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Prefácio do Editor

Que firme fundamento, ó santos do Senhor,


é estabelecido para a vossa fé em sua excelente Palavra!
O que mais Ele pode dizer além do que disse a vós,
que em Jesus fostes buscar refúgio? *

Este é um livro sobre o Livro, a Palavra de Deus escrita.


Ao longo da última década, aproximadamente, alguns adeptos do
evangelicalismo começaram a questionar se a Escritura é digna do
artigo definido. Em outras palavras, alguns têm sugerido que de-
vemos tratar a Bíblia como um livro — ainda que um livro muito
especial — mas não como o Livro que ilumina perfeitamente todas
as coisas. Sugere-se sutilmente que as características singulares e o
valor religioso da Bíblia se devem mais à maneira poderosa pela qual
Deus a usa em nossas vidas do que a uma autoridade divina ineren-
te ao próprio texto. Podemos antever os perigos que se escondem
por trás dessas e de outras tentativas de reinterpretar ou dimi-
nuir a alegação de que a Bíblia é inspirada por Deus (2 Tm 3.16)​​.

* O hino original em inglês How Firm a Foundation possui uma versão em português registrada
no Hinário Adventista como hino nº 164, Que Firme Alicerce!
Firme fundamento

Essas tentativas não somente debilitam a confiança plena que os


crentes precisam ter na confiabilidade das Escrituras, mas usurpam
também de seu Autor a plenitude da glória que a sua Palavra de-
monstra e exige.
Ao desvendar as riquezas e perfeições da Bíblia, os capítulos
deste livro exploram essa glória — a glória do Deus triúno. Origi-
nalmente, esses capítulos foram palestras proferidas na Conferência
Filadélfia sobre Teologia Reformada (PCRT, sigla em inglês) entre
os anos de 1975 e 2007 por pastores e teólogos que encontram
sua vida e seu fôlego nas páginas das Escrituras. As palestras foram
editadas para facilitar a leitura, mas mantêm muito, se não a maior
parte, de sua redação original.
Todas as gerações precisam tomar posse das verdades funda-
mentais da fé que uma vez foram entregues aos santos, e nós não
somos exceção. Na verdade, creio que a nossa geração corre o risco
de ver aquela que é talvez a doutrina mais central da fé cristã — a
doutrina da inspiração e inerrância concomitante das Escrituras —
ser encoberta em um grau até então desconhecido na era moderna.
Essa afirmação pode parecer exagerada, se não alarmista, mas
o fato é que a tentativa do Iluminismo de valorizar a autonomia hu-
mana em cada área da vida está revelando agora o seu fruto amargo
na maneira como os cristãos pensam sobre suas Bíblias. Com cer-
teza não nos causa nenhuma surpresa quando o mundo, perdido e
morto em pecados e transgressões, zomba da Palavra de Deus. Mas
devemos ficar surpresos e inconsoláveis quando os mesmos sons de
protesto contra a verdade da Palavra de Deus chegam aos nossos
ouvidos como o canto de sereia daqueles que proclamam o nome
de Cristo — por aqueles que, de fato, afirmam ser evangélicos.
Por esse motivo, a Aliança de Evangélicos Confessionais tem o
orgulho de apresentar este volume. Seus autores buscaram escrever
textos acessíveis, pastorais e claros, de maneira muito semelhante
à da Bíblia que reverenciam. Eles não se deleitam em polêmicas,

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Prefácio do Editor

embora elas sejam inevitáveis n​ a “presente era perversa” (Gl 1.4) e


por esse motivo alguns dos autores as apresentem em seus textos.
Contudo, seu desejo supremo é dar um toque de clarim convocan-
do a Igreja para retornar à sua convicção central, mais antiga e vital
de que a Bíblia é a Palavra de Deus e, portanto, isenta de erros em
seus manuscritos originais e a única regra infalível de fé e prática.
No capítulo 1, J. I. Packer inicia o livro desvendando o pri-
vilégio quase indescritível desfrutado pelos cristãos como aqueles
que podem conhecer Deus por meio da sua Palavra. Em seguida,
J. Ligon Duncan III utiliza a sua maturidade de pastor experiente
para explicar porque as Escrituras são suficientes para que possa-
mos conhecer Deus e viver de uma maneira agradável a Ele. No
capítulo 3, R. C. Sproul combina — como só ele é capaz de fazer
— episódios de sua célebre carreira com uma aplicação contun-
dente sobre o motivo de a Bíblia ser verdadeira.
O quarto capítulo é escrito pelo Dr. James Montgomery Boice,
saudoso presidente e fundador da PCRT. Ele apresenta uma visão
pastoral útil do significado da expressão sola Scriptura, o grito de
guerra do compromisso da Reforma Protestante com a Bíblia. Em
seguida, no capítulo 5, Richard D. Phillips, atual presidente da
PCRT, desvenda magistralmente o capítulo 55 de Isaías — uma pas-
sagem vital na formulação de uma sã doutrina da Bíblia. No capítulo
6, Mark Dever defende a centralidade da Palavra para a Igreja. E, no
capítulo 7, Philip Ryken apresenta ao leitor uma defesa acadêmica
e sem reservas da clareza da Palavra de Deus. Diante do nevoeiro
atual de negações pós-modernas acerca da clareza da linguagem, tal
tratamento do Dr. Ryken é particularmente oportuno.
Finalmente, tal qual o primeiro volume de palestras históricas
da PCRT, este livro se encerra com um capítulo sobre as impli-
cações da doutrina eclesiástica da Bíblia para a pregação. Com
sua paixão e sensibilidade exegética características, o Dr. Edmund
Clowney defende que aqueles de nós que estão atrás do púlpito

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Firme fundamento

sagrado semana após semana devem se manter cativos à Palavra de


Deus, pois ela é o instrumento principal para o verdadeiro aviva-
mento na Igreja de hoje.
Como acontece com qualquer projeto literário, há sempre
mais pessoas a agradecer do que o espaço permite. Aqui, simples-
mente estendo minha sincera gratidão a Bob Brady, vice-presidente
executivo da Aliança de Evangélicos Confessionais, bem como a
toda a equipe da Aliança por seus esforços incansáveis ​​a serviço
de uma reforma moderna, demonstrando uma disposição alegre e
contagiante. A liderança de Bob, em particular, tem feito do nosso
trabalho uma verdadeira alegria. Gostaria também de agradecer aos
voluntários e contribuintes da Aliança que tornam o nosso traba-
lho possível.
Agradeço a Marvin Padgett e a todos os editores e funcio-
nários da P&R Publishing por sua paciência, apoio e parceria na
publicação desses volumes da Aliança. Seu compromisso de ver as
verdades expostas na PCRT levadas a um público mais amplo é um
dom da graça de Deus.
Meus agradecimentos profundos e consideração também ao
Reverendo Richard D. Phillips, presidente da PCRT e de muitas
maneiras sucessor da visão do Dr. Boice. O Reverendo Phillips
é um querido amigo e mentor, bem como defensor das verdades
contidas neste livro. Que esse time de defensores aumente!
Além dos baluartes representados neste volume, também
preciso dar meu reconhecimento aos professores com quem tive
o privilégio de estudar. Aos doutores Scott Oliphint, Lane Tipton,
Jeffrey Jue, David Garner, Richard Gaffin, Carl Trueman, Vern
Poythress, William Edgar, Joseph Pipa, Benjamin Shaw, John Car-
rick, Tony Curto, Sidney Dyer, C. N. Willborn, James McGoldrick
e outros. Por favor, aceitem meus sinceros agradecimentos por seu
comprometimento e trabalho em defesa da verdade da Palavra de
Deus e para o bem da minha própria vida e da vida da Igreja.

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Prefácio do Editor

Por fim, agradeço à minha querida esposa e às minhas filhi-


nhas. Não saberia como ministrar a Palavra preciosa sem o seu
amor e apoio. Diariamente fico maravilhado com a graça de Deus
por me dar uma mulher tão competente, carinhosa e piedosa, bem
como filhas que amam ouvir a Palavra de Deus.
Não é preciso dizer que o Livro, a Palavra de Deus escrita,
dirige nossa atenção para Aquele que é a Palavra de Deus viva —
Jesus Cristo. Assim, permaneço firme em minha convicção de que
somente a mais robusta doutrina da inspiração — ensinada pelo
próprio Senhor (ver Jo 10.35) — é a única esperança para o mundo
e para a Igreja, pois ela nos garante que o Evangelho que pregamos
não é em vão. Sem uma Bíblia isenta de erros não podemos conhe-
cer verdadeiramente o Evangelho, e sem o Evangelho não podemos
conhecer o Verbo encarnado e, assim, permaneceríamos sem espe-
rança e sem Deus no mundo. Mas graças sejam dadas a Deus pela
Bíblia e pelo Cristo de quem ela fala com perfeição!
As observações de Cornelius Van Til, célebre apologista de
Westminster e defensor da doutrina da inspiração formulada pela
Igreja, são uma conclusão adequada para esta prolongada intro-
dução. Em sua introdução à obra de referência A Inspiração e
Autoridade da Bíblia, de B. B. Warfield sobre a doutrina da Bíblia,
o Dr. Van Til escreveu:

Somente no retorno à Bíblia como inspirada infalivelmente em


sua autografia há esperança para a ciência, para a filosofia e para a
teologia. Sem retornar a essa Bíblia, a ciência e a filosofia podem
florescer com capital emprestado, como o filho pródigo floresceu
durante algum tempo com os recursos de seu pai. Mas o filho
pródigo não tinha o princípio da autossustentação. E nenhum
homem o tem até aceitar a Escritura que Warfield apresenta.

Gabriel N. E. Fluhrer

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Conhecendo Deus:
o mundo e a Palavra

J . I . PAC K E R

Mas agora, conhecendo a Deus, ou melhor,


sendo por ele conhecidos… (Gálatas 4.9).

Uma das declarações mais surpreendentes da Bíblia


está na primeira metade de Gálatas 4.9: “Mas agora, conhecendo
a Deus, ou melhor, sendo por ele conhecidos, como é que estão
voltando àqueles mesmos princípios elementares, fracos e sem
poder? Querem ser escravizados por eles outra vez?”. Nesse versí-
culo, Paulo faz uma afirmação em nome de todos os cristãos das
igrejas da Galácia. Ele diz: “Vocês conheceram a Deus, ou me-
lhor, foram conhecidos por Ele.” De fato, essa afirmação pode ser
feita em nome de todos os verdadeiros cristãos de todas as épocas
Conhecendo Deus: o mundo e a Palavra

e de todos os lugares. E é algo tremendo de se dizer! Conhecer


Deus é a promessa do Evangelho. Conhecer Deus é o dom supre-
mo da graça de Deus.

Uma promessa da Bíblia

Esses eram, claramente, o peso e o princípio fundamental da


profecia de Jeremias acerca da nova aliança (Jr 31.31-34). O que
aconteceria quando a nova aliança viesse? Ora, todas as pessoas
incluídas nesse pacto de graça conheceriam Deus. Lembre-se das
palavras do profeta: “ ‘Porque todos eles me conhecerão, desde o
menor até o maior’, diz o Senhor” (v. 34).
Vemos a mesma ideia quando testemunhamos nosso Senhor
orando ao Pai em João 17.3: “Esta é a vida eterna: que te conhe-
çam, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste.”
E essa afirmação ecoa na primeira carta de João: “Sabemos também
que o Filho de Deus veio e nos deu entendimento, para que conhe-
çamos aquele que é o Verdadeiro. E nós estamos naquele que é o
Verdadeiro, em seu Filho Jesus Cristo. Este é o verdadeiro Deus e
a vida eterna” (1 Jo 5.20).
Deus está nos dizendo que podemos conhecê-lo. Podemos
conhecer Aquele que é real. Ele nos livrará da ilusão e nos fará
conhecer Aquele que verdadeiramente é uma torre forte e rocha
verdadeira para os que nele confiam. Sim, foi para isso que fomos
feitos e para isso é que fomos redimidos.
Poderíamos ampliar esse pensamento e dizer que a perfeição
do conhecimento de Deus e de seu Filho Jesus Cristo é a soma da
ambição e da esperança do verdadeiro cristão. Paulo declara tal
ambição pela primeira vez em Filipenses 3.10: “Quero conhecer
Cristo, o poder da sua ressurreição e a participação em seus sofri-
mentos, tornando-me como ele em sua morte” e novamente em 1
Coríntios 13.12: “Agora, pois, vemos apenas um reflexo obscuro,

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J. I. Packer

como em espelho; mas, então, veremos face a face. Agora conheço


em parte; então, conhecerei plenamente, da mesma forma como
sou plenamente conhecido.” Sim, é a honra mais elevada do ho-
mem e sua realização final conhecer perfeitamente o seu Deus e o
Filho de Deus.
Pergunto-me: você crê nisso? Ou são meras palavras em uma
página o que tenho escrito aqui? Conhecer a Deus é, de fato, o gran-
de e glorioso tema central das Escrituras. Pense nisso! Por meio de
Cristo o homem conhece a Deus, ou melhor, é conhecido por Deus.

O “grande tema” de Calvino

Lembro-me de, certa vez, ouvir o Dr. R. C. Sproul dizer: “O co-


nhecimento de Deus é um tema-chave da Teologia Reformada.”
Esse é um dos segredos da sua força. E o primeiro, e em muitos
aspectos, o melhor expositor desse grande tema é o homem que
permanece como a fonte da Teologia Reformada — o eminente
e grande gênio –– João Calvino. Para que eu não deixe você com
a ideia errada de Calvino ao falar dele nesses termos, deixe-me
acrescentar que ele era um homem humilde que, pela fé, conheceu
Deus e era conhecido por Ele, como você e eu podemos ser.
Calvino escreveu As Institutas da Religião Cristã, o livro-texto
clássico do Cristianismo Reformado. Recomendo-lhe essa obra
magna de Calvino; sua leitura é demorada, mas vale muito a pena!
As Institutas tiveram cinco edições diferentes. E uma das coisas que
se percebe ao ler as edições sucessivas é a maneira como o tema do
conhecimento de Deus se expandiu à medida que Calvino desen-
volveu o livro. Na primeira edição, lançada por volta do ano de
1536, sua única referência real — pelo menos, sua única referência
explícita — ao tema do conhecimento de Deus estava na primeira
frase, na qual Calvino declarou que toda a soma da doutrina sagra-
da está contida praticamente nestas duas partes: o conhecimento

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Conhecendo Deus: o mundo e a Palavra

de Deus e o conhecimento de nós mesmos.1 A partir da segunda


edição, porém, o livro não só começa com a mesma frase — com
uma ligeira alteração: a substituição da palavra conhecimento por
sabedoria — mas Calvino dedicou um capítulo inteiro a cada um
dos temas.
Quando finalmente conferiu às Institutas sua forma final —
na quinta edição de 1559, vinte e três anos após a primeira edição
— Calvino não só deixou os dois primeiros capítulos do primeiro
livro inalterados em relação à segunda edição, mas também acabou
dedicando o primeiro livro em sua totalidade ao conhecimento de
Deus, o Criador, e todo o segundo livro ao conhecimento de Cristo,
o Redentor! Assim, o conhecimento de Deus se transformou no
tema principal da obra e no foco único dos dois primeiros livros. A
propósito, o terceiro livro prossegue com o conhecimento da graça
de Cristo, demonstrando como obtê-la e desfrutá-la.
Observe também que o nome do livro de Calvino não era As
Institutas da Teologia Cristã, mas As Institutas da Religião Cristã. O
objetivo dessa distinção é deixar claro, mais uma vez, como fize-
mos, que para o povo reformado não existe qualquer hiato, abismo
ou mudança de sentido entre teologia e religião. Religião significa
“piedade”. Portanto, a verdadeira teologia, no entendimento do
povo reformado, conduz diretamente à piedade; é para isso que ela
serve. E Calvino sabia disso muito claramente, por isso intitulou
seu livro As Institutas da Religião Cristã. E é por isso que ele expõe
o conhecimento de Deus, de Cristo e da graça de modo prático.
Portanto, para Calvino, o conhecimento de Deus não significava
o cultivo de uma habilidade teológica, mas sim a prática da obediência
cristã, a prática da religião cristã no melhor sentido do termo. Assim,
ao estudarmos o conhecimento de Deus, estamos tratando do tema
central e mais prático do Cristianismo segundo o entendimento de
Calvino e seus seguidores. E esta é a nossa meta em nosso estudo: viver
o que sabemos acerca de Deus e dos seus caminhos.

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J. I. Packer

O que significa conhecer Deus

O que queremos dizer quando falamos de conhecer Deus? Va-


mos tomar o conceito, colocá-lo sob o microscópio e procurar
analisá-lo. E para melhor esclarecer o seu significado, começarei
declarando quatro aspectos que visam preparar o caminho para a
afirmação que farei ao final.

Conhecer Deus é mais do que ter consciência de Deus


Em primeiro lugar, precisamos deixar muito claro que conhecer
Deus vai além da consciência que o homem natural tem de Deus.
De fato, essa consciência existe, por isso se os homens dizem que
não reconhecem Deus, não significa que nenhuma noção de Deus
tenha chegado até eles. Ao contrário, isso expressa que negaram
qualquer noção de Deus que tenha se aproximado deles. É o que
Paulo diz no capítulo 1 de Romanos, e assim também diz Calvino,
que estudou esse capítulo e deu atenção à sua afirmação.
Calvino tem uma série de frases diferentes para expressar essa
consciência inevitável que o homem natural tem do Criador, a
quem ele deve servir e o qual, um dia, irá chamá-lo para prestar
contas. Calvino fala sobre o sensus divinitatus, o “senso da divin-
dade”. O que é o sensus divinitatus? É uma espécie de persuasão, o
convencimento de que existe um Deus. Calvino também o deno-
minou “semente da religião”, “inclinação para a religião” e “noção
de Deus”. Todas essas são declarações usadas por ele para expressar
a consciência inevitável da existência de um Deus a quem os ho-
mens devem adorar.
Certamente Calvino não se refere a esse conhecimento de
Deus utilizando a mesma palavra latina que usa para descrever o
conhecimento de Deus pelo cristão. Ele o chama de notitia ou,
poderíamos dizer, consciência, enquanto a palavra que reserva
ao conhecimento cristão de Deus é cognitia ou conhecimento no

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Conhecendo Deus: o mundo e a Palavra

sentido pleno. Todavia, ele insiste em afirmar que é inevitável ao


homem natural ter a consciência de Deus. Parafraseando Calvino:
“Embora ele tente, não consegue escapar.” Isso é precisamente o
que Paulo diz em Romanos 1.18-23.
O conhecimento de Deus que o homem natural possui é o
de aliança, que envolve um compromisso pessoal de ambos. É o
conhecimento do Deus da aliança que os homens sabem ser o seu
Deus. Parafraseando Martinho Lutero, a religião é “uma questão
de pronomes pessoais”. Isso significa que seguir a religião cristã
é uma questão de ser capaz de dizer “meu Deus”, “meu Senhor”,
“meu Salvador” e de saber que Deus diz de você “meu filho”, “mi-
nha pessoa”.
Assim, o conhecimento de Deus existe nesse relacionamen-
to — e fora dele o que há é algo menor que o conhecimento
verdadeiro e pleno de Deus. O conhecimento de Deus, no sen-
tido de cognitia, é mais do que a mera consciência de haver um
Deus. Inclui e envolve comunhão com Deus. E é encontrado
somente em uma relação de aliança na qual Ele é o seu Deus e
você é a pessoa dele.

Conhecer Deus é mais do que qualquer experiência particular


Em segundo lugar, o conhecimento de Deus é mais do que
qualquer experiência particular com Deus. Ora, isso pode soar
chocante para você, mas é verdade. Deixemos Calvino nos ensi-
nar. Assim como a Bíblia, Calvino veio de uma época em que as
pessoas eram menos egoístas do que tendem a ser hoje. Nos dias
de Calvino, as pessoas estavam mais preocupadas com as reali-
dades que vivenciavam do que com as experiências em si. Nós,
infelizmente, vivemos em uma era “consciente das experiências”
e “centrada em experiências”. Então, geralmente saltamos para a
conclusão de que quanto mais intensa uma experiência é, mais de
Deus deve haver nela.

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J. I. Packer

Ora, não é assim. Há muitas experiências intensas na vida, mas


seria muito tolo supor que só por serem intensas são cheias de Deus.
E é ainda mais tolo quando as pessoas de hoje tomam drogas e se
expõem a outros estímulos artificiais para intensificarem suas pró-
prias experiências, acreditando que Deus está presente em qualquer
experiência intensa. Não é assim que as coisas acontecem. O conhe-
cimento de Deus não deve nem sequer ser identificado com uma
experiência de conversão, embora sem o conhecimento de Deus (no
sentido em que estamos falando) ela jamais existiria. O que quero
dizer é que estamos falando de algo muito maior, muito mais rico
e mais abrangente do que qualquer experiência particular. Quando
temos o conhecimento de Deus, as experiências acontecem — sim,
graças a Deus elas acontecem — de todos os tipos e maneiras, como
as de conversão e outras experiências na vida cristã.
Conhecer Deus, no entanto, tem a ver com relacionar-se com
Ele, estar ciente desse relacionamento, cultivá-lo e contar com Ele.
É saber que esse relacionamento se mantém até mesmo quando se
tem uma dor de cabeça ou de dente, quando se sente a ponto de
desfalecer, quando só há depressão e melancolia. Eu afirmo que
conhecer a Deus é mais do que ter qualquer experiência particular
com Ele. Deixemos isso bastante claro. A coisa mais importante da
vida é ter clareza quanto a esse segundo ponto, especialmente nos
tempos atuais: o conhecimento de Deus é mais do que simples-
mente ter uma experiência intensa ou particular com Ele.

Conhecer Deus é mais do que simplesmente conhecer a


respeito de Deus
Então, em terceiro lugar: conhecer Deus, segundo as Escrituras e
de acordo com Calvino, é mais do que simplesmente conhecer algo
a respeito dele. Embora conhecer fatos sobre Deus seja fundamen-
tal para conhecê-lo, há algo mais. Calvino foi muito claro acerca
daquilo que precisamos conhecer sobre Deus. Em sua primeira

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Conhecendo Deus: o mundo e a Palavra

edição das Institutas, ele especificou quatro coisas que precisam ser
conhecidas acerca dele. Veja o que ele diz:

Primeiro, Ele é infinita sabedoria, justiça, bondade, misericórdia,


verdade, poder e vida, de modo que não há outra sabedoria, jus-
tiça, bondade, misericórdia, verdade, poder e vida exceto nele. E
onde quer que percebamos qualquer uma dessas coisas, elas per-
tencem a Ele. E a segunda coisa que precisamos saber é que todas
as coisas, tanto no céu quanto na terra, foram criadas para a sua
glória. E a terceira coisa que precisamos saber é que Ele é um juiz
justo, que pune severamente aqueles que se desviam das suas leis
e não realizam a sua vontade inteiramente. E a quarta, que Ele
é misericórdia e bondade, recebendo gentilmente os miseráveis e​​
pobres que buscam a sua clemência e se entregam à sua fidelidade.2

Esse é o conhecimento de Deus. Ele é Aquele em quem todo


valor habita. É o Criador de todas as coisas. É o Juiz de todos os
homens e é o Doador de toda a graça. “Essas são as quatro coisas
que precisamos saber acerca de Deus”, diz Calvino. Que todos os
crentes digam um caloroso Amém a tais sentimentos!
Mas Calvino foi o primeiro a insistir no fato de que conhecer a
Deus é mais do que simplesmente dominar essa descrição do Senhor
para saber sobre Ele. Todos os reformadores estavam preocupados
em ensinar e desenvolver as quatro verdades fundamentais sobre
Deus mencionadas por Calvino e, assim como ele, também se empe-
nhavam em insistir que por mais correto que o nosso conhecimento
estruturado de Deus possa ser — e os reformadores queriam que
tivéssemos clareza sobre o nosso conhecimento acerca de Deus — o
conhecimento pessoal de Deus transcende tudo isso. O conhecimen-
to que eles buscavam, ao qual nos orientaram, assim como Paulo nos
orienta, é o que os filósofos modernos chamariam de conhecimento
não apenas por descrição, mas também por conhecimento direto.3

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J. I. Packer

Permita-me ilustrar o que quero dizer com esta distinção. Eu


posso saber muita coisa sobre o primeiro-ministro britânico ou o
presidente dos Estados Unidos, mas não conheço nenhum deles.
Tenho conhecimento a respeito dos dois por descrição, mas não
tenho conhecimento direto de nenhum deles. No entanto, posso
dizer que tenho conhecimento direto em relação, por exemplo, aos
meus amigos e familiares, a quem eu conheço e me alegro em co-
nhecer. Você percebe a diferença? E conhecer a Deus, a Bíblia diz,
é mais do que apenas ter conhecimento sobre Ele.

Conhecendo Deus, conhecendo a nós mesmos


Acrescentei a quarta e última negativa de forma deliberadamente
paradoxal: conhecer Deus é mais do que conhecer Deus. “O que
você quer dizer?” você me pergunta. Eu quero dizer o seguinte:
você não pode conhecer Deus sem chegar a conhecer também a
si mesmo. E considerando que as Escrituras apresentam você a si
mesmo, se você se recusar a conhecer a si mesmo, nunca poderá
conhecer Deus como as Escrituras o apresentam.
E como a Bíblia nos apresenta a “nós”? Dizendo-nos que,
embora pensássemos que estávamos vivendo muito bem e éramos
pessoas muito boas no geral, somos, na verdade, pobres, cegos, nus
e miseráveis aos olhos de Deus. Somos pecadores e fomos destru-
ídos pelo nosso pecado. A Teologia Reformada sempre enfatizou
essa expressão do Cristianismo, talvez mais do que qualquer outra
que o mundo já viu. E a enfatizou por duas razões: tanto para que
fôssemos realistas sobre nós mesmos quanto para que tivéssemos o
verdadeiro conhecimento de Deus.
Você diz: “Qual é a conexão entre essa expressão e o verda-
deiro conhecimento de Deus?” Ora, a conexão é apenas esta: Deus
é Aquele que vem a nós em nossa desesperada necessidade, e por
meio do seu Filho Jesus Cristo nos traz a misericórdia, a graça,
o socorro e a nova vida de que precisamos para nos reerguer. E,

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Conhecendo Deus: o mundo e a Palavra

quanto mais claramente compreendemos a nós mesmos e o nosso


pecado, mais ricamente somos capazes de compreender a glória da
graça de Deus. Calvino tinha razão quando disse que a soma da
nossa sabedoria é compreendida no conhecimento de Deus e de
nós mesmos.4 E ele acrescentou: “Os dois caminham juntos.” É
isso o que estou querendo demonstrar.
Assim, conhecer Deus é mais do que conhecer Deus. Há um
sentido em que Deus é incompreensível para nós, “em sua essên-
cia”, como Calvino costumava dizer. No mistério da vida do Pai,
do Filho e do Espírito Santo, eternamente benditos em sua co-
munhão, Deus é incompreensível. No mistério de todos os seus
profundos pensamentos e de todos os seus planos para a história
do mundo, Ele está simplesmente além do nosso alcance; nesse
sentido, Ele é incompreensível para nós. Ele é “grande” demais, por
assim dizer, para ser abrangido pelas nossas mentes.
Contudo, parafraseando Calvino novamente, no que diz
respeito ao conhecimento de Deus de que falam as Escrituras, o
ponto não é as nossas mentes terem compreendido a divindade
grandiosa e de fato incompreensível. Em vez disso, a questão é
que nós, como pecadores que conhecemos a nós mesmos e a nos-
sa necessidade, tenhamos conhecido a Deus, que é infinitamente
misericordioso. Nós viemos a conhecer aquele cuja misericórdia
concorre para atender a todas as nossas necessidades e renovar a
nossa humanidade arruinada. Isto é o conhecimento de Deus: é
conhecer a Deus em Cristo como Salvador.

Conhecimento de Deus:
compreensão, aplicação, adoração

Então, como uma afirmação positiva, deixe-me dizer o seguinte:


você pergunta o que é o conhecimento de Deus, como os refor-
mados o entendem, como as Escrituras o apresentam. Bem, vou

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J. I. Packer

resumi-lo em uma fórmula: o conhecimento de Deus é compreensão


mais aplicação mais adoração. É compreender Deus como Ele se
revela no Evangelho de Cristo. É aplicar a promessa do Evangelho
em nossas vidas. E é adorar o Deus que veio a nós e se tornou o
nosso Deus e o nosso Salvador. Deixemos Calvino explicar à sua
maneira: “O conhecimento de Deus, como eu entendo, é aquele
pelo qual não somente concebemos que há um Deus, mas também
compreendemos o que nos beneficia e contribui para a sua glória;
o que, em suma, traz proveito.”5 Calvino quer dizer que, ao co-
nhecermos Deus, compreendemos a sua graça. “Nem poderíamos
dizer isso, mas estritamente falando Deus é conhecido onde não
há religião ou piedade”, diz ele novamente.6 Aí está: compreen-
são, aplicação e adoração. Aí há religião ou piedade. Ou ainda,
Calvino diz: “Somos chamados a um conhecimento de Deus que
não apenas vagueia pela mente contente com a especulação vazia,
mas que, se o compreendermos corretamente e ele se enraizar em
nossos corações, será sólido e frutífero.”7 Mais uma citação: “O co-
nhecimento de Deus não se identifica com a especulação fria, mas
traz consigo adoração a Ele.”8
A noção completa de conhecer Deus, que emerge nas Institutas
de Calvino, inclui tudo isto: reconhecer Deus como Ele se revela nas
Escrituras; dar-lhe honra e graças por todas as coisas; humilhar-se
diante dele como um pecador necessitado e aprender dele quando
Ele fala da salvação; crer no Cristo a quem Ele estabeleceu como nos-
so Salvador; depois, amar o Pai e o Filho de maneira a responder ao
amor que Eles demonstraram por nós; viver pela fé nas promessas de
misericórdia que nos são dadas em Cristo; acalentar a esperança da
ressurreição; obedecer à lei de Deus e buscar a sua glória em todos os
relacionamentos e todas as interações com as coisas criadas. Assim,
perceba que o conhecimento de Deus compreende tanto a verda-
deira teologia quanto a verdadeira religião: compreensão, aplicação,
adoração a Deus assim como Ele chega até nós em Cristo.

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Conhecendo Deus: o mundo e a Palavra

Conhecendo Deus por meio da Bíblia

Mas como Deus deve ser conhecido? Quais são os meios de se


conhecer Deus? Ora, a resposta habitual dos reformados a essa per-
gunta é dizer que o conhecimento de Deus depende da revelação
que Ele faz de si mesmo. Todavia, acredito que o impulso dessa
confissão será mais claro e vívido para as nossas mentes se substi-
tuirmos — apenas por um momento — a palavra revelação pela
palavra comunicação.
Por que sugiro essa substituição? Parece-me que a palavra re-
velação poderia indicar apenas a exibição geral de algo que está
ali para ser inspecionado se você desejar fazê-lo. Quando um mo-
numento é revelado, a estátua nele representada é exposta, então
você pode ir até ela e admirá-la. Você não é obrigado a fazê-lo,
mas ela está lá para ser inspecionada se você desejar. Acredito que
a palavra revelação nem sempre significa, para o entendimento das
pessoas, algo mais do que isso; ela não é tão boa quanto a palavra
comunicação para transmitir aquilo que, como cristãos bíblicos,
devemos estar interessados em dizer sobre a maneira como o co-
nhecimento de Deus vem a nós. A palavra comunicação, ao que
me parece, tem todas as vibrações corretas. Ela transmite os pen-
samentos de alguém — neste caso, Deus se aproximando de nós,
nos dizendo algo, apresentando-se a nós, pedindo nossa atenção,
de fato dando-nos alguma coisa. A palavra comunicar sugere tudo
isso naturalmente.
E é isso o que Deus faz. Lembre-se de que, ao revelar a con-
dição humana, a Bíblia está nos mostrando que o homem — e isso
significa nós — é feito para amar a comunhão com Deus. Na ver-
dade, o homem separado de Deus está em um estado de ter virado
as costas para Deus, ter se afastado de Deus por causa do pecado,
ter moldado seu caráter ao primeiro pecado que Adão e Eva come-
teram no jardim. E o que o homem em pecado faz? Ora, ele faz o

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J. I. Packer

que Adão e Eva fizeram: brinca de ser Deus. Ele se comporta como
se fosse o centro do universo e tudo existisse para ele. Adão e Eva
cederam à tentação de serem sábios e conhecedores do bem e do
mal, sem qualquer referência a Deus. Eles não quiseram mais de-
pender de Deus; esse foi o cerne do seu pecado original: o homem
brinca de Deus e, ao fazer isso, ele precisa enfrentar Deus. Ele tem
de desafiá-lo. Ele tem de negar ser propriedade de Deus. Ele precisa
dizer a Deus: “Não, eu não vou fazer o que você diz. Quero fazer
o que eu penso.” E essa tem sido a análise e a natureza do pecado,
desde o jardim do Éden.
Bem, todos nós, homens e mulheres, estamos sob o poder
do pecado por natureza, alienados de Deus por causa desse poder
miserável. Nossas costas estão voltadas para Deus, o que significa
que não há comunicação entre nós. Se alguém vira as costas para
você, essa não é uma postura de comunicação, não é mesmo? Se
você vira as suas costas para alguém, significa que não quer falar
com essa pessoa. E esta é exatamente a condição do homem em
pecado: ele está de costas para Deus. Mas em sua misericórdia,
Deus, o Criador, não desiste de nós. Ele ainda quer que os homens
pecadores tenham comunhão com Ele; então, embora o homem
tenha deixado de se comunicar com Deus, Ele ainda se comunica
com o homem.

Três etapas da comunicação

Como eu disse no início, existe essa comunicação geral de Deus,


essa consciência inevitável de Deus que reside em todos os homens
pelo simples fato de estarem vivos no mundo de Deus. Porém, os
homens a rejeitam. Eles afirmam não conhecer a Deus simples-
mente porque suprimiram o que sabem a respeito dele. Assim, a
revelação geral, os céus declarando a glória de Deus, o firmamento
mostrando a sua obra, as coisas invisíveis do Criador conhecidas a

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Conhecendo Deus: o mundo e a Palavra

partir das coisas que são feitas — toda essa comunicação de Deus
aos homens não produz resultados. Os homens não respondem a
nada disso.
Então, Deus faz mais. O que Ele faz? Ele nos dá uma co-
municação especial. Nós a chamamos de revelação especial. Nessa
comunicação especial de Deus há três etapas. Chamaremos a pri-
meira etapa de redenção na História. Por meio de palavras e obras,
Deus se revela no palco da História como o Salvador da humani-
dade. Primeiro, com a salvação do povo de Israel do Egito, que foi
uma tipologia da salvação final. Até que depois houve a grande e
gloriosa salvação, a salvação espiritual final operada por Jesus Cristo.
Com a redenção na História, Deus nos ensina sobre a redenção
para um mundo perdido.
Em seguida vem a segunda etapa do processo de comunicação
divina, que chamaremos de registros e escrita. Deus inspira o que
Calvino denomina como “registros públicos das coisas que Ele fez
na História”, para que o homem em todos os tempos possa saber
o que Deus fez e, assim, vir a beneficiar-se disso. E nós temos es-
ses registros nas Escrituras. A Bíblia é o registro interpretativo do
próprio Deus, daquilo que Ele fez na História para a salvação do
homem e de como isso se aplica à vida e a nós.
Então, por fim, vem a terceira etapa do processo de comuni-
cação de Deus, que chamaremos de recepção pelos indivíduos. Nesta
etapa estamos envolvidos com a obra do Espírito de Deus, que
toma a Palavra, a revela a nós e nos conduz abrindo nossos corações
para que a Palavra encontre guarida. Essa dupla abertura — a da
Palavra e a de nossos corações para que a Palavra entre neles e que
nós a entendamos — é o significado abrangido pelo uso da palavra
revelar no Novo Testamento.
Vamos considerar, por exemplo, o que Jesus disse sobre a con-
fissão de Simão Pedro em Cesareia de Filipe: “Feliz é você, Simão,
filho de Jonas! Porque isto não lhe foi revelado por carne ou sangue,

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J. I. Packer

mas por meu Pai que está nos céus” (Mt 16.17). A palavra revelar
é usada com o mesmo significado em Gálatas 1.15,16: “Mas Deus
me separou desde o ventre materno e me chamou por sua graça.
Quando lhe agradou revelar o seu Filho em mim...”
Esse é certamente um versículo rico de Paulo. Sem dúvidas, a
primeira coisa que ele significa é que Paulo recebeu um tipo muito
específico de conhecimento acerca do nosso Senhor na estrada de
Damasco: o conhecimento de quem Jesus era, Filho de Deus e
Salvador, exatamente como o mártir Estêvão dissera na presença
de Paulo (ver At 7.51–8.1). Na verdade, Paulo pensou ser correto
apedrejar Estêvão e até segurou os mantos dos executores enquanto
eles o apedrejavam e o matavam. Mas, agora, o conhecimento da-
quele mesmo Jesus entrou no coração de Paulo, portanto ele sabia
que era tudo verdade e que não podia mais negá-la. Deus revelou
seu Filho a Paulo, ele compreendeu, e o Verbo entrou nele porque
Deus abriu seu coração.
E assim, a Palavra é recebida pelos indivíduos. Deus, que or-
denou que a luz brilhasse na escuridão, brilha nos corações dos
homens para lhes dar a luz do conhecimento da sua glória na face
de Jesus Cristo (ver 2 Co 4.6). E assim como Paulo, passamos a ver
que Jesus Cristo é precisamente a pessoa que o Novo Testamento
diz que é: o Filho de Deus e o Salvador do mundo. E quando pas-
samos a saber quem Jesus é e respondemos a Ele de acordo com
quem Ele é, nós conhecemos a Deus.

A centralidade da Bíblia
para o conhecimento de Deus

Não é possível negar o quanto a Bíblia é crucial em todas essas


questões. Certamente você pode constatá-lo pela maneira como
apresento esse tema. Pois, se não houvesse os oráculos de Deus —
uma referência de Paulo às Escrituras em Romanos 3.2 — para

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Conhecendo Deus: o mundo e a Palavra

nos apresentar o que Ele fez por meio da morte e ressurreição de


Jesus Cristo em favor do mundo — em nosso favor — no palco
da História, no espaço e no tempo, talvez nunca conhecêssemos,
certamente jamais conseguiríamos conhecer Deus e seu Cristo. As-
sim, a Bíblia é crucial, e Calvino enfatiza isso no primeiro livro das
Institutas. Ele compara a Bíblia a óculos, alegando que precisamos
usá-los porque somos míopes e temos uma consciência muito vaga
e difusa de Deus. Mas quando as Escrituras vêm até nós, como
óculos, elas esclarecem o que é vago e impreciso e nos dizem com
precisão quem Deus é e o que Ele fez por nós. Em seguida, somos
confrontados com o Deus verdadeiro, e o conhecimento de Deus
se torna uma possibilidade real. Ele deixa de ser uma mancha di-
fusa e passa a ser algo definido, claro, que nos chama e nos desafia.
E Calvino tem outra imagem: a do professor. Ele diz que somos
ignorantes, mas que a Bíblia vem a nós como nosso professor, para
ser a regra do nosso pensar e falar acerca de Deus — parafraseando
Calvino. Ela vem a nós para nos ensinar o que devemos pensar sobre
Ele e sobre Sua graça aos pecadores. Ela nos ensina como devemos
falar dele e confiar nele. Nós não temos noção; necessitamos de ins-
trução. É por esse motivo que a Bíblia nos é dada para ser o nosso
professor. Outra imagem utilizada por Calvino é a de um labirinto.
Estamos perdidos em um labirinto e somos incapazes de encontrar a
saída. Para ele, assim são os pecadores vagando perdidos, sem rumo
e impotentes neste mundo tenebroso. Mas, como o próprio Calvino
diz, as Escrituras nos guiam para fora do labirinto.
Sim, por meio das Escrituras os homens podem conhecer
Deus. Sem elas, isso não seria possível, diz Calvino. De acordo
com ele, as Escrituras são vitais, e não há dúvidas de que Calvino
está certo. O princípio formador, controlador e crucial da Teologia
Reformada é sola Scriptura: somente pelas Escrituras Deus é conhe-
cido. E na Teologia Reformada, a Bíblia é considerada como Deus
pregando, ensinando, falando e dizendo-nos de modo prático o

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J. I. Packer

que Ele disse há muito tempo ao seu povo quando a Bíblia foi
inicialmente inspirada, e por meio da própria Palavra dando a si
mesmo e ao seu Filho a nós.
Assim, os reformados viram as costas à teologia especulati-
va e submetem seu intelecto ao aprendizado das Escrituras. Eles
agradecem a Deus pelas Escrituras. Primeiramente e idealmente,
eles não usam as Escrituras apenas como um bastão para bater na
cabeça das outras pessoas. De fato, eles realmente usam as Escri-
turas como um teste para verificar se o que os homens dizem em
nome de Deus é verdade; mas, em primeiro lugar, os reformados
as usam como seu próprio guia para a vida. Eles agradecem a Deus
pelas Escrituras como a gloriosa revelação suprema e final dada
por Deus. Eles não conhecem outro Cristo que não o Cristo da
Bíblia. Eles não têm outra esperança que não as promessas de Deus
contidas nela.
Para encerrar, deixe-me perguntar: a Bíblia é para você, aci-
ma de tudo, um dom da graça de Deus, a lâmpada para os seus
pés e a luz para o caminho na escuridão em que você está por
causa da sua natureza? Aprendamos com John Wesley, que era
muito mais calvinista do que imaginava. No prefácio aos seus
sermões, Wesley escreveu:

Sou uma criatura de um dia apenas, que passa pela vida como
uma seta atravessa o ar... até que em alguns momentos não sou
mais visto; caio em uma eternidade imutável! Quero conhecer
uma coisa, o caminho para o céu... O próprio Deus foi con-
descendente em ensinar o caminho... Ele o escreveu em um
livro. Deem-me esse livro! A qualquer preço, deem-me o livro de
Deus! Eu o tenho: nele há conhecimento suficiente para mim...
Sento-me sozinho: só Deus está aqui. Em sua presença, abro e
leio o seu livro... Elevo meu coração ao Pai das Luzes... E o que
assim aprendo, isso eu ensino.9

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Conhecendo Deus: o mundo e a Palavra

Sim, acima de tudo, para um cristão reformado — que nada


mais é do que um cristão bíblico, penso eu — a Bíblia será vista
como um dom supremo da graça, a Palavra escrita que nos foi
dada em nossa escuridão a fim de iluminar o caminho para os pés
da Palavra viva, Jesus Cristo, o Senhor. Aprendam a amar suas Bí-
blias, meus amigos cristãos, não simplesmente como um depósito
de proposições verdadeiras, mas como o caminho para os pés do
Salvador. Esse é o caminho reformado. Esse é o caminho para o
verdadeiro conhecimento do nosso Deus, a quem sejam o louvor e
a glória para sempre.

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