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UM OLHAR DA PSICOLOGIA SOCIAL SOBRE AS PRÁTICAS DE ATENÇÃO AO

USUÁRIO DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS1

Isabela Saraiva de Queiroz

As práticas de atenção ao usuário de álcool e outras drogas tem sido prioritariamente


fundamentadas no discurso jurídico-moral, que estabelece modos de vida ditos corretos e
dignos de manutenção, pautados numa visão dicotômica da realidade que define padrões de
normalidade e anormalidade, quase sempre estabelecidos num campo marcado por
desigualdades sociais.
Tal modelo de discurso estabelece como critério de saúde e, por conseqüência, de cura
da chamada dependência química, a abstinência de quaisquer substâncias psicoativas,
associada a uma mudança comportamental com vistas à adoção de um “estilo de vida
saudável”. Qualquer retomada do uso de substâncias psicoativas é, deste modo, vista como
um fracasso, promovendo um retorno ao tratamento que, não raro, leva a um ciclo de
reinternações. Na maioria das vezes, não são discutidas estratégias de redução de danos, nem
considerados válidos arranjos pessoais construídos pelo próprio sujeito para lidar com seu uso
(algumas vezes abusivo) de drogas.
Este cenário nos ajuda a compreender as representações positivas em torno da ideia de
reclusão do dependente químico e da manutenção da lógica manicomial na organização das
práticas psicológicas nesse campo. Intervenções baseadas na redução de danos, embora
representem a política oficial do Ministério da Saúde para o tratamento do usuário de álcool e
outras drogas, ainda são pouco conhecidas e aceitas.
Soma-se a essas considerações iniciais o fato da Psicologia se apresentar como campo
de saber heterogêneo, que abrange epistemologias e práticas variadas. Cabe reforçar que a
inventividade presente nas práticas psicológicas nesse campo devem ser reconhecidas, mas
que não podemos prescindir da observância dos aspectos éticos da profissão, nem nos
deslocarmos dos seus referenciais teóricos fundamentais.
Tendo em vista tais ponderações, apresentamos algumas diretrizes metodológicas para
a atuação do psicólogo na atenção ao usuário de álcool e outras drogas, considerando como

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QUEIROZ, I. S. Um olhar da psicologia social sobre as práticas de atenção ao usuário de álcool e outras
drogas. Belo Horizonte, 2014. Disponível em: <http://www.saogabriel.pucminas.br/psicologia/wp-
content/uploads/2014/02/Psicologia-social-e-práticas-de-atenção-ao-usuário-de-drogas.pdf>.
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ponto de partida que este é um campo de disputas, que envolve atores bastante hierarquizados
– por classe social, raça/etnia, escolaridade e gênero –, o que define de modo essencial a nossa
maneira de ver e tratar o usuário de drogas. Deste modo, podemos começar pensando: quem é
o usuário de drogas? E, complementando, qual é o nosso papel, como psicólogos, frente ao
problema do uso abusivo de drogas?

2.1 Superação da ótica individualizante


Como primeiro ponto, partimos da consideração de que vivemos em uma sociedade
fortemente hierarquizada, produtora de processos de opressão e inferiorização que marcam,
dentre outras coisas, modos diferentes de lidar com o uso de álcool e outras drogas. Desse
modo, a atuação do psicólogo deve buscar antes de mais nada a desalienação das pessoas e
grupos, contribuindo para que alcancem um saber crítico sobre si mesmas e sobre sua
realidade, num processo de superação da ótica individualizante de compreensão dos
fenômenos que os atingem.
Desse modo, reconhecendo que todo comportamento envolve uma dimensão social, a
atuação do psicólogo não pode limitar-se ao plano abstrato do individual, devendo contemplar
também os fatores sociais nos quais se materializa toda individualidade humana. Como aponta
Martin-Baró, “não há pessoa sem família, aprendizagem sem cultura, loucura sem ordem
social; portanto, não pode tampouco haver um eu sem um nós, um saber sem sistema
simbólico, uma desordem que não se remeta a normas morais e a uma normalidade social”.
(Martín-Baró, 1996, p. 17).
Trata-se, portanto, em primeiro lugar, de buscar reconhecer os padrões de normalidade
estabelecidos em nossa sociedade, definindo, no campo do uso de álcool e outras drogas,
quem são as pessoas “autorizadas” a utilizar o recurso à intoxicação como parte integrante de
um determinado modo de vida, como isso se dá, qual é o acesso ao sistema de saúde e de
seguridade social tido por essas pessoas e como fica o enorme contingente de excluídos de tal
possibilidade de uso.
O psicólogo deverá, assim, refletir a respeito do caráter político da sua atividade,
considerando não tanto o como está realizando algo, mas em benefício de quem; não tanto o
tipo de atividade que pratica, mas quais as consequências históricas concretas que essa
atividade está produzindo. Desse modo, o psicólogo deverá intervir nos processos subjetivos e
coletivos que sustentam e viabilizam estruturas sociais injustas, ajudando a encontrar
caminhos para substituir modos de vida pautados pela violência por modos de vida mais
racionais e democráticos. No caso específico do uso de álcool e outras drogas, a violência
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vivida pelo usuário pode advir do uso de substâncias mas também de tudo aquilo que se
encontra em seu entorno: o tráfico de drogas, condições anteriores de exclusão, falta de acesso
à saúde, educação, lazer, cultura e trabalho.
Sugerimos aqui, então, que o contexto de vida do usuário de álcool e drogas seja
considerado em todos os casos atendidos, o que contribui para a inscrição da discussão sobre
o uso de álcool e outras drogas no campo da política, fazendo com que a experiência com
drogas passe a ser discutida no interior de sua própria produção, o que colabora para a
compreensão do usuário em sua particularidade e para a ampliação do debate sobre uso de
drogas do campo meramente moral e pessoal para o campo social.
Cabe ao psicólogo, portanto, promover através da sua atuação o deslocamento da
discussão sobre o uso de álcool e outras drogas de um registro exclusivamente terapêutico
para um registro social e político. Tarefa esta que se apresenta como desafiadora, seja por
lidarmos com um campo inscrito na ilegalidade, seja porque através dessa proposição
daríamos voz a um grupo social até então tido como incapaz de elaborar sentidos e
significados às suas experiências, caracterizadamente marginais. Pensar estratégias e elaborar
reflexões coletivas sobre a subalternidade da condição de “drogado”, através da criação e
manutenção de espaços de sociabilidade e reflexão, poderia, então, indicar uma abordagem
mais inclusiva da questão do uso de álcool e outras drogas. Tais espaços podem se constituir
nas práticas grupais. Trataremos desse ponto a seguir.

2.2 Cuidado compartilhado: o trabalho em e com grupos


Os grupos podem se constituir como uma via de conscientização e emergência do
político, uma vez que forçam processos de desindividualização, privilegiando a dimensão
coletiva da experiência. Deste modo, o trabalho em grupo mostra-se capaz de produzir o que
Barros (2007) nomeia como práticas de liberdade. Para tanto, deve-se trabalhar com os
participantes o compartilhamento no grupo de suas trajetórias de vida e uso de drogas,
experiências de violência e exclusão.
O compartilhamento de suas histórias no grupo pode promover entre os usuários a
coletivização da experiência e a desconstrução de explicações individualizantes para o uso
abusivo de álcool e outras drogas. Importa acentuar, no entanto, que ainda que o grupo guarde
uma potência virtualmente libertária, esta não é garantida de antemão, podendo-se recair em
práticas de sujeição, impostas grande parte das vezes pelos próprios profissionais envolvidos.
Pode-se dizer assim que a construção da mudança só se dá a partir da (re)construção dos
agentes presentes neste processo, isto é, tanto psicólogos quanto usuários. Nesse processo de
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reconstrução, concepções e valores presentes nos discursos sobre o uso e o usuário de drogas
deverão ser repensados. Identificar a origem de tais valores e suas consequências para a vida
dos usuários é essencial para a prática do psicólogo nesse campo: O que entendemos como
saúde? Quais são os fatores determinantes do processo saúde-doença? Quem define ou
qualifica o que é risco?
Trata-se, portanto, de uma prática que tem como foco privilegiado as narrativas dos
usuários sobre si mesmos, num processo de produção de sentidos de caráter coletivo e
interativo. Conforme Spink (2004, p. 42), “a produção de sentidos não é uma atividade
cognitiva intra-individual, nem pura e simples reprodução de modelos predeterminados. Ela é
uma prática social, dialógica, que implica a linguagem em uso”.
Tal prática dialógica pode acontecer em trabalhos grupais de caráter emancipatório,
nos quais pode-se constituir, por meio do compartilhamento de experiências, um senso de
continuidade, de trajetória, de narrativa, essenciais para a construção da noção de
coletividade. Além disso, no grupo os usuários podem se sentir úteis, contribuindo com algo
de importância para si mesmos e para os outros. “Ir além da reflexão centrada no indivíduo,
na subjetividade, buscando as referências estruturais dos problemas, as que implicam os
traços constituintes da formação social e não somente as pessoas e sua competência.” (Soares,
2007, p. 174)
O sentimento do humano nasce da possibilidade de reflexão e ação no mundo e o
grupo é um receptáculo potente para sua emergência. Viver requer vinculação, afeto, ligação a
projetos. O desenvolvimento de laços pessoais e sociais concretamente representados por
projetos de vida e afiliações a grupos apresenta-se como possibilidade de construção de
sujeitos capazes de enfrentar os desafios do cotidiano coletivamente, a partir do resgate da
dignidade de cada e um e de todos, e da atuação direta nas questões que lhes dizem respeito,
não apenas no âmbito individual mas, e principalmente, no âmbito público, coletivo. “Ter
responsabilidade e compromisso com o desenvolvimento de habilidades e tarefas
apresentadas pela vida social, colocando-se como sujeito das escolhas que deve fazer.”
(Soares, 2007, p. 174).
Se as razões para o uso de drogas nascem, em grande parte das vezes, da exclusão e da
desigualdade social, pensar e agir no mundo significa conhecer esta mesma realidade e
mobilizar recursos coletivos de enfrentamento dela. Assim, pensamos que uma atuação junto
ao usuário de álcool e outras drogas deve incluir um processo de reflexão baseado na
construção da autonomia (no lugar da lógica da dependência e da inércia), através da
exploração dos recursos pessoais e coletivos que cada sujeito poderá dispor para lidar com os
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desafios da vida.
Cabe mencionar ainda que organizar-se socialmente e constituir processos de
solidariedade motiva as pessoas emocionalmente. De outra forma, acabam sucumbindo na
luta individual pela sobrevivência. “Desejamos uma sociedade em que [as pessoas] possam
desenvolver plenamente seu potencial humano, sendo úteis, fazendo-se presentes, criando;
possam participar da riqueza socialmente produzida, não para consumir, mas para libertar-se
das artimanhas da sobrevivência e construir uma verdadeira cultura.” (Soares, 2007, p. 173).
Assinalamos por fim que esta estratégia metodológica se justifica pela possibilidade
que carrega de reconstrução de discursos e práticas que historicamente foram desqualificadas
e invisibilizadas pela lógica hegemônica de um mundo sem drogas. Ao considerar o usuário
como sujeito capaz de reflexão e ação e o uso de drogas como uma possibilidade humana, o
psicólogo poderá contribuir para os processos de conscientização e responsabilização
necessários para o enfrentamento dos riscos e danos presentes nessa prática.
E como podemos trabalhar, como psicólogos, na ampliação da dimensão da reflexão e
ação junto ao usuário de álcool e outras drogas? A proposta da educação para a autonomia
apresenta algumas possibilidades, discutidas a seguir.
2.3 Autonomia, responsabilização e foco nos direitos humanos
Na atuação junto ao usuário de álcool e outras drogas, o psicólogo, frente à
inquietação provocada pela formulação de uma atuação crítica, muitas vezes opta por um
discurso já pronto acerca da questão, pautado por uma visão do usuário marcada pelas noções
de periculosidade, doença e desvio social.
Desse modo, são raros os programas direcionados ao usuário de álcool e drogas que
esclarecem as diferentes formas de uso da droga: experimental, ocasional, habitual,
dependente – este último, sem dúvida, de manejo complexo. A responsabilidade individual, a
carência de autoridade parental e de vida religiosa são justificativas comumente aceitas como
fatores de risco para o uso de drogas. É significativa a atribuição individualizada de
responsabilidades e muito raramente promove-se uma discussão sobre a influência do modelo
de sociedade de consumo no uso abusivo de drogas. As bases estruturais da sociedade, nas
quais se localizam os determinantes do processo saúde-doença, não são consideradas,
havendo uma ênfase excessiva no esforço individual de adesão a escolhas saudáveis como o
foco das ações preventivas.
Na perspectiva aqui apresentada para a atuação do psicólogo na política de álcool e
outras drogas, propomos como fundamentos orientadores gerais, para além da abordagem
teórica específica de cada profissional psicólogo, os princípios da educação para a autonomia,
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que se traduzem na idéia geral de tornar o sujeito capaz de reflexão e ação.


Para tanto, alguns pressupostos devem ser assinalados: drogas lícitas e ilícitas devem
ser consideradas igualmente; a abstinência não deve ser imposta; os riscos reais decorrentes
do uso de drogas devem ser avaliados; devem ser compreendidas as fragilidades presentes,
que não são apenas individuais, mas também coletiva e socialmente construídas.
A proposta da educação para a autonomia, associada aos pressupostos da saúde
coletiva (Soares, 2007), propõe uma abordagem não-alarmista, humanizadora e não-
culpabilizadora do usuário. Desse modo:
 rejeita-se a infantilização e vitimização dos mesmos, considerando-os como sujeitos
políticos, capazes de compreender e oferecer respostas diferentes daquelas formatadas
pelos padrões dominantes (capazes de decisão e de uso responsável);
 estimula-se o desenvolvimento de consciência crítica em relação à sua realidade de
saúde, tornando o usuário, portanto, sujeito de suas próprias transformações;
 encoraja-se a compreensão da determinação histórica do processo coletivo de
produção de estados de saúde-doença, com vistas ao reconhecimento das raízes dos
problemas de saúde que os acomete, dentre eles, o uso abusivo de drogas.
Trata-se de “instrumentalizar os grupos e as classes sociais para compreender os
determinantes do processo saúde-doença, bem como o movimento social no processo de
interpelação do Estado por melhores condições de trabalho e vida e por alocação adequada de
serviços de saúde.” (Soares, 2007, p. 137)
A perspectiva da educação para a autonomia, apresentada por Gilberta Acselrad (2000),
é construída na contramão do controle dos sujeitos. Ao contrário, esclarece os diferentes tipos
de relação com a droga e as diferentes possibilidades de ação: os usos – não dependentes –
são percebidos como riscos, sem dúvida, e colocam a urgência de atenção, de
acompanhamento psicossocial, em oposição à medida geral de medicalização e/ou controle
policial do problema. Quando há uso dependente, os profissionais podem atuar ajudando na
formulação da demanda por tratamento e na definição dos encaminhamentos para a rede
intersetorial, sempre levando em conta a particularidade de cada demanda. Além disso, em
todos os casos, deve-se manter o acompanhamento psicossocial integrado ao tratamento de
saúde, pautado pelo estabelecimento de relações de confiança e na desconstrução de
terrorismos, que somente geram e aprofundam situações de exclusão e discriminação.
A educação sobre drogas, nesta perspectiva, não tem a pretensão de impedir a própria
experiência do uso (como pretendem os discursos pautados na lógica da prevenção) e também
coloca limites à ação do profissional de saúde ou educação, já que estes profissionais não dão
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conta por si sós de compreender e elaborar formas de lidar com a relação sofrimento/prazer
representada pelo uso de drogas.
Desse modo, a atuação do psicólogo deverá sempre incluir o debate coletivo, aberto e
verdadeiro sobre a história do consumo de drogas, mantida a responsabilidade de educar,
através de um projeto de construção de sujeitos de reflexão e ação, como foco nos direitos
humanos. “Entendendo que a convivência com o risco implica a construção de fatores
protetores da qualidade de vida, esta reflexão permite, o que é fundamental: perceber que a
sociedade brasileira vive outros problemas muito mais sérios e que organizam um mal-estar
no mundo – desigualdade social, desemprego estrutural, discriminações – questões que
precisam ser pensadas.” (Acselrad, 2000, p. 167).
Compreendendo, por fim, que a decisão do uso se dá no espaço privado, que a decisão
do uso é, portanto, em última instância, sempre pessoal, aposta-se na consciência crítica, na
responsabilidade de cada um diante de si mesmo e diante do outro, como alternativa à
interferência do Estado na vida privada, assim como de outras figuras de autoridade – pai,
mãe, liderança religiosa – na vida pessoal, como forma de superação dos problemas. “O que
desaparece nessa prática é a relação de poder autoritária que pretende erradicar uma prática
que tem raízes na história pessoal e social.” (Acselrad, 2000, p. 167). Trata-se de potencializar
o autocuidado como estratégia de prevenção orientada pelo direito e responsabilidade,
considerando que a prática de autocuidado refere-se à realização consciente de algo que
pressupõe a decisão da pessoa envolvida. (Orem, 1993)
Informações realistas sobre o uso de substâncias devem ser disponibilizadas, mas, mais
importante que as informações sobre os produtos em si, a educação sobre drogas deve
promover o debate sobre os valores sociais, políticos, sobre as relações entre os sujeitos, sobre
a liberdade individual, sobre o direito a dispor de seu próprio corpo. É necessário discutir
sobre as políticas públicas, sobre a organização da cidade, esclarecendo a totalidade dos
problemas vividos pelos diferentes grupos sociais e abrindo possibilidades reais de
intervenção nas condições de vida.
Na atuação junto aos usuários dependentes, aconselha-se evitar o excesso de
informação, o sensacionalismo, que devem ser substituídos pela auto-observação e construção
do senso crítico. O “problema” da droga deve ser tratado como um entre outros problemas
vividos pelos usuários, que devem ser considerados na construção coletiva de um saber e de
formas coletivas de uso controlado, reduzindo-se os danos. Trata-se de aprender a aprender,
aprender a pensar, aprender a agir.
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2.4 Compromisso ético com o usuário: projeto terapêutico singular e produção de vida
O Ministério da Saúde, por meio do Núcleo Técnico da Política Nacional de
Humanização da Secretaria de Atenção à Saúde, preconiza como orientação para a atuação do
profissional de saúde o desafio de lidar com os usuários enquanto sujeitos, buscando sua
participação e autonomia no projeto terapêutico (Brasil, 2007). Quanto mais longo for o
seguimento do tratamento e maior a necessidade de participação do sujeito no seu projeto
terapêutico tanto maior será este desafio. Para vencê-lo, devemos, antes de tudo, buscar
estabelecer um compromisso radical com o sujeito, visto de modo singular.
É preciso também equilibrar o combate à doença com a produção de vida, desse modo,
o profissional de saúde deve ser capaz de contribuir para que o sujeito não só combata sua
“doença”, aqui, no caso, o uso abusivo de álcool e drogas, mas também busque transformar-se
a partir dela, de forma que, mesmo sendo um limite, ela não o impeça de viver outras coisas
na vida. Como no caso do uso de drogas o resultado sempre depende da participação da
pessoa, produção de vida significa o reconhecimento de que essa participação não pode ser
entendida como uma dedicação exclusiva ao tratamento, mas, sim, como uma capacidade de
“inventar-se”, apesar dele.
O Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização (Brasil, 2007) apresenta
algumas sugestões práticas de como atuar sob a perspectiva da clínica ampliada e do projeto
terapêutico singular, transcritas abaixo:
 Aprimorar e investir na escuta do usuário. Primeiramente, é preciso escutar toda queixa
ou relato do usuário, mesmo quando não pareçam importantes para seu diagnóstico e
tratamento. Mas, mais do que isto, a escuta deverá ajudar o usuário a reconstruir os
motivos que ocasionaram o seu adoecimento. Desse modo, quanto mais o uso abusivo
de drogas for compreendido e correlacionado com a vida, menos chances haverá de se
tornar um problema somente do serviço de saúde, sendo reconhecido pelo usuário
como algo que lhe diz respeito diretamente. É mais fácil assim evitar a infantilização e
a atitude passiva diante do tratamento. É muito comum que o uso abusivo apareça
após um estresse, como falecimentos, desemprego ou separações. Ao ouvir as
associações causais, a equipe pode saber em que situações similares o usuário pode
piorar e o quanto o tratamento pode depender do desenvolvimento da capacidade do
usuário de lidar com essas situações.
 Considerar a interferência de vínculos e afetos do profissional na relação com o
usuário. É necessário prestar atenção ao fluxo de afetos existentes entre profissionais e
usuários, tanto individual quanto coletivamente, para melhor compreender-se e
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compreender o outro. Neste processo, a equipe de referência é muito importante. Além


disso, o profissional de saúde deve aprender a lidar com o sofrimento inerente ao
trabalho em saúde de forma solidária na equipe (ou seja, criando condições para que se
possa falar dele quando ocorrer).
 Evitar recomendações pastorais e culpabilizantes. Muitas vezes a equipe, acreditando
que uma determinada forma de viver seja mais saudável, põe-se a orientar
enfaticamente os usuários sobre o que fazer e evitar. Fala muito e escuta pouco. É
muito importante produzir co-responsabilidade e não culpa. A culpa anestesia, gera
resistência e pode até humilhar. Além disso, muitas vezes, entra em funcionamento
uma forma inconsciente da equipe de lidar com as limitações do tratamento
transferindo o ônus de qualquer fracasso para o usuário.
 Trabalhar com ofertas e não apenas com restrições. Mudanças de hábitos podem ser
encaradas como ofertas de experiências novas e não apenas como restrições. O
profissional de saúde pode contribuir para que o usuário considere as novas
descobertas de forma aberta e intreressada, desse modo fica mais fácil construir
conjuntamente propostas aceitáveis.
 Especificar ofertas para cada sujeito. Especificar projetos terapêuticos significa
procurar a melhor proposta para cada pessoa ou grupo, de acordo com suas
preferências e história. É preferível não começar o tratamento impondo exigências
muito altas, sendo preferível tentar um “meio termo” possível (redução de danos).
 Evitar iniciar consultas questionando aferições ou comportamentos. Ao lidar com o
usuário abusivo de drogas pode ser muito eficiente não começar todos os encontros
com perguntas sobre o uso de drogas (usou, não usou, etc.) ou infantilizantes
(“comportou-se?”). Isso mostra ao usuário o que queremos: ajudá-lo a viver melhor e
não torná-lo submisso às nossas propostas.
 Evitar assustar o usuário. O medo nem sempre é um bom aliado. Provavelmente
funciona menos do que se imagina. Afinal, supor que o medo de adoecer ou morrer vai
funcionar sempre significa supor que as pessoas agem sempre de forma racional em
direção aos seus interesses de sobrevivência. Evidentemente, não somos assim.
Existem forças internas, como os desejos; existem forças externas, como a cultura,
definido papéis sociais e hábitos de vida. Por tudo isso, talvez na maioria das vezes,
assustar o usuário é uma ação pouco eficaz que pode tanto levar a pessoa a uma
dependência do serviço, quanto à resistência ao tratamento. Isso não significa que não
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devam ser apresentados os possíveis riscos.


Por fim, questões relativas às condições de sobreviência (moradia, alimentação,
saneamento, renda, etc.) ou da inserção do sujeito em instituições, como religião, tráfico,
trabalho, frequentemente estão entre os determinantes principais dos problemas de saúde e
sempre serão fundamentais para a elaboração do projeto terapêutico singular. A partir de todo
esse processo, chega-se a uma proposta, que deve começar a ser negociada com o usuário. Se
o obejtivo é que o projeto seja incorporado pelo usuário, essa negociação deve ser flexível,
sensível às mudanças de curso e atenta aos detalhes.

2.5 A estratégia de redução de danos como um paradigma para a prática


Em 2003, a política do Ministério da Saúde de “Atenção Integral ao Usuário de
Álcool e outras Drogas” elegeu a redução de danos como estratégia de saúde pública, na qual
é incentivada a criação e sistematização de intervenções junto à população usuária que,
devido ao contexto de vulnerabilidade, não querem ou não desejam parar com o uso da droga.
Pela primeira vez, em âmbito governamental, as ações de redução de danos foram assumidas
como relevantes intervenções de saúde pública, para ampliar o acesso e as ações dirigidas a
uma população historicamente desassistida de contato com o sistema de saúde.
A visibilidade conquistada pelos modelos de cuidado de base comunitária, que se
originam e se movimentam fora do espectro hospitalocêntrico ou da abstinência como única
alternativa de encontrar qualidade de vida, coloca em debate questões fundamentais, como:
liberdade de escolha, responsabilidade individual, familiar e social, direito do usuário à
universalidade e integralidade de ações e dever do Estado de criar condições para o exercício
do autocuidado, redes sociais de apoio e sua conexão com as redes informais dos usuários,
dentre outras. (Brasil, 2003).
O “lugar” do profissional nesse paradigma é construído a partir do momento em que o
mesmo se coloca no contexto de trabalho. Esses “lugares” precisam ser construídos por meio
da prática e da posição que os profissionais ocupam na intervenção junto aos usuários,
devendo seu posicionamento explicitar o propósito da sua presença. Desse modo, não cabe à
equipe profissional nenhuma forma de julgamento ou censura moral aos comportamentos dos
indivíduos, seja com relação ao uso de substâncias psicoativas ilícitas ou a condutas
antagônicas à moral e costumes tidos como aceitáveis. O papel dos profissionais é exatamente
o de acessar um segmento que muitas vezes está à margem da rede de saúde e social por
temer o estigma e a rejeição. A aceitação de cada um destes usuários enquanto sujeitos e o
respeito ao lugar que ocupam na escala social confere às abordagens de redução de danos a
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possibilidade de construção de um vínculo de confiança, base sobre a qual se desenvolverá o


trabalho.
A regularidade da presença e a atenção qualificada e acolhedora dos profissionais
abrem as possibilidades de construção de um vínculo de confiança. A partir daí, a própria
população passa a demandar cuidados que até então lhes eram inacessíveis. Essas demandas
são “disparadas” a partir da apresentação da proposta e dos profissionais, configurando a
oferta de serviços de saúde. Neste sentido, devem constituir os objetivos destes dispositivos: a
realização de consultas, orientações, oficinas de educação em saúde e encaminhamento das
demandas não atendidas in loco para a rede de saúde do SUS, ações de prevenção de doenças
infectocontagiosas como as doenças sexualmente transmissíveis e diversos outros cuidados
relativos a problemas já instalados. (Brasil, 2010.)
Adotar condutas de redução de danos pressupõe que suportemos a idéia de vivermos
fora do campo dos ideais, assumindo que as práticas de alteração de consciência pela via da
intoxicação é intrínseca à experimentação com a consciência humana. Desse modo, cabe a
todos, usuários ou não, encontrar formas alternativas de diminuir os prejuízos que podem ser
gerados a partir desse comportamento.
Apostamos numa política de atenção ao usuário de álcool e drogas na qual as
alternativas sejam construídas através do diálogo entre os diversos setores da população e não
definidas por especialistas e burocratas. Deve-se, nessa perspectiva, considerar que o uso de
psicoativos é inerente à existência humana e que nem todo usuário de drogas necessariamente
precisa de tratamento. Por isso, não se torna aceitável o tratamento compulsório, uma vez que
entendemos que só no âmbito da autonomia e da liberdade é possível alterar ideias e condutas.
Atuar na política de atenção ao usuário de álcool e outras drogas requer colocar-se
crítico também ao sistema no qual estamos inseridos, muitas vezes desumano e injusto. Ainda
que o foco de atuação do psicólogo seja junto aos usuários de álcool e outras drogas, é preciso
estar atento também às relações de poder presentes nos sistemas de classe, gênero e raça/etnia
e considerá-los em suas especificidades. Trata-se de uma atuação num âmbito mais amplo, de
luta por outra sociedade, ao lado do movimento feminista, LGBT, da luta antimanicomial,
ambiental, por mobilidade, livre expressão e manifestação do pensamento, em busca de um
mundo melhor para todos.
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REFERÊNCIAS

ACSELRAD, G. A educação para a autonomia: a construção de um discurso democrático


sobre o uso de drogas. In: ACSELRAD, G (Org.) Avessos do prazer: drogas, aids e direitos
humanos. Rio de Janeiro: Ed. FIOCRUZ, 2000.

BRASIL. Ministério da Saúde. Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras


Drogas. Consultório de rua do SUS. Brasília, 2010.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política


Nacional de Humanização. Clínica ampliada, equipe de referência e projeto terapêutico
singular. 2ª ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2007.

BRASIL. Ministério da Saúde. Política de atenção integral ao usuário de álcool e outras


drogas. Brasília, 2003.

BARROS, R.B. Grupo: a afirmação de um simulacro. Porto Alegre: Sulina Editora da


UFRGS, 2007.

COLETIVO DAR. Coletivo antiproibicionista de São Paulo. Quem somos. Disponível em:
<http://coletivodar.org/quem-somos/>.

MARTÍN-BARÓ, I. O papel do psicólogo. Estudos de Psicologia, 1996, 2(1), 7-27.

OREM, D.E. Modelo de Orem. Conceptos de enfermería en la práctica. Barcelona: Ediciones


Cientificas y Técnicas SA, 1993.

SISSA, G. O prazer e o mal: filosofia da droga. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira,
1999.

SOARES, C.B. Consumo contemporâneo de drogas e juventude: a construção do objeto na


perspectiva da saúde coletiva. 2007. 195f. Tese (Livre Docência) – Escola de Enfermagem da
USP, Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva, São Paulo.

SPINK, M.J.P. (Org.). Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano:


aproximações teóricas e metodológicas. São Paulo: Cortez, 2004.

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