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EXPEDIENTE

Edição: Ano 01 - Nº 10 - Janeiro de 2019


Periodicidade da publicação: mensal
Idioma: Português (Brasil)

Editores: Marcelo Bizar e Marco Trindade

Conselho editorial: Marcelo Bizar, Marco Trindade, Sônia Elã, Kátia Botelho
Secretária-geral: Sônia Elã

Revisão: a revisão dos textos é feita pelo próprio autor, não sofrendo alteração pela
revista (a não ser tão-somente quanto à correção de erros materiais).

Diagramação: Marcelo Bizar

Capa: Concepção: Marcelo Bizar e Marco Trindade; Arte e Grafismo: Marcelo Bizar

Imagens: todas as imagens não creditadas foram retiradas da Internet, tendo


optado o Conselho Editorial da revista por não identificar seus autores quando
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EDITORIAL
Janeiro é “O MÊS” no subúrbio, basta dizer que é o período de férias dos
estudantes, molecada nas ruas correndo, soltando pipa, jogando bafo-bafo − será
que ainda existe?! − andando de bicicleta naquele asfalto fumegante, mas sem
problema, nada que um bom e velho banho de mangueira na calçada não resolva,
ou aquele também insuperável “tchibum” na tradicional piscininha de mil litros, oh
coisa gostosa!
Pra rapaziada mais experiente, moças e rapazes, é a estação irresistível para
a cerveja gelada, aquele papo maneiro, um churrasco de primeira ao cair da tarde,
a indispensável e providencial roda de samba, mês que serve de preparativo para a
tão aguardada festa, o carnaval. Milhares de foliões já estão botando seus blocos
nas ruas dos subúrbios.
Sem esquecermos também que diversos lares suburbanos mantêm a tradição
de festejar o “Dia de Reis”.
E falando em tradição cristã, nesse 2019 a coisa tá feia, nem uma aguazinha
pra lavar nossa alma, hein, São Pedro?! Como é que é?! (risos).
Também somos filhos de Deus e pulamos carnaval!
Avante, suburbanos, bebendo muita água, e sempre com um olho no padre e
outro na missa.

Al l a h - L a Ô
(Haroldo Lobo / Nássara)

Allah-lá-ô, ô ô ô ô ô ô
Mas que calor ô ô ô ô ô ô

Atravessamos o deserto do
Saara
O sol estava quente
Queimou a nossa cara

Allah-lá-ô, ô ô ô ô ô ô
Mas que calor ô ô ô ô ô ô

Viemos do Egito
E muitas vezes
Nós tivemos que rezar
Allah! Allah! Allah, meu bom
Allah!
Mande água pra ioiô
Mande água pra iaiá
Allah! Meu bom Allah!
SUMÁRIO

02 - Expediente
03 - Editorial
04 - Sumário
05 - Hoje enterrei minha mãe
06 - Alaíde e Áurea
07 - Nesse ano que passou
09 - A morena do decote
10 - Dez anos sem Luiz Carlos da Vila (última parte)
17 - De doer a alma
20 - Jenner Menezes
22 - O samba, eterno mensageiro da alegria
23 - Era uma vez, em Madureira...
27 - Preço da ambição
28 - Mulher preta violentada na roda de samba
30 - Museu Imagens do Inconsciente
32 - Poema
33 - Atirei o pau no gato
34 - Afropictosofia
36 - Temposiçao das Almas Íncubas - 2º Pentakapitel: IV. Paladar
39 - Da Abolição ao Pechincha
41 - Um lugar no subúrbio
42 - Viu-se finalmente
43 - Biblioteca Suburbana
44 - Um quilo bem pesado
47 - Vitrolinha Suburbana
48 - Noturno Suburbano
49 - Política, cerveja e a melhor moela com batata do mundo
52 - Blog do Tiziu
Hoje enterrei minha mãe

Mãe.
Hoje enterrei minha mãe. Há alguns meses foi meu pai, e agora ela. Partiu
serena, dormindo em sonho de paz.
Há algumas semanas nos encontramos e pude sentir o quanto ela sentia falta
do meu pai, ela ansiava encontrá-lo de novo.
A história deles é linda e para conta-la tenho que começar com a minha.
Nasci com um karma de culpa e sofrimento, pois em meu nascimento minha mãe
morreu.
Não lembro muito da minha primeira infância, mas lembro bem quando meu
pai me apresentou a Angélica, era um colo gostoso, um sorriso doce.
Sua luz iluminava a casa, seus olhos seus gestos carinhosos, foi minha mãe,
confidente, amiga.
Carreguei por muito tempo a culpa da morte de minha mãe. Angélica me
escutava e dizia: só viva, nunca se culpe. A culpa é a pior desculpa pra não viver.
Meu primeiro namorado, minha primeira desilusão, meus 15 anos, quando ela fez
uma surpresa convidando minhas 3 melhores amigas para passar um final de
semana na praia. Minhas bombas no vestibular. Pra tudo sabia que podia contar
com seu apoio. Sua sopinha pra febre, seu bolinho de chuva no final da tarde pra
acalmar o estresse de meu pai. Tudo se acomodava em seu colo de Mãe e mulher
de meu pai.
Ela não me deixava abater. Assim; fui morar com amigas durante a faculdade,
trabalhar pra pagar meus estudos. Quando eu reclamava, ela ria e dizia: Minha filha
querida, você pode fazer tudo, você nunca precisará ser rica, mas nunca há de lhe
faltar nada. E no seu coração há de sempre ter a alegria de viver, mesmo que doa.
Angélica nunca ficava doente, estava sempre disposta e conhecia os desejos, os
caprichos, e a nobreza de meu pai.
Devo a ela o apoio ao enfrentar um casamento desastroso, na dor de me
descobrir estéril.
Hoje enterrei minha mãe Angélica que viveu com meu pai por 35 anos, que
me adotou como filha.
Coloquei na coroa de flores: a melhor mãe do mundo – Saudades eternas.
Sua certidão de óbito, guardei comigo:
Morreu no dia 24 de junho de 2010, José Antonio Morais no Rio de Janeiro....
Minha Mãe Angélica

Do r i n a G u i m a r ã e s
Alaíde e Áurea

“O arrojo pedagógico de Henriette Amado foi interrompido no dia 20 de


agosto de 1971, quando foi presa, por ser fiel aos ideais pedagógicos contrários ao
autoritarismo em vigor e por se engajar ativamente na luta pela restauração das
liberdades democráticas (...) Ao ver dona Henriette ser retirada da escola e presa
por militares, o sendo de justiça de Áurea Martins falou mais alto. Pegou sua bolsa e
saiu para nunca mais voltar.” 1
Nascida em Água Santa, Alaíde Costa ganhou nota máxima no programa de
Ary Barroso, interpretando Noturno em tempo, de Custódio Mesquita e Evaldo Ruy.
Tinha apenas 16 anos e chamou também a atenção de João Gilberto seu timbre de
voz, que se se encaixava na bossa nova em ascensão. Logo emplacou o sucesso
Onde está você, de Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini.
Carioca de Campo Grande, Áurea Martins despontou para o público ao se
tornar vencedora do programa A grande chance, de Flávio Cavalcanti, na TV Tupi,
em 1969. Ganhou como prêmio uma passagem para Portugal, terra de seu segundo
companheiro, o pianista Vasco Negreiros.
Alaíde acabou sendo preterida na bossa nova. O preconceito racial expresso
no pejorativo apelido de “Ameixa” parecia explicar o ocorrido. Mesmo assim,
chegou a ser convidada pelo pianista Oscar Peterson para cantar nos Estados
Unidos, o que recusou pois tinha então dois filhos pequenos. Guarda gratidão por
Vinícius de Moraes, que lhe deu um piano, além das letras de Amigo Amado e Tudo
o que é meu.
Áurea ainda trabalhava como inspetora do Colégio André Maurois, no Leblon,
quando em 1971 presenciou a prisão da diretora. Opta em definitivo pela carreira
musical e passa a cantar em casas noturnas, ganhando a admiração de nomes
famosos, como Elizeth Cardoso e Johnny Alf, todos encantados pela sua bela voz.
Depois de mais de 50 anos de carreira, Alaíde gravou o sonhado CD autoral,
registrando parcerias com Tom, Vinícius e outros em 2014, pouco depois de ser
biografada por Ricardo Santhiago, autor do livro ALAÍDE COSTA – FARIA TUDO DE
NOVO.
Áurea ainda se mantém como um das grandes cantoras de sua geração,
tendo sido agraciada com a Medalha Pedro Ernesto e gravado depoimento para o
MIS em 2017, ilustrando sua trajetória vitoriosa. Também foi tema da biografia
mencionada.

Orl a n d o Ol i v e i ra

1- “Áurea Martins – a invisibilidade visível”, Lúcia Neves, RJ, Folha Seca, 2017, pg. 65/ 66.
Ne s s e a n o q u e p a s s o u !

Fui Artista, fui Poeta, fui canção.


Fui Samba Enredo de coração...
Na Uva brindei com vinho.
E com Garras do Tigre
Segurei minha emoção!!!
Conheci várias pessoas.
Fiz amigos e amigas!
Nesse Ano que Passou.
Conheci a esperança que, achei jazia morta.
Sorri, chorei e, até gargalhei!
Nesse Ano que Passou.
Fui amado por, meus filhos, por meus netos e família...
Despertei o meu amor!
No Sarau Prata Prosa e Poesia
Fiz dois anos, quem diria!
Nesse Ano que Passou.
Convidei, fui convidado.
Prata Prosa e Poesia!
Como é bom, ter atenção!
E por que não, compartilhar.
Um Dedo de Prosa com amigos e Poetas?
Transbordando em alegrias!
Nesse Ano que Passou.
Bem na Hora-H fui um cara Tropical.
E como na Web a Música Tá Ná Pista
Sarau Subúrbio hoje já é Revista.
Nos juntamos em harmonia!
Num ensaio fotográfico eu virei fotografia.
Transformando Alma em Versos
Sou Poeta e sou real.
Uma festa de palavras, um encanto de magia!
Nesse Ano que Passou.
E quando pensei que superava em alegria.
Com a chegada do Davi...
Percebi que algo mais novo, a vida me daria.
Uma paz, em demasia???
Mais um neto, ou neta!?
Não é minha essa magia!!!!
E agora serão cinco espalhando alegria.
E apesar dos atropelos que, também se fazem presentes.
O meu Ano sim, terminou em Poesia!!!

Junior da Prata
A morena do decote

A menina do decote
É um poema dissoluto,
É cantiga de luxúria
Lindamente desvairado.

A morena cor de bronze


Do vestido pequenino
É passista nas escolas,
Pagodeira nos botecos
E se dá nos becos negros,
Nos motéis de baixo preço
Em volúpia incendiada.

A mulher do ar de malícia
Bebe assim como dois homens,
Nunca sonha, apenas vive,
Nunca chora, mas se alegra
E é a estrela das biroscas,
A princesa das bodegas
E a rainha do sambão.

A mulher exuberante
Faz parar inteira a Penha,
Faz luzir a madrugada,
Faz sorrir o homem mais triste,
Faz sambar a multidão

Ba r ã o d a M a t a
Dez anos sem Luiz Carlos da Vila (última parte)

Apesar de ter sido uma operação bastante complicada, Luiz renasceu para a
vida e, como diria depois no CD que lançaria, deu um salto mortal sobre a morte.
Passou a ser acompanhado de perto por dois médicos de esquerda, que viraram
seus amigos, doutor Bigu e doutor Lauro. A preocupação dos médicos com Luiz
passou a ser controlar os excessos da boemia, seu principal adversário a ser
superado.
E lá estava Luiz, maio de 2003, na casa da cantora Luiza Dionisio, entre Vila
da Penha e Irajá (Vila Rangel para ser exato),feliz da vida, cantando músicas
inéditas para os amigos, como "Benza, Deus!" (parceria com Moacyr Luz),
"Chorando de Saudade" (com Mauro Diniz). Essas duas músicas fariam parte
daquele que é considerado o seu melhor disco na carreira, o CD "Benza Deus",
lançado em 2004. Neste trabalho, Luiz incluiu parcerias suas com João Nogueira
("Como eu te quero bem"), com Magno e Maurílio do Quinteto em Branco e Preto
("A agulha e o dedal"), com Claudio Jorge ("Em nome do amor"), com Wilson das
Neves ("Ao nosso amor maior"), com Nelson Sargento ("Lara", em homenagem a
Ivone Lara), com Bira da Vila ("Vem pra roda sambar", música que acabou não
entrou entrando no segundo disco do grupo feminino Roda de Saia), com Gilmar
Simpatia ("A Luz do Axé", que poderia ter sido a segunda música de LCV no
segundo disco do grupo Toque de Prima, mas não foi) e com Riko Dorileo
("Universo"). Gravou um samba enredo seu derrotado na Quilombo ("Solano, Poeta
Negro"), em parceria com Nei Lopes e Zé Luís do Império, que considero o melhor
que ele fez. E uma parceria com Wanderley Monteiro "Pra conquistar seu coração",
o samba mais famoso do disco, que ouvimos de forma inédita, com ele e
Wanderley, no quintal da sua casa. A música seria seria logo gravada por Beth
Carvalho.
Sua marca em todas as composições é gritante: sempre elementos
contrapostos, contraditórios, no mesmo verso, na mesma estrofe, porém fazendo
um todo harmonioso na obra. Mas, a música mais bonita do disco, que retratava o
momento difícil que tinha passado, era "A Cigarra e o Samba", que interpretou de
forma emocionante no lançamento do disco, em um Teatro Rival lotado. Os versos
"Em tempos de pouca alegria/ Se é para morrer morrerá com melodia" davam a
dimensão da sua batalha contra a morte. O CD recebeu grandes elogios da crítica
especializada, com destaque para a análise de Hugo Suckman feita para o jornal "O
Globo".
Paralelamente, Luiz (Vila da Penha), junto com a cantora Dorina (Irajá) e
Mauro Diniz (Oswaldo Cruz), lançava o movimento "Suburbanistas", no sentido de
valorização das coisas do subúrbio, além de ser uma brincadeira bem humorada
com o midiático "Os Tribalistas", de Marisa Monte, Carlinhos Brown e Arnaldo
Antunes, que estourou nas rádios, em 2002 e 03. Luiz, Dorina e Mauro Diniz
passaram a fazer apresentações conjuntas, divulgando os "Suburbanistas".
Do movimento cultural da Vila da Penha, da segunda metade da década de
noventa e início dos anos 2000, pouco tinha ficado: a Rádio Comunitária seguia
fechada; Chico Pereira tentou comprar a casa, perto do bar, onde fazia atividades
culturais, mas não conseguiu; eu, Luiz Carlos Máximo e Luiz Carlos Patropi
seguíamos tocando o Bloco do Rabugento, afastados do Bar Papo de Esquina, em
função de considerarmos a visão de Luizinho, o dono do bar, mercantilista em
relação à cultura. Isso nos afastou dos demais ativistas culturais que continuavam a
frequentar o botequim. Para "Das Vilas" tinha gente que era "Luizinho de
carteirinha".
Uma das tentativas para combater a dispersão foi a construção do Centro
Cultural Octávio Brandão, em uma casa de fundos na residência da cantora Luíza
Dionísio. O CCOB era uma iniciativa de militantes de esquerda, da União Comunista,
do PSTU e do PSOL. Por outro lado, Sérgio do Carmo, Chico Pereira, Graça Schitinno
e Kokito (irmão do Luizinho) seguiam promovendo encontros de poetas e músicos
no bar, regularmente. Os grupos se frequentavam e LCV passou a frequentar os
dois espaços, naturalmente. Assim como ia no Centro Cultural, dava apoio ao
pessoal que agitava culturalmente o bar. Curtia Johnny Maestro ("Dúvida/ da
dúvida, duvidar") e principalmente Ibys Maceioh ("Bolero Made In"). Apesar de não
ter paciência para ler poesia (mesmo tendo ganhado de Martinho da Vila a coleção
completa de livros de Carlos Drummond de Andrade) LCV gostava de ouvir,
particularmente poemas curtos, como os feitos pelo poeta gaúcho Mário Quintana.
Foi no Centro Cultural, que Luiz Carlos da Vila cantou de forma inédita a sua
nova parceria com Bira da Vila ("Então Leva", gravada anos depois por Zeca
Pagodinho) e "Brasileirice" (com Luiz Carlos Máximo, que daria o nome do CD de
2010 da cantora Dorina). Foi nesse dia que LCV me perguntou porque o nome do
Centro Cultural se chamava Octávio Brandão e não Pixinguinha, figura histórica do
subúrbio da Leopoldina que ele tanto admirava. Tive que lhe explicar que Octávio
Brandão, vereador comunista duas vezes cassado, que tinha como apoiador o
jornalista e botafoguense João Saldanha, além de ter sido poeta, lutara muito pela
educação e cultura pública no Rio de Janeiro. Não o convenci.
No Centro Cultural também foi organizado uma roda só de samba inéditos,
como se fazia na Quilombo. Estavam lá nesse dia, além de "Das Vilas", Wanderley
Monteiro, Ratinho, Bira da Vila, Riko Dorileo, Marquinho China, entre outros. Mas, o
CCOB teve vida curta naquele endereço: Luiza Dionízio teve que vender a casa e o
Centro Cultural passou a fazer suas atividades provisoriamente em Ramos, na
residência de Nélson Marques e Lúcia Trevisan (perto da antiga casa do
Pixinguinha), até se instalar em Maria da Graça. Meus contatos com Luiz Carlos da
Vila passaram a ficar mais esporádicos. Ele tinha até topado que eu e Luiz Carlos
Máximo fizéssemos uma biografia dele (eu ia incluir mais dois parceiros
historiadores, Cristiano Borges e Fernando Peixoto), mas a ideia não foi adiante.
Ainda no ano de 2004, Luiz voltou para a Vila Isabel e disputou com Agrião,
Claudio Jorge e Jonas o samba-enredo da agremiação para o ano seguinte. A Vila da
Penha se mobilizou pela vitória do seu poeta. Fui em um dos "cortes" e ele até ficou
meio chateado comigo e com Marcão Souza por termos também gostado do samba
de Vilani Silva, o Bombril, defendido por Anderson Baiaco. Na final, Luiz e os
parceiros perderam injustamente para André Diniz. Nos bastidores da disputa,
muitos integrantes da Vila acusavam Luiz ter se afastado da escola, quando a
escola esteve por alguns anos no grupo de acesso.
No ano de 2005, LCV tentou novamente ganhar o samba na Vila, agora em
parceria com Martinho da Vila. Considero essa obra superior a do ano anterior.
Íamos para a Vinte e Oito de Setembro, esperávamos Analimar (filha de Martinho)
distribuír as senhas e entrávamos na quadra para fazer o coro e a torcida. O samba
era muito melhor do que o do André Diniz, mas que acabou novamente vencedor.
Essa composição seria gravada pelo cantor argentino Fito Paez e também por
Martinho, no disco "Enredo", de 2014.
Dois mil e cinco foi um ano tranquilo para Luiz Carlos. Menos agitado, fora
uma cicatriz que ficou um bom tempo no seu rosto, em função de uma queda,
provocada por uma labirintite. Foi um ano em que produziu o disco "Matrizes",
bastante elogiado pela crítica, com Claudio Jorge, com todos os tipos de gêneros
musicais brasileiros, com influência negra. De sua autoria, LCV só registrou no disco
"Das Origens" e "Singrando os Mares Bravios", o samba derrotado na Vila, de 2004
para 2005. No disco, "Das Vilas" regravou o empolgante samba do seu afilhado
musical, Bira da Vila, com Serginho Meriti, "O Daqui, o Dali, o de lá", que era para
ter entrado no disco de Zeca Pagodinho de 2002, mas acabou perdendo a vaga
para "Deixa a vida me levar" , música também de Serginho Meriti e Eri do Cais.
Também em 2005, finalmente saiu o CD ao vivo de Luiz, "Um cantar à
vontade" e ele acabou entrando mais uma vez no disco de Zeca Pagodinho, "À
Vera", com "Dizer não pro adeus", belíssimo samba, em parceria com Ivone Lara, de
quem era fã, e Bruno Castro. Segundo Luiz Carlos Máximo, o raio de parceiros do
xará estava aumentando: além de Ivone Lara, tinha também Ivan Lins, Francis
Hime...
O bom momento na carreira de Luiz Carlos foi comemorado no bar, em
atividade organizada por Sérgio do Carmo, Chico Pereira, Kokito, apoiados por
Graça, Antônio Schittino e Horácio, com direito a um belo poema feito por Kokito
("Poeta da Vila"), dedicado ao sambista. Mais de 700 pessoas compareceram, no
pequeno Papo de Esquina, com a canja de Monarco e presença de Ubirany do Fundo
de Quintal e do médico Drauzio Varella. Os organizadores fizeram até uma camisa
com o Pelicano, símbolo do Papo de Esquina, abraçando o vira-lata Rabugento,
numa tentativa de nos reaproximar. Mas, continuávamos intransigentes com
Luizinho: fomos lá, abraçamos Luiz Carlos e acompanhamos tudo, de frente ao bar,
na casa do Patropi.
Dias depois, por coincidência, Luiz foi chamado, com outros compositores
gravados no disco "À Vera" de Zeca Pagodinho, para participar do programa do
Faustão, na Globo. Novo rebuliço no Papo de Esquina e nova atividade, com 700
presentes. Depois, na comemoração do seu aniversário, em uma quadra lotada do
Cacique de Ramos, o produtor Fernando Gama deu a ideia daquilo que seria a
principal atividade profissional de Luiz, nos próximos anos: o "Caldos e Canjas", na
esteira do sucesso do "Samba do Trabalhador", organizado por Moacyr Luz, no
Clube Renascença do Andaraí. No CD do "Samba do Trabalhador", "Das Vilas"
regravaria "A Luz do Vencedor" e entraria com uma inédita, "Cabô, meu pai", em
parceria com Moacyr Luz e Aldyr Blanc, música que estouraria três anos depois com
Zeca Pagodinho.
No carnaval de 2006, foi a única participação de Luiz no Bloco do Rabugento,
que ele ajudara a fundar compondo a primeira música. Bastante animado e
inspirado em uma das músicas que estavam sendo apresentadas pelo bloco (de
autoria de Manoel o Audaz), Luiz tentou fazer uma de improviso, sacaneando o
evento organizado pela prefeitura do Rio, em pleno carnaval, com a presença dos
Rolling Stones: "Au, au, au,au, au! Mick Jagger não é pedra pro meu carnaval!",
dizia o refrão final.
Ainda no início de 2006, nova atividade no Papo de Esquina, agora dos
"Suburbanistas", comandada por Dorina. Luiz não pode comparecer por ter
compromissos profissionais. Bem menos gente, mas ainda sim público numero para
o simpático pé-sujo: duzentos presentes que assistiram a "canja" de Arlindo Cruz.
Já o "Caldos e Canjas", a princípio no quintal da casa de "Das Vilas" teve que ir para
a Lona Cultural de Vista Alegre: a casa começou a ficar pequena para tantas
pessoas. Só que como tinha ocorrido com o forró comandado pelo amigo Jonas
Ribbas e o Bando Trololó, anos antes, LCV fez o ponto no espaço para depois ser
alijado do mesmo. Acabou Jane e ele parando com o "Caldos e Canjas" no Bohêmios
de Irajá.
Meus encontros com Luiz, afora o "Caldos e Canjas", passaram a escassear.
Foram poucos, nos dois derradeiros anos: na Copa de 2006, na casa de Luiz Carlos
Máximo e Luíza Dionísio no Flamengo, depois da estreia do Brasil na Copa. Outro
encontro foi indo para uma Oficina de música de jovens em Duque de Caxias, que
Bira da Vila incentivava: saltei do carro no meio do caminho e ainda ouvi ele descer
o pau no compositor Toquinho: ´"È um Toquinho, mesmo!", sem saber que doze
anos depois, o parceiro de Vinícius ia virar simpatizante do Bolsonaro. Em outra
oportunidade, estivemos na casa do compositor Ratinho, na "Toca do Rato". Sempre
bem humorado, "Das Vilas" deu uma canja, com uma das versões que cantava de
"Sábado em Copacabana", regravação de Nana Caymmi, que abria a novela
"Paraíso Tropical" da Globo: "Um bom lugar/ Pra se fumar/Marijuana..."
Outro encontro foi por acaso no restaurante Capela, quando ele chegou com
Fernando Gama e me apresentou Zózimo Bulbul, com a mesma naturalidade que de
outras vezes tinha me apresentado Nélson Sargento, Beth Carvalho, intérprete de
tantos sambas seus, Seu Jorge, que gravara "Samba que nem Rita adora". Afinal,
seus amigos eram também amigos dos seus amigos. E lembrar que anos passados,
poucos dias antes dele ir a primeira vez no Papo de Esquina, estávamos eu e Luiz
Carlos Máximo no mesmo Capela, no aniversário de Mariozinho Lago e Osvaldo
Tatagiba, observando de longe a presença de LCV, Darcy da Mangueira, Beth
Mendes, Galotti, Dorina e Didu Nogueira.
Mas, um desses poucos encontros foi especial: Luiz apareceu no meu
aniversário de 42 anos, em 2007, no Centro Cultural Octávio Brandão, já
funcionando em Maria da Graça. Com roda de samba comandada por Rogerinho
"Família", "Das Vilas" me pediu para cantar com ele, "Chico Rei", samba enredo do
Salgueiro de 1964, feito por Geraldo Babão. Nessa, eu o deixei na mão: não sabia
cantar o samba todo. Aliás, LCV tinha particular apreciação pelos sambas enredos
passados, afinal era esse o seu aprendizado. Me lembro dele, no quintal da sua
casa, tocando ao violão, "Samba, festa de um povo", belíssima e desconhecida
composição de Darcy, Hélio Turco, Odir, Luís e Batista, que levou a Mangueira
vencer o desfile de 1968.
No carnaval de 2008, o Bloco do Rabugento decidiu voltar para o Papo de
Esquina, após Luisinho ter passado o ponto do bar. O enredo do Bloco também
homenageava Luiz Carlos. Fiz um esboço de letra, Manoel o Audaz melhorou
bastante e botou melodia. Cantei para ele, o refrão do meio: "É Bicão lá na Cetel/ é
Bicuda na Anatel/ Da Travessa da Amizade/ Vem Luiz Carlos, o menestrel". Ele
tomou um gole de cerveja e exclamou: "Maravilha!". Não sabia ele que tive que
mexer na terceira estrofe do refrão, que era inicialmente "Com Brandura e
Coragem...": em razão da sua parceria com Luiz Carlos Máximo, em homenagem a
Vila da Penha "Vila do meu coração", a ideia de falar do nome das ruas (Brandura,
Coragem, Amizade, Inspiração, Justiça) já tinha sido usada na composição que seria
gravada em disco por Luísa Dionísio, dois anos depois. Depois, LCV fez algumas
considerações sobre a composição que eu lhe apresentara, achando que a mesma
caía no final. Como se eu fosse compositor! Bom, ganhei nesse dia dele uma camisa
dos "Suburbanistas" em homenagem ao Xangô da Mangueira, a segunda que ele
me dava de presente (a primeira foi a da Verde e Rosa). Os Suburbanistas que,
naquele carnaval de 2008, foram enredo da Unidos de Santa Tereza.
"Das Vilas" seguiu na sua generosidade, dando força para a nova geração do
samba. Foi-se a época em que sentia ciúmes, gerando, às vezes, atritos com jovens
sambistas. Sua composição "Eminência Negra" (parceria com Wilson das Neves) foi
gravada pelo novato grupo Galocantô. A mesma atitude LCV tinha para os "filhos"
da Vila da Penha: quis terminar um samba de Luiz Carlos Máximo com Jorge Ribeiro
Pinto, homenageando Martinho e Noel, coisa que infelizmente não ocorreu. Também
entrou no disco de Moyseis Marques, com "Profissão" e prefaciou o livro "`Papo de
som com amigos na esquina" (Poemas e Canções), do movimento cultural que
persistia no Papo de Esquina. No penúltimo encontro que tive com LCV, no
Bohêmios de Irajá, ele já estava de cinta, achando que era uma hérnia. Foi no dia
que inauguraram um enorme mural desenhado por Floriano, com ele ao centro,
cercado por intérpretes e parceiros. Também estavam pegando depoimentos de
amigos sobre ele e eu dei o meu, contando a história que ele tinha me passado
sobre como tinha sido a sua vitória no Festival de Avaré.
Na verdade, não era hérnia: Luiz tinha retornado aos excessos da boemia e o
câncer tinha voltado com muita força. Encontrei pela última vez no show do 1º de
maio de 2008, na Cinelândia, no ato-show organizado pela central sindical
CONLUTAS. JR (que chegou a ter um bar arrendado na Lapa com uma roda de
samba comandada por Ivan Milanez, sua esposa Romana e o grupo de jovens do
"Além da Razão", base do futuro Galocantô) agitou para ele fazer a principal
apresentação do show. Ao final, nos encontramos e ele, ao ver que eu estava com
jornais do coletivo União Comunista, fez um comentário contraditório , após realizar
uma apresentação para a comunista Conlutas: "Dom Alex, comunismo é coisa de
velho!". Retruquei na hora: "Mas, eu sou velho!". Acabamos sorindo. Foi a nossa
despedida.
Antes de ser internado, "Das Vilas" passou pela casa de Luiz Carlos Patropi e
chamou o amigo para ir na feira do IPASE, beber cerveja e comer ova de peixe, em
frente a tradicional Adega Duas Nações, onde tinha criado o lema preso na parede
do restaurante: "Duas nações, um só coração". Segundo Patropi, LCV estava
angustiado. Foi internado em meados de 2008. Passou os seus 59 anos no hospital.
Não viu o lançamento do livro que tinha prefaciado, nem o sucesso que os seus
sambas "Cabô, meu pai" e "Então leva" fariam no disco "Prova de Amor" de Zeca
Pagodinho. Também não ouviu o CD da sua amiga Dorina, que tinha um samba seu
em parceria com Riko Dorielo ("Sonhava"). E nem soube do resultado da disputa
interna da Vila Isabel, em que concorria com uma composição longe das suas
tradições em parceria com Arlindo Cruz ("Uma merda, neguinho!", teria dito para
ele o amigo Sérgio do Carmo).
Infelizmente, dessa vez não deu para dar o "salto mortal sobre a morte": no
dia 20 de outubro de 2008, falecia Luiz Carlos Baptista, aos 59 anos, suburbano de
Ramos e da Leopoldina, mas cidadão do mundo como Luiz Carlos da Vila; ex-
funcionário do SERPRO e da Escola Nacional de Ciências e Estatística (ENCE, na rua
André Cavalcanti, Centro); que passou por mais dois vestibulares, mas não cursou,
filho de um aeroviário e uma dona de casa, sambista por dom e profissão. Casado
com o grande amor da sua vida, Jane Pereira; que assumiu a paternidade de
Maiana, segunda filha de Jane Pereira, num registro em cartório agitado por seu
amigo e parceiro, Amarildo Silva. Estandarte de ouro em 1988 e campeão do
carnaval daquele ano, prêmio Sharp também de 1988 (com "Além da Razão",
concorrendo com "Kizomba", dele mesmo). Autor de mais de 300 músicas
gravadas, com grandes parceiros e intérpretes, um dos maiores nomes do samba
de todos os tempos e como escreveu no JB de 21/10/2008, o jornalista Álvaro da
Costa e Silva, o "Marechal", o mais talentoso da geração do Cacique de Ramos.
Seu velório foi na quadra da Via isabel: Jane chorando muito, Dona Esmerilda
desconsolada, presença relâmpago de Zeca Pagodinho, e Beth Carvalho e Dorina
tentando segurar o gurufim, cantando os seus sambas. Seu enterro, no cemitério de
Inhaúma (onde foram enterrados tantos sambistas), mesmo com as pessoas
cantando as suas composições, foi muito triste. Até que um arco-íris apareceu no
céu: foi como ele estivesse ali. Ou como ele mesmo escreveu no samba "Graça da
Vila" foi "o canto mais negro que passarinhou no céu".
Depois da sua morte, a primeira homenagem foi a criação do Instituto Luiz
Carlos da Vila. Depois, o Bloco do Rabugento, em 2009, sairia com música de
Kokito, em homenagem ao poeta da Vila da Penha. Além disso, LCV viraria nome de
escola em Manguinhos, em 2009. Lembrei do dia que eu, estudante de História da
UERJ, junto com os colegas de curso, levei ele para uma palestra que contava horas
de estágio para nós, na escola Barcelona, onde lecionava Graça Schittino. "Das
Vilas" foi com grande prazer. Os estudantes riam do seu jeito às vezes ingênuo de
falar, mas todos silenciaram e viram que estavam diante de uma personalidade,
quando ele começou a tocar "O Show tem que continuar" e "Kizomba". Todos
conheciam esses sambas.
Em 2013, Dorina gravou "Sambas de Luiz", somente com a obra do grande
sambista. E, em 2015, Gustavo Clarão juntou o empolgante "Nas veias do Brasil" e
"Um dia de graça" e colocou como samba enredo da Unidos de Viradouro. Foi como
se a escola de Niterói estivesse pagando uma dívida com Luiz Carlos da Vila, que
em 1996 tentara emplacar o samba da escola, mas fora prejudicado na final pelo
presidente da agremiação, o bicheiro Monassa e pelo carnavalesco Joãosinho Trinta,
por quem LCV não nutria simpatias, desde que Joãosinho fizera comentários
depreciativos ao desfile de "Kizomba", em 1988. Se a intenção da Viradouro foi
essa, acabou não funcionando: a escola foi rebaixada para o grupo de acesso.
Em início de 2018, Marcelo Bizar e Marco Trindade fizeram a música do Bloco
Rabugento, novamente engrandecendo "Das Vilas" e sua obra. E, no final de 2018,
saiu a biografia de Luiz Carlos, "Princípio do Infinito" (nome de um samba de LCV
com Claudio Jorge), que é um perfil de Luiz Carlos da Vila, de autoria de Luiz
Antonio Simas e Diego Cunha. Uma biografia correta, que corrige até algumas
imprecisões cometidas por mim, sendo duas essenciais: quem deu a melodia de
Candeia para Luiz letrar e se tornar "A Luz do Vencedor", foi João Baptista de
Medeiros Vargens e não Lena Frias; e que Luiz chegou a estar pessoalmente com
Candeia, uma única vez. Mas, faltou na biografia amigos importantes que
conviveram com o homem Luiz Carlos Baptista e não com o artista Luiz Carlos da
Vila, como Sérgio do Carmo, Graça Schittino, Luiz Carlos Patropi, Jonas Ribbas, Luiz
Carlos Máximo, Lício Viola, Horácio, Luísa Dionísio. Foram eles e o movimento
cultural da Vila da Penha, do qual faziam parte ou somente apoiavam, pessoas
chaves no momento mais intenso e brilhante na carreira de Luiz Carlos da Vila.

Alex Brasil - Historiador*

*Historiador, que depois de quatro longos artigos sobre Luiz Carlos da Vila, vai "tomar um ar" e volta
em abril.
De d o e r a a l m a

Não tinha vinte e cinco anos, mas agia e tiritava como se tivesse noventa.
Praguejando aquele frio todo. Ah o verão, isso sim é viver! Corpo disposto, mente
em estado de graça. Crianças, vendedores de sorvetes, mais crianças: _ pai, só
mais um? _ Não! Ah a grama, dimensionando o estado de espírito da estação! Ali,
bem próximo, casais trocam juras embaixo de copas de árvores cheias de
cumplicidade.
_Olha o algodão doce! _ Moço, quanto custa? Eram assim os dias de verão,
mas não para todos! À beira mar, a disputa milimétrica por um espaço na areia
quase virava caso de polícia. Porém, os verdadeiros casos: _ minha bolsa, minha
bolsa! _Alguém viu a minha bolsa? A dita cuja, passeava a trezentos metros dali,
deslizando suavemente entre as mãos de dois pivetes agraciados com um maço de
cigarros, um batom usado, duas pulseiras do calçadão de Copacabana e, a
recompensa mais valiosa por tamanha ousadia para um domingo de praia
lotadíssima, a carteira!
É razoável supor que tal símbolo do capitalismo fosse o que de fato importava
na “operação rato de areia” daqueles descolados amigos da distração alheia.
Porém, quando se depararam com aquelas surradas duas notas de dez reais, as três
moedas de um e mais quarenta e cinco centavos bem trocadinhos, logo concluíram:
muito esforço por pouco.
Entretanto, um olhar mais apurado, revelou ao mais velho “roedor” (ainda
assim muito novo), uma agradável surpresa: estavam ali, no porta moedas,
grudados um no outro, um par de brincos reluzentes sob o Sol abrasador das 15:00
horas ( 14:00h no horário dos inconformados com a mudança institucional da
natureza)._ É ouro, cumpadi!
Assim, se vê um dia típico de verão! _Mas, por que me dou a esses delírios?
Meus ossos pesam quatro toneladas! Câimbras se espalham por todo o corpo.
Agrido-me, socando os ombros tenazmente, dentes serrilhando num bruxismo
capaz de intimidar o mais inabalável dos exorcistas.
Homem e natureza medem forças. O primeiro ostenta a falsa glória de ser o
maior e mais nocivo dos predadores. A segunda, com muita frequência, nos
apequena e fragiliza diante da sua fúria._ Mas, por que meu cérebro nesse
momento crucial e glacial ainda se permite fazer reflexões filosóficas? Justamente
na hora em que tudo ao redor é puro gelo, onde o mercúrio do termômetro mostra-
se derrotado em muitos tracinhos abaixo de zero.
É o limite da falsa supremacia humana. Dedos congelados, pálpebras
recusam-se a se levantarem e a coriza cristaliza-se em milésimos de segundo._
Agora percebo com o pouco que me resta de energia, o real significado da
expressão “morrer de frio”!
_Os segundos e minutos eternizam-se no relógio digital. Que consolo, se fosse
um daqueles analógicos, os ponteiros certamente estariam parados. Minha mente
está tão cansada, não diviso bem o espaço. Tudo tão gélido! A lanterna começa a
falhar. Será esse o meu fim, congelado e na mais profunda escuridão? De repente,
ao longe, sons incompreensíveis se repetem. Engrenagens estridentes se
aproximam do que resta de mim. Tudo terrivelmente estranho, meu medo e a
minha ansiedade não se refletem nos batimentos cardíacos. Talvez, eu já não os
tenha mais.
_Penso, enlouqueci? Ao redor, mesmo no negrume do local, percebo
movimentos. Mas como, se estou sozinho nessa imensidão gelada? Correntes se
arrastam, sons estranhos se repetem e tornam-se pavorosos. Tento erguer-me
inutilmente. Esse ato levou as minhas últimas forças.
_Engrenagens, correntes, metais e metais estalando! Então julgo: deve ser
alguém a ajudar-me! Como? Quem saberia que eu estava ali? No limite da
exaustão, mal conseguia respirar, sequer pedir socorro.
Entretanto, nos estertores da tenuíssima existência, aquele homem fez um
último movimento com a mão direita para cima, alongada pela lanterna, que tal
como o dono, produzia um fraco feixe de luz e esbarrando numa coisa maciça cai
esgotado. O corpo, decúbito dorsal, estava inerte no chão.
De repente, as pontas dos dedos se mexem quase imperceptíveis. Abre-se
lentamente um olho. Ele vê a luz da lanterna voltada para si: _ mas, em que
esbarrei? Será uma máquina ou uma pessoa? Quem será esse desalmado que não
me acode? Será que estamos na mesma situação? Diante do silêncio, virou-se
lentamente para a direita, arrastando a lanterna que havia desligado sobre o gelo.
Braço curvado, bate o objeto luminoso no chão uma, duas, três vezes! _ Funciona
bosta de lanterna! Sabia, não devia confiar nessas geringonças made in ...! Bate
mais uma vez.
No entanto, contrariando a sua análise preconceituosa sobre as “maravilhas”
de R$ 1,99, a lanterna religou. Mas, para o seu bem, melhor seria que continuasse
desligada. _ Deus! O que é isso? _ Estou delirando? Mas, como posso se estou com
os olhos abertos?
Diante de si, avoluma-se uma enorme coisa de uns trezentos quilos! _ Estou
perdido! Nesse exato momento, a luz da lanterna diminui, diminui e apaga. _ É o
meu fim! Correntes arrastavam - se, barulho de peças retorcidas. _ Ah, as minhas
pernas! Câimbra maldita! Sinto a presença da morte! O frio lhe congela todos os
poros. _ Que monstro será esse? E por que eu?
_Mas, o que adianta tais indagações se ninguém pode salvar-me! Por que este
monstro não me ataca? O que está esperando? Predador e presa a poucos metros
um do outro! _ Já sei, está esperando que vencido pelo frio e pelo cansaço, me
torne presa fácil!
_ Senhor, é justo que eu morra aqui, no meio do nada? Não! Não será tão
simples assim! Morrerei lutando, contra quem quer que seja! Arrasta-se pelo chão
gélido, lanterna na mão, procura freneticamente afastar-se dos sons macabros.
Segue em frente, tenta mais uma vez com a lanterna, nada! Tenta
desesperadamente mais e mais e, quando já estava desistindo, deixa cair o braço
com a mesma e esta, ao bater no chão, religa-se outra vez milagrosamente.
Com a fraca luminosidade da lanterna buscou orientar a sua visão. A mente e
os olhos procuravam um rumo, inútil. Os sons assombrosos tornam-se mais
próximos e ele, mesmo cambaleante, esforça-se em ficar de pé e a cena se torna
mais aterradora. Não mais teria a preciosa ajuda do fraquíssimo foco de luz da
lanterna, que desligara de vez._ O que foi isso que esbarrou em mim? Quem está
querendo me derrubar?
E, toda vez que tentava se levantar era golpeado por todos os lados! Parecia
que os seus espancadores faziam fila para bater-lhe mais e mais. Terríveis e frios
golpes, que o faziam sangrar. Seus torturadores na sanha de espancá-lo, não
deixavam reerguer-se. Misturavam-se aos golpes, sons de ganchos deslizando
sobre o metal frio. Era uma sádica tortura.
Desfalecido, corpo ao chão e respiração fraca, reage com um movimento de
cabeça ao barulho de metal rangendo. Percebe que lhe sacodem várias vezes,
batem-lhe no rosto, mas não consegue voltar a si. Pouco tempo depois, abre
lentamente os olhos e observa a movimentação de alguns homens vestidos de
branco dos pés à cabeça, pronunciando coisas inaudíveis. _ Quem são vocês? Por
que me bateram tanto? Articula lentamente.
Em seguida, é arrastado pelo chão frio, quase não sentindo o próprio corpo.
Indo em direção a uma enorme porta de metal semi aberta. Dois homens o apóiam
sobre os ombros até um gigantesco pátio, onde raios solares quase lhe cegam os
olhos.
_ Num instante, ainda apoiado pelos dois homens, olho para trás tentando
entender tão macabra experiência e, com a visão ainda meio embaralhada, leio
num gigantesco letreiro: “FRIGORÍFICO NOVO MUNDO”!
Nesse ínterim, um vigilante velho e barrigudo resolve vasculhar os bolsos do
casaco do insólito cidadão e encontra um crachá, onde se lia: AUXILIAR DE..., uma
receita amassada com a assinatura indecifrável e, por último, uma caixa de
NARCOLEPSOL 50mg.

Silvio Silva
J en n er M en ez es

Fazendo a faxina de início de ano, para liberar espaço na memória do


computador, encontrei alguns contos que um grande amigo havia me enviado para
avaliação. Fiquei envaidecido na época, e continuo, foi como ter recebido um
grande prêmio literário.
Parceiro de longas corridas, principalmente em torno da lagoa Rodrigo de
Freitas, uma ou outra partida de voleibol, na praia, e de muitas conversas, ficamos
distantes por um bom tempo. Reencontrei-o tocando pandeiro numa roda de samba
e prometemos nos juntar para futuras parcerias musicais e literárias. Somente os
contos, que ele me enviou por e-mail, levamos a efeito. O restante fomos
empurrando com a barriga como se fôssemos senhores do tempo. Ano passado, ao
tentar felicita-lo pelo aniversário, soube que havia morrido a pouco mais de quatro
meses. Até breve: Jenner Menezes.

Trigo Sarraceno
Jenner Menezes

"Como um zumbi, acompanhado da solidão do exílio, dirigiu-se ao restaurante


predileto e pediu ao rapaz que organizava a fila de espera uma mesa com dois
lugares. Aguardou pacientemente o chamado e entrou sozinho.
Por acaso foi encaminhado à mesma mesa que estiveram recentemente,
mosaico colorido, uma vela acolhedora, meio escondida, própria para troca de
carinhos e confidências. Escolheu o crepe de camarão com roquefort, sempre a
mesma pedida deliciosa, não abriam mão, não ousavam mudar, o trigo sarraceno,
as folhas frescas, que pareciam ter saído da horta naquela hora, verdes, alegres,
que não necessitavam azeite, temperadas com esmero, com cuidado.
O garçom africano, solene, ainda trôpego no português dispôs os dois
pratos, e ele pediu duas taças do vinho da casa. Pegou seu guardanapo e colocou
no colo e o outro sobre a cadeira vazia à sua frente. Quando o vinho chegou,
brindou, uma taça em cada mão.
Já era alvo de discretos olhares, aguçados quando a comida chegou e foi
servida irmãmente pelo camaronês nos dois pratos. Servia-se primeiro do seu prato
e em seguida levantava-se e dava uma garfada no prato colocado na sua frente,
tomava um gole e voltava para a sua cadeira. Depois preferiu alternar as garfadas e
o vinho sem sair da cadeira
Podia sentir a presença dela, a via em todos os rostos, o sorriso estrelado, o
prazer em saborear aquele prato e seu olhar de parceira. Parceira como nenhuma
outra, parceira como mãe dedicada, como o cachorro da infância, como a primeira
bicicleta. E contou em voz baixa para ela como fora o seu dia, o novo conto, o
progresso no violão, o horror que sentira com o episódio dos cartunistas franceses,
e a dor da sua ausência, a boca seca, a palpitação constante, e a ginástica
compulsiva, extenuante, e o andar incansável pelos lugares por ela_percorridos,
pelos seus trajetos, na busca de uma coincidência forçada.
E segredou, com veemência, não terminou.
Com sofreguidão limpou os pratos, bebeu das taças até a última gota. Saciou-
se entre lembranças, soluços, desesperanças. Dessa vez não pôde dividir a conta."

Kaju Filho
O samba, eterno mensageiro da alegria

O samba é o rei de resistência o ano inteiro


É amigo dos poetas, compositores e foliões
Pois quem bebe desta fonte nunca perde o horizonte
Se banha num mar de inspirações.

Com o rufar dos tamborins e o toque dos tambores


Sua voz ecoa em todo mundo
Traz a energia dos seus ancestrais
Riqueza que jamais se perderá na lembrança.

Faz das rodas da vida o seu palco de amor


Em sintonia de paz com seus filhos de fé voa em liberdade
Plantando e semeando no caminho a esperança e o axé
É esplendor da nossa miscigenação, fruto de consagração da cultura e da arte.

É na ginga do tempo que o samba se eterniza em oração


Um verdadeiro ritual que celebra a amizade
Neste terreiro de libertação, o samba é...
Eterno mensageiro da alegria que contagia a humanidade.

Elaine Morgado
Era uma vez, em Madureira...

Esta crônica foi inspirada nos diversos bate papos com meus parceiros de
boteco, os camaradas suburbanos felizes e convictos, Danilo Firmino, Ivan Milanez,
Onésio Meireles, Ivan Lima, Cláudio Cruz, Rodolfo Caruso e tantos outros, sem
deixar de citar a influência do admirável samba “Subúrbio” de Marcelo Bizar e Sílvio
Marcelo. Foram essas as mesmas lembranças que citei num encontro que tive com
Zé Keti, para quem contara coisas dos tempos idos num bairro que, embora já
houvesse chorado pela sua vedete principal, Zaquia Jorge, a estrela pioneira do
teatro rebolado do subúrbio da Central, era um reduto de prazer, não só da
Serrinha, mas também para mim.
Eu quero falar de um dos mais tradicionais bairros desta cidade, aquele que
possui uma cara bem carioca, principalmente em se tratando de cultura popular
nesta Cidade que continuou snedo maravilhosa, mesmo depois de ter deixado de
ser capital federal. Eis então a Madureira do final dos anos 50 e início dos anos 60,
num tempo de menos violência e um pouco mais de paz e alegria. Essa Madureira
era outra, mais provinciana, mais romântica, mais folclórica e boa de samba, aliás,
muito boa de samba e de bambas.
No mapa elaborado na cabeça de um garoto que batia perna por toda a
redondeza, aquele era um bairro divido geograficamente por duas vias férreas (da
Central do Brasil e da linha auxiliar, em Magno, hoje estação Mercadão). Era
também servido pela linha de lotação Madureira-Monroe (depois Madureira-Mauá).
Seu Manoel, um vizinho português, tinha dois lotações nessa linha e sua esposa,
Dona Maria, vivia aborrecida, às voltas com os furtos de mangas, de goiabas, de
caquis, de cajás-manga, de amoras, enfim, tantas frutas roubadas mais gostosas do
que as do meu quintal. Lembro os disputados jogos de botões sobre as calçadas
(como o saudoso Ataulfo Alves cantara). As “peladas” de rua com bola meia ou de
borracha vermelha que ardia nos pés a cada chute. Lembro ainda do radinho de
pilha que anunciava de longe que o Brasil ganhava pela segunda vez o campeonato
mundial de futebol. Depois o bi campeonato cujas imagens dos jogos só eram
possíveis de serem conferidas no dia seguinte, em “vídeo-tape”. Esse radinho
anunciou também as vitórias da nossa tenista maior, a meiga Maria Ester Bueno,
nas quadras da Europa, e ainda as vitórias do galo Eder Jofre, além do bi-
campeonato mundial de basquete (Amaury, Rosa Branca, dentre outros). Tempos do
Sputnik, de Yuri Gagarin e da cadelinha Laika viajando pelo espaço, mostrada nas
manchetes dos jornais com sua expressão de desentendida. Dentre as aventuras
dos meninos do lugar, uma delas era a de brincar de assombração, à noite, de
lanterna em punho e sustos constantes, pelas dependências escuras do velho
prédio de um frigorífico desativado. Havia também as excursões ao morro da Bica,
até a pedra rachada ao meio de cujo cimo se avistava toda a cidade. Os rapazes
desbocados colocaram nessa pedra um apelido chulo aqui impublicável. Contava
uma lenda que originalmente a pedra era compacta, mas que certo caçador
apontara a espingarda para o céu dizendo que iria matar deus e que, ao atirar, a
pedra se rachou e ele morreu preso na grande fenda que se formou. Diziam até que
o fantasma dele vagava por lá. Havia outros medos também. Medos bobos e medos
sérios. Os medos bobos eram, por exemplo, os que tínhamos do Gigante da Fábrica
de Balas, de pés e mãos enormes e voz alta e cavernosa. Nessa loja comprávamos
as famosas balas “Futebol”, com figurinha dentro e álbum para colecioná-las. Ficava
na rua Domingos Lopes que ainda era dividida por compridos canteiros repletos de
tamarineiras, as mais gostosas da minha adolescência. Os medos sérios eram as
diversas vítimas das quedas dos trens que perdiam partes dos membros, quando
não a vida, e atraíam muitos moradores curiosos pelo espetáculo da dor e da
desgraça alheia. Ou o receio do ladrão invadir a casa, andando agachado e se
escondendo debaixo da cama. O temor de passar em frente à vila onde se
postavam os supostos assaltantes do supermercado Peg-Pag. O medo de ser pego
por alguma “fera da Penha”, por algum “Cara de Cavalo” ou por algum “Mineirinho”
das redondezas.
Mas haviam coisas curiosas e divertidas, como a frota de táxis que fazia a
ligação com um lugar chamado de Fontinha (em Osvaldo Cruz) com a inscrição na
lataria: “Lotação: 4 passageiros”, que chamávamos de “Intocáveis” devido à
semelhança com os carros de um seriado policial da tevê. Curioso é que naqueles
tempos, quem não tinha televisão, assistia na casa ao lado e eram apelidados de
“televizinhos”. Haviam apenas quatro canais an época: as tevês Rio, Tupi, Excelsior
e Continental que transmitiam os desenhos animados do Titio Hélio (Pica-Pau,
Popye, Tom e Jerry), Noites Cariocas, o piano da Tia Amélia, Virgínia Lane, o
coelhinho da Phillips, o Circo Bom-Bril, dos palhaços Carequinha, Fred, Zumbi e o
anão Meio-Quilo, o espadachim Falcão Negro, o humorístico Ali Babá e os Quarenta
Garçons, Times Square e o Grande Teatro Tupi. Os muitos comerciais bastante
artesanais, porém muito interessantes com os simpáticos porquinhos das Casas da
Banha, das Casas Pernambucanas, da Tonelux, da Galeria Silvestre (depois do sol,
quem ilumina seu lar é a Galeria Silvestre). No rádio, os seriados apresentavam os
heróis que reproduzíamos nas brincadeiras, como “Jerônimo, o Herói do Sertão”, “O
Sombra”, “Radar, o Homem do Espaço”. O peixeiro ao pé da ponte para o qual
vendíamos jornais, com malandragem tola de colocar as revistas Fatos e Fotos e O
Cruzeiro, mais grossas, para fazer mais peso nos lotes de papéis para pesar mais e,
logicamente, custar mais, até ser descoberto e levar tremendo esporro do raivoso
vendedor. Inesquecível a emoção de assistir pela primeira vez a uma partida de
futebol ao vivo em Conselheiro Galvão (América x Madureira. Que belas cores nos
uniformes!). Aos domingos ficávamos fissurados para assistir aos jogos. Então
postávamo-nos à entrada do estádio para ver a chegada dos ônibus dos clubes com
os jogadores, muitos craques da época como Castilho, Telê, Belini, Vavá, Dida,
Zagalo, Garrinhca, Didi, Nilton Santos, Quarentinha, Parada, Paulo Borges e
Bianchini. Risonhos e simpáticos, passavam a mão nas cabeças da garotada
encantada que gritava seus nomes. E depois assistir aos jogos do alto do morro
próximo, entre perigosas torres de alta tensão. Curioso é que dali se via somente a
metade do campo. As compras no antigo mercado (hoje quadra de ensaios da
escola se samba Império Serrano). O Clube dos Caçadores.
A correria atrás de doces no dia de Cosme e Damião. Os cinemas com barulhentas
cadeiras de madeira: Cine Coliseu, Cine Alfa, o Cine Madureira com sua tela que
ficava às costas, ao entrar, o “poeirinha” Cine Colorado, com a tela na parede
lateral e que estremecia à passagem do bonde, o inacabado cine Beija-Flor. Os
primeiros passos do adolescente metido a homem feito na boemia e na
malandragem, que ainda não era tão barra pesada, atuando desastrado nas mesas
de sinuca. Os bares-cafés Haia e Amorim. O medo da polícia e da mal afamada
Invernada de Olaria e até da dupla de PMs apelidada de Cosme e Damião. As
filmagens de “O Boca de Ouro” pelas ruas do bairro. O primeiro supermercado com
auto serviço, o Disco. A escola Carmela Dutra, a saudosa escola pública Paraná, o
curso de admissão no colégio Madureira, as ousadas travessuras de ginasiano do
Colégio Lemos de Castro, aterrorizando alunos, professores, inspetores e até
diretores, dada a transgressão e rebeldia. O pioneirismo do cabelo grande antes da
beatlemania, bastante criticados em casa, na rua e no colégio. As arranhadas no
aprendizado de violão desafinado por meio das canções da Bossa Nova, dos Beatles
e da Jovem Guarda. A primeira amada platônica, lourinha de olhos verdes (ou azuis?
Ah, eterna dúvida!). As primeiras saudades de amores correspondidos e não
correspondidos. Os primeiros poemas ingênuos, repletos de erros de gramática, de
rimas pobres e versos de pé-quebrado.
E, então a explosão de alegria no Carnaval! O coreto reproduzindo a torre
Eifel. Os inúmeros blocos de sujos se espalhando animados pelo percurso
constante: Avenida Edgard Romero, Rua Carolina Machado, Rua Maria Freitas, Rua
Carvalho de Souza e novamente Avenida Edgard Romero, ou pelas Galerias Avatar e
Maria Freitas. As fantasias de Clóvis ou Bate Bola, de Nega Maluca, Boneca de
Pano, Carrasco, Diabo, Morcego e Caveira, o Pierrô solitário cuja lira era uma tampa
de vaso sanitário. As fantasias criativas, inventadas na última hora, como os índios
de toalhas e tamancos, foliões com os cabelos tingidos de anilina colorida, linhas de
crochê agarradas nos cabelos das pernas dos homens, formando círculos
multicores. Os bailes proibidos do clube Rosetá. Os bailes permitidos no clube
Imperial e no Madureira Tênis Clube. A antiga sede da querida e gloriosa Portela,
carinhosamente chamada de Portelinha. O ensaio geral e o desfile da Portela com a
presença e comando forte de Natal. O impressionante desfile no bairro da escola de
samba Império Serrano com belíssimo samba de Silas de Oliveira, tendo Mestre
Marçal nos tímpanos. A observação à distância dos bambas portelenses em papos
nos botequins. A presença tímida, quase imperceptível de um rapazola que viria a
ser um dos maiores compositores da nossa música popular mais autêntica, o
grande e querido Paulinho da Viola. Os primeiros contatos, frente à loja Ducal, com
os comunistas (muitas vezes decepcionados ao nos surpreenderem farreando nos
blocos carnavalescos, vestidos de mulher, achando que não se devia esperar muito
da juventude alienada). A campanha política, o comício na vila onde funcionava o
jogo de bicho de Natal, espremidinho na multidão para ver e ouvir de perto os
discursos dos candidatos a presidente e vice presidente, general Lott e João Goulart.
O comício na Praça do Patriarca com Jânio Quadros e Carlos Lacerda. A decepção
com a vitória de Jânio. A tristeza com a derrubada de Jango e o início da longa dor
nos longos e tristes anos de chumbo da inadmissível “Ditadura” que atingiu até o
carnaval de rua, proibindo fantasias e composições musicais que satirizassem o
Governo, tolhendo a criatividade do povo carioca festeiro, espontâneo e sarcástico.
Por fim, a importante participação como o último remanescente da criação
espontânea do bloco das Piranhas, na esquina da rua Firmino Fragoso com a
estrada do Portela, junto com o amigo Moisés, o duro beque do Bonsucesso e, anos
depois, jogador do Vasco e de outros times do Rio, bem depois, técnico do Bangu,
time pelo qual ele torcia.
Ah, querida e saudosa Madureira, quantas lembranças mais me assaltam
enquanto escrevo agora!… Pena que todas as lembranças que guardo com carinho
não caibam aqui, porque se for falar do meu passado, hoje eu não vou terminar. Em
tempo, o caro leitor deve ter notado que a violência aqui não foi tanto citada.
Depois veio a mudança de bairro, de amigos, de saudades, de ideologias, de
comportamentos e de atitudes, o amadurecimento, a vida dando voltas, os velhos
amigos, camaradas e colegas se afastando, seguindo outros caminhos… Tudo isso
sem nunca esquecer os bons tempos da querida e inesquecível Madureira, que já
chorou sim, mas que na minha época, sorria mais, muito mais

Luiz Lula Dias - Escritor*

*Lula Dias é escritor, dramaturgo, compositor, produtor cultural e saudosista sim, com muito
orgulho, porque sabe guardar na memória muito mais alegrias do que tristezas e tem o prazer de as
contar e as recontar para os velhos amigos e para as novas gerações, seja no papel ou na mesa de
bar, de preferência nos botecos suburbanos, em divertidos papos regados a cervejas geladas e
tremoços.
Preço da ambição

Vivia eu
Em terras bem distantes
Junto a meu povo feliz
Quando chegaram homens dominantes
Pra me tirar
Aquilo que eu sempre quis
Liberdade
Era a vida simples de uma nação.
Que teve o seu povo dominado
Escravizado
Pelo preço da ambição.
Assim começa a história
Que o meu antepassado descreveu
Não foi favor nenhum
A liberdade assinada
De um povo que suas raízes
Perdeu
Pois é olha, o preço que os descendentes deste povo ganhou com a tal liberdade
Direitos desiguais
Sem oportunidade de subir na escala social, bem marginalizado, quando se fala em
cotas a elite pula, pois não quer
os negros no mundo que eles imaginam só deles
Vamos lutar sempre pela cultura, pois através dela, aumentaremos nossa chance de
ver os nossos irmãos afro
descendentes um dia ser considerados também como cidadãos de primeira classe
Competência nao falta.
A discriminação que eles têm sobre os nossos é pra isso
Nós considerar inferiores
Mas já provamos que não é assim.
Viva a negritude

Onesio Meirelles
Mulher preta violentada na roda de samba

Violentada pela Cultura, Mexe com a estrutura


Mulher bonita, inteligente, de Shortinho
Displicente , Será que está disponível
Pode ser amassada, Maltratada
Desrespeitada e se Jovem
Quem sabe até ....
Na saída do samba pode
Ser estuprada
O que é isto meu irmão
Não cabe desculpas
E sim respeito
Pois, a mulher tem o direito de cantar
Sambar, rebolar, distração livre
Na sua hora de lazer, aonde compartilha Também o seu saber
Pós -graduada sim, professora universitária
Mas o samba é sua forte relação ancestral
Namorar a quem quiser, sem ter que ter permissão social
A genitália não faz parte da sua indumentária, não coloque sua mão
Pois ela é liberta ,embora aprisionada nos conceitos e preconceitos
Sua inteligência é Deflorada e também ignorada
Pela alma machista deturpada ,nessa sociedade eurocentrada
Mulher preta piorou se dá ao desfrute, o Senhor e o capataz
Achando ter o direito de ejacular as maiores ofensas pensando dizer gracejos.
Mas regojize-se , pois nossos olhos estão abertos para frente e para trás
O Samba que gostamos de ir, é aquele que vem das entranhas de nossos ancestrais

Então segura sua pemba , pois não há quem lhe defenda


terá que vencer muitas demandas e talvez enfrentar as Yabás
pois ninguém foge
Maria da Penha é a lei dos homens, mas
Acorda e respeita a roda, pois o Balé vai começar...
A mulher é a força do asé,
com sua força motriz pega o mundo nas mãos
e mostra os caminhos para vida,
é o poder da criação
Você Homem sambou, dançou miudinho, se atrapalhou no caminho ,
sai debaixo da saia dessa mulher Preta que no século 21 chega pra transformar e
decidir.
O samba é de todos mas o Tom é nosso, pois também compomos e cantamos,
tem musicista, ritmista e muito mais..
Todo agressor será denunciado, o Samba é lugar para além de tudo louvarmos
os que nos precederam, respeitando sua origem e tradição.
Este espaço é sagrado para quem faz do Samba sua missão.......*

Márcia Lopes

*Este fato se deu mês passado em um lugar que convivi muito, liderado por uma mulher
maravilhosa que já não esta entre nós, no subúrbio Carioca meus respeitos para todas as Tias que
nos acalentaram em seus braços e nos protegeram de todos os males.....materiais e espirituais.
M u s e u I m a g e n s d o I n c o n s c i e n te

No simbólico bairro do Engenho de Dentro existe uma preciosidade ignorada


por muitos: o Museu Imagens do Inconsciente.
Fundado pela psiquiatra Nise da Silveira em 1952, o museu reune diversas
obras de arte, em sua maioria quadros, feitas por internos do antigo Centro
Psiquiatrico Pedro II que frequentavam a Seção de Terapia Ocupacional. Alí, sem
nenhuma influência externa, eles produziram obras que continham muitas vezes
uma complexidade e qualidade artística extraordinárias.
O objetivo de Nise não era descobrir artistas, mas sim que os seus “clientes”
pudessem se expressar através da pintura e escultura. Estas atividades
melhoravam muito a qualidade de vida e o tratamento dos internos, ao contrário
dos eletrochoques e lobotomias praticados pelos psiquiatras da época,
procedimentos estes que Nise abominava.
No entanto, o método usado pela médica acabou por revelar artistas
espetaculares como Emygdio de Barros, antigo torneiro mecânico da Marinha, cujas
obras de alto nível artístico fizeram sucesso no mundo da arte.
Outro destaque é Raphael Domingues, o moço tímido que produziu quadros que
impressionaram diversos críticos de arte. Raphael participou de várias exposiçoes
nacionais e internacionais.
Adelina Gomes, a moça camponesa que enlouqueceu por não poder ficar com
o amor de sua vida pela objeção da mãe, produziu obras que são espelhos de sua
alma. Seus medos e desejos interiores foram desnudados em seus trabalhos.
As mandalas produzidas por alguns clientes da doutora possuem uma história muito
especial. Foi por causa destes desenhos que Nise resolveu entrar em contato com
Carl G. Jung, um dos maiores estudiosos da mente humana. O resultado foi a ida de
Nise para Zurique, juntamente com a exposição de trabalhos produzidos no atêlie
do Engenho de Dentro, a convite do próprio Jung.
O museu conta com mais de 350 mil obras, sendo que as principais são
tombadas pelo Instituto do Patrimônio Artistico e Nacional (IPHAN). A biblioteca e o
arquivo pessoal da doutora Nise da Silveira também estão alí guardados.
Além disso, a instituição (hoje Instituto Municipal Nise da Silveira) continua em
plena produção, contando com atêlies e com um grupo de estudos aberto a pessoas
de todas as áreas e interesses.
Vale a pena fazer uma visita ao museu, seja pela arte, pela história ou pelo
interesse pela psique humana. O endereço é rua Ramiro Magalhães 521, Engenho
de Dentro. Visitas de segunda a sexta, das 9 às 16 horas, com entrada gratuita.
Visitas orientadas para grupos podem ser agendadas pelo tel (21) 3111-7469 ou
pelo e-mail educativo@mii.org.br.
Este artigo é só uma pequena amostra do que pode ser vivenciado nesse lugar
fascinante onde pessoas simples, consideradas “loucas” conceberam trabalhos
artísticos extraordinários.

Emygdio de Barros Raphael Domingues

Adelina Gomes Mandala

Ana Cristina de Paula


Lugar onde pessoas não têm hábito Lugar onde pessoas têm hábito de
de ouvir tiro ouvir tiros:

Tiro = tiro Tiro não é tiro.


Tiro = pipoco.
Chama assim mesmo
Realismo puro Pi-po-co. Assim, com intimidade.
Mas sobretudo, com POESIA.
E têm medo.
Medo que por acaso o tiro penetre Porque o tiro acaba sendo familiar,
ele te acompanha
a sacada Na padaria, no bar, na escola
No ponto de ônibus, na praça, na
a sala de estar rua
E claro, em casa, onde atravessa
a sala de jantar só uma paredezinha e te vê
dormindo
a sala de evacuar
É um seresteiro atrevido.
e chegue à sala de dormir
Com tantos encontros: só a poesia
encontrando um rosto que repousa pra manter a relação estável
entre ar refrigerado e penas de
ganso o pipoco é o marido da pipoca
ambos
Esquentam, esquentam, esquentam
E então explodem

A pipoca estoura e vira flor

O pipoco estoura um alvo

que recebe flores.

J o n a ta n M a g e l l a
Atirei o pau no gato

Dos 5 aos 9 anos de idade cantei muito essa canção:


“atirei o pau no gato to to / mas o gato to to / não morreu reu reu/ dona Chica ca
adimirou-se se se / do berro do berro que o gato deu/ Miau !
Eu e meus amiguinhos de turma cantávamos semanalmente esse “quase hino”
infantil na década de 70 no ensino fundamental ( antigo primário ) lá na Escola
Municipal Professor Carneiro Felipe em Marechal Hermes. Logo que o sinal de saída
tocava disparavamos eu ( quatro olhos ), coruja e gordinho auxiliados pelo Paulinho
; parávamos na padaria bem na esquina da rua maracaipe com marapendi e com
pedaços de pau começávamos nossa caçada aos gatos; atirávamos tudo pra cima
dos gatos, ao encontrar um deles tudo acontecia de forma automática; nosso
modelo mental para atirar o pau no gato estava formado; de chutes a arremessos
livres de marquises ( prefiro parar por aqui )...confesso que fui vítima de uma
canção infantil; pois durante 39 anos odiei os gatos, hoje vejo que na verdade uma
geração inteira ( crianças, jovens e adultos ) sofreu por acreditar em “per versos”.
Em 2004 essa história começou a mudar, depois de insistir comigo dos 4 aos 10
anos de idade minha filha Rafaela conseguiu realizar o sonho de ter um gatinho de
estimação; ela conseguiu nos convencer , verdade eu estava em um apartamento
frente a frente com um felino e agradeço a Deus ao Universo e aos Orixás por ter
tido a oportunidade de conviver durante quatorze anos da minha Vida com esse ser
Divino e Majestoso, sagaz e carinhoso, sensitivo e amigo; ele que dormia
preguiçoso me ensinando a relaxar; ele que ronronava de felicidade por um minuto
de interação num afago, me mostrou um Mundo Lindo que eu desconhecia e pelo
qual me apaixonei.
Ontem dia treze de janeiro de dois mil e dezenove, num Lindo Domingo de Sol
o Pampim partiu de forma suave em casa, aos quatorze aninhos por conta de uma
lipidose hepática severa; e assim a finitude da vida mais uma vez segue nos
assombrando.
Claro que o Show da Vida vai ter que continuar, tem que ser desse jeito; uma
vez que as perdas são parte da nossa trajetória planetária.
Gratidão Pampito ! meu Rio de lágrimas vai te guardar pra sempre nas
correntezas do meu Coração.

Pampim e Rafaela em 2004

Rodolfo Caruso
Afropictosofia

É na presenaça e no tom
meios e formas compartilhados,
no riso e no jeito de rir
na ginga do andar,
na de sair e também de voltar são
as imagens d'África em nós

No subúrbio carioca,
desde criança é assim:
as ruas sem calçamento,
a pelada na lama,
os piões e gudes marcando
os chãos de terra batida,
os doces compartilhados
por todos igualmente
a molecada viva, acesa, ensinando
as imagens d'África em nós

Nas festas feitas nas ruas,


até aniversários,
compartilhando no público
o que em outro canto é privado
no jeito de sentar na calçada,
no final da tarde mais quente,
no jeito de se divertir,
e no disse-me-disse em advinhas
as imagens d'Áfica em nós
Nos terreiros, nas giras,
nas rezas, nas orações,
na ginga ancestral
da capoeira
na bossa sestrosa
de se reinventar
pra sobreviver
e de novo lutar
no se benzer,
na cruz feita em graciosa
e nos banhos de sal grosso
as imagens d'África em nós

No traço marcado
em pontos no chão riscados a giz
na corrente de oração
firmada em pontos de Umbanda e Condomblé
no passinho do Funk ou no pular
cantando a marchinha de carnaval
no altinho, no cara-ou-coroa,
no despacho de encruzilhada, no bar
de esquinha cheio de papo e cerveja,
no debicar a pipa sem medos,
no pequeno Doum ente Cosme e Damião
as imagens d'África em nós

É nossa verdade
suburbanamente carioca
O Rio de Janeiro que é
urgente, valente, mais quente
carregado de imagens de Áfricas
mesmo que alguns não queiram,
ainda as arremessando distante
fingindo não ser tatuagens na alma carioca
e ainda que as removam a laser
se utilizem da mais avançada tecnia
não saem, não sairão de nossas peles
as sabedorias de imagens d'África

Marcelo Bizar
Temposição das Almas Íncubas - 2º Pentakapitel
IV. Paladar

Acordivo num quarto branco. Paredes brancas, teto branquinho. Um espelho e


no chão um pequeno frasco onde se lê: "Beba-me".
Não há portas no cômodo e não sei como fui ali parar. Última coisa que me
recordo é do mar, um mar intenso e tempestuoso.
Das Almas Íncubas não tenho o menor lampejo de onde elas possam estar.
Foram tantas coisas estranhas que me aconteceram até agora.
Bebo o conteúdo do frasco.
Repouso sobre a língua o líquido transparente: meu paladar não se engana é
cachaça. Das boas.
Minha língua percebe o cuidado na colheita da matéria-prima essencial, a
cana-de-açúcar, em momentos adequados de variadas maturações nos períodos
certos dentre os meses da produção.
Minhas papilas gustativas dançam no composto furfural adequado, indicando
que não houve a queima do palhiço, evidenciando que se extraiu o caldo
eficientemente na moagem a carros-de-boi e que os bagacilhos foram filtrados com
presteza.
O paladar ainda me informa que há pouco teor de metanol, e que do processo
fermentativo restou um 17° Brix de um mosto surpreendente.
Caldo vindo da fração coração e não das frações cabeça ou caxixi.
Um leve amadurecimento em freijó-rajado dá à bebida uma acidez suave, em
corpo médio, levemente amarga.
A sensação que tenho sorvendo tão rara bebida é a de que encolhi diante de
tão grandiosidade.
E foi o que de fato aconteceuamim. Apequenimei.
Fiquei tão pequeno que pude perceberagora que o diminutim único ponto
preto na sala quasetodabranca na parede de frente pro espelho era na verdade
uma porta.
Uma portinhola que agora, pequeno como estou, consigo atravessar.
Abro a portaponto e a atravesso. Um jardim.
Estou no jardim de uma casa, acho que a conheço. Mas, pequenino não
consigo ver quase nada além de monstruosas gramíneas assustadoramente verdes.
Se estivesse com meu tamanho normal acho que reconheceria onde estou.
Esperaí. Há um pedaço de torresmo naquele gramado perto da porta.
Voumelá.
Uma placa ao lado da iguaria insiste: "Coma-me".
O pedaço de torresmo parece uma imensa pedra para mim.
Vou comer um pedaço, não tenho nada a perder mesmo!
Esperaídenovo… tem alguém chegando. Os passos parecem pequenos
terremotos pra mimnestestado.
É um senhor. Nas mãos ele traz sacolas do mercado.
Fico feliz de lembrar que ainda bem que não tem cachorro naquele quintal, eu
poderia ser confundido com um inseto qualquer e esmagado facilmente.
O senhor entrou na casa. Vou lá comer o torresmo.
A textura bem macia com uma casca crocante. Percebe-se que a panceta
teve corte em longas fatias não sapecadas, por isso a maciez.
O toucinho foi bem temperado com pimenta caiena ( uma mistura que leva
malagueta, dedo-de-moça e chifre-de-veado), além de ervas como sálvia, salsa,
tomilho, alecrim, cominho e louro, misturados com um pouco de água e banha, e
tudo guardado por dois dias no congelamento fazendo o tempero penetrar na carne
do torresmim com gostim de fazendim.
Um verdadeiro manjar caído dos céus na Terra, talvez pela distração de
alguma deusa ou deus dentre os vários panteões cósmicos.
Fiquei tonto com tanta explosão daquele sabor onírico na minha bocaelíngua,
fui ficando tonto e desmaiei.
Acordei com um cachorro me dando lambidas no rosto e latindo todo feliz pra
mim.
Nossa! É o Vulcão. O cachorro do meu avô.
Esperaímaisumavez… estou na casa do vô Zuzim. Sim, é a casa dele.
Pelo jeito continua comento torresmo com quase noventa anos de idade. O
velho não aprende.
Tem uma saúde de ferro. Mas, seu torresmo não deixa mesmo.
Aposto que nas sacolas que trouxe do mercado tem frutas e queijos, sendo
que cerveja e cachaça devem ter também.
Hoje é domingo. Para meu avô é o dia da Deusa Ninkasi.
Vou espiar pela janela pra ver se ele ainda tem a réplica da estátua da deusa
suméria. Sim, está lá no mesmo lugar que vi alguns anos atrás.
Ninkasi, uma das oito filhas de Enki, o deus das águas doces, e de Ninti, a
deusa dos oceanos. É a deusa da cerveja.
Os sumerianos a louvavam há milhares de anos passados.
A deusa da fabricação de cerveja e da própria bebida em si. Ninkasi significa
“Aquela que enche a boca’
Os sumerianos nos deixaram num poema, “Louvor à Ninkasi”, escrito por
volta do ano 1800 antes da Era Cristã uma receita de cerveja. Lembro-me até hoje
deste poema que aprendi com o vô Zuzim. Minha parte preferida é quando o poema
diz:

“Ninkasi, você é a única que estica a pasta assada em largas esteiras de palha,
A frieza domina,
Você é a única que segura com ambas as mãos o magnífico e doce sumo,
Fermentando-o com mel e vinho
(Você, o doce mosto da caldeira)”
Posso ver também que na parede do vovô continuam pendurados um ofá e
damatás (arco e flechas), símbolos de um filho de Otolu.
Otolu é um Vodun.
É difícil explicar o que seja um Vodun. Assemelha-se a um Orixá de certa
forma.
Esperaíúltimavez… vou pedir a bênção a meu vovô Zuzim. *

Pazuzu Silva

* O trechoaqui da Temposição das Almas Íncubas, subtituladode Paladar, é umomenagem a um dos


livros mais interessantes de-que-se-tem notícia: "As Aventuras de Alice no País das Maravilhas", do
grande escritor, o Mestre Lewis Carroll.
Da Abolição ao Pechincha

“A divisão do Rio de Janeiro em 33 regiões administrativas


é distribuída em 4 zonas, a Zona Central e a Zona Sul que são as
mais turísticas e as Zonas Norte e Oeste.”
[Texto retirado do site RioMap360º]

Irritação foi o mínimo que senti quando li a frase citada acima retirada de um
texto no site.
Então quer dizer que não há nada de interessante nas Zonas Norte e Oeste
que não mereçam atenção turística1?
O turismo começa com conhecimento. A partir do conhecimento há o
interesse pelas peculiaridades de cada local, o que como consequência vira
visitação, passeios, hospedagem, resumindo: turismo.
Peço licença aos editores da revista e a seus leitores para começar a partir de
janeiro de 2019 uma coluna contando um pouco dos bairros do subúrbio carioca.
Nossa ideia é compartilhar informações e conhecimento mostrando que nossa
História é rica, nosso lugar é genuinamente turístico e que vale muito visitar o
subúrbio carioca.
Para termos uma ideia, cheguei em Anchieta pra morar um tempo, lá pelos
idos dos anos 1990, vindo lá de Paraty, ao conhecer Madureira, fazendo turismo
numa maravilhosa feijoada com samba na quadra da Portela, perguntei se a praia
ficava distante: é que tinha achado, pela enormidade que é Madureira, que já
estávamos na região oceânica da cidade.
Não sou historiadora ou geógrafa, melhor ir avisando para não acharem que
se trata de artigos científicos em forma de crônica, longe disso. É só informação que
colhemos em pesquisas pessoais. Fiquem à vontade para nos ajudar e até mesmo
fazer aquela crítica construtiva que será sempre lida com cuidado.
Então, vamos passear pelo subúrbio carioca.

Onde é o subúrbio carioca?

Quais são os bairros cariocas suburbanos? Há muita discussão sobre o


assunto. Décadas de pesquisa e opiniões em diferentes fontes. São
Historiadores, geógrafos, urbanistas, sociólogos, arquitetos, políticos discutindo o
assunto e não há consenso. Não vou entrar nessas questões, longe disso.
Gostamos - e iremos optar por ela - da delimitação especificada no texto da
Wikipédia, que condiz muito com minhas andanças pelo subúrbio carioca (alguns
prefeririam no plural: subúrbios cariocas!) quando atuei como cantora
(principalmente em barzinhos locais e na Baixada Fluminense).
Assim, o “nosso subúrbio carioca” compreende os bairros: Abolição, Água
Santa, Acari, Anil, Anchieta, Barros Filho, Benfica, Bonsucesso, Bangu, Cachambi,
Cascadura, Campinho, Campo Grande, Cordovil, Cidade de Deus, Cosmos, Coelho
Neto, Colégio, Complexo do Alemão, Costa Barros, Curicica, Del Castilho, Deodoro,
Encantado, Engenho Novo, Engenho de Dentro, Engenho da Rainha, Engenheiro
Leal, Guadalupe, Guaratiba, Gardênia Azul, Rio das Pedras, Gericinó, Higienópolis,
Honório Gurgel, Irajá, Inhaúma, Inhoaíba, Jacaré, Jacarezinho, Jardim América, Lins
de Vasconcelos, Madureira, Manguinhos, Complexo da Maré, Marechal Hermes,
Méier, Pavuna, Bento Ribeiro, Vasco da Gama, Paciência, Padre Miguel, Parada de
Lucas, Piedade, Pilares, Oswaldo Cruz, Ilha do Governador, Penha, Penha Circular,
Parque Colúmbia, Parque Anchieta, Riachuelo, Ricardo de Albuquerque, Realengo,
Campo dos Afonsos, Jardim Sulacap, Mangueira, Turiaçu, Vila Militar, Vila Valqueire,
Vila Cosmos, Rocha, Rocha Miranda, Sampaio, Praça Seca, Santa Cruz, São
Francisco Xavier, Santíssimo, Olaria, Ramos, Sepetiba, Senador Camará, Senador
Vasconcelos, Magalhães Bastos, Vaz Lobo, Vicente de Carvalho, Vila Kennedy, Maria
da Graça, Vigário Geral, Vila da Penha, Todos os Santos, Cavalcanti, Quintino
Bocaiúva, Rio Comprido, Tijuca, Tanque e Vista Alegre, Jacarepaguá, Itanhangá,
Freguesia de Jacarepaguá e Pechincha.
Por isso o nome da nossa coluna mensal terá o nome “Da Abolição ao
Pechincha”

Apresentamos os bairros por ordem alfabética. Entretanto, isso não quer dizer
que vamos seguir à risca o ordenamento do nosso elenco. Vamos procurar fazê-lo
na medida do possível. Outra coisa, às vezes optaremos por reunir alguns bairros de
acordo com a proximidade e peculiaridade da região. Será arbitrária tal divisão, não
seguindo critério pré-determinado.
Começaremos no próximo mês com o bairro Abolição.
Opiniões, informações, contato, ou outra coisa mais, é só enviar pro e-mail da
revista, queremos sinceramente saber da sua opinião, pesquisa, crítica, elogio
também pode. O e-mail é sarausuburbio@gmail.com.

Malkia Usiku
· U m l u g a r n o s u b ú rb i o

Teatro Armando Gonzaga

Construído no ano de 1954, durante o governo Vargas, com projeto


arquitetônico de Afonso Eduardo Reydi, e originalmente denominado Teatro Popular
de Marechal Hermes, posteriormente receberia a denominação que até os dias de
hoje ostenta, em homenagem ao nome daquele que seria o patrono da sala de
espetáculos: Armando Gonzaga.
Localizado em Marechal Hermes, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, o
Teatro Armando Gonzaga, pertence ao Estado do Rio de Janeiro. Conhecido por
realizar espetáculos de dança e musicais, tem enorme importância comunitária
oferecendo preços acessíveis aos freqüentadores e integrando artistas locais, além
de atuar na disponibilização de cursos e oficinas.
É preciso olharmos para o Teatro Armando Gonzaga com muito carinho, pois
sem dúvida, trata-se de um dos grandes patrimônios do nosso subúrbio, e caso raro
de Teatro de Bairro existente do lado de cá.
O Teatro fica na Av. Gen. Osvaldo Cordeiro de Farias, 511 - Marechal Hermes,
não muito distante da famosa “Batata de Marechal”, que falaremos numa próxima
edição.
Microcontos dos Macrocosmos

Viu-se finalmente!

A estaca de madeira lhe rendeu uma dor intensa. O corpo tremia devagar
guiado pela tensão repetina que a madeira atravessada pelo peito esquerdo lhe
proporcionou.
Fora pego quase de surpresa.
Cambaleante apoiou-se na mesa ao lado e sentou no banco frio de tampo em
mármore. A lua cheia do Méier brilhava em seus caninos pontiagudos, afiados.
Só a imagem do forasteiro do Itanhangá aparecia refletida no espelho à sua
frente.
Talvez tenha sido por pura vaidade que se deixou ferir. Mais do que sua
vaidade, sabia que suas noites sombrias chegavam ao fim.
Ele se desenhava lentamente no reflexo, ele via-se então. Quanto mais fraco
se sentia, melhor ficavam seus contornos.
Um frio correu-lhe a coluna. Sua imgem se refletia finalmente. Viu-se por
segundos antes do último suspiro. Logo depois de um largo sorriso com gosto de
sangue.

Antero Catan
· Bi b l i o t e c a S u b u r b a n a

O samba do Irajá e de outros subúrbios - Estudos da obra de Nei Lopes


Autor: Cosme Elias

"A noção de subúrbio suaviz das descontinuidades


bruscas da espacialidade que a nova realidade do
poder colonial acentua, num momento em que a
tradiçao começa a ser invadida e ameaçada pela
razão na arquitetura, nos costumes, nos ritos
religiosos, na música, nas manifestações da poesia,
numa certa literatura, em bibliotecas como a dos
monges de São Bento e até no interesse pela Filosofia.
A consciência de uma realidade espacial intermediária
entre a cidade e o campo, liminar e híbrida e sem
sentido porqueindefinida, se manifsta na categoria
A a p a ri ç ã o d o d e mô n i o n a
subúrbio e, por meio dela, na estética dos significados
fá b r i c a : o r i g e n s s o c i a i s d o E u
de um mundo feito de extremos e desencontros.
d i v i d i d o n o s u b ú rb i o o p e rá ri o
Subúrbio é a parte de uma concepção da vida
estamentalmente ordnadora das diferenças, das
Autor: José de Souza Martins
desigualdadaes, da multiplicada variedade das formas.
Despolariza a sociedade de extremos e revela uma
mentalidade que reconhece nuances no real da
paisagem e introduz um sistema classificatório desse
real por meio de adornos e de detalhamento das
diferenciações que começavam a ser reconhecidas em
praticamente tudo: sjubúrbio designa a identidade
específica de uma realidade espaccial e soial entre a
roça e a cidade, o produzir e o mandar, o trabalhar e o
desfrutar."
U m q u i l o b em p es a d o

Um dos personagens mais intrigantes do subúrbio carioca é o feirante. Desde


criança que me fascino pelo ambiente da feira, aquelas barracas coloridas, cheias
de folhas, temperos, frutas, laticínios, frangos e porcos em exposição, peixes etc.
Mas também sempre me fascinou a figura do feirante. Quando criança, lá pelos idos
da década de 1970, o sotaque dos feirantes gritando na feira lá perto de casa era
mais aportuguesado, hoje em dia são diversos sotaques.
Ir à feira é um compromisso e uma diversão no subúrbio carioca. Pra gente
daqui de casa é assim pelo menos.
E os feirantes vivem num universo à parte, com práticas comerciais distintas
e um jeito peculiar no trato com os clientes.
Um episódio que ocorreu na feira um dia desses, achei oportuno de
compartilhar com os amigos leitores.
Fui à feira para comprar especificamente peixe. Bem, confesso que sou
enrolado para coisas cotidianamente práticas, e comprar peixes é uma delas.
Como estava sozinho, não pensei duas vezes: liguei para minha esposa e
passei o celular para o feirante.
Ela conversou com o peixeiro, eles se entenderam (ainda bem pois não sei
diferenciar xereletes de corvinas, namorados ou outros peixes), e ele me devolveu o
celular comentando:
- Ah! O peixe é pra Dona Kátia!? Então pode deixar que vou pesar um quilo
bem pesado.
Feirante vem com cada uma, "um quilo bem pesado!".

Mas aí é que está a magia, o que aquele feirante falou é carregado de tanta
sagacidade matemática que eu fiquei meses pensando naquela frase.
Foi engraçada a frase, alguns diriam. Outros poderiam pensar que o peixeiro
não sabe de nada pois não existe esta coisa de "um quilo bem pesado".
Quando falo que temos que estudar a matemática suburbana tem gente que
torce o nariz, não é mesmo!?
Pois o feirante não disse nada engraçado ou absurdo: ele sabe das coisas!
Até hoje em dia cientistas e matemáticos (se bem que na minha visão
matemáticos são cientistas, mas esta é outra discussão) buscam saber quanto pesa
um quilo.
O quilo é uma das quatro unidades de medida básicas, temos ainda o
ampere, o Kelvin e o mol (lembra das aulas de Química!?).
O valor de um quilograma (kg) é baseado num cilindro que é composto por
90% de platina e 10% de irídio.
Ele está guardado sob uma redoma de vidro pertinho de Paris, no Escritório de
Pesos e Medidas de Sèvres, tendo sido fabricado em Londres no ano de 1879.
Acontece que o cilindro emagreceu. Um quilo já não indica a mesma medida
de antigamente. Sua massa "perdeu" 50 microgramas, o que equivale ao peso de
uma impressão digital ou de um grão de areia de 0,4 mm de diâmetro.

O metal que padroniza o quilo

Parece pouco!? Mas, pra cálculos científicos que precisam ser extremamente
precisos é um valor bastante considerável.
E a comunidade científica mundial não ficou de braços cruzados. Estudaram
uma definição que fosse baseada não mais em objetos físicos. Passaram a usar uma
constante fundamental da natureza, medida por uma balança incomum, a balança
de watt.

Balança de Watt
O instrumento em questão, a balança de watt, mede a massa utilizando a
força produzida por uma corrente e tensão elétricas.
E se preparem amigos leitores o quilograma mudará no ano de 2019. Isso
mesmo, será este ano, precisamente dizendo: no próximo mês de maio, no seu dia
20.
A importante decisão foi tomada em novembro de 2018 durante a 26ª reunião
da Conferência Geral de Pesos e Medidas (CGPM) em Versalhes, na França.
Assim, o nosso bom e desgastado PIQ - Protótipo Internacional do Quilograma,
o cilindro de platina e irídio quase totalmente conservado em Paris, usado como
definição do quilograma por quase 130 anos será aposentado compulsoriamente,
sendo substituído por uma "definição baseada na constante de Planck – a constante
fundamental da física quântica", de acordo com o IPEM-SP, o Instituto de Pesos e
Medidas de São Paulo.
Aqui na feira de Ricardo de Albuquerque, subúrbio carioca, acredito que isso
não vai prevalecer e o peixeiro continuará por muitos anos vendendo seus peixes
pela medida que criou: o quilo bem pesado. Ainda bem!

H e r a l d C o s ta
· Vitrolhinha Suburbana

U m s a m b i s ta s i m p l e s
K-boclinho

Mais informações no endereço abaixo:


h ttp : / / d i c i o n a r i o m p b . c o m . b r / k- b o c l i n h o

E u n a s c i n o s a mb a
Jurema

Mais informações no endereço abaixo:

http://dicionariompb.com.br/jurema
Noturno suburbano

Eu só queria um verso, um samba.


Atravessei a passarela suburbana 
numa tarde de sol e calor,
mas eu sou da noite, meu amor...

Em Del Castilho eu não me inspirei


Havia uma catedral de concreto
Talvez o certo fosse caminhar mais um pouquinho.

Caí no largo de Pilares,


pedi uma ideia pra São Benedito,
mas não fui atendido.

Na abolição fiquei viajando


nas matinês do Sambola.
Em vão, pois a caneta não riscou o papel.

A solução imaginei, é piedade,


mas o River da minha mocidade
se apagou.

Em quintino, terra do galinho jogador,


relembrei dos tempos de colégio
nem a lira da saudade
me ajudou.

Naquela altura quando


cheguei em Cascadura,
percebi que o sol já estava indo embora,
foi nesse momento que meu violão se encantou,
vai sair mais um samba de amor

Porque quando anoitece


minha alma incandesce,
sou tomado de emoção
o subúrbio é minha inspiração.

Marco Trindade
Política, cerveja e a melhor moela com batata do mundo

- Nossa política está parecendo uma peça de teatro mudo.


- Concordo em parte, amigo. Eu acho que estaria mais para um circo, sem
animais os animais certamente. Verbalizei minha opinião.
Eu sabia que nosso amigo não se referia diretamente à Pantomima e sim à ao
cenário político se mostrar uma comédia. A referência direta que o leva a pensar
desta forma? Tenho quase certeza que é o Carlitos do Chaplin. O cinema não-falado
dos primeiros anos popularizou a arte pantomímica.
Discordei do meu amigo pois no Teatro do Gestual procura-se narrar uma
história através de gestos utilizando-se do corpo e pouquíssimos sons.
A Pantomima não é comédia, não é expressão corporal ou dança, é uma arte
narrativa à parte. E como toda narrativa conta algo, informa.
Transformou-se numa excelente técnica cênica para narradores que se
utilizam do corpo no espaço: palhaços, comediantes, bailarinos, performáticos e
atores.
E o Carlitos de Charlie Chaplin é talvez a mais importante e conhecida
referência.
Meu amigo riu quando eu discordei dele.
- Jonas, muitos são mágicos no que diz respeito ao dinheiro público: vive
desaparecendo. Verdade o que disse.
- E poucos querem adestrar os leões.
Nós dois rimos muito de nossas comparações.
- Seu Joaquim, aquela gelada por favor. Eu preciso pensar... ah, traz uns
tremoços também.
Segundo a revista francesa Cahiers du Cinema, numa lista dos cem melhores
filmes de todos os tempos, Charlie Chaplin teria seu lugar garantido com cinco
filmes. Fica fácil entender o motivo de confundirmos peça de teatro mudo com a
comédia, o cinema nos ensinou assim.
- Jonas, no circo tem diversas especialidades. Alguns personagens do circo
que me lembro agora são: malabaristas, palhaços, acrobatas e os contorcionistas,
sendo que dos mágicos nós já falamos. Um bom exercício seria listarmos quem é
quem na política brasileira atual.
Eu fiquei imaginando qual o político que seria o engolidor de espadas e ri
sozinho.
Teatro, circo, ou qualquer outra metáfora que seja utilizada, a certeza que
temos é que a política se transformou num grande espetáculo midiático.
O interessante é que se tornou um espetáculo comercializável e bastante
lucrativo.
Muitos não percebem que estão colaborando no enraizamento deste
fenômeno. Vemos diversos grupos nas redes sociais que são formados pra políticos,
para enaltecê-los ou demonizá-los, mas não é a questão que nos interessa no
boteco, bebendo uma gelada merecida no calor que cai sobre nossas cabeços no
subúrbio carioca, verão de dois mil e dezenove. Estamos falando sobre toda a
política ter virado um espetáculo e que os políticos são admirados como
verdadeiros atores em cena. Os que souberam explorar tal fato foram os
ganhadores do prêmio: foram eleitos.

" O espetáculo é uma permanente guerra do ópio para confundir (...),


regulando tudo segundo as suas próprias leis." (Guy Debord - A sociedade do
espetáculo).

O espetáculo pode informar desinformando, fazer rir quando se deveria


chorar, aplaudir quando deveríamos gritar, xingar e sonorizar vaias. Se o espetáculo
confunde? Fico do lado do Debor, confunde sempre pra alcançar seu objeto de
desejo: aplausos.
“Todo espetáculo é em si uma farsa, mas nem toda farsa pode ser chamada
de espetáculo”, esta frase foi dita pelo meu amigo Bizar num sábado de carnaval lá
no Bloco do Prata Preta. Ele estava embriagado e conjecturávamos sobre tudo,
como fazem os bêbados. Ele ficou reverberando na minha cabeça e, apesar do
sentido aparentemente contraditório, lembra-me o espetáculo em que a política
nacional se transformou: os espetáculos políticos são farsas, mas nem todas as
farsas que estão sendo ditas podem ser consideradas espetáculos.
No teatro, a farsa é um gênero dramático e cômico. Seus personagens são
caricatos, excêntricos. As situações retratadas são exageradas e por isso mesmo
tão simbólicas. Numa farsa teatral não há preocupação com a discussão, com os
valores ou com a perturbação nas relações sociais que o ato dramático vai
proporcionar, mas, estranhamente, as situações buscam ser cotidianas.
“A farsa visa apenas o humor ao expor as situações mais burlescas possíveis.”
Uma vez me disse um professor. Discordo dele em parte.
Atualmente (e acredito que desde sempre, na verdade) a farsa como a
conhecemos na nossa Era da Informação (que mais parece da Desinformação)
busca além do humor: tornar público, confundir, convencer, vender produtos,
render curtidas e coisa e tal.
No espetáculo da política atualmente, fica evidente que os atores querem
aplausos, mas não só isso, querem ainda o reconhecimento e todos os louros que a
boa atuação poderá lhes proporcionar objetivando algo muito valioso: o voto.
Entretanto, observamos constantemente cenas que parecem fora do roteiro:
políticos que acenam para seus fãs enquanto são presos por terem sido "pegos" em
algum crime, inimigos de décadas se abraçando e fazendo alianças inimagináveis,
política sendo misturada com religião a ponto de não se entender o que está
acontecendo etc.
A cena política tem muita analogia com o ilusionismo, com certeza. Com a
mímica do teatro mudo e com o Carlitos, um pouco também. Mas, ainda muito mais
tem a ver com o gênero dramático e teatral da farsa.
Ah! Já isso me esquecendo de dizer que o boteco do “Seu Joaquim”, aqui em
Realengo, é servida "a melhor moela com batata do mundo" (segundo seu dono e
cozinheiro, que também é garçom e gerente do pé sujo).
Continuei puxando conversa com o Tiquinha, um aposentado que está sempre
por ali bebendo café e lendo jornal ou "espantando o calorzão com uma loiríssima",
outra pérola do Seu Joaquim.
A política brasileira está tão na moda que até mesmo nas redes sociais é o
assunto mais discutido e comentado, com uma característica peculiar:
aparentemente todo mundo agora entende muito de política.
- Jonas, tá difícil dialogar. A política atualmente tá com mais torcedor fanático
do que o futebol.
- Pois é, amigo. Então vamos falar de religião e futebol que atualmente tá
mais tranquilo.

J o n a s H é b ri o
Tudo se acabou em
l a ma

Enquanto se discutia O trem está fora do trilho


A melhor pose do dia A Vale comeu todo milho
A que olhou, você gama E passarinho levou fama
Tudo se acabava em E tudo se acabava em
lama... lama...

Eram os donos do mundo E fazer o que agora


Discursos de um segundo contar os mortos, ter mora,
Que a ninguém mais Botar a culpa no Ibama?
inflama E tudo se acabando em
E tudo se acabando em lama...
lama...
Não aprenderam a lição
Homem de tanto absurdo Mariana foi ilusão?
Diz "Deus acima de tudo" Foram fazer sua cama!?
Nem vive o que proclama E tudo se acabava em
E tudo se acabava em lama...
lama...
Os choros de Mariana
Os lucros sempre Não arrefeceram a gana
aumentando E o povo nem se inflama
E a terra agozinando E tudo se acabando em
Como se deitam na lama...
cama!?
E tudo se acabando em Daqui a pouco o jornal
lama... Anuncia o carnaval
E tudo volta ao Nirvana
Morreu gente e passarinho E tudo se acaba em
No desastre em lama...
Brumadinho
Triste para quem os ama Um sentimento profundo
E tudo se acabava em Tomou de assalto o mundo
lama... Acabou-se a Pindorama
Pois tudo se acabou em
Antes o verde tão lindo lama.
Parecia um mar infindo
Ganância mudou o
panorama
E tudo se acabando em
lama...

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