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O universo Imaginarium

Olá eu sou Marino, um homem trans de 25 anos. Me formei em Comunicação Visual no


IFsul, e logo em seguida fiz o bacharelado em Design também no IF. Ao terminar o bacharelado fui
pra Porto Alegre trabalhar no novo estúdio de animação da Copa Studio. Quando terminei o técnico
fui morar em Pelotas e trabalhava ao mesmo tempo em que estudava. Em 2022, eu briguei feio com
minha mãe. Meu tratamento com hormônios começou e minha mãe pirou comigo. Ela nunca
aceitou bem o fato de ter um filho trans, e isso foi a "gota d'água" pra ela. Desde então, não tenho
mais a visitado, nem ela a mim. Mantenho contato com meu pai e meus irmãos pelas redes sociais,
assim como com o resto da família. Hoje, dia 25/05/2027, estou voltando pra casa. Meu pai
pretende ir até as “pedreiras” colher macela, como fazíamos antigamente, e me convidou para
passar o feriado de sexta-feira santa com eles. Espero que seja uma boa oportunidade de fazer as
pazes com minha mãe, e que eu sobreviva a um fim de semana em família.

Ao chegar em casa parei em frente ao portão por uns instantes. Olhei ao redor e percebi que
a vizinhança não mudou quase nada. Quanto a “minha casa” segue a mesma casa laranja de sempre.
E quem diria, a primeira a me receber é Anita, nossa cachorra, abanando seu rabo e me olhando
feliz. Mesmo eu tendo mudado tanto, ela ainda me reconhece e faz festa pra mim. Uma festa um
pouco mais calma, agora ela já é uma senhora. Coloco a mão pela grade do portão e acaricio sua
cabeça. Faço menção de gritar alguém pra abrir o portão mas, no meio do caminho paro. O que eu
deveria gritar? Mãe? Pai? Família cheguei? Penso um pouco e acabo gritando “ô de casa” como
meu pai fazia ao chegar do serviço nos fins de semana. A taxa de resposta não mudou, ninguém
venho abrir o portão pra mim, então gritei novamente um pouco mais alto. Não demorou pra que eu
ouvisse um certo alvoroço dentro de casa, e minha mãe perguntando “Ninguém vai ver quem tá no
portão não?!”

A primeira pessoa a me ver foi minha irmã Antônia. Ela parou por um instante e me
observou de cima a baixo. "Maruzinho!" disse enquanto abria o portão "Você veio mesmo!". Nos
abraçamos, era bom vê-la pessoalmente, após tanto tempo se falando apenas virtualmente. Fomos
conversando até a porta da sala, onde todos me viram chegar. Artur e Angelina vieram correndo me
abraçar também. Eles estão tão grandes! Quando eu saí de casa eles eram uns pirralhos ainda. Meu
pai e minha vó também vieram me abraçar. Todos estavam muito contentes com a minha chegada. E
cheios de perguntas sobre tudo. Após finalmente ser solto dos abraços, eu olhei pra minha mãe. Ela
me olhava com uma certa desconfiança. Eu não queria chorar, mas era impossível. Ela veio até mim
e me abraçou, dizendo: “Que bom te ver minha filha.” Ah, foi como uma facada, mas eu me
segurei. Eu sabia que ela faria isso, mas lá no fundo, eu esperava que ela me chamasse de filho.
Provavelmente, eu nunca vou ouvir isso dela, é melhor que eu pare de esperar algo que nunca vai
acontecer.

Conseguimos ter um almoço tranquilo. Eu contei sobre meu emprego, meu apartamento,
meu gato chamado Kuro que teve de ficar com a vizinha, as coisas boas. Claro que eu omiti meu
namoro relâmpago que deu errado, que eu quase fui assaltado voltando do trabalho, e que já
marquei minha cirurgia pra remover os seios. É melhor deixá-los com as notícias alegres pois não
quero preocupá-los. Agora só quero que tudo fique bem, e que esse feriado seja calmo a tranquilo.
Depois do almoço eu arrumei minhas coisas num quarto da casa da vovó. Fiquei feliz dela manter
minha foto de formatura na parede. O eu de quando me formava em comunicação visual e o eu de
agora são um pouco diferentes, mas sinto que a essência permanece a mesma, e o cabelo permanece
incontrolável. Meu pai chegou na porta do quarto e perguntou se eu queria ir ver as coisas que ele
construiu no fundo do quintal. Uma estufa, uma forja, até uma piscina tinha no quintal agora. Ele
me mostrava suas criações cheio de orgulho. Eu sinto que puxei dele essa vontade enorme de criar,
e todas essas ideias malucas.
Antes de dormir, minha mãe veio conversar comigo. Tudo o que ela disse eu já esperava
ouvir. Nada de pronomes, nada de filho, nada de aceito. Eu a abracei e disse “Tudo bem mãe. Eu te
amo mesmo assim.” Ela ficou em silêncio por um tempo, eu disse boa noite e fui me deitar. Quando
estava pronto pra dormir e a um passo de me deitar, minha vó me chamou. Ela conversou comigo, e
me atualizou sobre o que acontecia em casa. Algumas coisas eu já imaginava ou sabia pelo o que
conversava com meus irmãos, outras me surpreenderam um pouco. Após altas conversas,
finalmente fomos dormir. Depois de tanto tempo dormindo no barulho da cidade grande, dormir no
silêncio é difícil. Custou um pouco, mas o cansaço me venceu e eu apaguei.

No dia seguinte eu descobri que meus irmãozinhos seguem barulhentos. Na verdade, o forte
da família nunca foi o silêncio. Foi divertido estar com eles novamente, brincando e rindo. Eu
ajudei a fazer o almoço, e aproveitei pra exibir minhas táticas culinárias que aprendi com minha
experiência de sozinho preguiçoso. Como as táticas de usar o mínimo de louça possível, e minhas
receitas práticas, rápidas e deliciosas. Sinto que meu pai ficou do tipo “Virou gente” ao me ver
cozinhando. Realmente, eu amadureci muito morando sozinho. Quando não tem mais mamãe e
papai pra nos cuidar, acabamos crescendo na marra. Claro que algumas coisas nunca mudam, e meu
desastre com os copos de vidro seguem o mesmo. Durante mias primeiras horas de estadia, eu
quebrei 2 deles. Agora devo um novo conjunto de copos pros meus pais.

Depois do almoço nos preparamos pra colheita. Sacolas, garrafas d'água, bonés, calçados
confortáveis, filmadora e mais alguns badulaques de sobrevivência do papai. Pegamos o carro e
fomos até um lugar próximo da colheita. Eu, papai e as “crianças” já não tão crianças assim. Mamãe
e vovó resolveram ficar em casa, vovó já não tem muita disposição pra essas “aventuras” e mamãe
não é muito fã de mato. Ao chegar nas pedreiras estacionamos o carro num lugar seguro e
começamos nossa “aventura”. As pedreiras mudaram um pouco. Todos esses anos de exploração
acabaram com a maioria das pedras que nós escalamos antigamente, felizmente agora tem uma área
que foi “reflorestada”. Ela era nosso destino naquele dia. Antônia ia filmando nossa jornada. Papai
ia nos dando dicas de “isso é comestível”, “isso não é comestível”, “isso pode fazer fogo” e coisas
de sobrevivência. Angelina e Artur pareciam curtir o caminho. Ambos com seus smartfones em
mãos, tiravam fotos de tudo.

Nossa exploração dos matos estava indo muito bem, exceto pelo fato que não estávamos
encontrando nenhuma macela. De repente eu vi uma casa abandonada no fim de um barranco. Meu
pai me ajudou a descer com uma corda, e eu fui explorar o interior da casa. Suas janelas estavam
quebradas, a paredes de madeira pareciam bem apodrecidas, a natureza estava engolindo a casa
vagarosamente. Não era nada muito grande, nem havia nada de extraordinário, exeto por uma
escada que dava em um sótão. Movido pela curiosidade, subi a escada com cautela. A última coisa
que eu queria era quebrar uma perna ou algo assim caindo da escada de madeira podre. O telhado,
em sua maioria, estava “ausente”. O sótão estava cheio de folhas secas e teias de aranha, e no meio
de tudo aquilo havia uma única caixa de papelão que parecia ter parado no tempo.

Naturalmente, uma caixa de papelão se desmancharia sendo colocada em um lugar tão


inóspito. A menos que ela estivesse a pouco tempo ali, o que não parecia ser o caso, pois quando a
movi, descobri que as tábuas embaixo dela também pareciam intactas. “ok, seja lá o que for isso,
deve ser algo muito bizarro” pensei eu. Estava prestes a abrir a caixa quando um pensamento
passou voando pela minha cabeça: “E se tivesse um bicho dentro da caixa? Ou então, vários
bichinhos? aaaaaaaaa”. Pude ouvir a risada de meu pai ecoar no fundo da minha mente dizendo
“mas tu não é de nada hein”. Respirei fundo, me afastei um pouco, e abri a caixa. Por dentro a caixa
parecia ainda mais nova que por fora. Dentro dela havia um livro com inscrições estranhas. Todas
em algum tipo de pedra? Eu não sabia dizer o material só de olhar, e quando eu toquei o livro, ele
literalmente brilhou. Abafei um grito de susto, e fiquei paralisado observando o livro maluco. Suas
inscrições brilhavam em várias cores diferentes. Eu me senti extremamente tentado a abrir o livro. E
logicamente, foi isso que eu fiz.

A primeira vista eu não conseguia entender absolutamente nada do que estava escrito nele.
Como que num sonho, eu sabia que algo estava escrito, mas não conseguia visualizar direito. De
repente, eu simplesmente comecei a entender do que se tratava o livro. Era um “manual do
universo”. Não do meu universo, de um universo completamente novo e totalmente “em branco”
me requisitando para criá-lo. Eu aceitei, senti meu corpo se desmanchando, e pude ver meu corpo
sumindo junto com tudo a sua volta. Pensei ter virado um espírito, pois eu estava vendo meu corpo
como se ele estivesse na minha frente. Ao mesmo tempo que eu podia vê-lo por outros ângulos
também. Ainda assim, eu sentia ele. Todos seus pedacinhos. Eu conseguia sentir a estrutura da casa
“indo em bora” e uma energia muito intensa de um lugar completamente diferente. Tudo explodiu,
como numa supernova, tudo era luz por alguns instantes até ir lentamente se acalmando.
Lentamente dando lugar a uma vesta imensidão cheia de estrelas por toda a parte.

Baixei a cabeça, eu conhecia aquele lugar. Eu sabia exatamente onde eu estava e quem eu
era. Naquele momento eu estava na criação de Imaginarium. Eu era a Deusa Mari, e as primeiras
estrelas se formavam ao meu redor. Eu comecei essa história quando tinha 12 anos. Eu não tinha
muitos amigos, então ficar imaginando histórias era meu passatempo. Eu fui aperfeiçoando minha
capacidade de imaginar e criei essa história. Que eu vivia dia após dia. Uma deusa criadora de tudo
e de todas. Ela foi evoluindo com o passar do tempo, e conforme eu ia adquirindo conhecimentos e
me modificando, o universo da minha história ia se expandindo. A cada dia mais histórias e mais
personagens nasciam. O meu problema era que eu não escrevia nada delas. Na época eu não tinha
experiência de escrita e desenho o suficiente para tal. Então ela foi ficando em conceitos de
personagens, resumos de contos, tudo que eu planejava transformar em uma grande série de livros,
HQs e animações. E agora, cá estou eu, vivendo realmente a história que criei!

Bom, a história começou a ser criada quando eu tinha 12 anos, eu nunca consegui criar uma
boa origem pra deusa Mari (que mais tarde se tornou Deus Mari quando me descobri trans). Agora
eu tinha a origem perfeita! Deus Mari era o criador da história que passou a vivê-la de uma forma
mais adulta e realista! HA! Eu fiquei muito feliz e senti o impulso de começas a escrever só que...
Eu estava preso no universo da minha história. Mais especificamente, numa parte do tempo onde eu
era uma Deusa sozinha no meio de um universo recém-nascido. E se eu bem lembrava o que vinha
a seguir, não era nada bom o que eu ia passar. Desde os 12 anos eu sempre fui meio triste. E isso se
refletia nas minhas histórias no universo de Imaginarium. Elas eram compilados dos meus medos,
tristezas, pensamentos, ideologias, conhecimentos... e o deus Mari, principal personagem presente
em todas as histórias do universo, era o que mais sofria, trazia e apaziguava os sofrimentos do
universo.

Agora, não havia volta. Eu estava ali, eu precisava enfrentar a história que criei. Meu inicio
seria amargo, e eu teria que passar por muita dor, mas eu chegaria em momentos bons. Então eu
respirei fundo e deixei a história avançar. Antes de começar, eu olhei pras estrelas e realizei: viver a
história que criei para o deus Mari era meu maior sonho, e meu maior pesadelo. Viver as histórias
que eu ia criando aleatoriamente seria meu maior presente e minha maior punição. Deveria eu ter
sido mais bondoso com meus personagens? Não. É na dor que descobrimos o verdadeiro valor da
felicidade. E uma história feita apenas de momentos felizes, seria horrivelmente sem graça. Fechei
os olhos, respirei fundo mais uma vez, e percebi mais uma coisa. Se agora eu estava vivendo no
universo que criei, o que aconteceu com minha vida antiga? Será que uma duplicata minha ficou
vivendo no mundo “real”. Ou será que eu morri, e renasci aqui. Eu sabia e não sabia a resposta.
Provavelmente eu jamais veria ninguém do mundo real novamente. Minha família e amigos ficaram
pra trás, e agora eu estou sozinho no meu próprio mundo.
Que irônico…

Observações:

Desculpa fazer um texto tão enorme. Acabou que a história de mudar toda a vida ficou no fim, e
bem resumida.

Eu entendi que o personagem era pra ser literalmente eu. E eu resolvi escrever a história no futuro,
já que eu não conseguia me ver encontrando uma caixa com algo tão maluco nesse momento.

Caso o fim tenha ficado confuso, o que rolou foi o seguinte:

Quando eu tinha uns 12 anos comecei umas histórias e a pensar no “Universo imaginarium” e até
hoje eu ainda crio histórias e personagens pra esse universo, nada muito escrito ou detalhado,
apenas ideias, conceitos e resumos. E nessa história maluca que eu criei, o eu do futuro volta pra
casa depois de muito tempo longe (acho que eu me perdi da premissa do trabalho fazendo essa
parte) e encontra um livro maluco numa casa abandonada, que me leva pra dentro do universo
Imaginarium. Mudando minha vida pra sempre. Pois agora eu estou preso no universo que eu criei,
e não posso mais voltar pro meu universo.

Eu juro que eu escrevi isso completamente não sob efeitos de alucinógenos, e eu não sou maluco
professora. Talvez eu seja só um pouco, mas a história ficou bem legal né?

Eu vou seguir adicionando mais história nisso, (mas pra entregar como trabalho eu acho melhor
parar aqui) e inclusive, essa premissa de trabalho me deu a ideia perfeita pra resolver o maior
problema do meu universo imaginarium (que seria o surgimento do deus Mari)

Criar um universo de histórias é a coisa mais divertida que eu faço na minha vida.

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