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A DOUTRINA DO NATURALISMO QUEIROSIANO: UMA REVISAO CRITICA’ Carlos Reis* Aquilo que é sugerido pelo titulo do meu texto (os caminhos por onde andar) é um conjunto de questdes que desejo congracar num todo tanto quanto possivel coerente e que enuncio em trés tépicos: a rececao do natu- ralismo por Eca de Queirds; a anélise critica e doutrindria que a espagos Ihe foi dedicada pelo escritor; eventuais correlagées terminoldgicas ¢ con- ceptuais (correlagées de proximidade e de afastamento, de completamento e de refutacao) entre realismo, naturalismo, romantismo e idealismo, este Ultimo um conceito que o E¢a doutrinador expressamente acolheu. Nao so, decerto, matérias novas, o que nao quer dizer que estejam encerradas. Eu proprio levei a cabo uma incursio por tais matérias, num coldquio cujos textos foram publicados; antes disso, os estudos de Kelly Basilio ocuparam- -se destes e de outros temas que lhe esto associados; e a tese de doutora- mento de A. Apolinario Lourenco, também editada, ¢ aqui uma referéncia obrigatéria (Reis 2005, 229-243; Basilio 1996; Lourengo 2005). Procedo a algumas distingdes preliminares, para depois avangar. Dis- tingo, no presente contexto, 0 discurso doutrindrio do discurso tebrico. O cendrio em que este se move ¢ as bases epistemolégicas que o sustentam reportam-se a segunda metade do século XX, ao trabalho feito nas e para as universidades, tendo como origem préxima, em termos socioldgicos, 0 processo oitocentista (mas com raizes no século XVIII) de institucionaliza- ao da literatura, em parte por forca de diversos e ja estudados dispositivos de legitimagao (Lopes 1994, 277). Um conhecido texto de Ega (texto dou- trindrio, note-se), a carta-prefacio ao livro de contos Azulejos, do conde de Este texto segue o Acordo Ortografico de 1990. Universidade de Coimbra. 94 CARLOS REIS Arnoso, constitui, a este propésito, um hicido e estimulante ponto de par- tida para uma reflexio mais alargada. Nao posso fazé-la aqui, tal como nao posso adentrar-me pelos fundamentos conceptuais da nogao de teoria nem pelas injungées retéricas e procedimentais que ela traz consigo: entre mui- tos outros, referiu-se-Ihe George Steiner, ainda que cum grano salis (Steiner 1989, 90ss.). discurso doutrindrio (que é 0 que agora me interessa) nao vive isolado da teoria, mas é auténomo em relacao a ela. No século XX a que Gianni Vattimo chamou 0 século das poéticas, o discurso doutrindério multiplicou-se em manifestagées varias, mas ¢ bom lembrar que essas manifestagGes assen- tam num impulso para a ponderagio metaliteréria que vem do século XIX e em especial das suas ultimas décadas. Cabe dizer, alias, que 0 romantismo foi talvez 0 movimento literério mais consciente de si mesmo, mesmo que essa consciéncia se tenha traduzido nao raro em postulagées dispersivas, quando nao antagonicas. Falo, entdo, neste texto de um discurso que é doutrindrio porque, mui- tas vezes a partir de uma iniciativa autoral (de autor literdrio, entenda-se), ele projeta sobre o discurso literario havido ou a haver reflexes de pro- pensao ensaistica, programatica ou mesmo polémica. Trata-se de proble- matizar aspetos relevantes do fenémeno literario (condi¢ao do escritor, movimentos literarios, problemas técnico-estilisticos, indagag6es genolé- gicas, fungGes da literatura, etc.), em contextos discursivos de incidéncia sobretudo paratextual e metatextual (cartas, crénicas de imprensa, prefa- cios, posfacios, ensaios criticos, manifestos, entrevistas) e, quando é 0 caso, em regime de inscrigdo metaliteraria. Por exemplo: em poemas que con- figuram poéticas ou em discursos ficcionais, pela voz do narrador ou das personagens. E neste sentido que sublinho a importancia do E¢a doutrinario. E avango desde ja, para o atestar, com trés exemplos conhecidos, se bem que nao diretamente envolvidos no tema de que aqui me ocupo. Primeiro, a carta-prefacio d’O Brasileiro Soares (1886), texto de andlise das tensdes entre a estética do romantismo e a estética do realismo, a propésito da figu- ragao ficcional de um tipo, o brasileiro, bem conhecido na cultura portu- guesa. Segundo, aquela espécie de autobiografia cultural que da pelo nome de “O Francesismo” (talvez de 1887) e que, tendo embora sido publicada apenas postumamente, é um documento muito significativo, em termos de formacao pessoal (e também geracional) e com interessantes pistas compa- ratistas. Terceiro, o admiravel “Tomas de Alencar: uma explicagao” (1889), que, mais do que um texto de polémica, ¢ uma verdadeira proposta de tra- A DOUTRINA DO NATURALISMO QUEIROSIANO: UMA REVISAO CRITICA 95 balho para desenvolvimento tedrico, envolvendo a doutrina da represen- taco realista, a estética do retrato e a semantica da personagem ficcional. Traco de seguida 0 que entendo serem os marcos da doutrina natura- lista tal como E¢a a pensou. O seu contexto de enquadramento, por assim dizer, é 0 de uma racio- nalidade genericamente positivista, se bem que atravessada por um certo ecletismo ideolégico e por derivas de orientacao determinista, em direta relagdo com a doutrina do naturalismo literério propriamente dito. Passa- -se isto, no caso de Eca, no decurso de um processo que envolveu afirma- goes, revisdes e silenciamentos, de que aqui tratarei; os textos (ou projetos de texto) em que esse processo se manifesta sao conhecidos, embora num caso se torne necessario rever 0 que sabemos. Refiro-me Aquele texto usual- mente designado como “Idealismo ¢ Realismo” (1879; é a este que voltarei), & carta-prefacio d’O Mandarim (1884), a jA mencionada carta-prefacio dos Azulejos (1886) e a “Positivismo & Idealismo” (1893). Mas a reflexao doutrindria queirosiana invade também as representa- goes ficcionais, ainda que, nesse caso, ela decorra num tom que é diferente (mas nao radicalmente diferente) do que naqueles textos se encontra. Isto nao exclui a possibilidade de tal reflexdo deslizar para um registo parddico, como aquele que encontramos n’O Mistério da Estrada de Sintra, quando © Doutor*** enceta um longa dissertacdo que, baseando-se em minuciosa observacio de fisiologista e de detetive em crime scene investigation, chega aumretrato (ou a um perfil, como dizem os criminologistas) pormenoriza- dissimo, retrato a que nao faltam asserges de indole doutrinaria!" F mais claramente ideolégico 0 discurso do narrador que formula generalizacées, a partir dos comportamentos do padre Amaro, € afirma: “todo o padre, o mais bogal, tem um momento em que é penetrado pelo espirito da Igreja ou nos seus lances de renunciamento mistico ou nas suas ambigGes de domi- nacéo universal”; do mesmo modo, “todo o subdiacono se julga uma hora capaz, de ser santo ou de ser papa’; por fim, “o abade pancudo que & tar- 1 O texto é longo, pelo que respigo apenas alguns extratos. Assim, 0 cabelo encontrado “era 0 indicio dum assassinato, duma cumplicidade pelo menos!” Mais: “A pessoa a quem ele per~ tencia era loura, clara, decerto, pequena, mignonne, porque o fio de cabelo era delgadissimo, extraordinariamente puro, ea sua raiz branca parecia prender-se aos tegumentos cranianos por uma ligacdo ténue, delicadamente organizada’. Daqui deriva-se para o cardter “doce, humilde, dedicado e amante, porque o cabelo nao tinha ao contacto aquela aspereza cortante que ofere- ‘cem 08 cabelos pertencentes 2 pessoas de temperamento violento, altivo e egoista”: Conclui-se, entio, que aquela mulher “teria sido talvez. educada em Inglaterra ou na Alemanha, porque 0 cabelo denotava na sua extremidade ter sido espontado, hébito das mulheres do Norte, com- pletamente estranho is meridionais, que abandonam os seus cabelos & abundante espessura natural” (Queirés ¢ Ortigio 1967, 48-49).

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