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A FUNÇÃO FRATERNA EM “ABRIL DESPEDAÇADO”

“Minino!
Marr minino!
Só seno um minino mermo!
Minino minino!”
(Tiririca, palhaço popular)

José Célio Freire+

RESUMO

Um dos comportamentos que mais caracteriza a alta modernidade é a indiferença para


com a diferença do outro. A função fraterna diria respeito à dimensão ética onde a
alteridade é levada em conta, desde a origem, como estrutura mesma da subjetividade.
No filme “Abril despedaçado”, de Walter Salles, a experiência do amor entre irmãos
nos induz a pensar na possibilidade de não termos perdido para sempre a capacidade
de ser outramente por outrem. A criança, em sua condição de precariedade e
desamparo, nos incita ao exercício de nossa escuta ética do e pelo outro.

Palavras-chave: ética; alteridade; cuidado; função fraterna.

THE FRATERNAL FUNCTION IN “BEHIND THE SUN”

ABSTRACT

One of the behaviors that most characterizes high modernity is indifference to the
difference of the other. The fraternal function regards the ethical dimension where
alterity is taken into account, from the start, as the structure itself of subjectivity. In the
film “Behind the sun ” by Walter Salles, the experience of love between brothers causes
us to think about the possibility of not having lost the capacity to be otherly for the other
forever. There, the child, in his precarious and forsaken condition, incites us to exercise
our ethical hearing of and for the other.

Key words: ethics; alterity; caring; fraternal function.

+Doutor em Psicologia (USP), Professor do Departamento de Psicologia e do Mestrado em Psicologia


(UFC) e Pesquisador do Laboratório de Psicologia em Subjetividade e Sociedade (LAPSUS).
Endereço: Departamento de Psicologia da UFCAv. da Universidade 2762 – Campus do Benfica
Cep 60.020-180 – Fortaleza – CEE-mail:jcfreire@ufc.br" __jcfreire@ufc.br_
Site: http://www.pospsi.ufc.br” __www.pospsi.ufc.br_
Cena 1: “Minino” conta a sua história sem conseguir lembrar de outra, que vai se
saber posteriormente que é a de um livro sobre sereia que ganhara. A memória, feita do
que se lembra e do que se esquece, é “(...) esse trabalho de rememoração espontânea,
em que a recordação é a trama e o esquecimento a urdidura(...)” (Benjamin, 1994, p.37).
Nossas subjetividades são fruto de uma composição de lembranças e esquecimentos que
desde a mais tenra infância nos fornecem a matéria-prima para os processos de
compreensão do mundo e relacionamento com as demais pessoas. Nossas narrativas são
construídas a partir desses elementos mais fundamentais e, assim, nos compreendemos
como sujeitos no mundo. Há, porém, uma dimensão mais originária que estrutura nossas
subjetividades como responsabilidade por outrem – trata-se da dimensão ética, na forma
radical como a concebeu Emmanuel Lévinas (1978, 1982 e 1988). Ser por outrem e para
o outro, uma anterioridade primeira, é a incondição mesma da humanidade do homem.
Diz respeito a um passado que nunca foi presente – um passado imemorial, diria
Lévinas. Esta precedência da ética em relação à ontologia – o ter-de-ser antes mesmo do
ser – pode ser percebida através de uma leitura do filme “Abril despedaçado”, onde uma
criança encarna a função fraterna até o limite da morte – numa hipérbole da substituição
ao Outro.

Cena 2: camisa no quarador com mancha de sangue, esperando ficar amarelecida – o


sinal para que a vingança se concretize. O “Minino” tem pesadelo onde o irmão mais
velho, Inácio, conduzindo-o na cacunda, é alvejado por um outro homem e morre. O
amor pelo irmão Tonho é por demais evidente na trama. O medo de perdê-lo, como já
perdera a outro e como um medo de perder-se a si, faz da criança “sem nome” um
protetor do irmão condenado à morte. A função fraterna, retomada em Kehl (2000),
ainda que não correspondendo inteiramente à propositura levinasiana, já que não
substitui a função paterna cara à Psicanálise, é identificável no enredo do filme em
muitos momentos, representando, para nós, o cerne da obra. Sua importância se coloca
na medida em que se contrapõe à incidência do hiperindividualismo (Lipovetsky, 1993
e 1994) e do narcisismo (Lasch, 1991) na sociedade tardomoderna.

Cena 3: o pai tange a parelha de bois enquanto Tonho põe a cana na moenda, a mãe
retira o bagaço e conduz o caldo para os tachos, e “Minino” pega os feixes de cana e os
leva para o irmão. Tudo funciona de forma regular e natural, como na labuta diária da
fabricação de rapadura. Trabalha-se na cultura da cana, trabalha-se no moinho de bois,
dorme-se e come-se para repor as energias, o que está representado na “bolandeira que
dita o ciclo inexorável do qual a família Breves não consegue escapar” (Salles, 2002). A
casa – a serenidade do habitar – representa o âmbito da ética, ou seja, o ethos do
consuetudinário, os costumes e os hábitos. A morada e o local de trabalho se confundem
no filme, pois trata-se de uma fazenda de cana-de-açúcar no sertão brasileiro, resquício
de uma época de domínio e riqueza de senhores de engenho, mas que agora (1910)
sobrevive, fechada sobre si mesma, da fabricação de umas poucas rapaduras a serem
comercializadas em “Bom Sossego” a um preço a cada dia mais aviltado. A
tranqüilidade aí beira a estafa e o tédio. As portas e janelas escancaradas dão para o
nada, e os estrangeiros que batem à porta nem são bem vindos. Figueiredo (1995)
exorta-nos a perceber a dimensão ética como abertura para a diferença – habitação com
suas janelas que permitem visualizar o que está lá fora e portas que eventualmente
deixam entrar o que vem de fora. Em outras palavras, o ethos fornece o lugar seguro e
confiado para onde sempre se retorna depois da incursão cotidiana no mundo; ao
mesmo tempo, é o lugar que se oferece em hospitalidade ao forasteiro. A hospitalidade,
em Lévinas, é condição ética por excelência. Primeiro, porque o lugar que ocupamos é
desde sempre usurpação do lugar do outro. Também porque se refere ao exercício da
diaconia – “eis-me” é a primeira resposta possível ao outro – do colocar-se a seu
serviço, às suas ordens.

Cena 4: Bofetada do pai no “Minino”, à mesa da janta, que teima em suplicar ao irmão
que não execute a vingança. A iminência do ato vingador apenas remete para a réplica
que incidirá sobre o próprio Tonho, a quem o irmão caçula não deseja ver morto.
“Minino” não teme pela sua morte, anunciada na morte de cada um dos Breves há
gerações, mas pela morte do irmão. O ser-para-a-morte (Heidegger) é questionado pelo
ser-além-da-morte e no ser-para-o-outro. Lévinas nos fala da necessidade de estar com o
outro em sua morte, já que a nossa é um acontecimento para o qual não seremos
convidados. Mas nos fala também da capacidade de deixar obras, da posteridade e
posterioridade da criação, da postergação da morte na criação. Eco (2000) nos conta
uma anedota onde um “comunista” indagado sobre o sentido da morte respondera que
gostaria de um enterro civil para deixar aos outros um exemplo. Ou seja, mesmo os que
não crêem, podem crer na continuidade da vida através de outros que virão, e desejar
deixar um mundo melhor para estes e bons exemplos com os quais possam constituir
uma vida digna de ser vivida. O pai do filme, também acreditava no exemplo que lhe
deixara os antepassados e queria perpetuar através dos filhos e netos. Tinha a ver com a
ligação radical com a terra e a defesa intransigente de sua propriedade. Agora, já não
tem quase nada e como diz num determinado momento, só tem a honra e essa não pode
perder. Daí que a vingança deve ser consumada.

Cena 5: Tonho Breves se prepara – recebendo até as botas do pai – para a vingança da
morte do irmão mais velho. Trata-se de uma disputa de terra com o vizinho que durante
gerações faz vítimas de uma e de outra família. Destino como predestinação ou destino
como fado? (amor fati de Nietzsche) O trágico da vida dispõe da forma que lhe damos
quando fazemos nossas escolhas. Para aquela gente simples tudo se explica como
vontade divina, como o que está escrito nas estrelas. Cabe ao filho, nesse modelo ético
tradicional, respeitar o pai, os valores da família, as convenções da moral da retaliação.
Cabe aos Breves serem breves na vida. Mas na ética levinasiana “Eu sou meu filho,
mas meu filho não é eu”, logo o pai de Tonho não poderia exigir do filho o
cumprimento de um vaticínio, pois a vida caminha para diante. Todavia, não é ainda
nesse momento que Tonho se confrontará com a tradição, por enquanto resigna-se a um
destino inexorável.

Cena 6: Tonho faz emboscada para o filho mais velho do vizinho, persegue-o pelo mato
e o mata; o moribundo fita o assassino, mas o crime é de honra. Contudo a alteridade do
outro não morre, o olhar do morto segue o assassino pelo resto da vida. No filme o
moribundo ainda se arrasta e sorri para o matador, num esgar, numa careta, quase uma
máscara mortuária. Mas a visagem, a assombração, o fantasma que o Rosto do outro
impõe não é simples cara ou fachada. Lévinas (1988) nos lembra Caim e a marca do
assassínio, o que faz mais forte o imperativo ético do “Não matarás”. Portanto, o
assassinato é o avesso da sua ética radical, pois não há substituição do outro na morte,
nem assistência à morte do outro, mas o absurdo da destruição do outro. A culpa segue
o criminoso, não obstante ela é anterior a qualquer ato e qualquer deliberação. Trata-se,
em Lévinas, de uma culpa sem dolo, relativa a uma dívida jamais assumida. Trata-se da
constituição mesma da subjetividade a partir de fora, de Outrem, para com quem sempre
se está em débito, desde sempre usurpando seu lugar.

Cena 7: velório onde o pai de Tonho comparece e solicita ao dono da casa que o filho
assassino possa rezar incelência para o morto. Tonho vai ao enterro e depois conversa
com o pai cego da vítima, que lhe concede apenas o mesmo prazo – até a mancha de
sangue amarelar ou até a próxima lua cheia. Diz respeito à ética da vingança: haverá a
trégua de um mês; ao final, contudo, um morto por um morto. A justiça, eqüitativa e
equânime, faz a todos iguais sem o peso da alteridade do outro. Acompanhando a fita
preta que o pai do falecido ata no braço do assassino segue o agouro: “de um morto para
outro”. Tal justiça não se fundamenta na idéia de que “é preferível a injustiça sofrida do
que a cometida”, mas na pena de talião. Afasta-se também da justiça levinasiana, que só
se clama para um terceiro homem. Na relação entre Mim e o Outro há diacronia e
assimetria, mas com a chegada de um terceiro pode-se falar de eqüidade e igualdade. O
cego ameaça ainda mais: o relógio diz “mais um, mais um...” mas está de fato dizendo
“menos um, menos um”. E apesar dos vinte anos de Tonho, que afirma ainda não ter
conhecido o amor, o velho sentencia: “pois nem vai conhecer”. O amor que interessa
mais à ética levinasiana não carrega concupiscência – está na maternidade que tira-o-
pão-de-sua-boca-para-dar-a-outrem. É o amor da mãe de Tonho, por exemplo, que reza
todos os dias pela vida do filho, que lava a camisa ensangüentada e amarelecida do
outro filho morto, cuja mancha não se desfaz, e que verá ao final o fim de tudo na morte
de mais um filho. Mas o amor de Tonho no filme caminhará de ágape (espiritual) a filia
(comunal), passando pela fratria (irmanação) e pela paixão (sentimento intenso) até
chegar a Eros (carnal). Pode-se, contudo, permanecer na idéia do amor enquanto doação
que nada pede em troca, em cada uma das versões acima aludidas. Mesmo em Eros
vamos ter que a carícia é busca de algo que não se consegue achar, que escapa à nossa
conquista, se afastando para a distância do infinitamente Outro.

Cena 8: “Minino” conhece um casal de circo – o Salustiano e a Clara – e a moça lhe


presenteia um livro de história e, embora ele não saiba ler, inventa histórias a partir das
gravuras da sereia, do mar, dos peixes, do navio, etc. Instado por seu nome responde
que não possui. Não ter a identidade do idêntico a si mesmo é ter em si o Outro. É o
mesmo que ter o outro sob a pele, parodiando Lévinas (1978). O garoto estava sempre a
serviço do outro, fosse seu pai, sua mãe ou mesmo seu irmão. Sempre a diaconia, só
suspensa pela ida ao circo que o irmão lhe proporcionará, ou pelo balanço que constitui
seu único brinquedo, na fazenda “Riacho das Almas”. Um elemento, portanto, merece
ponderação: o poder, o saber, e mesmo o ser, são, para Lévinas da ordem da Totalidade.
Totalidade que transforma o diferente no igual, o alheio no próprio, o outro no mesmo.
“Alergia à alteridade”, já nos disse o filósofo lituano, referindo-se a esta impossibilidade
de confrontar-se com o novo, o estranho, o diverso. O “Minino”, entretanto, por não
ter nome, ou seja, por não ter uma identidade fixa e imutável – uma representação de si
mesmo acima de qualquer suspeita – estaria mais aberto à novidade do outro: do
próximo (irmão), do estrangeiro (Salustiano), do diferente (Clara, a sereia).

Cena 9: A vida é sempre a mesma, como diz o menino-filósofo: “somos como os bois,
rodando sempre num mesmo lugar”. O incômodo do filho mais novo, não obstante,
prenuncia o instante em que as coisas já não serão mais como sempre foram. Quando os
bois continuarão a andar em círculos mesmo sem o peso das cangas. Eis o sinal que
anuncia a possibilidade da escolha, da construção do próprio projeto de mundo. Ou se
deixar subjugar mesmo quando a exigência não se faz direta. Há, para Lévinas (1982),
um assujeitamento inevitável em relação a Outrem: o sujeito é desde sempre um
sujeitado. Quanto a isso não haveria escolhas a fazer: têm-se de ser por outrem, do
ponto de vista originário da estrutura mesmo que constitui-nos como sujeitos. No
cotidiano de nossas vidas, não obstante, temos de fazer opções bastante difíceis, às
vezes, se quisermos persistir nesta estruturação mesma da subjetividade como
responsabilidade. Retiradas as amarras que prendiam Tonho à tradição subjugadora
ainda restaria decidir entre continuar a fazer o mesmo, e garantir com isso a
tranqüilidade do conhecido, ou aventurar-se pelo novo e criar o indizível.

Cena 10: Tonho leva “Minino” pra ver o circo no povoado e ambos se encantam com a
dama que dança, brinca, cospe e engole fogo; a alteridade, a diferença, o novo, o
desconhecido, o misterioso. Ao ser indagado pelo seu nome reage à pilhéria dizendo:
“melhor não ter nome que se chamar Salustiano”. O homem do circo o batiza, então, por
Pacu, peixe de rio. Ao voltar à casa, Tonho é surrado pelo pai por ter-lhe desobedecido,
por desrespeitar o luto e por responder-lhe. O ethos disciplinar de uma sociedade
tradicional não dá espaço para liberalismos. O coletivo e o relacional estão acima de
qualquer individualização e autonomia. Este modelo societário convive, no interior do
Brasil, com outros mais modernos, que os mass media divulgam pela televisão, revistas
e jornais. Todavia, as conquistas da modernidade não fizeram desaparecer nem o
modelo romântico nem os ditames da disciplina (Figueiredo, 1992). Esses três pólos
axiológicos se imbricam em exigências contraditórias e dispositivos éticos
aparentemente antagônicos. A busca de autonomia de um lado e o controle social de
outro; os condicionamentos sociais e as utopias de restauração social, moral e
relacional; o individualismo privatista e a personalidade autocentrada. No filme,
“Minino” perde a chance de se autonomear, pois o Outro é quem o nomeia, a partir de
fora, e Tonho tenta a todo custo desvencilhar-se das malhas sociais e encontrar seu
próprio caminho. No primeiro caso, a remissão a uma heteronomia sempre presente; no
segundo, a angústia do ter de construir a própria morada na inospitabilidade do mundo.
“Minino” resiste, pois Pacu não é peixe do mar, que pode viver com a sereia-Clara. Já
Tonho confronta a lei imposta pelo pai: “- Cala a boca! – Num calo!”. “– Cala a boca! –
Num calo!”

Cena 11: Tonho segue os mambembes para um lugarejo maior, para os festejos da
Semana Santa e lá tem a experiência de fazer Clara rodopiar na corda e ter com ela
momentos de intimidade, já iniciados na noite dormida na estrada, mas logo
interrompidos pelo padrinho/companheiro da moça. A ambivalência da abertura para
novas experiências e da sina de marcado para morrer pela honra dos antepassados. O
confronto entre o homem da moral, seguidor de regras e ‘sentinela-zumbi’ (Rolnik,
1994), e o homem da ética, aberto à diferença, à transgressão e à criatividade. O
primeiro segue as regras, por mais injustas que possam ser; o segundo, cria novas
regras, experimenta, renova-se a cada instante. Um submete-se ao império da
mesmidade enquanto o outro se deixa afetar pela alteridade da diferença. Um é pura
ordem e submissão a ela; o outro não resiste ao caos e ao seu poder criador. Aqui,
contudo, há que se notar, ambos convivem na mesma subjetividade. Somos, ou
podemos ser, a morada segura para nós mesmos e termos aberturas para fora, para o
fora de nós, a diferença e a estranheza do mundo. Portas e janelas sempre abertas à
visitação do Outro, eis a condição ética da hospitalidade, como já antes o dissemos:
tornar habitável o que de início é inóspito; e oferecer a morada ao estrangeiro – o
melhor cômodo, a melhor comida.
Cena 12: Tonho volta para casa e para o trabalho, quando os pais já pensavam que ele
teria fugido do seu compromisso de honra; nesse ínterim, Pacu tivera seu livro tomado
pelo pai. Aqui a leitura significava novos mundos e possibilidades, que lhe foram
arrancadas em nome do trabalho. O lugar do sonho, da magia, da imaginação criadora
não existe para a criança que desde cedo é responsável por seu sustento e até mesmo
arrimo da família. Eis a realidade nefasta de boa parte das crianças brasileiras, aquelas
que hoje não terão onde dormir e amanhã não terão escola para ir. A labuta precoce
rouba do brinquedo infantil sua condição de trabalho e de construção intelectual, de
maturação cognitiva e de aprendizagem através da cooperação. O livro, todavia, o
“Menino” já interiorizara, até porque não fora alfabetizado. Seu simbolismo já
carregava o devaneio da criança com as cenas mágicas dos oceanos e seus seres
mitológicos.

Cena 13: Tonho é empurrado no balanço por Pacu e a corda rebenta e ele se finge de
morto, assustando o irmãozinho; depois todos riem, inclusive o pai, que parece fazê-lo
pela primeira vez, o que provoca o silêncio de espanto dos demais. Mais uma vez o
amor fraterno, aparecendo inclusive como antevisão na proposta de Pacu: “Tu fica no
meu lugar, eu no teu”, ao propor empurrar Tonho no Balanço. Também há a falta de
demonstrações de afeto, exceção feita aos irmãos que se afagam. A carícia, já o
dissemos antes, busca o que não acha (Lévinas, 1988). O riso inesperado do pai, daquele
que é só lei todo o tempo, incomoda como se um esgar, uma careta, fosse. Talvez por
ser o sorriso daquele que persegue a sina( da morte com data marcada; ou por ser o
sorriso mesmo da morte que transfigura aquela cara como uma fachada que esconde, ao
invés de mostrar, a dimensão do Infinito. Em Lévinas (1988), lembremos, o Rosto – que
não é fenomênico já que não é fisionomia – é manifestação do Infinito, do seu excesso,
de sua “infinição” mesma.

Cena 14: A camisa do filho morto do vizinho começa a amarelecer e o filho mais velho
deste é autorizado a continuar a vendeta. A vingança tem de ser retomada sempre, não
há espaço para o perdão, forma nobre do ético. Romper a corrente de mortes não se
coloca como possibilidade num mundo onde a consistência e a realidade são dadas pela
rígida submissão ao código mor(t)al. Ao invés do pático (ser afetado pelo outro), o
patético (o comovente da eliminação de outrem) e até mesmo o patológico (a doença
pelo desafeto). Tratamos desta hipótese num outro momento (Moreira e Freire, 2003).
Entendemos que o afastamento da estrutura mesma da subjetividade, ou seja, da
responsabilidade por outrem, é condição do adoecimento. A depressão, por exemplo,
seria um acometimento daquele que não consegue ser pelo e para o outro, em suma ,
não consegue amar. Daí que não seria um distúrbio dos afetos, mas se enquadraria na
ordem dos desafetos. Quanto ao perdão, acima aludido, trata-se de um elemento ético no
sentido em que a capacidade de pedir perdão e a capacidade de perdoar pressuporiam a
primazia do Outro.

Cena 15: Clara deixa o padrinho e decide encontrar Tonho, por quem se apaixonara.
Assim, tenta buscar o seu próprio caminho, que é o do coração. Salustiano ainda tenta
dissuadi-la ao dizer que Tonho já está morto (porque jurado de morte), mas ela
responde: “Mas eu não tô”. E esse sentimento de estar viva a impele a buscar Tonho e
tentar convencê-lo a ir embora também, fugindo da sentença. Amar o outro e não o
amor do outro por si. Amar por não poder ser de outra forma. Em Lévinas (1986), dá-se
a releitura do mandamento:“Ama o próximo, pois tu és esse amor mesmo”. Eis a
proposição fundamental para nós aqui: a estrutura mesma da subjetividade é a
responsabilidade por outrem – ou o vocábulo tão vilipendiado AMOR. As exigências
que nos são impostas por um modelo societário perverso, onde a hipocrisia e a
deslealdade são a tônica, em que o outro está à mercê do meu interesse, nos afastam
cada vez mais desta estrutura originária. Porém, na ética levinasiana a atitude é o des-
inter-essa-mento: o outro não deve me interessar; o ser do outro e o meu ser não têm
como interagir; nenhum comércio é aceitável entre nós; o outro de nada me deve servir.
Pelo contrário, eu é que estou desde sempre a seu serviço; não há nada a receber em
troca; amar é doar-se.

Cena 16: Chove muito, Pacu não consegue dormir e ao abrir a janela vê que Clara está
ao relento. Avisa Tonho, que vai até ela e os dois têm um encontro amoroso. A
cumplicidade de Pacu, que sempre visa o outro – o irmão – é o ser-pelo-e-para-o-outro
levinasiano. A princípio havia um quê de atração do menino para com a moça que lhe
dera o livro. De uma certa forma ela era a sereia, o desconhecido, o mágico, o fantástico
– o excesso e a diferença pelos quais se dava seu desejo (já que o desejo não se unge
pela falta em Lévinas). Entretanto, abdicou da mulher concreta pelo irmão e refugiou-se
no devaneio que a leitura ainda lhe possibilitava, mesmo depois de o pai ter-lhe
arrancado o livro das mãos. “Tirar-o-pão-da-sua-boca-para-dar-ao-outro”, signo da
maternidade em Lévinas (1978), é a prova do amor, da cumplicidade e da amizade
fraternos. As figuras do desamparo – o velho, o louco e a mulher (Birman, 2000) – nos
intimam a escutar este apelo ético que aqui aparece na criança. Em Lévinas (1988), o
Rosto do Outro que manifesta a idéia de Infinito fala através da viúva (mulher), do órfão
(criança), do miserável (velho) e do estrangeiro (estranho/louco).

Cena 17: o filho vingador está à espreita na pequena fazenda, e sob a chuva; Pacu ouve
o relinchar do cavalo. Todos sabem que mais cedo ou mais tarde se dará o ato de
vingança. O ar da morte se respira junto com o cheiro da chuva no mato. Estamos
novamente diante do “tu não matarás”, o segundo mandamento bíblico que diz-nos da
impossibilidade do assassínio, isto é, da destruição da alteridade do outro. É onde se
coloca para nós o limite da tolerância. De onde vem a justificativa para o assassinato em
legítima defesa? Onde encontrar a desculpa para a pena de morte, mesmo se tratando de
um estuprador e assassino cruel? Como compreender a legitimidade da eutanásia como
evitação da distanasia (morte lenta e com sofrimento)? E o suicídio e o aborto, teriam
um lugar para o Outro?

Cena 18: Pacu vê Clara ir-se e vai ao encontro de Tonho, encontrando-o nu e


adormecido; veste então o chapéu e a cinta preta que o irmão usava como sinal de que
era o próximo alvo da vingança, e sai pelos caminhos ao redor de casa. Coloca-se,
assim, no lugar do irmão – para morrer por ele. Eis o ápice da responsabilidade por
outrem: mais que assistir o outro em sua morte, morrer por ele. Dá-se, literalmente, a
substituição pelo Outro, hipérbole da súplica, do apelo, da exigência, da intimação, do
seqüestro até. O Outro me convoca a pôr o meu ser em questão, para estar a seu serviço,
até mesmo para colocar-me em seu lugar.

Cena 19: Pacu conta a história como no início do filme, agora dizendo que já sabemos o
final e que ele não consegue lembrar a outra história – a do livro. Imagina-se
encontrando a sereia e sendo feliz com ela, como menino-peixe que mora no mar onde
todo mundo é feliz e ninguém consegue parar de dar risada. Contudo, é morto,
confundido com o irmão, que chega tarde ao seu encontro. Sempre chegamos com
atraso ao encontro com o Outro, pois entre nós há também, além de uma assimetria,
uma diacronia. Ele, o Outro, deixa as marcas de sua passagem, apenas. A sereia,
todavia, é a metáfora do Infinito, pretensamente encontrável na morte, mas revelado
pelo Rosto do Outro. O Infinito, não obstante, não cabe na idéia que se tem dele – é
puro excesso. O desejo, em Lévinas (1988), é desejo do excesso do Outro, portanto não
se investe pela falta – já o havíamos dito um pouco mais atrás.

Cena 20: o pai pensa que Tonho escapou da morte e que deveria ir matar o justiceiro.
Exige que o filho o faça e o ameaça com o rifle. A sua mulher, entretanto, o impede de
matar o próprio filho que ele julgava estar se acovardando. Insinua-se aí mais uma cena
bíblica, a da iminência da imolação do próprio filho por Abraão, atendendo a uma
ordem de Deus. Aqui, no entanto, não aparece o cordeiro que substitui a vítima do
sacrifício, parece-nos que resta ao pai oferecer-se a si mesmo – abdicando de sua forma
de justiça – ao Outro.
Rompe-se o modelo ético da justiça pelas próprias mãos, da honra traída e da vindita.
“Homem, acabou tudo, homem...”, diz a mulher amparando o marido anômico.

Cena 21: Tonho vai embora, em busca de Clara talvez. Segue pela estrada e toma um
dos caminhos da bifurcação. Viver é ter de fazer escolhas. “Viver é negócio muito
perigoso...” é o mote que o narrador de “Grande Sertão: Veredas” (Rosa, 1994),
Riobaldo, repete e repete. O mundo é inóspito – já nos fazia saber a ontologia
fundamental de Heidegger –, e ao homem é dado construir sua própria morada confiada
e serena, que propicie o recolhimento e a restauração do centro, mas para que possa,
também, deixar entrar o que vem de fora pelas portas e janelas (Figueiredo, 1995). Estar
aberto às mudanças de rota possíveis, ao inesperado, ao inusitado, ao efêmero, ao
estranho e ao estrangeiro, à irrupção, ao diruptivo, ao trágico enfim, é uma estratégia
necessária na era das mutações e multiplicidades.

Cena 22: Tonho encontra o mar na cena final. O oceano em sua imensidão, o excesso do
Outro – o Infinito de Lévinas. Excesso, demasia, desregramento, desmedida, exagero,
hipérbole, exabundância e exuberância, são elementos que as psicologias teimam em
deixar de fora de sua teoria e de sua prática – isso que nos levou a dizer da vacância do
lugar do Outro nas psicologias contemporâneas (Freire, 2002). O caminho do Desejo,
não obstante, se dá na direção do que no Outro me excede. Tonho encontra o que não
conhecia, o desconhecido, o inédito. Já se trata de uma nova subjetividade. E o Sertão
Brasileiro, de 1910, naquele despedaçado abril, vira mar.

O recurso ao filme deveu-se à tentativa de tornar menos obscura nossa descrição


dos meandros da ética levinasiana da responsabilidade absoluta por outrem. O que
importa, ao final, é compreender que a criança representa ali, para nós, o elemento de
precariedade e desamparo que, ao mesmo tempo, está implicado na existência humana
tardomoderna e nos caracteriza como seres éticos. Vivemos num mundo que nos
oferece uma miscelânea de recursos tecnológicos de informação e comunicação e, no
entanto, sabemos cada vez mais que pouco sabemos sobre nós mesmos e a
incomunicabilidade humana nunca foi tão evidenciada. Nossa segurança é precária
(Giddens, 1991 e 2002) e cabe-nos o recurso aos peritos (entre eles os psicólogos),
como ludibriosa forma de curarmo-nos do nosso desamparo.
Por outro lado, é essa mesma condição de insuficiência e abandono que nos
permite assumir a responsabilidade pelo outro, portanto retomar nossa estrutura
subjetiva mesma. A criança sem nome, o “Minino”, depois Pacu, a partir de sua
vulnerabilidade e passividade (Lévinas, 1978), e utilizando-se do forte poder da
sensibilidade, deixa-se afetar pelo outro, pelo irmão, pelo próximo. Responde à
intimação do outro, à sua exigência, tornando-se seu refém. Responde pela
responsabilidade do outro até, quando se nomeia seu substituto na morte, sinalizando
inequivocamente que o seu ser é um ser pelo e para o outro, um ter-de-ser, um não
poder ser de outra forma, um pôr em questão o seu próprio ser.
Voltemos à epígrafe deste texto. Surpreende-nos esse menino – “Minino!”; rechaçamos
esse menino em nós – “Marr minino!”; justificamos nossa recusa pela desconsideração
– “Só seno um minino mermo!”; ser um menino jovem talvez explicasse sua pureza
d’alma – “Minino minino!”.

NOTAS
1( “Abril Despedaçado”, direção de Walter Salles e produção de Arthur Cohn, é uma
adaptação livre do livro homônimo do escritor albanês Ismail Kadaré, realizada por
Walter Salles, Sérgio Machado e Karim Aïnouz. Atores: José Dumont (pai), Rodrigo
Santoro (Tonho), Rita Assemany (mãe), Luiz Carlos Vasconcelos (Salustiano), Ravi
Ramos Lacerda (Pacu), Flávia Marco Antônio (Clara) e Everaldo Pontes (velho cego).
( Sina como fatalidade, mas também como sinal em cruz que limita terras (pelas quais
os Breves e os Ferreira lutam por gerações).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

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SALLES, Walter. Notas do Diretor. Disponível na internet via


"http://www.abrildespedacado.com.br" : consulta efetuada em 2002.

Primeira decisão editorial em: dezembro / 2003


Versão final em : março / 2004
Aceito em: junho / 2004

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