Este documento discute a divisão tradicional do Direito em Direito Público e Direito Privado. Apresenta uma visão geral do Direito como um fenômeno histórico-cultural dinâmico que reflete a vida em sociedade. Discute as teorias tradicionais para distinguir Direito Público de Direito Privado com base nos interesses protegidos ou dominante. Conclui que embora haja divergências sobre os critérios técnicos, a divisão tem utilidade prática e didática.
Original Description:
Uma visão do Direito: Direito Público e Direito Privado
Original Title
Uma visão do Direito: Direito Público e Direito Privado
Este documento discute a divisão tradicional do Direito em Direito Público e Direito Privado. Apresenta uma visão geral do Direito como um fenômeno histórico-cultural dinâmico que reflete a vida em sociedade. Discute as teorias tradicionais para distinguir Direito Público de Direito Privado com base nos interesses protegidos ou dominante. Conclui que embora haja divergências sobre os critérios técnicos, a divisão tem utilidade prática e didática.
Este documento discute a divisão tradicional do Direito em Direito Público e Direito Privado. Apresenta uma visão geral do Direito como um fenômeno histórico-cultural dinâmico que reflete a vida em sociedade. Discute as teorias tradicionais para distinguir Direito Público de Direito Privado com base nos interesses protegidos ou dominante. Conclui que embora haja divergências sobre os critérios técnicos, a divisão tem utilidade prática e didática.
dinâmico e dialético, que se forma e se desenvolve, estrutura-se e aperfeiçoa-se, multifurca-se, em um esforço permanente, no tempo e no espaço, modelando-se numa unidade sistemática, num todo orgânico, refletindo a vida do homem em sociedade, na sua homogeneidade e diversificação. Configura uma realidade humana e univer- sal, ordenada normativamente, objeto de conhecimento científico, enquanto fato social, bem como filosófico, enquanto idéia, conceito, produto da razão, do sentimento de justiça, da consciência e experiência jurídica, enfim, o Direito na sua imanência e transcendência, na sua ontologia e nos seus valores. Seus desíg- nos consistem na disciplina da convivência social e da conduta do homem, enquanto mem- bro da sociedade política, a realização dos com- pro-missos com os ideais de justiça e de res- peito à dignidade humana, sendo de acentuar- se que a experiência jurídica desdobra-se, am- plia-se, afirma-se e reafirma-se numa tensão contínua de valores, que se implicam e se exi- gem, numa íntima correlação, num nexo lógico entre o Direito e a vida. No seu processo institucional e sociológico de criação e de evolução, na sua elaboração científica e construção lógica, na sua fenome- nologia geral, exposto às transformações políticas, culturais e sócio-econômicas, em diferentes épocas e lugares, o Direito, alter- nando teses e antíteses, compondo sínteses, Sebastião Alves dos Reis é Ministro aposentado estrutura-se em princípios induzidos do seu do Superior Tribunal de Justiça, Professor apo- sentado da Faculdade de Direito da UFMG, Membro sistema orgânico, formula regras dispositivas do Conselho Superior do Instituto dos Advogados – e coativas, modela, formal e materialmente, MG, Membro da Academia Internacional de Direito seus institutos, normatiza fatos e valores, e Economia e Presidente do Centro Jurídico concebe doutrinas que o informam e edita Brasileiro (CJB). jurisprudência que o fecunda e renova. Brasília a. 35 n. 137 jan./mar. 1998 63 Nesse quadro, prevendo e provendo, sus- diretivas gerais próprias, atestando a expe- tenta-se na sua validade, vigência e eficácia, riência jurídica, no curso do tempo, a interação na sua efetividade, na certeza e na segurança ocorrente nos dois círculos, manifestada na in- jurídica que oferece, concretiza-se, em densifi- terpenetração de princípios, de institutos, de cação crescente, na lei, na sentença, nos atos modelos e procedimentos, processando-se uma de governo e de administração, nos ajustes en- verdadeira “migração de idéias” entre as duas tre as partes, regula as relações hominis ad esferas, para usar a expressão do Professor hominem, interesses e negócios, e, em tentati- Edgar Godói Mota Machado, bastando para vas múltiplas, procura adequar-se às novas re- tanto lembrar a influência recíproca que se alidades circundantes, para o que suscita refle- processa entre o Direito Constitucional – xões renovadas que o enriquecem e atualizam. Direito Público por excelência – e o Direito Ou, em outras palavras, a vivência jurídica Civil, por excelência Direito Privado. é um momento significativo da experiência do Prosseguindo, afirmam, ainda que se ad- homem, nos vários estágios da civilização e da mita, apenas para argumentar, que a dimensão cultura, constituindo sempre o Direito uma pertinente aos dois territórios não seja captável realidade in fieri, em constante “vir a ser”, a priori, em razão, principalmente, da espelhando as incertezas e oscilações do organização político-jurídica de cada povo e sua homem, frente aos desafios que se lhe antolham, problemática econômico-social e cultural, não em demanda da racionalização do poder menos certo é que, em toda ordem jurídica político, das limitações da potestas estatal, da ampla e complexa, haverá sempre temas que, realização das liberdades públicas e da pela sua própria índole ou por força do direito afirmação da consciência da constitucio- positivo, serão qualificáveis num ou noutro nalidade e da cidadania, da construção de uma setor. sociedade livre, solidária e justa, numa visão. Correlatamente, embora variável o conteúdo Aliás, Cícero (Da República, livro III) já da matéria apropriada a uma ou outra área e advertira-nos acerca das mutações históricas do levando-se em conta as dificuldades técnicas Direito, em função das tendências e neces- no estabelecimento de fronteiras entre os dois sidades de cada povo e época, consoante já o segmentos, a tese da bifurcação tem sobre- fizera Aristóteles, em A Política (IV a IX). vivido, no curso do tempo, apoiada, em geral, Nessa moldura do cosmos jurídico, insere- por juspublicistas e jusprivatistas, como se a tradicional divisio do Direito em Público e princípio relevante por seus fundamentos, sua Privado, formulada em Roma por Upiano, re- utilidade prática, metodológica e didática. petida nas Institutas, de Justiniano (I, I § 4º), Ocorre, todavia, que os partidários da tese adaptável à sociedade e ao espírito de então, dicotômica, quando procuram construir o fragilizada na Idade Média, em razão das pe- critério técnico distintivo, divergem na sua culiaridades do regime feudal, em que os “di- fundamentação, levantando ampla contro- reitos da realeza” se confundem com o bonum vérsia, sendo ilustrativo, a esse respeito, commune, teorizada no Renascimento, afirma- frisar-se que Hollinger, em 1904, arrolou 114 da e reafirmada, sob vários critérios, a partir critérios, Roubier refere-se a 17 (MACHADO, do século XIX, sem embargo das impugnações Edgard G. Mota, Elementos da Teoria Geral que se lhe opuseram respeitados juristas. do Direito, p. 160), Pontes de Miranda alude a Detendo-se nessa concepção dual do mais de 20, Mota Machado noticia 9, enquanto Direito, inicialmente, é de assentar-se que, à outros reduzem a enumeração a itens mais luz do pensamento geral de seus doutrinado- simplificados. res, a tese não conflita com a visão do Direito Fixando-se, nesse particular, numa visão como um complexo orgânico, inteiro e coeren- geral de início, como atrás anotado, é de te, sendo de anotar-se que sua aceitação não assentar-se que a teoria das duae positiones é implica em seccionar o estudo do direito em atribuída a Ulpiano, em texto acrescido de in- duas disciplinas autônomas, em duas áreas terpolações, segundo o qual o Direito Público estanques, incomunicáveis. Antes, cuida-se de diz respeito ao Estado Romano (quod ad statum uma ótica em que, substancialmente, consi- rei romanae spectat) e o Privado, aos interesses deram-se dois aspectos básicos de uma só dos indivíduos singulares (quod ad singulorum ciência jurídica, duas perspectivas de uma utilitatem). A tese ressurge, mais tarde, na realidade una e solidária. São dois domínios teoria dos “interesses protegidos”, conforme a que se compenetram, embora informados por qual as normas que protegem o interesse 64 Revista de Informação Legislativa público pertencem à órbita publicística, cabendo Direito Privado. ao campo privatístico as que disciplinam Ainda, cabe referir-se à distinção em razão interesses dos indivíduos. Esse pensamento é da matéria, vale dizer, se a norma é organi- revigorado na teoria do “interesse predo- zatória de direito, o campo é de Direito Público, minante” orientada no sentido de que a norma se é atributiva de direito, situa-se na órbita de se insere no Direito Público, quando protege Direito Privado. direta e imediatamente o interesse público e só De outro lado, registra-se a posição de indireta e mediatamente o interesse particular, juristas que admitem a divisão somente na invertendo-se o raciocínio, quando a norma é esfera do Direito objetivo, afastando-a do campo de Direito Privado, tudo na dependência da do direito subjetivo. intensidade ou densidade do interesse preva- Por fim, resta anotar-se o critério formal, lecente. orientado no sentido de que são normas de jus Tentativa de inserção no direito positivo do privatem aquelas cuja violação dá origem a uma núcleo dessa ótica vamos encontrá-la no Projeto ação privada, de iniciativa do lesado, e de jus do Código Civil francês (Livre Preliminaire), publicum, se a iniciativa pertence ao Estado o qual, após acentuar que as leis, quaisquer que lato sensu, autorizando atuação ex officio. sejam, interessam ao mesmo tempo ao setor A bipartição, sob comentário, projeta-se na público e privado, frisa que as que interessam interpretação e aplicação do Direito, bem como imediatamente à sociedade (plus immediate- ment à la société) formam o Direito Público, em seus princípios gerais ou específicos, tocando ao Direito Privado as que interessam prolongando-se no âmbito dos atos jurídicos e mais imediatamente aos indivíduos (plus im- da própria técnica legislativa. mediatement aux individus que la socié té). Nessa ordem de idéias, a exegese, na área De outro lado, cabe trazer à colação a privatística, tende, precipuamente, ao signi- corrente teleológica, preocupada com a ficado patrimonial da norma, ao seu conteúdo finalidade da norma: se o destinatário é o Es- de vontade autônoma, em contraste com os tado, a situação é de Direito Público, se é o propósitos publicísticos, em que a vontade do indivíduo, enquadra-se no terreno privatístico. indivíduo cede aos imperativos do Estado e da Avizinha-se dessa perspectiva, a orientação sociedade. Na seqüência desse pensamento, voltada para a mens legis, consoante com a qual fixando-se no princípio da legalidade, vê-se que a nota distintiva coloca-se no escopo direto da sua compreensão no Direito Privado se centra lei, se a utilidade pretendida é pública ou na autonomia da vontade, em ordem a enten- privada. der-se que será permitido o que não for Cogita-se também a teoria da patrimo- proibido. Já no Direito Público, realça-se a nialidade e, em sua consonância, inclui-se no vontade heterônoma, a sua unilateralidade, no âmbito privatístico os direitos materialmente sentido da tese segundo a qual o que não é avaliáveis, e, no publicístico, os despidos desse permitido é proibido, prevalecendo a submissão caráter. à lei, podendo a interpretação ser rígida ou Certos historicistas sustentam a convicção ampla, construtiva, em função dos interesses de que as relações de Direito Público têm em subjacentes, explícitos ou implícitos. conta a pessoa, enquanto membro da sociedade, Por igual, o princípio teleológico da e o Direito Privado, o indivíduo, como tal. finalidade das leis e dos atos jurídicos, em Igualmente, há juristas que situam no termos gerais, sugere conotações diferentes, círculo do Direito Público as relações de numa ou noutra área, pois a ordem privatística subordinação, em que ocorre a presença de tende a realizar livremente o bem jurídico dominantes e dominados, exigência de normas pessoal, particular, gerando direitos dispo- imperativas, cogentes, criadoras de deveres, e níveis, ao passo que o Direito Público é as de Direito Privado, em que ocorre a presença vocacionado para os valores comunitários, o de pessoas iguais, regidas por normas dispo- bem comum, o interesse coletivo, criando-se sitivas, estabelecedoras de faculdades. Da aqui poderes jurídicos indisponíveis, poderes- mesma sorte, para certa doutrina, o relevante é deveres ou deveres-poderes, como prefere Celso a qualidade dos sujeitos da relação, se um ou Antônio Bandeira De Mello, sendo inválido o ambos estão armados de jus imperii, está-se na desvio ou abuso de autoridade. esfera do Direito Público, se ambos estão des- Outrossim, as concepções do Estado, na sua pidos dessa prerrogativa, delineia-se a área do estrutura, nas suas funções, na sua filosofia Brasília a. 35 n. 137 jan./mar. 1998 65 política e econômico-social, estão mais expostas ciência jurídica; sublinhe-se, todavia, que o às transformações correlatas, em função de consagrado jurista do normativismo lógico, múltiplos fatores, uns conjunturais, outros mais tarde, já residente nos Estados Unidos, institucionais, enquanto as instituições de veio a flexibilizar, sob certos aspectos, o seu Direito Privado são mais estáveis, por força de pensamento básico, a respeito da teoria monista determinantes culturais, ético-religiosas e do Direito. psicossociais. No contexto da tese monista, entre seus Finalmente, na técnica legislativa, no partidários, ressaem duas posições polares, uma cenário do Direito Público, emprega-se, de que reduz todo o Direito ao Direito Público, preferência, a dicção científica, consagrada na aos fundamentos de inexistência de oposição doutrina e na jurisprudência, e no Direito entre interesse público e particular, entre Esta- Privado, sobressai a linguagem comum, de mais do e Direito, apresentando os atos jurídicos, em fácil acesso a seu destinatário – o povo. ambas as ordens, os mesmos elementos; e outra Retornando ao tema dos critérios distin- que transfere tal redução ao Direito Privado ao tivos, observe-se que os modelos diferenciais argumento de que todo o Direito é vocacionado ali cogitados têm sido objeto de críticas para o homem, abstrata e concretamente repetidas, seja porque não oferecem tipicidade considerado, estando a seu serviço. As teorizações em torno do tema posto em suficiente para servir de suporte a uma exame não se exaurem nas cogitações aqui construção científica, seja porque alguns se levantadas, projetando-se em outras dimensões, confundem, no seu conteúdo material, outros, ora propugnando por uma “teoria geral”, são imprecisos nos seus perfis, às vezes construída de conceitos e à atuação em ambos contraditórios, ou incidem, apenas, sobre os sistemas, sem prejuízo das diferenças aspectos formais da juridicidade, circunstâncias específicas respectivas, ora apontando para um que levaram Kelsen a falar em “caos” de tertium genus, além do Direito Público e opiniões contraditórias e ambíguas. Privado, atinente a relações jurídicas locali- Continuando, as restrições opostas assu- zadas em espaço institucional próprio, referidas miram maior relevo entre os adeptos da escola a um interesse específico – o coletivo – monista do Direito, tendo à frente Leon Duguit resultante de formações sociais típicas, orga- e Hans Kelsen. nizadas em categorias e classes, estruturadas O primeiro – Duguit – levanta objeções em instituições peculiares, configurando uma significativas, sustentando, em síntese, que não zona intermediária em que se situariam ramos há distinções entre o interesse geral e o de Direito, tais como o do Trabalho, o particular. As leis, nos dois setores, repousam Econômico, o Social, o Corporativo, o sobre os mesmos fundamentos, os atos jurídicos Ambiental, entre outros. respectivos apresentam os mesmos elementos, Neste momento histórico em que o universo devem ser examinados com o mesmo espírito e do Direito se desdobra em especializações método, concluindo pela aceitação da tese emergentes, de integração de povos afins (art. dicotômica, apenas, no campo do direito 4º, parágrafo único da Constituição Federal do objetivo, fixando a distinção na sanção, Brasil, de 1988), quando se institucionalizam específica para uma e outra órbita (Traité de ordenamentos jurídicos regionais entre Esta- Droit Constitutionel, v. 1, p. 601 e segs.). dos – o direito comunitário – preconizando-se, O segundo – Kelsen – parte da sua teoria inclusive, uma jurisdição e uma ordem do direito puro, despido de elementos extra- normativa dotadas de efetividade supra- jurídicos, reporta-se ao normativismo jurídico nacional; nestes tempos de expansão de e à identificação entre o Direito e o Estado, e, mercados; nesta hora em que as relações mais especificamente, afirma que denominado jurídicas se cruzam e entrecruzam, diversi- Direito Privado se reduz à forma jurídica ficam-se, ampliam-se; nesta etapa da vida especial de produção econômica e à distribuição jurídica em que as Constituições e as leis de produtos, num sistema capitalista, e que, passam a regular a ordem econômica e social, numa economia socialista, o modelo seria outro, e o Direito Privado sofre transformações de acordo com a ideologia política adotada. extensas e intensas; nesta quebra em que os À luz desses pressupostos, aponta a divisão conceitos técnicos de “interesses difusos”, em dois ramos como “funesta invasão da “interesses coletivos”, “interesses individuais política nos domínios do Direito”, inserida num homogêneos” assumem relevo jurídico, quando contexto ideológico, inútil à sistematização da o modelo individualista do processo recebe o 66 Revista de Informação Legislativa impacto das ações coletivas, das class action, fatores, vistos sub specie juris, certamente, sus- das representative actions das actiones citará novas reflexões, análises e críticas, acer- d’intèrêt publique, todo esse complexo de ca dos temas aqui focalizados.