You are on page 1of 19

AUTONOMIA, PREFERÊNCIAS E ASSIMETRIA

DE RECURSOS*

Flávia Biroli
Universidade de Brasília (UnB), Brasília – DF, Brasil. E-mail: flaviabiroli@gmail.com

DOI: http//dx.doi.org/10.17666/319039-56/2016

Introdução para o exercício da autonomia quando há assime-


trias de recursos significativas entre os indivíduos
Este artigo analisa as tensões que permeiam e na configuração das relações sociais que consti-
a noção de autonomia individual levando-se em tuem o contexto de suas interações. Esse problema
consideração a complexidade da formação das pre- ganha forma a partir das críticas contemporâneas
ferências e os contextos em que as escolhas são re- à fragilidade das abordagens liberais sobre as esco-
alizadas. Em outras palavras, discuto as condições lhas individuais, nas quais a oposição entre escolhas
voluntárias e coerção estabelece as referências nor-
* Este artigo foi produzido no âmbito das pesquisas “For- mativas para a análise da autonomia. Embora essas
mação das preferências: dominação e desigualdades
como obstáculos para a democracia e a justiça” (MCTI/
críticas sejam feitas sistematicamente por diferentes
CNPQ/MEC/Capes 22/2014) e “Divisão sexual do abordagens no âmbito das ciências sociais, exploro
trabalho e os limites da democracia: elaborações teóricas aqui o potencial das críticas elaboradas pelas teorias
a partir das desigualdades de gênero no Brasil contem-
porâneo” (CNPq, PQ). Agradeço aos integrantes do
feministas contemporâneas.
GT “Democracia e desigualdades” da Anpocs de 2014, A hipótese que orienta esta discussão é que a
em especial a Luis Felipe Miguel, Céli Pinto e Daniel de oposição entre escolhas voluntárias e coerção não
Mendonça, pelos comentários críticos feitos à primeira dá conta nem do conjunto de obstáculos e inci-
versão. Agradeço também aos pareceristas anônimos da
RBCS pelas observações cuidadosas, que colaboraram tações que faz parte do processo no qual as pre-
para a versão aqui apresentada. ferências dos indivíduos são produzidas nem das
Artigo recebido em 16/12/2014 complexas relações entre preferências e escolha.
Aprovado em 04/09/2015 Para desenvolver e testar essa hipótese, analiso aqui
RBCS Vol. 31 n° 90 fevereiro/2016
40  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 31 N° 90

dois casos recentes, e bastante distintos, nos quais As preferências dos indivíduos pelo engajamen-
a legislação adotada no Brasil rompe com a noção to em determinadas formas de relacionamento e de
liberal estrita de que os indivíduos são os melhores organização da vida cotidiana têm relação direta com
intérpretes dos seus próprios interesses, adotando aspectos estruturais e fatores materiais. As mudanças
restrições a suas escolhas que se justificariam por- nas relações de gênero, incluídas as relações na família,
que: (a) em circunstâncias determinadas, pode não ampliaram a liberdade das mulheres para o exercício
haver uma coincidência entre o que suas escolhas do trabalho remunerado fora de casa e para romper
expressariam e seu melhor interesse; (b) em cir- relacionamentos considerados insatisfatórios ou opres-
cunstâncias em que a dinâmica de mercado promo- sivos. No entanto, padrões desiguais de gênero per-
ve as preferências, pode haver prejuízos significa- manecem na esfera privada, com a manutenção das
tivos aos indivíduos. Falo da decisão do Supremo mulheres como as principais responsáveis pelo traba-
Tribunal Federal (STF) sobre a incondicionalidade lho doméstico e pela criação dos filhos, e na esfera pú-
da representação nos casos de violência doméstica blica, em que suas oportunidades são reduzidas e seus
(Ação Direta de Inconstitucionalidade [ADI] n. salários são menores em relação aos dos homens. Com
4.424/2010, aprovada em maio de 2012)1 e da lei isso, a possibilidade de não se tornar dependente de
n. 5.146 do Distrito Federal, aprovada em agosto um companheiro – e mesmo de não fazer a opção pelo
de 2013, que define diretrizes para a alimentação casamento – se reduz. Os contextos em que as prefe-
saudável nas escolas.2 A escolha de casos tão distin- rências são produzidas e as escolhas são feitas perma-
tos se deve à busca da compreensão de dimensões necem, assim, estruturalmente assimétricos. Por isso,
também distintas do problema colocado, expondo faria sentido “distinguir o interesse imediato de uma
a exigência de que sejam levados em conta aspectos mulher na sobrevivência pessoal, que é muitas vezes
concretos das interações e das relações de poder, as- atado ao da família e do lar, dos seus interesses de lon-
sim como formas diferenciadas de assimetria. go prazo na erradicação da opressão que existe dentro
A ADI n. 4.424 determina que nos casos de da família e, portanto, nessa instituição como ela exis-
violência doméstica os processos contra o agressor te atualmente” (Walby, 1990, p. 88). Isso não elimina,
poderão ser abertos e mantidos como ações públi- contudo, uma tensão: quando o “interesse imediato” é
cas incondicionadas à representação da vítima, isto reconhecido pelo indivíduo como seu interesse, orien-
é, independentemente da denúncia, e da manuten- tando suas escolhas, as justificativas para restringi-lo
ção desta, pela mulher agredida. Entre as justifica- podem não coincidir com o que o mesmo indivíduo
tivas para a ação, que foi proposta pela Procurado- identifica como suas motivações e seus fins. No caso
ria Geral da República em 2010, está a de evitar das mulheres, e reduzindo a complexidade para efeito
a tolerância estatal relativa à violência doméstica da apresentação do problema nesta introdução, isso
contra a mulher, dando um passo adiante nos des- significa que em nome da garantia à sua integrida-
locamentos que a chamada Lei Maria da Penha (n. de como indivíduo recusa-se a elas uma das formas
11.340, de 2006) já havia produzido nas fronteiras centrais do exercício da individualidade entre pesso-
convencionais entre a esfera doméstica e os direi- as adultas nas sociedades liberais contemporâneas,
tos de cidadania, tipicamente considerados como ou seja, o reconhecimento de que suas escolhas são
direitos fundados e exercidos na esfera pública. O legítimas, independentemente das suas motivações.
que é mobilizado nas justificativas para a ADI não O “respeito moral que é devido a todos porque todos
é a legitimidade das preferências ou a capacidade teriam a capacidade de definir a si mesmos”, dando
das mulheres para escolher. Ela pretende ser uma sentido a suas vidas por meio de planos e projetos
intervenção que leva em conta as desigualdades e a que lhes particularizam, lhes estaria sendo negado
vulnerabilidade relativa das mulheres no contexto (G. Dworkin, 1988, p. 31).
em que as escolhas são feitas. Nesse sentido, pode- No segundo caso, o da lei distrital n. 5.146, de
ria ser considerada favorável às mulheres, embora 2013, outras variáveis precisam ser consideradas. As
não respalde as preferências que seriam explicitadas determinações da ADI n. 4.424 interferem nas es-
por suas escolhas imediatas. colhas de pessoas adultas e civilmente capazes, mas
Autonomia, preferências e assimetria de recursos  41

que contam com recursos insuficientes para cons- forma, mas mantém a autonomia individual como
truir suas vidas autonomamente devido às desigual- valor de referência. Na segunda, procuro avançar no
dades estruturais de gênero. Aqui, diferentemente, é entendimento de uma concepção social da indivi-
a autonomia dos pais para definir as escolhas feitas dualidade por meio da crítica feminista à dualidade
para e por seus filhos que está no centro da discus- entre as esferas pública e privada. Depois, analiso a
são. A lei aprovada define quais alimentos poderão relação entre autonomia e preferências quando há as-
ser oferecidos ou vendidos nas cantinas das escolas simetrias significativas de recursos, problema central
públicas e particulares do Distrito Federal, proibin- do artigo, a partir do primeiro caso aqui considera-
do a venda de doces, frituras, refrigerantes e sucos do, a ADI n. 4.424. Em seguida, a análise da lei dis-
artificiais. Esta ação pode ser vista como redutora das trital n. 5.146 permite ressaltar as questões relativas à
escolhas (dos adultos e das crianças), interferindo no produção das preferências em condições assimétricas
direito paternal, mas pode também ser caracteriza- quando a dinâmica de mercado está no centro das
da como uma forma de intervenção que incide na incitações e da construção das alternativas disponí-
dinâmica de mercado a favor das crianças, pois as veis. Por fim, uma breve conclusão retoma a hipóte-
preferências e as escolhas são produzidas em ambien- se já enunciada e expõe alguns dos requisitos para a
tes onde as empresas no ramo da alimentação detêm manutenção do valor da autonomia em abordagens
recursos ampliados para a promoção do consumo de e práticas políticas em que a igualdade também per-
determinados alimentos. Na falta de leis que regu- manece como valor de referência.
lem adequadamente a propaganda dirigida às crian-
ças, por exemplo, pode-se considerar que seu dese-
jo e mesmo seu gosto por determinados alimentos Autonomia individual e produção social das
reflete mais a ação de grandes corporações do que preferências
preferências e escolhas familiares ou individuais li-
vremente constituídas. O processo de produção das As noções de liberdade e autonomia que se defi-
preferências e dos interesses remete, assim, “ao con- nem na tradição liberal não são, certamente, homogê-
texto em que a preferência é expressa, às regras legais neas. Não é meu objetivo, aqui, resgatar a variedade
existentes, escolhas passadas de consumo e à cultura dos conceitos e das tipologias, mas indicar alguns dos
em geral” (Sunstein, [1991] 2009, p. 225), e é, nesse eixos que lhes são fundamentais e que têm impacto
caso, constituído pela lógica de mercado, que não no modo como o indivíduo e suas escolhas são, si-
se mostra particularmente eficaz na produção de ga- multaneamente, significados. O domínio da indivi-
rantias à saúde dos indivíduos. Mas se o problema dualidade define-se como aquele em que consciência
do mercado e da ação das corporações, por meio da e vontade atendem a motivações “próprias”. Não se
propaganda e da presença maciça dos seus produtos, trata da suspensão do contexto das interações, mas da
é suspenso – e ganha lugar uma concepção de que delimitação de um âmbito que deveria ser preservado
a influência do Estado nos padrões individuais pre- para que a liberdade individual seja garantida. Nor-
sentes do consumo (e da oferta) fere a autonomia ao mativamente, é o respeito a esse domínio, preservado
romper com a possibilidade de que as pessoas esco- da interferência das motivações e da força externa – do
lham voluntariamente –, a lei poderia ser condenada Estado, das maiorias ou de indivíduos em posição que
por ser a expressão do paternalismo “forte” rejeitado lhes poderia conferir o controle sobre outros –, que
nas tradições liberais (Sunstein, 2014, p. 133; G. consolida uma noção de liberdade. A integridade física
Dworkin, 1988, p. 124). e psíquica remete a uma unidade do sujeito, em que a
Além desta introdução, o artigo conta com mais dimensão espacial e a temporal, a dimensão da exis-
quatro seções, seguidas de uma breve conclusão. A tência concreta corpórea e a da realização dessa exis-
primeira discute os limites da relação entre autono- tência no tempo, se combinam.
mia e escolha no pensamento liberal, a partir de uma Assim, a autonomia vem sendo compreendida
perspectiva crítica que ressalta as relações sociais e os como uma “capacidade” constitutiva do que é ser
padrões estruturais em que a individualidade toma um agente moral, “uma capacidade que nós temos
42  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 31 N° 90

a responsabilidade de exercer e que fundamenta divíduos está no cerne dessa empreitada: é a suspensão
nossa noção de que temos uma personalidade”, do peso das particularidades e pertencimentos dife-
que faz “minha vida minha” (G. Dworkin, 1988, renciados que permite, ao mesmo tempo, que sejam
p. 32). Nesse sentido, o reconhecimento dos ou- considerados como pessoas iguais às outras e como
tros como pessoas, “como centros independentes pessoas que se singularizam em suas escolhas. Na es-
de consciência, como ‘eles’”, requer que “eu dê peso fera privada, humanidade e particularidade se compa-
ao modo como definem e valorizam o mundo ao tibilizariam no mundo moderno. É ali que projetos
decidir como devem agir” (Idem). e afetos se gestariam e se manifestariam de maneira
Em uma frente importante das abordagens libe- singular, sem ferir os requisitos de universalidade que
rais contemporâneas, que pode ser pensada a partir igualariam a todos na esfera pública.
das posições e dos problemas apresentados por Ro-
nald Dworkin, a ideia de responsabilidade também 2. Uma configuração do tempo a partir da noção
permite estabelecer uma relação direta entre a agên- de projeto
cia moral e as escolhas feitas por cada indivíduo. A
noção de responsabilidade individual – que nesse O indivíduo é sujeito de “si mesmo” e de uma
caso deixa pouco ou nenhum espaço ao problema vida que pode ser chamada de “sua”, na medida em
das responsabilidades relacionais, sociais ou coleti- que suas escolhas o expressam e o definem. Em con-
vas, pensadas como responsabilidades que teríamos junto, elas correspondem, na dimensão alargada do
uns pelos outros3 – seria compatível com uma po- tempo da sua vida, a quem ele é. Pode-se pensar,
sição que não endossa ou despreza concepções de assim, na existência de uma unidade no tempo que
vida, “contanto que essa vida não tenha sido imposta depende da ideia de projeto; é a percepção do indi-
a alguém pelo juízo alheio de que é a vida certa para víduo de como deveria viver que permite a realização
essa pessoa viver” (R. Dworkin, [2000] 2005, pp. de “sua” vida. Isso não corresponde a escolhas locais
xvi-xvii). Seu limite é, portanto, a imposição, a coer- e isoladas, mas ao modo como essas escolhas consti-
ção, a ausência de alternativas. E seu desdobramento tuem uma trajetória que expressaria nossa atividade de
político mais direto é a exigência de que “o governo definição e redefinição de quem somos. Essa forma
se empenhe [...] por tornar o destino dos cidadãos da unidade, e da integridade, que se realiza no tem-
sensível à opção que fizeram” (Idem, p. xvii).4 po, poderia vir à tona uma vez que as interferências
À concepção do indivíduo como agente que são reduzidas, aparecendo apenas em situações onde
assim se define correspondem: as ações e as crenças de um indivíduo comprometem
a vida de outro indivíduo, com sua unidade e inte-
1. Uma espacialização da vida, expressa pela duali- gridade assim concebidas. Excepcionalmente (ou nem
dade entre público e privado tanto, como procura mostrar Sunstein, 2014), pode-
ria haver interferências motivadas pela preservação do
O espaço por excelência da liberdade assim con- próprio indivíduo, mas de modo geral elas constituem
cebida é a vida privada. A espessura da fronteira entre o que essa tradição rejeita como paternalismo, que im-
o que é próprio ao indivíduo (o domínio da consciên- plicaria um tratamento que desconhece a capacidade
cia e da personalidade) se desdobra em limites à regu- de agência moral dos indivíduos e os infantiliza.
lação e à intervenção no âmbito em que a vida expres-
saria com maior plenitude os valores e a singularidade 3. Uma configuração moral que conecta liberdade,
das pessoas. As restrições à regulação do Estado, assim autenticidade e responsabilidade
como à interferência de crenças e valores estranhos
aos que são assumidos pelos indivíduos como seus, A vida é autêntica, “própria”, quando é a reali-
garantiriam a possibilidade de a pessoa viver à sua ma- zação de um projeto gestado no âmbito da indivi-
neira, isto é, de modo que corresponda ao máximo à dualidade. Esta, por sua vez, afirma-se na fronteira
sua concepção de como a vida deveria ser vivida. Vale com aquilo que não é – outros indivíduos, outros
observar que o grau de abstração na definição dos in- valores, outras formas de conceber a realização de si
Autonomia, preferências e assimetria de recursos  43

próprio. Radicalizando as premissas aqui mobiliza- inversão dos sinais, dando valor às formas presentes
das, e que estão presentes na construção das noções e convencionadas das relações e despreocupando-se
modernas de indivíduo, a espessura da fronteira daquilo que diz respeito à liberdade e à autonomia
dependeria de dispositivos legais que reduzissem as dos indivíduos. Por isso, parece-me que a noção de
interferências, enquanto a autorrealização depende- autonomia precisa ser ressignificada, mas não aban-
ria de si – ou apenas de si, se esticarmos um pouco donada como referência normativa.
mais essa mesma corda. Nessa tradição, o indivíduo Parece possível sustentar que a construção da
não é isolado, nem tem uma forma estanque, mas individualidade como valor moral se deu, ao mesmo
é moralmente capaz de “formar, revisar e procurar tempo, pelo posicionamento do indivíduo no mun-
racionalmente realizar uma concepção de bem” do social em relação ao suprassocial ou extramunda-
(Rawls, [1993] 2000, p. 234) e é, como tal, res- no (Dumont, 1985) e pela suspensão da posição
ponsável pelas próprias decisões. Realizar-se é, as- social concreta do indivíduo, permitindo a constru-
sim, realizar a si mesmo como sujeito moralmente ção de uma perspectiva não posicionada e universal
capaz e responsável, cuja integridade se define nos como garantia de que as formas de regulação e dis-
próprios projetos, mas ganha conteúdos distintos posição dos recursos corresponderiam a princípios
quando transita pela esfera privada, das particulari- de justiça capazes de garantir a liberdade aos indiví-
dades e dos afetos, e pela esfera pública, da cidada- duos concretos.7 Ela significou, historicamente, um
nia. Nesta última, dilui-se numa universalidade que deslocamento importante em relação a formas de
não nega o projeto de si assim concebido porque se organização social em que status e redes familiares
escora no âmbito propriamente pessoal e privado, definiam, legitimamente, condições de cidadania
mas também porque é, de forma cada vez mais acen- distintas para os indivíduos. Mas é ela, justamente,
tuada, marcada por dispositivos de personalização que coloca os principais problemas, da perspectiva
que se intensificam com as sociedades de consumo. crítica aqui assumida: ela funcionaria, ao mesmo
Essa breve sistematização não pretende, é claro, tempo, como um patamar de igualdade e como um
dar conta das abordagens liberais, em suas diferenças dispositivo ideológico.
e em sua complexidade. Mas entendo que expõe os Como agente moral abstrato, o indivíduo é
aspectos centrais ao problema dos limites da noção alçado a uma realidade que permitiria avaliar a
liberal de autonomia em sua conexão com a escolha responsabilidade de cada um sobre as próprias
voluntária. As críticas correntes a essas concepções, e ações, a legitimidade das ações de uns sobre ou-
penso mais especificamente nas que foram produzi- tros e das ações do Estado sobre a vida individual
das no âmbito do feminismo e do comunitarismo, e coletiva, assim como os padrões resultantes das
apontam para o fato de que o indivíduo que assim ações individuais e seu impacto. É a partir do in-
se define seria isolado ou destacado de relações, au- divíduo como realidade assim concebida que pro-
tointeressado e imune a formas de solidariedade que blemas filosóficos e políticos são disputados. Mas
poderiam ser a base dos direitos e do sentido da sub- é em relações concretas e posicionado de maneira
jetividade. Parte dessas críticas, no entanto, reduz definida em contextos sociais específicos que o
indevidamente o peso das formas de solidariedade indivíduo toma forma, acessa recursos simbólicos
presentes no próprio liberalismo5 e dá às formas con- e materiais que lhe permitem agir de uma manei-
vencionais das relações um estatuto que prevalece ra ou de outra, adere a valores que o definem, or-
sobre as possibilidades de construção da autonomia ganiza sua compreensão de si e das outras pessoas.
individual.6 Procuro, em concordância com aborda- A suspensão da posição e das condições concretas
gens críticas feministas às concepções abstratas do em que a vida individual toma forma consiste, as-
indivíduo, compreender os limites desta forma de sim, em uma recusa – com implicações teóricas
construção da individualidade – ela suspende não e políticas que me parecem das mais relevantes
apenas as particularidades, mas as relações sociais – a outras formas de conceber a individualidade
que lhes conferem sentido e constituem as trajetórias e de pensar os limites à autonomia e aos direitos
dos sujeitos. Mas entendo que o caminho não é a individuais.8 Na concepção social de indivíduo,
44  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 31 N° 90

como procuro defini-la aqui, ganha centralidade taridade na produção das alternativas dispostas para
o fato de que a individualidade se constitui em os indivíduos. As expectativas sociais levam ao de-
local e tempo concretos. Define-se tendo por base senvolvimento de habilidades diferenciadas pelas
padrões de vantagens e desvantagens socialmente mulheres e pelos homens, enquanto as atividades
estruturados, que se desdobram em constrangi- para as quais são orientados correspondem, por ou-
mentos e incitações mesmo quando não há re- tro lado, a posições diversamente valorizadas, pro-
pressão ou coerção. duzindo não apenas diferenças, mas assimetrias no
O problema das escolhas é, nesse sentido, res- acesso a recursos e valorização social.
significado. Não são as escolhas dos indivíduos, mas No que diz respeito especificamente ao caráter
as condições em que elas se dão que ganham cen- espacial dessa dualidade, associado à noção liberal
tralidade. O problema político pode ser recolocado da privacidade e à espessura das fronteiras que, do
como o da possibilidade do exercício da autonomia modo como foram mencionadas antes, garantiriam
em contextos bastante determinados das relações o espaço necessário à realização de si, sem interferên-
de poder. Em vez da oposição entre livre-escolha e cias, a posição de mulheres e homens foi e é bastante
constrangimentos, a questão é saber quais são os re- distinta. No debate teórico e nas ações políticas, o
cursos, materiais e simbólicos, disponíveis no pro- feminismo procurou redefinir o sentido da privaci-
cesso em que os indivíduos se constituem como su- dade. Tomando como ponto de partida as experiên-
jeitos de suas vidas. O foco está no processo em que cias das mulheres, a privacidade como ausência de
as preferências se constituem no momento em que as regulação do Estado significou, historicamente, a
escolhas são feitas e nos desdobramentos dessas escolhas. liberdade dos homens para violentá-las, agredi-las e
A correlação entre capacidade, habilidade e au- humilhá-las, exercendo controle sobre elas. Trata-se
tonomia não se define, portanto, como problema de uma dinâmica que, para as mulheres, pode ser to-
cognitivo, passível de ser organizado na distinção mada como o avesso da liberdade e da autonomia
entre indivíduos capazes (adultos e pessoas que te- que a privacidade lhes garantiria. Assim, uma con-
riam capacidade mental plena) e incapazes (crian- cepção abstrata da privacidade que mantenha espes-
ças e aqueles que não teriam capacidade mental sas as fronteiras entre a vida privada e a regulação
plena, como os portadores de distúrbios psíquicos). estatal, suspendendo a necessidade de que as relações
A questão que se coloca é a dos recursos que per- no mundo privado atendam a critérios de justiça que
mitem aos indivíduos o exercício da autonomia, referenciam as relações na esfera pública, em nada
situados em padrões historicamente definidos e colabora para que os indivíduos tenham a possibili-
que tomam a forma de estruturas que constituem dade de exercer igualmente sua autonomia e serem
as possibilidades da ação individual e da ação em igualmente respeitados nas diferentes esferas da vida.
concerto com outros indivíduos. No enfrentamento teórico e político desse problema,
as críticas feministas levaram ao desenvolvimento
de concepções mais complexas da privacidade, que
A dualidade público-privado e as restrições evitam as armadilhas da restrição do direito à priva-
à autonomia cidade ao direito negativo do indivíduo a ser deixado
em paz e enfrentam o fato de que em sociedades de-
Dessa perspectiva crítica, a dualidade público- siguais o acesso a esse direito pode ser muito distinto
-privado, que é o eixo da dimensão espacial men- para mulheres e homens.9
cionada anteriormente, é um problema fundamen- Embora a noção de indivíduo esteja, abstra-
tal. A crítica à dualidade entre as esferas, que está na tamente, no cerne das concepções da liberdade e
base das críticas feministas da democracia, permite da autonomia no liberalismo, a autoridade dos ho-
discutir de que modo a universalidade dos direitos mens nas famílias e os arranjos familiares conven-
se acomoda a distinções, divisões e hierarquias. A cionais foram naturalizados e respaldados no direito
ficção de que o público e o privado existem como à privacidade da entidade familiar. Nessa dinâmica,
dimensões distintas da vida oculta sua complemen- é firmado o livre curso da autoridade paterna, o li-
Autonomia, preferências e assimetria de recursos  45

vre acesso dos maridos ao corpo de suas mulheres e balho, suas chances de ingresso em esferas nas quais
o controle sobre suas vidas. Embora não seja meu as decisões se transformam em normas e políticas,
objetivo neste artigo discutir em que medida faria assim como sua posição nas relações na esfera do-
sentido mobilizar a noção de patriarcado para falar méstica. As análises feministas expõem, justamente,
das formas assumidas pela dominação de gênero nas o fato de que a inter-relação e a interconstituição
sociedades contemporâneas, parece-me interessante dessas dimensões não permitem considerar que a
considerar nesta discussão a afirmação feita por Ca- concepção individualista e antipaternalista corres-
role Pateman (1988) de que as sociedades liberais ponda à igualdade entre os indivíduos, mesmo se
são antipaternalistas, e não antipatriarcais. Para a pensarmos apenas em termos de igualdade de opor-
autora, nas sociedades modernas a valorização dos tunidades. O liberalismo é visto, nessa crítica, como
indivíduos e das relações contratuais corresponde um modo de organização do acesso à cidadania
à superação de uma ordem social de status estru- cujo cerne envolve desigualdades que organizam
turada no parentesco e na autoridade paterna, que as relações e dão formas bastante distintas à vida
mantém, no entanto, intocado o direito sexual dos dos indivíduos, dependendo de quem são eles –
homens sobre as mulheres. Esse direito é consolida- se mulheres ou homens, se proprietários ou não
do na dualidade público-privado, que fundamenta proprietários, para ressaltar os eixos que ganham
e organiza posições desiguais para mulheres e ho- mais centralidade na discussão aqui empreendida.11
mens (nas duas esferas, é sempre importante lem- Há deslocamentos também quando se leva em
brar). O paternalismo corresponderia a uma forma conta a posição das crianças. Abre-se, aqui, um con-
de organização das relações superada pelo contrato, junto diferente de questões, mas elas também reme-
aquela em que o Estado e os governantes são “como tem à relação entre família, privacidade e autoridade.
pais”, intervindo nas decisões das pessoas e nas re- As formas de organização da vida familiar variam no
lações entre adultos que consentem em tomar parte tempo e são diversas em uma mesma sociedade.12
delas (Idem, p. 33). A suspensão das diferenças nas As variações nas formas aceitáveis da autoridade dos
relações entre pais e filhos e nas relações entre ho- pais sobre os filhos expõem o quanto os arranjos
mens e mulheres adultos é importante para que as “privados” são perpassados por convenções e regras
relações de subordinação entre homens e mulheres, vigentes e impactados pelas políticas em curso. Nor-
com desvantagem para as últimas, sejam toleradas e mas básicas, de caráter negativo ou positivo, como a
o antipaternalismo seja afirmado ao mesmo tempo criminalização do infanticídio, do abuso sexual e do
que a dominação masculina é naturalizada. trabalho infantil, de um lado, e a obrigação de vaci-
Vale observar, assim, que o paternalismo tão nar os filhos e de manter as crianças na escola numa
combativamente denunciado a partir da moder- faixa etária definida por lei são, de outro lado, exem-
nidade,10 e que seria ainda mais demonizado após plos de como essas interferências determinam limi-
as experiências totalitárias do século XX, com a tes e condições para as relações entre pais e filhos,
centralidade assumida pelos Estados Unidos na or- impondo limites ao pátrio poder. Outros aspectos da
questração político-ideológica do pensamento e das vida, relacionados com a educação e o exercício da
instituições ocidentais, corresponde a intervenções autoridade, serão mantidos como privados e fami-
nas escolhas dos indivíduos, em especial no que diz liares. São os casos em que as escolhas serão dos pais
respeito à sua vida privada. Mas as relações de po- ou de outros adultos responsáveis pelas crianças e as
der que se organizam sob a égide do “pai” na vida interferências poderão ser consideradas indevidas ou
privada não se definem como problema político, versões “fortes” do paternalismo (Sunstein, 2014).
assim como não é um problema político o fato de Essas questões remetem à dualidade público-
que as escolhas sejam constrangidas, a priori, por -privado dando ênfase à esfera doméstica para tratar
modos de organização social que facilitam o exercí- do âmbito privado. O modo de organização das re-
cio do poder de uns sobre outros (e outras). lações na esfera doméstica foi discutido, até o mo-
O acesso concentrado e diferenciado a recursos mento, tendo em vista as desigualdades de gênero e
define a posição dos indivíduos nas relações de tra- a divisão sexual do trabalho. Neste ponto, é preciso
46  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 31 N° 90

considerar outra dimensão que vem sendo definida, Desigualdade de gênero e escolhas
em sentidos distintos, como correspondente ao pri- individuais
vado, qual seja, a das relações de mercado. Tanto do
ponto de vista estritamente do consumo, como A ADI n. 4.424, proposta pela Procuradoria-
do ponto de vista, sem dúvida vinculado ao pri- -Geral da República em 31 de maio de 2010 e
meiro, dos valores presentes em uma sociedade em aprovada em maio de 2012 pelo Supremo Tribu-
um dado momento, faz pouco sentido pensar nos nal Federal, determina que nos casos de violência
indivíduos como se suas decisões fossem tomadas doméstica a representação é incondicionada, isto
em isolamento ou apenas no contexto de relações é, não depende da denúncia ou da manutenção
com as pessoas que lhes são próximas. Sobretudo da denúncia pela mulher que sofreu violência. O
nas sociedades contemporâneas, em que os meios objetivo da ação foi conferir uma interpretação à
de comunicação detêm um papel central – e são um Lei Maria da Penha (11.340/2006), que institui
elo fundamental na produção simultânea dos valo- proteção específica para mulheres em condições de
res e do consumo –, a ideia de que as escolhas que violência doméstica e familiar, tornando a ação pe-
os indivíduos fazem para si e que os adultos fazem nal pública incondicionada e, como tal, compatível
pelas crianças são autônomas quando não são coagi- com a Constituição.13
das é uma ficção. Voltarei a esse ponto mais adiante, A análise que faço aqui não avalia a ADI n. 4.424
quando trato da legislação relativa ao consumo de de uma perspectiva jurídica e, portanto, não discute
alimentos nas escolas. questões relativas à constitucionalidade da ação condi-
Os três pontos abaixo apresentam uma síntese cionada ou incondicionada no caso de violência do-
provisória dos problemas até então discutidos: méstica. Também não pretendo fazer uma análise
detida das peças que compõem o processo,14 mas dis-
1. O foco nas escolhas, com a abordagem normativa cutir, brevemente e a partir dos problemas antes co-
orientada pela oposição entre escolha voluntária locados, que formas de definição da autonomia são
e coerção, não é adequado para compreender as recusadas ou mobilizadas no entendimento de que a
incitações e os constrangimentos que envolvem o ação deve ser incondicionada, isto é, independente da
processo de formação de preferências e que inci- vontade da mulher que sofreu violência.
dem sobre as escolhas dos indivíduos. A petição inicial da Procuradoria-Geral da Re-
2. A dualidade entre o público e o privado corres- pública menciona as particularidades da violência
ponde a arranjos desiguais nas relações de gê- doméstica e familiar, assim como a singularidade
nero; esses arranjos atravessam as duas esferas da posição concreta das mulheres. Com base nisso,
e estão na base das vantagens e desvantagens a garantia à sua dignidade dependeria de que sejam
socialmente produzidas, que constituem as tra- levados em conta, entre outros elementos, o com-
jetórias dos indivíduos de modo distinto se são prometimento emocional das mulheres, o medo,
mulheres ou se são homens. a violência sexual e as situações de cárcere privado
3. Os padrões estruturados das relações, com os que podem ser parte da violência doméstica (item
constrangimentos materiais e simbólicos aí im- 27). Vale observar, também, que a petição associa a
plicados, constituem as alternativas disponíveis aparente neutralidade do processo, que permitiria
assim como as preferências individuais, por isso que a vontade das mulheres prevalecesse quando
parece importante trabalhar simultaneamente a representação estivesse condicionada, a “impac-
com o processo em que o horizonte de possibi- tos nefastos e desproporcionais para as mulheres”,
lidades que referencia as escolhas é socialmente comprometendo o princípio da igualdade (item
produzido e com o contexto em que as prefe- 30) – “é que ela, por razões históricas, acaba dando
rências se manifestam e as escolhas são feitas. ensejo a um quadro de impunidade, que, por sua
vez, reforça a violência doméstica e a discriminação
A partir dessas balizas, passo a uma breve dis- contra a mulher” (item 35).
cussão de cada um dos casos. Embora em alguns pontos dos dez votos proferi-
Autonomia, preferências e assimetria de recursos  47

dos pelos juízes do STF favoráveis à Petição tenham A concepção convencional da família, que a de-
sido mobilizadas compreensões convencionais sobre fine como a expressão de afetos naturais e a situa em
a relação entre a mulher e a vida familiar, o que me um âmbito privado, ao qual os requisitos de justiça
interessa ressaltar aqui é que a decisão recomenda a e igualdade presentes na esfera pública não se apli-
necessidade em certas situações de uma intervenção cariam, teve historicamente um papel importante
protetora para garantir a dignidade das mulheres. na manutenção da violência doméstica e da vulne-
Em condições desiguais, produzidas por “razões his- rabilidade relativa das mulheres. Em vez do sentido
tóricas”, a neutralidade dos procedimentos poderia de proteção que a ideologia da família lhe impri-
garantir a manutenção da violência, e não o exercício me, o lar pode corresponder a um espaço de vio-
da autonomia por parte das mulheres. lência física e simbólica para mulheres e crianças –
Há pelo menos três sentidos em que a noção a proteção em abstrato que proporcionaria foi, e é
restrita da autonomia, que associa respeito à auto- ainda, concretamente, a livre passagem para o exer-
nomia individual e garantia de livre-escolha, é pro- cício da autoridade dentro da casa, com injustiças,
blematizada nos votos e na posição final do STF: agressões e humilhações ali envolvidas. As resistên-
cias a essa forma de organização das relações de gê-
1. O direito à privacidade, já questionado como nero e da vida social marcaram a experiência das
“direito a ser deixado em paz” nos marcos da Lei mulheres e estiveram no topo da agenda feminista.
Maria da Penha, é aqui mais uma vez ressignifi- O casamento foi sistematicamente denunciado
cado, na medida em que as decisões das mulheres pelos movimentos feministas como um dos dispo-
podem ser desconsideradas quando há violência, o sitivos centrais da opressão às mulheres: a vida do-
que significa que princípios como dignidade e méstica restringia suas experiências, limitando suas
igualdade prevalecem sobre o da livre-escolha. competências e seu horizonte (ver, por exemplo,
2. A oposição entre livre-escolha e coerção é amplia- Beauvoir, 1949). Mas essa crítica foi, ao mesmo
da para que sejam considerados como coerção tempo, denunciada como a “consumação rigorosa
constrangimentos às escolhas que constituem as da consciência do dilema das mulheres brancas de
experiências das mulheres no contexto em que a classe média” (Davis, [1981] 1983, p. 53), uma vez
ADI é discutida, como a vulnerabilidade física e que as formas e os efeitos do controle da sexualida-
psíquica da mulher diante do agressor, o medo e de e a fusão entre o doméstico e o feminino variam
o risco ou a vulnerabilidade econômica em que segundo a posição social, atingindo as mulheres
ela e seus filhos possam se encontrar. pobres e as mulheres negras de forma distinta das
3. A oposição entre livre-escolha e coerção é abando- mulheres de classe média e brancas. O casamento
nada, uma vez que os padrões estruturais que correspondeu, de fato, a muitas restrições na vida
constituem as relações de gênero no contexto em dessas últimas, mas sua realidade não expressa as
que a ADI é discutida incidem sobre as prefe- formas de privação e a posição no mundo familiar
rências e as escolhas das mulheres. Esses padrões e do trabalho de todas as mulheres. As mulheres
têm como aspecto central a divisão sexual do negras elaboraram sua relação com o casamento e
trabalho, com a responsabilização prioritária a sexualidade de maneiras que demonstram a dife-
da mulher pelos filhos e os incentivos materiais rença entre esse ideal, seus efeitos na organização da
e simbólicos para que as mulheres se casem e se vida de mulheres e homens brancos de classe média
mantenham casadas, desdobrando-se em maio- e seu impacto, distinto e matizado por uma série de
res obstáculos para o exercício de trabalho re- outros aspectos das relações de poder para além do
munerado, de que a maior evidência é o ren- gênero (Davis, [1981] 1983; Hooks, 1984).
dimento médio inferior ao dos homens mesmo Discutir aqui as reações e as resistências que fi-
em um contexto em que as mulheres têm maior zeram parte do processo de construção das leis sobre
acesso a educação formal. A tolerância ao con- a violência doméstica e familiar no Brasil (Bandeira,
trole dos homens sobre os corpos das mulheres é 2009; Debert e Gregori, 2008; Gregori, 1993) tem o
também um elemento nessa divisão. intuito de ressaltar que a questão da escolha não é de
48  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 31 N° 90

caráter “cognitivo”. Em outras palavras, não se trata dado com as crianças, com as pessoas doentes e com
de um problema de percepção adequada ou insufi- os idosos, quando entendido como um problema
ciente, mas de como as preferências são produzidas e individual ou das famílias como entidades privadas,
as escolhas são feitas em meio a constrangimentos e expõe um dos nós da vulnerabilidade econômica di-
incitações bastante concretos, que constituem os in- ferenciada de mulheres e homens, mas sobretudo das
divíduos e suas trajetórias. Dessa perspectiva, mesmo mulheres pobres. Ao mesmo tempo, a desvalorização
a relação entre socialização, convenções de gênero e social do cuidado faz com que as atividades com ele
casamento ganha uma abordagem em que o proble- relacionadas sejam mal remuneradas; como elas são
ma fundamental é o padrão estrutural das vantagens e exercidas predominantemente por mulheres, essa di-
desvantagens em contextos sociais determinados, mais visão colabora para mantê-las nas posições mais baixas
do que a percepção que as mulheres têm de si. Não das hierarquias salariais e de prestígio, mesmo quando
pretendo, com isso, reduzir o peso do processo de in- se desdobram no exercício de atividades remuneradas.
ternalização de valores e da cultura: o amor român- As lutas feministas das últimas décadas e as mu-
tico e a maternidade permanecem como dispositivos danças nas formas assumidas pelas relações de gênero
ideológicos fundamentais na construção das experiên- de fato ampliaram o direito a deixar um casamento
cias (distintas, lembrando mais uma vez) das mulhe- e as “habilidades” das mulheres para fazê-lo (Walby,
res (Badinter, [1980] 1985). Ressalto, no entanto, que 1990, p. 185), isto é, as possibilidades de a mulher
esses valores são vivenciados em contextos que natura- deixar um casamento são, hoje, mais efetivas. O di-
lizam e dão sentido aos constrangimentos existentes e reito ao divórcio, que no Brasil existe desde 1977,
ao leque disponível de escolhas. juntamente com o maior acesso ao trabalho remune-
A ficção de que o público e o privado existem rado, define condições mais favoráveis à autonomia
como dimensões distintas da vida oculta sua com- das mulheres. A maior aceitação de relações afetivas e
plementaridade na produção das oportunidades. As sexuais desvinculadas do casamento também causou
expectativas sociais levam ao desenvolvimento de impacto na vida das mulheres. Do mesmo modo, o
habilidades diferenciadas pelas mulheres e pelos ho- maior controle sobre sua vida reprodutiva, propiciado
mens. As atividades para as quais são orientados cor- pelo acesso a anticoncepcionais – embora no Brasil
respondem, por outro lado, a posições diversamente esse controle seja restrito pela criminalização do direi-
valorizadas, levando não apenas a “diferenças”, mas to ao aborto –, incide no horizonte das possibilidades
também à assimetria nos recursos. As mulheres são consideradas pelas mulheres e é um componente nas
“expostas à vulnerabilidade durante o período de suas escolhas. No entanto, ainda hoje, a organização
desenvolvimento por suas expectativas pessoais (e das relações entre as esferas doméstica e pública é pau-
socialmente reforçadas) de que serão as principais res- tada pela permanência da mulher como a responsável
ponsáveis pelo cuidado com as crianças”, o que orien- pelo trabalho doméstico e pela criação dos filhos, o
ta seu comportamento para a conquista do casamen- que certamente modela sua trajetória e suas escolhas.
to, já que atrair e manter o suporte econômico de um A escolha de permanecer em um casamento ou
homem se torna necessário para o cumprimento do manter uma relação violenta se dá, assim, em con-
papel que se espera que desempenhem (Okin, 1989, textos concretos – sua condição para a livre-escolha
p. 139). De modo análogo, o mundo do trabalho depende de como tais contextos foram construídos
estruturou-se tendo como pressuposto que “os traba- e de como incidem sobre as mulheres, deslocando
lhadores” têm esposas em casa. No casamento con- o problema do âmbito “interno” da agência moral
vencional, o controle dos recursos materiais permane- para o âmbito social. A ausência de representação
ce com os homens, mesmo que a dedicação e a rotina que está em questão na ADI n. 4.424 – na forma
de que os recursos são fruto dependam do trabalho da recusa a denunciar ou da retirada da denúncia –
doméstico não remunerado da mulher. pode ser, assim, uma expressão dos constrangimen-
As mudanças nos sentidos assumidos pelo casa- tos e das incitações que constituem o contexto em
mento não significaram necessariamente transforma- que as mulheres escolhem, mais do que propria-
ções na atribuição social das responsabilidades. O cui- mente a expressão da vontade.
Autonomia, preferências e assimetria de recursos  49

Os constrangimentos e as formas de tolerância à A regulação da oferta de alimentos nas escolas,


violência remetem, pois, às condições sociais em que que é objeto da lei n. 5.146, significa na prática a
as escolhas são produzidas, mas vale atentar também regulação da venda e da propaganda de alimentos,
para o modo pelo qual os desdobramentos de uma assim como um direcionamento maior na definição
escolha incidem não só no plano individual como dos alimentos que serão adquiridos pela rede esco-
também no contexto das relações sociais. Assim, lar pública. Em outras palavras, a “promoção da ali-
quando as condições da escolha correspondem às mentação saudável” incide sobre o mercado e não
preferências individuais – produzidas socialmente, apenas sobre a liberdade de escolha dos indivíduos.
mas mobilizadas pelo indivíduo em sua trajetória Talvez essa seja uma explicação para o veto inte-
singular–, mas produzem subordinação ou colabo- gral do então governador José Serra ao projeto de lei
ram para manter ativo o moinho social da tolerância n. 1.356/2007, aprovado pela Assembleia Legislativa
à violência contra as mulheres, elas contribuem para de São Paulo. O projeto proibia a comercialização de
a reprodução de padrões opressivos que afetam ou- “lanches, bebidas ou similares, de alto teor calórico e
tras mulheres. Isso ocorre, por exemplo, quando as que contenham gordura ‘trans’” nas cantinas das es-
mulheres são vistas como tendo “escolhido” perma- colas públicas ou privadas. Essa proibição abrangia,
necer em uma relação na qual são agredidas, confir- expressamente, salgados de massas ou massas folha-
mando padrões sexistas de julgamento, especialmen- das, frituras em geral, biscoitos recheados, salgadi-
te nos casos em que os agressores não são punidos. nhos e pipocas industrializados, refrigerantes e sucos
Há, também dessa perspectiva, uma justificativa para artificiais, balas, pirulitos e gomas de mascar e “qual-
se colocar em questão preferências e escolhas que rei- quer produto de alto teor calórico e que contenham
teram formas de subordinação e abrem espaço para o [sic.] gordura “trans” ou de poucos nutrientes”.
exercício continuado da violência. Além disso, exigia que o serviço de fornecimento
de lanches colocasse à disposição, para comercializa-
ção, no mínimo dois tipos de frutas. As justificativas
Mercado, família e produção das preferências elencadas no veto do então governador José Serra16
versam sobre (a) a inadequação desse dipositivo legal
A lei n. 5.146, de 19 de agosto de 2013, que para regulação, controle e fiscalização de alimentos
“estabelece diretrizes para a promoção da alimen- que oferecem riscos à saúde (seriam da competên-
tação saudável” nas escolas do Distrito Federal, foi cia da Agência Nacional de Saúde, a Anvisa, tendo
produzida e aprovada em um contexto de ampliação o Estado apenas caráter complementar); (b) a sufici-
do debate e de esforços para a regulação dos alimen- ência das formas de controle vigentes, entre as quais
tos oferecidos nas escolas, que vem ocorrendo no é ressaltada a exigência, pela Anvisa, de rótulos que
Brasil e em outras partes do mundo. Um dos mar- esclareçam sobre o valor energético e nutricional
cos desse debate foi o documento “Estratégia global dos alimentos industrializados; (c) a insuficiência dos
em alimentação saudável, atividade física e saúde”, mecanismos de controle propostos, uma vez que o
aprovado na 57ª Assembleia Mundial de Saúde da problema não estaria apenas na composição dos ali-
Organização Mundial de Saúde (OMS), em maio de mentos, mas também na quantidade consumida e
2004. Ao assinar este documento, o governo brasilei- no consumo conjunto com outros alimentos;17 (d) a
ro comprometeu-se a produzir e a fortalecer políticas incongruência entre a necessidade de regular a quan-
condizentes com as preocupações e os parâmetros tidade de calorias e oferecer frutas sem discriminar
para a alimentação saudável expressos no documen- o tipo e a porção;18 (e) a necessidade diferenciada
to. Pelo menos desde os anos de 1990, associações de de ingestão de calorias pelas crianças, com destaque
consumidores e instâncias participativas no âmbito para o fato de que algumas delas precisariam de die-
do Estado vêm discutindo e definindo agendas para tas com altos níveis de ingestão calórica.
a segurança alimentar e nutricional que envolvem o Embora esse veto dê uma dimensão do cará-
controle da oferta de alimentos e restrições à propa- ter não consensual dessas regulações no contexto
ganda de produtos nocivos para a saúde.15 brasileiro, a lei aprovada no Distrito Federal não é
50  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 31 N° 90

exatamente uma exceção. Nos últimos anos, foram A noção restrita da autonomia, que associa res-
aprovados vários documentos com abordagem se- peito à autonomia individual e garantia de livre-
melhante – entre eles, a portaria interministerial n. -escolha, é problematizada nessa legislação em pelo
1.010, de 8 de maio de 2006, produzida pelo Mi- menos três sentidos:
nistério da Saúde e pelo Ministério da Educação
com o objetivo de regular a venda e a propaganda 1. Em um contexto de restrições à autonomia da
de alimentos no ambiente escolar, e a resolução n. entidade familiar, que se expressa, por exem-
26 do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Edu- plo, na forma de leis que definem a escolari-
cação (FNDE), de 17 de junho de 2013. Enquanto zação não apenas como um direito das crian-
a primeira apresentava diretrizes bastante próximas às ças, mas também como um dever dos pais ou
do documento da OMS, voltadas para o estímulo responsáveis, o direito das famílias para decidir
à alimentação saudável (por meio, por exemplo, de sobre a vida das crianças é restrito e ressigni-
hortas nas escolas e de conteúdos didáticos para a ficado. As leis restringem o controle familiar
promoção da alimentação saudável) e mencionava privado sobre as crianças. Aplicada ao ensino
restrições na oferta e na promoção de produtos da- fundamental e básico, e tomadas as práticas
nosos à saúde nas escolas, a última veta “a aquisição correntes, a definição da alimentação adequada
de bebidas com baixo valor nutricional tais como re- pelo Estado constrange a liberdade de escolha
frigerantes e refrescos artificiais, bebidas ou concen- das famílias, mais do que a das crianças. Isso
trados à base de xarope de guaraná ou groselha, chás não significa que não exista, em alguma medi-
prontos para consumo e outras bebidas similares” da, uma restrição à liberdade dos indivíduos que
e restringe a aquisição, pelas escolas, de “alimentos consomem diretamente esses alimentos, sobretu-
enlatados, embutidos, doces, alimentos compostos do quando se pensa nas crianças mais velhas,
(dois ou mais alimentos embalados separadamente uma vez que a lei se aplica também ao ensino
para consumo conjunto), preparações semiprontas médio. Algumas alternativas estão sendo pre-
ou prontas para o consumo, ou alimentos concentra- viamente excluídas, e o Estado estrutura aber-
dos (em pó ou desidratados para reconstituição)”.19 tamente as preferências para evitar prejuízos
A resolução e a lei aprovada no Distrito Federal para a saúde presente e futura dos indivíduos
têm conteúdo bastante similar, embora seu escopo (no caso, pela interferência na alimentação das
seja, obviamente, distinto. Por meio da resolução, o crianças). Noções como a de direito à alimen-
FNDE interfere na compra dos alimentos pelos es- tação saudável e segurança alimentar prevale-
tados e pelos municípios com os repasses feitos pelo cem sobre o valor da escolha privada, seja ela
governo federal no âmbito do Programa Nacional de da família ou das próprias crianças.
Alimentação Escolar (PNAE).20 Há, também, pro- 2. A lei está claramente embasada no entendi-
jetos de lei em tramitação na Câmara dos Deputa- mento de que as preferências são formadas social-
dos com os mesmos objetivos de restrição à oferta, mente. As preferências “adequadas”, do ponto
ao comércio e à promoção no ambiente escolar de de vista da saúde das crianças no presente e no
refrigerantes e alimentos com altos teores de gor- futuro, são vistas como constrangidas pelas es-
dura trans e saturada, açúcar e sal, e com medidas colhas prévias (convenções e hábitos adquiri-
simultâneas para o estímulo ao consumo de frutas, dos pelos adultos, sejam eles os responsáveis na
legumes e verduras.21 Pode-se entender, assim, que vida doméstica ou no ambiente educacional) e
a lei distrital n. 5.146 transforma em legislação as pela dinâmica de mercado, que promove a ali-
diretrizes da resolução n. 26 do FNDE, vinculando mentação de acordo com outros valores, como
escolas públicas e privadas de ensino infantil, básico o lucro. Daí as restrições não apenas à oferta
e médio do Distrito Federal. Não é uma lei para esti- de alimentos considerados prejudiciais à saúde
mular a alimentação saudável; ela proíbe a oferta e a das crianças, mas também o entendimento de
comercialização de determinados alimentos e exige a que é preciso coibir a promoção (publicidade)
oferta de outros.22 de alimentos considerados inadequados, como
Autonomia, preferências e assimetria de recursos  51

refrigerantes e salgadinhos, e estimular hábitos No nível das decisões tomadas no âmbito fa-
adequados, por meio da oferta de alimentos miliar, o sistema escolar incide previamente sobre
saudáveis e de outros recursos pedagógicos. As o controle dos pais sobre os filhos. Diretrizes peda-
“estratégias para favorecer escolhas saudáveis” gógicas e alimentares incidem sobre a socialização
e para a “formação de hábitos alimentares sau- das crianças de maneira que reduz potencialmente
dáveis” (projeto de lei n. 7.901, de 2010) são o peso dos valores presentes no ambiente familiar e
assim validadas. da autoridade dos pais ou responsáveis. As críticas
3. A lei se propõe a regular a dinâmica de formação poderiam ser a um paternalismo do Estado interfe-
das preferências pelo mercado. Isso está presente na rindo indevidamente no âmbito legítimo da autori-
regulação da “promoção” (publicidade), no veto dade paterna – o que foi, em muitos momentos, mo-
a determinados alimentos, no estímulo concomi- bilizado nas críticas à chamada Lei da Palmada25 –,
tante à venda de outros e na regulação da relação mas elas têm, de fato, pouco sentido quando se
entre agentes de mercado e agentes políticos. Esse pensa que a oferta dos alimentos já não era defini-
último aspecto aparece de maneira mais abran- da, em grande medida, pelos pais. Mesmo no caso
gente na resolução do FNDE, uma vez que os das cantinas de escolas particulares ou da venda de
repasses de recursos federais para estados e muni- alimentos no ambiente escolar público, em que as
cípios passam a estar vinculados a determinados escolhas de algum modo dependeriam do poder de
requisitos para a aquisição dos alimentos. Mas a compra, da definição dos pais e/ou das decisões das
lei do Distrito Federal também afeta, por exem- crianças, o que é determinante é o leque de alimen-
plo, a definição dos produtos e empresas que to- tos e produtos ofertados.
mam parte das licitações no caso da rede pública A interferência é sobretudo no mercado dos pro-
de ensino. As normas incidem, assim, sobre as dutos alimentícios. Para a discussão aqui empreendi-
relações de força atuais, reduzindo o impacto das da, é importante saber que, se em alguma medida a
estratégias de mercado (da publicidade à partici- autonomia individual que corresponderia à livre-es-
pação em licitações) na formação das preferências colha localizada de produtos é afetada, o efeito mais
e na definição do leque de escolhas para o consu- direto e abrangente é sobre a oferta dos produtos e a
mo. Abrem novas possibilidades de comercializa- dinâmica de mercado que a define. A base para o con-
ção, o que envolve sem dúvida o estímulo a novos trole é o reconhecimento de que hábitos e preferências
nichos de mercado para os produtos adequados são estruturados por dinâmicas que extrapolam o âm-
às normas vigentes (que podem, é claro, atuar por bito da individualidade e que, por outro lado, afetam
meio das mesmas lógicas e estratégias que orga- a vida das pessoas, até mesmo sua integridade física,
nizam o comércio dos produtos vetados ou que no presente e no futuro. Assim, não há dúvida de que
tiveram seu consumo reduzido).23 as preferências são estruturadas seja pela dinâmica de
mercado, seja por ações estatais. A trajetória futura
As restrições aos alimentos oferecidos nas escolas dos indivíduos é marcada por escolhas orientadas por
interferem, portanto, nas escolhas determinadas no preferências socialmente construídas, e não por esco-
ambiente familiar e nas escolhas das próprias crianças; lhas racionalmente orientadas, que variam de acordo
interferem também nas escolhas diretas das autorida- com seu acesso a informações.
des nas escolas, mas afetam sobretudo a dinâmica de
mercado. Nas sociedades de consumo, as preferências
são formadas em circunstâncias nas quais a força das Conclusão
empresas do ramo alimentício é sem dúvida despro-
porcional, seja em relação a práticas locais e/ou tradi- Este artigo discute a relação entre autonomia
cionais, seja em relação ao que poderia ser visto como e produção das preferências a partir da análise dos
o âmbito da autenticidade, quando o “gosto” ou a es- limites dos argumentos orientados pela oposição
colha são modelados por motivações e contextos indi- entre livre-escolha e coerção. Na construção dessa
vidualizados ou tradicionais.24 crítica, elaborada sobretudo com base em contri-
52  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 31 N° 90

buições teóricas do feminismo, analiso dois casos uma mulher, mas evitam, também, entender a vio-
bastante distintos, o da ADI n. 4.424, que deter- lência masculina como mera derivação de outras
mina a incondicionalidade da representação nos ca- formas de opressão. A violência masculina pode
sos de violência doméstica, e o da lei n. 5.246, que ser compreendida como “uma forma do poder [dos
controla a oferta de alimentos das escolas públicas e homens] sobre as mulheres” que expõe as conexões
privadas do Distrito Federal. São casos singulares e entre diferentes dimensões da dominação de gênero
não há, aqui, qualquer similaridade na interferência em uma sociedade (Walby, 1990, p. 143).
provocada em um ou outro. Em conjunto, expõem No segundo caso, formuladores de políticas e
como vem sendo incorporada à legislação e às prá- legisladores entenderam que as escolhas individuais
ticas reguladoras vigentes a ideia de que as prefe- autônomas são constrangidas por aquele que seria o
rências são produzidas em contextos assimétricos espaço por excelência da potencialização da liberda-
no acesso a recursos e nas relações de poder que de- de de escolha dos indivíduos, o livre-mercado.
finem o horizonte de possibilidades dos indivíduos. A assimetria entre os agentes de mercado, entre
No primeiro caso, são levadas em conta as for- empresas e consumidores individuais, mas também
mas de dominação de gênero em sociedades que entre o capital privado e os controles democráticos,
ampliaram de modo significativo os direitos das é um problema de primeira ordem nas sociedades
mulheres e, progressivamente, excluíram do códi- capitalistas contemporâneas. E a produção das pre-
go penal o direito de um homem a controlar uma ferências se coloca justamente nesta dimensão do
mulher. O problema aos poucos deixou de ser o problema, a da assimetria de recursos. A influência
controle de um homem determinado sobre uma na definição das preferências e, ao mesmo tempo,
mulher determinada (Fraser, 1997), mas persistem a construção diferenciada do horizonte das possibi-
estruturas que implicam desigualdades. Sua prin- lidades acomodam a cidadania igualitária na dinâ-
cipal expressão é a divisão sexual do trabalho, que mica de vantagens e desvantagens padronizadas que
deixa as mulheres em uma posição de maior vulne- atingem distintamente os indivíduos segundo sua
rabilidade se comparada à posição dos homens. posição social, o que se expressa em realidades mui-
Além disso, permanecem ativas formas de ob- to distintas: das preferências políticas ao consumo
jetificação da mulher, noção que talvez, em face das privado de produtos no cotidiano.
conquistas no âmbito da liberdade sexual, tenha se A indústria de produtos alimentícios é, sem
tornado obsoleta mesmo dentro do próprio femi- dúvida, diversificada. Uma análise mais atenta des-
nisno, mas que me parece ainda útil para a análise se mercado permitiria observar que os produtos
da dominação de gênero nas sociedades contempo- saudáveis e apresentados como naturais – orgâ-
râneas. Objetificação e tolerância social à violência nicos e integrais – tiveram sua oferta e consumo
estão associadas a uma moral sexual e familiar con- ampliados nos últimos anos, transformando-se em
vencional, na qual os homens reivindicam para si o um nicho de mercado lucrativo. Ao mesmo tempo,
controle sobre o corpo das mulheres. Embora sejam a propaganda e a oferta maciça de produtos, cujo
muitas as transformações, as formas assumidas pela consumo é nocivo à saúde a médio e longo prazos,
exposição do corpo das mulheres na publicidade e na não apresenta benefícios, mas aposta no hábito das
pornografia convencional, assim como, em um polo pessoas. O caso dos refrigerantes é tão evidente que
distinto, as convenções de gênero difundidas pelas não precisa de muitas palavras: é um exemplo claro
religiões organizadas que, em nome da “família”, da ação das grandes corporações na promoção de
atuam contra o direito das mulheres ao seu corpo, hábitos de consumo. A preferência por refrigerantes
mostram que é preciso compreender como se orga- é uma expressão da livre-escolha dos indivíduos ou
nizam hoje os obstáculos à igualdade de gênero. das influências que estruturam essas preferências?
As abordagens feministas que contribuem para Por outro lado, a utilização de agrotóxicos com-
uma análise socioestrutural da violência contra a provadamente nocivos à saúde talvez seja, hoje, um
mulher26 evitam o enfoque em aspectos psicoló- dos exemplos mais claros da deficiência dos con-
gicos da violência exercida por um homem contra troles democráticos na limitação da ação orientada
Autonomia, preferências e assimetria de recursos  53

para o lucro das empresas, contrariamente a outros 6 Assim percebo as abordagens de Elshtain (1981), San-
interesses e critérios que poderiam definir as regras del, ([1982] 1998) e Taylor (1991)
que regulam esse mercado. Isso levanta questões 7 No pensamento contemporâneo, a maior expressão
que fogem do escopo deste artigo, mas o que está dessa perspectiva é certamente o Rawls de Uma teoria
em jogo nesses exemplos é a integridade dos indiví- da justiça, 1971.
duos, ou seja, as condições básicas para que possam 8 As teorias da escolha racional, influentes na ciência po-
viver “à sua maneira”; e nos quais a livre-escolha lítica contemporânea, são o exemplo mais claro da di-
encontra obstáculos que não são formas abertas de ferenciação e mesmo do isolamento entre as operações
mentais que orientam as escolhas e as incitações e cons-
coerção à liberdade individual.27
trangimentos sociais nos quais tomam forma. Nessas
O horizonte normativo da análise aqui apre-
teorias, ganha força a abstração da individualidade em
sentada é o aprofundamento da democracia, para detrimento de seu caráter social. Mesmo entre aborda-
o qual é relevante saber se a produção social das gens sofisticadas, como as de Jon Elster, a ênfase é na
preferências se dá em contextos de maior ou menor manifestação individual das preferências, das quais é
pluralidade. O controle desigual sobre as informa- derivado o indivíduo, com pouca ou nenhuma atenção
ções e as assimetrias na possibilidade de vocalização para os processos sociais de produção das preferências e
de perspectivas e interesses são, assim, tópicos de os constrangimentos socioestruturais que constituem o
primeira ordem. Quando são levados em conta, horizonte de possibilidades dos indivíduos.
fica evidente que a ausência de impedimentos aber- 9 Para abordagens que procuram ressignificar a noção
tos não é suficiente para a expressão autônoma. de privacidade de maneiras distintas e mesmo antagô-
O foco incide, assim, sobre as condições exis- nicas, ver Cohen (1997 e 2002) e Mackinnon (1987).
tentes para o exercício da autonomia: trata-se de Suas posições são discutidas mais detalhadamente em
Miguel e Biroli (2014).
diferenciar as situações em que as escolhas expres-
sam o exercício da autonomia daquelas em que as 10 A esse respeito, ver Miguel (2015).
opções expressam a falta de recursos materiais e 11 Não seria possível, nem é objetivo deste artigo, um
simbólicos para esse exercício. Por isso, a tolerân- mapeamento que permitisse compreender as diferen-
ças entre as posições no pensamento liberal. Mas é im-
cia à subordinação e a naturalização das assimetrias
portante ter em mente, como dito anteriormente, que
emergem como o alvo da crítica.
a concepção abstrata dos indivíduos não implica igual
recusa de lidar com o modo como as desigualdades e
as relações de poder incidem nas garantias efetivas da
Notas liberdade e da autonomia dos indivíduos. É enorme a
distância entre a concepção de liberdade em autores
1 O acórdão completo do julgamento está disponível do chamado liberalismo igualitário, como John Rawls
em http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/con- e Ronald Dworkin – para quem a concepção abstrata
sultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletroni- do indivíduo se desenha em abordagens teóricas crí-
co.jsf?seqobjetoincidente=3897992. ticas à noção de mérito e sensíveis às circunstâncias
2 A lei está disponível na íntegra em http://www. sociais (embora essa sensibilidade não seja estendida
crn1.org.br/wp-content/uploads/2014/01/LEI- às circunstâncias políticas e embora, ainda, mante-
-DF-2013-5146.pdf. nham uma compreensão insuficiente do impacto da
3 Em outros textos, analiso especificamente essa ques- presunção da dualidade entre as esferas pública e pri-
tão (Biroli, 2015). vada para a produção de garantias para a liberdade,
em especial das mulheres) – e as concepções presentes
4 Para uma análise de concepções alternativas de res- nas abordagens dos chamados libertarianistas, como
ponsabilidade, que ressaltam os obstáculos estruturais Milton Friedman, Friederich Hayek e Robert Nozi-
à ação individual e formas de dependência intersub- ck, para quem a ênfase no indivíduo está diretamente
jetiva que deveriam ser incorporadas centralmente às ligada à valorização do mérito. Eles se opõem à inter-
reflexões sobre democracia, ver Biroli (2013, cap. 5), ferência do Estado visando a uma distribuição mais
Fineman (2004), Tronto (2013) e Young (2011). justa dos recursos, que é vista como restrição à liber-
5 É o que se passa, ao menos, com as críticas dirigidas dade dos indivíduos.
a Rawls (1971).
54  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 31 N° 90

12 Para uma síntese dessa discussão, que considera as va- para a alimentação saudável e a segurança alimentar
riações nos conceitos de família e analisa criticamente e sobre a alimentação como direito que envolve não
a privatização da família, ver Biroli (2014). apenas a oferta de alimentos, mas também “a forma-
13 De acordo com o item 15 da petição da Procuradoria- ção de hábitos alimentares saudáveis”. Não há, no
-Geral da República, a condicionalidade da represen- entanto, restrições ou proibições, assim como não há
tação, que prevaleceu como interpretação judicial à detalhamento do que constitui a “alimentação saudá-
Lei Maria Da Penha antes que a ADI n. 4.424 entras- vel e adequada” para além do que define o artigo 12º
se em vigor, por outro lado, “importa[va] em violação (“os cardápios da alimentação escolar deverão ser ela-
ao princípio constitucional da dignidade da pessoa borados pelo nutricionista responsável com utilização
humana (art. 1º, III), aos direitos fundamentais da de gêneros alimentícios básicos, respeitando-se as refe-
igualdade (art. 5º, I) e de que a lei punirá qualquer rências nutricionais, os hábitos alimentares, a cultura
discriminação atentatória dos direitos e liberdades fun- e a tradição alimentar da localidade, pautando-se na
damentais (art. 5º, XLI), à proibição deficiente dos sustentabilidade e diversificação agrícola da região, na
direitos fundamentais, e ao dever do Estado de coibir alimentação saudável e adequada”). A lei n. 12.982,
e prevenir a violência no âmbito das relações familia- de 28 de maio de 2014, altera a anterior para garan-
res (art. 226, § 8º)”. A condicionalidade seria, assim, tir provimento de alimentação escolar adequada para
contrária ao “espírito da Lei Maria da Penha de por alunos que tenham condição de saúde que determine
fim à situação de discriminação e violência contra a necessidades específicas, mas também não acrescenta
mulher no ambiente doméstico”, levando a 90% de novidades à regulação da alimentação oferecida, o que
arquivamento das ações penais (item 42). é feito de fato pela resolução n. 26.
14 Para uma análise dos argumentos mobilizados nos votos 21 Projeto de lei n. 1.356/2007 e projeto de lei n. 7.901/2010:
dos juízes do Supremo Tribunal Federal, orientada pela tramitam apensados ao projeto de lei n. 2389/2011 (ori-
problematização aqui presente, conferir Senra (2013). ginado do PLS n. 225/2010), que teve parecer favorável
aprovado na Comissão de Seguridade Social e Família
15 O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nu-
e atualmente tramita na Comissão de Educação, onde
tricional foi criado em 1993. Um ano depois, Bra-
aguarda o parecer do relator designado.
sília sediou a I Conferência Nacional de Segurança
Alimentar. A II Conferência, no entanto, aconteceria 22 O artigo 4º determina que “fica proibida a comercia-
apenas dez anos depois, em 2004, e seria seguida pela lização dos produtos a seguir relacionados nas escolas
III, IV e V conferências nos anos de 2007, 2011 e de educação infantil e de ensino fundamental e médio
2015. O Relatório Final da II Conferência já apre- das redes pública e privada de ensino: I – balas, piru-
sentava demandas por “leis federais que proíbam, nas litos, gomas de mascar, biscoitos recheados; II – re-
escolas, a comercialização e a propaganda de alimen- frigerantes e sucos artificiais; III – salgadinhos indus-
tos inadequados do ponto de vista nutricional e que trializados; IV – frituras em geral; V – pipoca industriali-
regulamentem a propaganda e as estratégias de ma- zada; VI – bebidas alcoólicas; VII – alimentos industria-
rketing, priorizando aquelas dirigidas às crianças e aos lizados cujo percentual de calorias provenientes de gor-
adolescentes” (item 4.2, p. 18). dura saturada ultrapasse 10% (dez por cento) das calorias
totais”. O artigo 5º determina que “a cantina escolar deve
16 “Veto total ao Projeto de lei n. 1.356, de 2007”, Men-
oferecer para consumo, diariamente, pelo menos uma
sagem n. 43/2009, de 18 de maio de 2009.
variedade de fruta da estação in natura, inteira ou em
17 O exemplo dado é “a dificuldade de se aferir o teor caló- pedaços, ou na forma de suco”, e o artigo 6º determina
rico de um cachorro quente que, comumente, é consu- que sucos de frutas e bebidas lácteas deverão ser ofere-
mido com maionese, ketchup, mostarda e batata frita”. cidos sem a adição de açúcar, que deve ser opcional e
18 O exemplo dado é o do abacate, “uma fruta de alto va- definida pelo consumidor. A lei determina também, em
lor calórico e que é, usualmente, oferecido às crianças seu artigo 8º, a adoção de conteúdo pedagógico sobre
brasileiras, adicionado de açúcar”. alimentação saudável e segurança alimentar.
19 A aquisição desses alimentos fica restrita ao máximo 23 A resolução n. 26 do FNDE também interfere na re-
de 30% do orçamento repassado pelo FNDE. lação entre mercado e política quando determina que
20 A Lei n. 11.947, de 16 de junho de 2009, legisla sobre no mínimo 30% dos recursos do FNDE, no âmbito
a transferência de recursos para municípios e estados do PNAE, devem ser destinados a alimentos adquiridos
para a compra dos alimentos que serão oferecidos nas “diretamente da Agricultura Familiar e do Empreende-
escolas. Os artigos 2º, 3º e 4º versam sobre diretrizes dor Familiar Rural ou suas organizações, priorizando
Autonomia, preferências e assimetria de recursos  55

os assentamentos da reforma agrária, as comunidades BANDEIRA, Lourdes. (2009), “Três décadas de


tradicionais indígenas e comunidades quilombolas, resistência feminista contra o sexismo e a vio-
conforme o art. 14, da Lei n. 11.947/2009”. lência feminina no Brasil: 1976-2006”. Socie-
24 Como exemplo da maneira pela qual se estabelecem dade & Estado, 24 (2) : 401-38.
as tensões entre práticas alimentares tradicionais, re- BEAUVOIR, Simone de. (1949), Le deuxième sexe.
lações de mercado e políticas de Estado, a população Paris, Gallimard, 2 vols.
indígena brasileira tem sofrido, segundo estudos noti-
BIROLI, Flávia. (2013), Autonomia e desigualda-
ciados na imprensa sobre o caso dos índios xavantes,
uma epidemia de diabetes por conta do consumo de
des de gênero: contribuições do feminismo para
produtos refinados (as cestas básicas recebidas pelos a crítica democrática. Niterói/Vinhedo, Eduff/
índios seriam compostas por arroz, açúcar, farinha, Horizonte.
macarrão, sem uma consideração das especificidades _______. (2014), Família: novos conceitos. São
da sua dieta e da sua constituição genética) e de refri- Paulo, Editora da Fundação Perseu Abramo.
gerantes (Lucas Reis, “Invasão do açúcar”, Folha de S. _______. (2015), “Responsabilidades, cuidado e
Paulo, 9 de agosto de 2015, Cotidiano, pp. 6-7). democracia”. Revista Brasileira de Ciência Polí-
25 Refiro-me ao debate sobre o projeto de lei n. 7.762, de tica, 18: 81-117.
2010, aprovado em 2014 na forma da lei ordinária n. COHEN, Jean L. (1997), “Rethinking privacy: au-
13.010/2014, que foi, de modo enviesado, batizado de tonomy, identity, and the abortion controver-
“Lei da Palmada”. O projeto, que se baseia e redefine sy”, in Jeff Weintraub e Krishan Kumar (eds.),
projeto anterior (PL n. 2654/03), dispõe sobre o Estatu-
Public and private in thought and practice: pers-
to da Criança e do Adolescente (ECA) “para estabelecer
pectives on a grand dichotomy, Chicago, The
o direito da criança e do adolescente de serem educados
e cuidados sem o uso de castigos corporais ou de tra- University of Chicago Press.
tamento cruel ou degradante”. As críticas remetem, de _______. (2002), Regulating intimacy: a new le-
modo geral, ao direito dos pais a castigar fisicamente seus gal paradigm. Princeton, Princeton University
filhos, ainda que de forma “moderada”, mobilizando o Press.
entendimento de que a privacidade inclui o exercício da DAVIS, Angela Y. ([1981] 1983), Women, race &
autoridade paterna por meio dos castigos físicos e da hu- class. Nova York, Vintage.
milhação, o que não condiz com a garantia à integridade DEBERT, Guita Grin & GREGORI, Maria Fi-
dos indivíduos, nesse caso das crianças. lomena. (2008), “Violência e gênero: novas
26 Analisadas por Walby (1990), no campo do feminis- propostas, velhos dilemas”. Revista Brasileira de
mo radical. Ciências Sociais, 66: 165-185.
27 A propaganda de produtos infantis, sobretudo aquela DUMONT, Louis. (1985), Essais sur l’individualisme:
que tem como foco específico o consumo infantil, é une perspective anthropologique sur l’idéologie mo-
sem dúvida um tema importante para a discussão que derne. Paris, Éditions du Seuil.
proponho. O lobby das empresas tem tido resultados
DWORKIN, Gerald. (1988), The theory and prac-
positivos no Congresso, uma vez que as propostas
tice of autonomy. Cambridge, Cambridge Uni-
de lei para a regulação desse tipo de publicidade não
avançam. Em abril de 2014, o Conanda (Conselho versity Press.
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), DWORKIN, Ronald. ([2000] 2005), Virtude sobe-
órgão ligado à Secretaria de Direitos Humanos da Pre- rana. São Paulo, Martins Fontes.
sidência da República, aprovou pela primeira vez no ELSHTAIN, Jean Bethke. (1981), Public man, pri-
Brasil uma resolução contrária à propaganda infantil. vate woman: women in social and political thou-
ght. Princeton, Princeton University Press.
FINEMAN, Martha Albertson. (2004), The auto-
BIBLIOGRAFIA nomy myth: a theory of dependency. Nova York,
The New Press.
BADINTER, Elisabeth. ([1980] 1985), O amor in- FRASER, Nancy. (1997), “Beyond the master/
certo: história do amor maternal do século XVII subject model: on Carole Pateman’s The sexual
ao século XX. Lisboa, Relógio d’Água. contract”, in N. Fraser, Justice interruptus: cri-
56  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 31 N° 90

tical reflections on the “postsocialist” condition,


Nova York, Routledge, pp. 225-235.
GREGORI, Maria Filomena. (1993), Cenas e quei-
xas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e
a prática feminista. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
HOOKS, Bell. (1984), Feminist theory: from margin
to center. Boston/Brooklyn, South End Press.
MACKINNON, Catherine A. (1987), Feminism
unmodified. Cambridge, Harvard University
Press.
MIGUEL, Luis Felipe. (2015), “Autonomia, pater-
nalismo e dominação na formação de preferên-
cias”. Opinião Pública, 21 (3): 601-625.
MIGUEL, Luis Felipe & BIROLI, Flávia. (2014),
Feminismo e política. São Paulo, Boitempo.
OKIN, Susan Moller. (1989), Justice, gender, and
the family. Nova York, Basic Books.
PATEMAN, Carole. (1988), The sexual contract.
Stanford, Stanford University Press.
RAWLS, John. (1971), A theory of justice. Cam-
bridge, Harvard University Press.
_______. ([1993] 2000). O liberalismo político. São
Paulo, Ática.
SANDEL, Michael J. ([1982] 1998), Liberalism
and the limits of justice. Cambridge, Cambrid-
ge University Press.
SENRA, Laura Carneiro de Mello. (2013), “Gêne-
ro, autonomia e preferências: abordagens fe-
ministas sobre a Ação Direta de Inconstitucio-
nalidade 4.424”. Monografia de conclusão do
Curso de Graduação em Direito, Universidade
de Brasília.
SUNSTEIN, Cass R. ([1991] 2009), “Preferências
e política”. Revista Brasileira de Ciência Política,
1: 219-254.
_______. (2014), Why nudge? The politics of liber-
tarian paternalism. New Haven, Yale Universi-
ty Press.
TAYLOR, Charles. (1991), The ethics of authentici-
ty. Cambridge, Harvard University Press.
TRONTO, Joan C. (2013), Caring democracy:
markets, equality, and justice. Nova York, New
York University Press.
YOUNG, Iris Marion. (2011), Responsability for
justice. Oxford, Oxford University Press.
WALBY, Sylvia. (1990), Theorizing patriarchy.
Oxford, Basil Blackwell.
RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS 

AUTONOMIA, PREFERÊNCIAS E AUTONOMY, PREFERENCES, AND AUTONOMIE, PRÉFÉRÊNCES ET


ASSIMETRIA DE RECURSOS RESOURCES ASSIMETRY ASSYMÉTRIES DE RESSOURCES

Flávia Biroli Flávia Biroli Flávia Biroli

Palavras-chave: Autonomia; Preferên- Keywords: Autonomy; Preferences; Mots-clés: Autonomie; Préférences;


cias; Escolhas; Desigualdades; Teoria po- Choices; Inequalities; Feminist Political Choix; Inégalités; Théorie politique fé-
lítica feminista. Theory ministe.

O artigo discute a noção de autonomia The article discusses the notion of indi- L’article aborde la notion d’autonomie
individual com foco na formação das vidual autonomy with focus on preferences individuelle en se basant sur la formation
preferências e nos contextos em que as formation and the contexts in which des préférences et les contextes dans les-
escolhas são realizadas. A definição do the choices take place. The definition quels ces choix ont eu lieu. La définition
problema é orientada pelas críticas fe- of the problem is oriented by contem- du problème est orientée par les critiques
ministas contemporâneas aos limites das porary feminist critiques to the limits of féministes contemporaines relatives aux
abordagens liberais assentadas na oposi- the liberal approaches based on the op- limites des abordages libéraux. Elles sont
ção entre escolhas voluntárias e coerção. position between voluntary choices and fondées sur l’opposition entre les choix
Analiso dois casos recentes, e bastante coercion. Two recent and distinct cases volontaires et la coercition. Deux cas
distintos, a ADI 4.424/2010, aprova- are analyzed: the ADI 4,424/2010, ap- récents et assez distincts sont analysés :
da pelo STF em 2012, que determina proved by the Brazilian Supreme Court l’action directe en inconstitutionnalité
a incondicionalidade da representação (STF) in 2012, determining the uncon- (ADI) n. 4.424/2010, approuvée par
nos casos de violência doméstica, e a lei ditional character of representation in le Suprême Tribunal Fédéral (STF) en
distrital n. 5.146, de 2013, que regu- cases of domestic violence, and the Law 2012, qui détermine l’inconstitutionna-
la a venda e consumo de alimentos nas 5.146/2013, which regulates sale and lité de la représentation dans les cas de
escolas. O primeiro permite discutir os consumption of food in schools within violence domestique, et la loi commu-
limites para a autonomia das mulheres the Federal District. The first case allows nale n. 5.146, de 2013, qui réglemente
em sociedades que ampliaram significati- a discussion about the limits of women’s la vente et la consommation d’aliments
vamente seus direitos; o segundo permite autonomy in societies where their rights dans les écoles. Le premier permet de
entender a relação entre escolhas indivi- have been significantly broadened. The discuter les limites pour l’autonomie des
duais, autoridade na família e mercado. second makes possible to understand the femmes dans des sociétés qui ont beau-
Os dois casos mostram as assimetrias no relationships between individual choices, coup élargi leurs droits ; le second permet
acesso a recursos e nos padrões estrutura- authority within the family, and the mar- de comprendre le rapport entre les choix
dos das relações de poder que constituem ket. Both cases expose contexts in which individuels, l’autorité en famille et le
preferências e escolhas. preferences and choices are defined by marché. Les deux cas démontrent les asy-
asymmetrical resources and structured métries dans l’accès aux ressources et les
power relations. modèles structurés dans les relations de
pouvoir qui constituent les préférences et
les choix.

You might also like