiplos fatores, uns conjunturais, outros mais tarde, já residente nos Estados Unidos,
institucionais, enquanto as instituições de veio a flexibilizar, sob certos aspectos, o seu
Direito Privado são mais estáveis, por força de pensamento básico, a respeito da teoria monista
determinantes culturais, ético-religiosas e do Direito.
psicossociais. No contexto da tese monista, entre seus
Finalmente, na técnica legislativa, no partidários, ressaem duas posições polares, uma
cenário do Direito Público, emprega-se, de que reduz todo o Direito ao Direito Público,
preferência, a dicção científica, consagrada na aos fundamentos de inexistência de oposição
doutrina e na jurisprudência, e no Direito entre interesse público e particular, entre Esta-
Privado, sobressai a linguagem comum, de mais do e Direito, apresentando os atos jurídicos, em
fácil acesso a seu destinatário – o povo. ambas as ordens, os mesmos elementos; e outra
Retornando ao tema dos critérios distin- que transfere tal redução ao Direito Privado ao
tivos, observe-se que os modelos diferenciais argumento de que todo o Direito é vocacionado
ali cogitados têm sido objeto de críticas para o homem, abstrata e concretamente
repetidas, seja porque não oferecem tipicidade considerado, estando a seu serviço.
As teorizações em torno do tema posto em
suficiente para servir de suporte a uma
exame não se exaurem nas cogitações aqui
construção científica, seja porque alguns se levantadas, projetando-se em outras dimensões,
confundem, no seu conteúdo material, outros, ora propugnando por uma “teoria geral”,
são imprecisos nos seus perfis, às vezes construída de conceitos e à atuação em ambos
contraditórios, ou incidem, apenas, sobre os sistemas, sem prejuízo das diferenças
aspectos formais da juridicidade, circunstâncias específicas respectivas, ora apontando para um
que levaram Kelsen a falar em “caos” de tertium genus, além do Direito Público e
opiniões contraditórias e ambíguas. Privado, atinente a relações jurídicas locali-
Continuando, as restrições opostas assu- zadas em espaço institucional próprio, referidas
miram maior relevo entre os adeptos da escola a um interesse específico – o coletivo –
monista do Direito, tendo à frente Leon Duguit resultante de formações sociais típicas, orga-
e Hans Kelsen. nizadas em categorias e classes, estruturadas
O primeiro – Duguit – levanta objeções em instituições peculiares, configurando uma
significativas, sustentando, em síntese, que não zona intermediária em que se situariam ramos
há distinções entre o interesse geral e o de Direito, tais como o do Trabalho, o
particular. As leis, nos dois setores, repousam Econômico, o Social, o Corporativo, o
sobre os mesmos fundamentos, os atos jurídicos Ambiental, entre outros.
respectivos apresentam os mesmos elementos, Neste momento histórico em que o universo
devem ser examinados com o mesmo espírito e do Direito se desdobra em especializações
método, concluindo pela aceitação da tese emergentes, de integração de povos afins (art.
dicotômica, apenas, no campo do direito 4º, parágrafo único da Constituição Federal do
objetivo, fixando a distinção na sanção, Brasil, de 1988), quando se institucionalizam
específica para uma e outra órbita (Traité de ordenamentos jurídicos regionais entre Esta-
Droit Constitutionel, v. 1, p. 601 e segs.). dos – o direito comunitário – preconizando-se,
O segundo – Kelsen – parte da sua teoria inclusive, uma jurisdição e uma ordem
do direito puro, despido de elementos extra- normativa dotadas de efetividade supra-
jurídicos, reporta-se ao normativismo jurídico nacional; nestes tempos de expansão de
e à identificação entre o Direito e o Estado, e, mercados; nesta hora em que as relações
mais especificamente, afirma que denominado jurídicas se cruzam e entrecruzam, diversi-
Direito Privado se reduz à forma jurídica ficam-se, ampliam-se; nesta etapa da vida
especial de produção econômica e à distribuição jurídica em que as Constituições e as leis
de produtos, num sistema capitalista, e que, passam a regular a ordem econômica e social,
numa economia socialista, o modelo seria outro, e o Direito Privado sofre transformações
de acordo com a ideologia política adotada. extensas e intensas; nesta quebra em que os
À luz desses pressupostos, aponta a divisão conceitos técnicos de “interesses difusos”,
em dois ramos como “funesta invasão da “interesses coletivos”, “interesses individuais
política nos domínios do Direito”, inserida num homogêneos” assumem relevo jurídico, quando
contexto ideológico, inútil à sistematização da o modelo individualista do processo recebe o
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impacto das ações coletivas, das class action, fatores, vistos sub specie juris, certamente, sus-
das representative actions das actiones citará novas reflexões, análises e críticas, acer-
d’intèrêt publique, todo esse complexo de ca dos temas aqui focalizados.

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