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O que terá levado o rapaz a passar esse mês inteiro trancafiado Caro leitor de orelhas, em

em seu quarto? A Providência? As dissonâncias entre Pai, Filho e suas mãos está mais um pro-
a Terceira Pessoa, Maria?… É sexta-feira. O rapaz murcha sobre duto oriundo do Distrito In-
a cama, mas, pasme, ainda com paladar suficiente para usufruir, dustrial de Maracanaú, digno
pelas venezianas fechadas, as últimas ejaculações do crepúsculo, de ser devorado. Apresenta
uma narrativa zumbidora às

O LEITOR DE ORELHAS - Allison Duarte


e a barulheira do desfile de Sete de setembro se esvaindo para o
orelhas do leitor, o conduz
quinto dos infernos! Do outro lado da porta, a Tia e a Avó velam a analisar o Sistema que faz

PROVA
por ele como podem: comida na hora e rezas. O que o levou a esse sucumbir a cultura local, a
enclaustramento? Elas se perguntam frente ao silêncio dos Céus. flora e a fauna, o meio am-
Embora conheçam bem as peculiaridades do rapaz, ignoram que, biente, e com eles o elemen-
semanas atrás, ele passou a vista na orelha de Maria, sua namora- to transformador da roda da
da, e visões escabrosas violaram sua cabeça! Órfão de mãe, des- fortuna: a raça humana. Raça
Filho de Maria Eva, na- prezado pelo pai até a chegada da adolescência, marcada pela en- que há de se reconhecer parte
tural de Fortaleza-CE, tra- fermidade… Sofrimentos ordinários se não considerarmos a in- de um todo, corresponsável
balhou nove meses como sólita faculdade de ler orelhas, talvez, gerada por eles. Mais tarde, pelo que é universalmente
peão numa fábrica de ele- quando as duas mulheres conseguirem pregar os olhos, o rapaz se sagrado. Tal crença persiste!
erguerá da cama para tomar um porre no Bar do Seu Benício, no Ela permeia entre o sagrado
trodoméstico, no Distrito
e o profano de Maria, e a an-
Industrial de Maracanaú, fim da rua. Seu pai, um subtenente do Exército, o aguarda. E esse
cestralidade étnica de Ansel-
onde reside. Participou por encontro regado a álcool não promete suavidades. mo, nascido do sofrimento,
um ano da Oficina de Qua- tal qual o primeiro cearense
drinhos, projeto de extensão Kah Dantas descrito na concepção alen-
da Universidade Federal do Escritora carina.
Ceará (UFC). Licenciado em
Pedagogia (UFC), com mes- Oséias Targino
trado em Educação Brasileira de Oliveira
(UFC), atualmente é profes- Autor do livro: Itapó, no
sor substituto na Universida- Caminho das Águas.
de Estadual do Ceará (FAFI-
DAM/UECE), em Limoeiro
do Norte-CE.
Edição original 2018
Edição Evandro Rhoden e Lisete Bertoto
Direção de Arte Evandro Rhoden
Capa e projeto gráfico Kaique Vieira e Marx Deganelli
Revisão Liliane Mendonça

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Duarte, Allison.
O leitor de orelhas / Allison Duarte – São Paulo: Kazuá,
2018.
196 p. ; il.

ISBN 978-85-5565-171-7

1. Literatura brasileira. 2. Romance. I. Duarte, Allison. II.


Título.

CDU 821.134.3(81)-32

Bibliotecária Responsável
Diovana Pereira CRB 10/1869

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www.editorakazua.com.br

1ª edição
Utilize o leitor de QrCode do seu smartphone para
São Paulo
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2018
Editora Kazuá
Rua Ana Cintra, 26
01201-060 — São Paulo — SP
editorakazua@gmail.com
editorakazua.com.br
Dedicatória Agradecimentos
À Avó Irandir e suas filhas, minhas tias, que fizeram À minha querida Ana Carla, e aos envolvidos:
de tudo para que eu permanecesse no Colégio Militar, Paulo Victor, Oséias Targino, Kah Dantas e Liliane
inutilmente. Mendonça, pela revisão do texto e pelos toques. Aos
vizinhos que me socorreram tantas vezes quando eu
morava no Benfica, Chesco e Alane.
PROVA
Índice

Prefácio ................................................................................... 8
Prólogo ................................................................................. 10
Pendurado ............................................................................ 16
Louco .................................................................................... 23
Torre ...................................................................................... 32
Força ..................................................................................... 35
Enamorado ........................................................................... 54
Roda da fortuna ................................................................... 87
Sol .......................................................................................... 95
Imperador .......................................................................... 112
Morte .................................................................................. 135
Sacerdotisa ......................................................................... 144
Julgamento ......................................................................... 155
Justiça .................................................................................. 168
Mundo ................................................................................ 175
Epílogo ................................................................................ 192

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Prefácio Não me estenderei com antecipações do enredo ou do
extraordinário desfecho que o acompanha e que te aguar-
dam, leitor, nesta singular narrativa, premiada, editada e
Imagine você a inveja que eu senti (!) por não ser, feito produzida pela Editora Kazuá. Feliz, encerro esta intro-
o leitor de orelhas, uma cria de Maracanaú, cidade onde dução com a certeza de representar o contentamento da
também é ambientada a narrativa pulsante, rítmica e sur- comunidade leitora e do cenário da literatura brasileira

PROVA
preendente desta obra. E ainda a gratidão (!) pela oportu- cearense que abraça, com esta obra, um escritor talentoso,
nidade de realizar a leitura desta escrita fodidamente atre- jovem e periférico. É exatamente disso que precisamos.
vida e criativa, três vezes preciosidade, por ser cearense,
literária e contemporânea. Você, leitor pé-quente, vá me Kah Dantas é cearense, professora e escritora.
perdoando pelo risco que corro de empobrecer este prefá- É autora do romance autobiográfico
cio com uma continuidade infindável de deslumbramen- Boca de Cachorro Louco.
tos e elogios, inclinação que sinto neste momento em que
escrevo, deliciosamente aliviada por ter encontrado um
tesouro nas linhas a serem desbravadas também por você,
mais adiante.
É que nas angústias da vida de Anselmo e no encontro
dele com Maria, todo tempo à sombra da morte, padece-
mos ansiosa e alegremente sob o encantamento desta teia
narrativa. Cheia de metáforas e sacadas filosóficas genial-
mente elaboradas sobre a tarefa de existir, a história nos
conduz pelo passado, presente e futuro certo que enredam
os fôlegos dessas criaturas, o primeiro assombrado pela fi-
gura do pai e remido pelo amor encarniçado e sublime da
segunda, senhora soberana da trama e para quem conver-
gem todos os fins e começos.
O Anselmo de Allison Duarte foi para mim como o
Santiago de Gabriel García Márquez, afortunadas criações
e protagonistas de histórias bem contadas e agourentas,
mas, nem de longe, mórbidas. São linhas cheias de fervuras
essencialmente humanas e incômodos sangrados à vista
dos nossos olhos, pelas ruas de Fortaleza ou de Maracanaú,
e cuja composição é tão essencial à dimensão ficcional da
obra quanto o destino de suas personagens.
Não desconfie, portanto, quando eu digo, já pela se-
gunda vez, que este livro é um tesouro, um repositório de
riquezas a ser desbravado e cujas luzes podem ser contem-
pladas sem o medo da cegueira causada pelo engano ou
pelo desgosto do ludíbrio que tantas obras de estreia per-
formam nos nossos espíritos leitores.

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Prólogo nhecem o lugar por “Bar do Seu Benício” ou ainda, graças
à dicção peculiar do dono, “O Gago”. Quatro da tarde Seu
Apoiei meus restos mortais no balcão e repousei no té- Benício arriba o ruidoso portão com um só braço e deixa
dio. O boteco onde estou é mais fiel ao juramento de Hi- entrar a fauna e a flora que o forçavam telepaticamente. Se-
pócrates do que os postos de saúde, e tem seu velho portão quiosos senhores aguardavam na calçada; entram, sentam
rolante recolhido como cortina de um espetáculo inter- ao balcão, pedem cachaça e recheiam o lugar de miasma,

PROVA
minável. De atração principal temos a rua esguia, as ca- vapor advindo do chão e dos quatro ventos. Que vapor é
sas comprimidas, as acrobacias das pernas sobre calçadas esse? O “demônio do lugar, fantasmas não apaziguados
irregulares ora muito baixas ora quase muros a saltar, e os dos índios mortos que operam no fundo do inconsciente
passantes rasgando a nado a atmosfera viscosa do bairro. do homem branco”, disse D. H. Lawrence sobre os peles
É setembro, o mês mais seco do ano, mas não é preciso vermelhas da América do Norte, tão massacrados quanto
um pau d’água espancar esses asfaltos superfaturados para os de Nuestra America. A peste branca e seus aldeamentos
que aflorem crateras e os bueiros regurgitem os dejetos das chegaram aqui no século XVII, cercaram as lagoas – “águas
casas nas ruas. Lesionado por um telefonema do tipo que onde bebem as Maracanãs” – e fizeram delas a nascente
ninguém deveria receber numa noite de sexta-feira, eu me dos envilecidos bairros que deram Maracanaú. Aqui, como
receito goles de cerveja barata e molho a areia do tempo, na “Terra da Liberdade”, o sangue dos nativos clama por
farinha seca e amarga que tenho de comer sozinho. Feliz- vingança e seus fantasmas exalando da terra empesteiam o
mente, eu ignoro as contusões que estão por vir. ar. E o perigo desses miasmas, que podem inflar pulmões
Nem sempre Seu Benício dispunha essas mesas na cal- de quem tem poros abertos demais, é sempre iminente,
çada e na beiçada do asfalto. “O-o-obedeço à ma-maré”, di- sempre uma ameaça. Minha vontade é de levantar para
zia sem esclarecer se era a maré dos humores do bairro ou ir tomar ar fresco lá fora, nas mesas, mas estou esgotado,
dos dele, fluxos em disputa: quem era rio, quem era mar. adoecido por esse telefonema imprevisto.
“Seu Benício, não vai pôr as mesas não?” O velho resmun- No regresso das fábricas do Distrito Industrial, os pe-
gava franzindo os olhos empapuçados, “Não, que a ma ões suarentos ancoram no Bar antes de escoarem ao Lar.
-maré não tá boa”. Os pelos alourados dos braços gordos Com suas motocicletas compradas a mil prestações, dri-
e os bigodes ruivos como antenas de formigas conectadas blam o coágulo que se forma entre Fortaleza e Maracanaú
às nervuras da noite nascente. Não é saudável duvidar das por volta das seis da noite. Os que vêm de ônibus chegam
premonições de um dono de bar cujas intuições, embira- depois das oito com a inevitável saudade do trem que, em-
das nas tramoias do clima e da sina, o ungem profeta da bora sucateado e barulhento, tinha hora de sair e de chegar.
chuva dos bêbados. Um carro bamboleou, riscou a traseira Indústria, comércio, serviços, pintores de paredes, pedrei-
na calçada e arrastou o bêbado que insistiu em instalar a ros, artesãos e malabaristas de rua, auxiliares de produção
mesa ao luar. Correm para socorrê-lo. Não foi nada, afas- das fábricas têxteis, das fábricas de biscoito e das fábricas
ta, afasta! O estatelado arregala os olhos e pede mais um de agrotóxico, todos se irmanam no Bar do Seu Benício.
cigarro. Chamam a ambulância. Uma hora e meia depois Todos silenciam, pedem música, praguejam, gargalham e
o queixo costurado volta do Hospital Municipal, sorte que sacam dos bolsos aventuras eróticas e retóricas recentes.
não estava superlotado, e senta-se ao balcão dessa vez. Eu Alguns se aventuram a adulterar a receita já bem conso-
estava lá, como sempre, e presenciei tudo. Daqui a pouco lidada; dar só um pulinho em casa, forrar a pança, tomar
assistirei à nova, serei eu o atropelado. banho e perfumar-se, etiqueta indispensável. Puxar papo
Acima do portão rolante tem um letreiro desbotado com aquela preta cadeiruda suado e com as mãos engraxa-
com o nome que ninguém pronuncia, pois todos só co- das é que não dá. Ó, amigos, o romântico sempre há de se

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estrepar! – mais ainda se lhe falta dinheiro! Ao passar em dissolveu de chofre. Uma cascata de gente sobreveio pela
casa, esbarram nas reclamações da esposa e na balbúrdia calçada arrebatando as mesas como se um caminhão car-
dos filhos, e ganham mais travo na língua, gota que faltava regado tivesse esbarrado num poste adiante. Gritaria e
para transbordar a fadiga e engatilhar a reação em cadeia algazarra. Somente o gato – ignoro seu nome, mas tinha
que pode culminar no arriar prematuro das cortinas. Sen- uma cara achatada de coruja – não eriçou seu cochilo no
tença aplicada com pesar, mas “Du-du-dura lex se-se-sed balcão junto ao meu cotovelo esquerdo. Seu Benício dosa-

PROVA
l-l-lex!”, latim que Seu Benício aprendera quando coroinha va a cachaça do bêbado à minha direita de cara fixa no teto
em Mulungu. As mãos justas desciam o portão rolante e forrado de PVC onde uma réplica da criação do homem
puniam os arranca-rabos que tinham muito de Teologia de Michelangelo figurava num adesivo elíptico. Espécie de
cristã; brincadeira de Desconta Lá; inocente que paga pelo anjo amalgamado ao seu principado é o dono de bar! Seus
criminoso, cordeiro golpeado pela delinquência dos lobos, sentidos se atiçaram, e ele chispou lá para fora no rabo do
no caso o patrão, a esposa e os filhos. “O justo vai pagar cometa do pressentimento. Já eu, despido de dotes e de
pelo pecador, Seu Benício?”. Na fúria a gagueira sumia: ânimo, fiquei aprendendo do gato-coruja, estátua de Bas-
“Todos pagam, todos aprendem!”. Irmãos, ungir a cabeça tet, e do Nélson nas caixas de som, e conservando a precio-
com álcool antes de chegar ao lar, e assim azeitar suas en- sa conquista da imobilidade.
grenagens, não parece ser a regra de ouro do cotidiano? Grito medonho da moléstia! Que me fisgou e me pu-
Noite abafada. Uns dez anos atrás Maracanaú tinha um xou; me vi socado entre ombros inquietos, arrebatado por
clima mais ameno, quase serrano. Ergueram prédios, esti- um cabo de arpão. Vi, deuses, eu vi! A fonte do grito ao
raram asfaltos, derrubaram matagais, construíram hotéis e centro do mortífero presépio borbulhando o horrendo
condomínios de luxo, acrescentaram fábricas ao complexo grito: uma Pietá máscula e gigantesca de mandíbula es-
industrial e urbanizaram miseravelmente a maior cidade- cancarada, a abóbada celeste por concha acústica. Uma
dormitório do Ceará, colossal favela de abrigar peões de hemorragia de urros esguichava da goela escangalhada do
fábrica. Assim fizeram as noites mais calorentas do que gigante que chacoalhava o frangalho em seus braços bei-
calorosas. “Não poderei ir ao encontro, fica pra outra vez, jando-o sofregamente na cabeça amarelecida na qual um
desculpe, imprevisto…” Desliguei resignado, fazer o quê? olho d’água chorava sangue por entre os dedos que teima-
Ora, beijar bocas de garrafas! A Lua inchava condoída, o vam em estancá-lo. No asfalto e nas roupas, o borro verme-
coração uivava, a garganta se entalava com a noite arenosa, lho engrossava. Tudo um balaço no cérebro!
cuscuz que eu comeria sozinho – mas não a seco! Apoiei De visão periférica eu conhecia as personagens, como
no verniz da madeira a aspereza dos cotovelos, a garra quem sabe de deuses sem tê-los visto. Agora resplande-
num copo de cerveja. Eu que tinha até aromado a casa com ciam e me cegavam vestidos de sangue, figurino trágico.
incenso e vinho, lavado o banheiro decentemente. Restava Sou uma testemunha e não um escritor; um raio me abriu
fingir-me de morto e ter as omoplatas massageadas com a cabeça enquanto eu tentava me livrar dela. É como se a
força por Nélson Gonçalves. Restava mascar o ópio que se voz do sangue, cobiçosa de se fazer verbo, tivesse me elegi-
solta das feridas quando lambê-las se torna nossa última do para manjedoura desde o princípio. Afinal, eu tinha as
delícia. Restava compilar a efervescência em torno da si- virtudes necessárias: ócio e tédio. Não é nas cabeças ocas
nuca, ao lado… Ao atirar pedras na Lua, devo ter acertado que o demônio instala sua fábrica? Mas olhem bem, enga-
a cruz, pois até mesmo essa contemplação inocente e qua- na-se quem acha que a fábrica do demônio produz ex nihilo
se mística me foi tirada. A seriedade dos jogadores com como Deus cria batatas. Engana-se e não discerne bem os
seus tacos amolados, o mapa invisível das probabilidades, provérbios nem os espíritos. Depois de instalada a fábrica
o praguejar dos erros e as exultações dos acertos, tudo se no vazio do cérebro, tome chicote nos lombos! Tome peia

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nas costas encurvadas sobre a escrivaninha! Tome chicote mento literário que concedesse alguma dignidade ao nosso
e ferroada! Inspiração? Inspiração é coisa do departamento território; “falta do que fazer ou frivião no fundo”, segundo
lá de cima! E estamos é na periferia, nos cafundós, entre as Romeu. E por onde começar se fui arrastado por um jor-
caldeiras e as máquinas das fábricas. Montado o maqui- ro cuja origem se perdia da vista? Começar pelo fim é um
nário do diabo, falta ainda a matéria-prima, a mão-de-o- privilégio, um privilégio trabalhoso. Romeu, deus ex ma-
bra, a extração de mais-valia, a gentalha se fazendo em mil, china encarnado, costurou sua mão à minha nesse parto,

PROVA
febril, fabril. Os demônios exigem resultados, resultados! e conseguiu, não se sabe como – buraco de informações
Mixagem de escravo e proletário, sina do trabalhador lati- indispensável –, o Baú que entesourava as respostas.
no-americano, o “inspirado” sacrifica os músculos porque O Baú, Arca da Aliança, guardava duas entidades pre-
a alma além de inútil é interesse do departamento lá de ciosas que os olhos nus ofuscados pelo sangue ignoravam:
cima. E tome chicote! Resultados, resultados! 1. Maria. 2. Uma estranha faculdade de ler orelhas. A ale-
Aquela sexta-feira me condenou a comer do suor do gria de encontrá-las não durou pouco, mas amancebou-se
rosto, constrangeu-me a desenlear os embrulhos das cir- com a agonia. Anos entre a preguiça e o chicote, entre os
cunstâncias, a coletar e suturar fragmentos, rechear vazios afazeres do ganha-pão e os do circo. Anos auscultando as
com hipóteses, parir métodos, apagar, reescrever, encon- vísceras do Baú suturando pedaços na tentativa de fazer
trar o ritmo, apagar, reescrever, pegar e soltar, pagar e sal- um retrato mais ou menos coeso que, mesmo artificioso e
tar, cortar, delirar com um estilo e usar do estilete. Um chi- fragmentário, aplacasse o incêndio das questões. O resul-
cote de questões molestava: como se chegou a isso? O que tado não chega a conferir dignidade ao nosso território,
se passou? Como se erigiu tal desgraça?… O sangue fresco motivo ufanista de iniciante. Longe disso, o leitor tem em
no asfalto inseminava o bairro com perguntas. Nos bares mãos apenas mais uma mercadoria produzida no comple-
e quiosques do Calçadão, nas fofocas dos entronizados em xo industrial de Maracanaú. Mais um enlatado da oficina
calçadas, nas pregações das igrejas pentecostais em cada de Satanás prontinho para o consumo.
esquina, esse era o libreto. Mas os dias varreram rápido o
asfalto deixando apenas eu a arder sob as questões: como
se chegou a isso? O que se passou?… O arpão, o destino, a
voz do sangue atazanando. Dou a César: só aplaquei esse
incêndio com a não pequena ajuda de meu amigo.
Certo dia de ressaca despertei com batidas à porta.
— Boa tarde, tome aqui.
— Hum. O que é?
— Uma caixa de papelão abarrotada de folhas, caderne-
tas velhas, desenhos, diagramas e outras doidices. Não vê?
— Hum. Sim, e este cubículo aqui já está um lixão. Não
vê?
— São as notas de Anselmo.
Alforria do ventre! Rolei sobre os papéis apagando o
incêndio na carne, felizardo. Os encostos que me agonia-
vam também perturbavam meu amigo salvador, que me
via industrioso a inquirir pistas e parir esboços pelejando
por transmutar essa tragédia de periferia num empreendi-

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uma das asas. Por detrás da parede, a ausência dos alto-
falantes, dos bumbos, dos taróis e das marchas crescia em
suculência. Vai com Deus, Sete de setembro, diabos te car-
reguem! Prenunciando os bicos das galinhas, as venezianas
da janela, escamas apertadas, empurravam para fora do
quarto a barulheira do desfile. Esse ano, a desgraçada pro-

PROVA
cissão que comemora o Dia da Independência saiu da Av.
XIX e circulou o Calçadão. A zoada se infiltrou por todas
as frestas do quarto e em tortura chinesa pinicou a cabeça,
supostamente repousada no travesseiro. Com o pôr do Sol
as venezianas de madeira finalmente descansam, deixam
vazar apenas a polpa turva de jerimum aceso do horizonte.
Com duas moedas enferrujadas nos olhos e o rosto de
Pendurado tábula rasa, Anselmo é um espantalho na horizontal. Nem
tanto, tem traços e pelos em seu rosto. Pelos? Mas já faz
“Hamlet: [...] Sim, das páginas de minha memória alguns anos que ele o depila com cera por “não suportar
Apagarei todos os registros tolos e triviais, mais as ervas daninhas”, “antenas de insetos”, “pulgas e car-
Todos os provérbios livrescos, todas as ideias e impres- rapatos que brotavam dos poros”! Na cozinha de casa, com
sões passadas açúcar, suco de limão e o ponto certo. Na frente do espelho
Que a juventude e as experiências ali gravaram. do banheiro, empastava a cara com uma escova de dente
Apenas o teu mandamento ficará gravado, sozinho, velha, aplicava celofane para churrasco e arrancava o asco
Nas páginas do livro de meu cérebro, grudado às raízes dos pelos. A primeira vez foi de lascar,
Sem se imiscuir com assuntos vis.” mas o resultado foi tão prazeroso que repetiu tudo no mês
Shakespeare. seguinte.
— Por mais de vinte anos faço a barba todos os dias e
nunca uma ideia de bicha como essa me ocorreu!
Como contar a história de um corpo inerte? Paciência, Esse é seu pai, Antão, um subtenente do Exército que
o desfecho esbagaçará a monotonia, verão. A ressurreição comungava com o filho, ao menos, o fastio pelas come-
do morto vai girar a manivela da história. Lázaro, vem para morações do Dia da Independência, embora fosse um dos
fora! Verão. Enquanto não dá a hora e a história parece que militares mais fervorosos de sua unidade. Ignorem-no por
não roda, escavo, decifro, dou-me à arqueologia, tarefa às ora, não é difícil já que dor e escárnio não se comparam à
vezes maçante, necessária como velório. Paciência. Como horrenda sensação de insetos entulhando os poros da cara.
contar a história de um corpo inerte? Lendo-o. Pouso em Os sulcos e traços em seu rosto seriam deslizes de um
seu quarto, aguço os olhos, faço da telha de vidro no teto barbeador enferrujado? Um mês sem passar pela porta,
uma lente de aumento, e observo o corpo, aparentemen- sem ir até a cozinha, a cara fervilhando larvas e mosquitos.
te inerte, estirado na cama. Vejo que, no fundo, como se Não suportando mais, lançou mão do barbeador esqueci-
amassasse um pão lenta e silenciosamente, ele prepara um do num copo com escovas de dente velhas no armário do
salto-mortal. banheiro. Passou as lâminas enferrujadas na cara, a mão
O crepúsculo desponta no quintal e as galinhas sobem destreinada fez deslizar fios de sangue pelo pescoço… Essa
nos poleiros, entortam seus pescoços e selam os bicos com cena sou eu imaginando por não enxergar direito. De fato,

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tem um banheiro no quarto, e tem um barbeador com o dia inteiro”. O diabo, velha serpente, tem se enroscado em
dentes marrons recheados com grama de axilas e púbis no sua cama durante todo esse mês… Mas nesta noite ele será
copo dentro do armário acima da pia do banheiro. O resto pisoteado, finalmente. Enquanto a hora não chega, leio o
sou eu imaginando por não enxergar direito. corpo estirado e sua palidez de página só com uns poucos
E se não tivesse o banheiro no quarto? E se, quando a rabiscos no rosto. Donde vieram os rabiscos no rosto? Da
vida começou a melhorar, Antão e a Tia com seus salários, displicência com o devocional; não abrir a janela, não se

PROVA
não tivessem construído esse banheiro? Teria necessaria- mascarar com a coroa solar, não sentar à escrivaninha etc.
mente de abrir a porta do quarto, atravessar a sala, passar A cara embolorava.
entre o sofá e a televisão, encarar alguma possível visita – Até então eu tinha por mortos esses olhos de moedas
que perigo! – para ir ao banheiro. Não! Pularia a janela e enferrujadas. Cegueira minha, eles estão fixos numa teia
faria no quintal, como quando criança. de aranha no vértice esquerdo do teto! O visgo da noite
Quando a família se mudou para o Conjunto Habita- ocupando o quarto aumenta a nitidez, e vou misturando o
cional Carlos Jereissati, décadas atrás, a casa torneada por olhar ao olhado…
cercas de varas entrançadas tinha três compartimentos Ninguém mais bate à porta?… Todos os dias, àquela
estreitos, e um oitão cheio de mato. Esse era o padrão da hora, a Tia e a Avó traziam numa bandeja a caneca de chá
Companhia de Habitação do Ceará, teto e paredes encur- e a tigela de sopa que o fazia gemer ao levar a primeira co-
tados, apenas o suficiente para manter respirando e fun- lherada à boca. Chuchu, cenoura, alho, cheiro-verde, ovos
cionando a gente trabalhadora, alma das máquinas do Dis- e pitadas de orégano… Recostam as orelhas no rude ma-
trito Industrial ao lado. Com os primeiros salários da Tia deiro, choramingam.
e de Antão a casa, caixinha de fósforo, foi se desdobrando. — Menino, vai esfriar!
O muro com portão de alumínio tomou o lugar das cercas O espantalho crucificado na cama sussurrava:
de varas entrançadas. Ficou mais curto o quintal, lugar de — Deixem a bandeja aí no chão e saiam…
canteiros, galinheiro e chiqueiro, tabas de vegetais e de ani- Onde estavam agora? Missa das seis? Rezavam por
mais; repetição do que tinha na casa antiga, obra de tem- ele?… Dura-máter e Pia-máter, as virgens loucas da pará-
pos imemoriais. bola do Cristo fadigadas de musicar soluços num tambor
Na certa é sangue indígena essa barba rala quase ausen- de porta fechada. Ninguém mais bate à porta – bem-feito!
te, a má distribuição dos fiapos nas periferias do rosto e a — Menino, vai esfriar!
concentração deles na ponta do queixo, capital dos pelos. Faz dias que não sente fome, mas, ah, se escutasse ba-
Rarefação que contrastava com o matagal abaixo do Equa- tidas à porta, que se não o pusessem de pé, ao menos fa-
dor da cintura e nas pernas volumosas desproporcionais riam cócegas nos ouvidos agora órfãos dos cacarejos. Na
ao tronco fino; partes chamadas baixas que talvez fossem ausência das duas mulheres, Aracnoide o socorre do vér-
herança genética de sátiros ou do Curupira. Na cara des- tice esquerdo do teto. Com seu espírito de finura, a teia de
botada se imprimia o peso desse mês sem Sol. Ele que ao aranha envolve esse cérebro febril, refreia o rigor mortis no
acordar abria a janela com as pálpebras, apoiava-se no pa- corpo, e brilha suscitando delírios de metamorfose. Ah,
rapeito de olhos fechados, a cabeça erguida para mamar quem dera transfigurar-se numa figura geométrica que o
nas tetas do Sol. Esse desjejum era mais urgente do que Sol pudesse atravessar! As pupilas trepam nos fios da teia e
café, era sua oração matinal. Depois, olhava para o alam- roçam neles feito vagina se esfregando em outra…
brado e os poleiros junto à parede da esquerda, no quintal. Mas um toque estraga-prazer interrompe o coito; taca-
Cai bem nele o dito de Lutero, “se eu deixar de empregar da nos globos oculares que os derrubou na caçapa aberta
duas horas em oração todas as manhãs, o diabo terá vitória no telhado. A respiração funda esburaca o silêncio, o peito

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esquálido infla e murcha. Teia de aranha, sedução pegajo- hora, e apesar disso são as gavetas da esquerda, destinadas
sa! O telhado se vestia com o monótono forro de concre- aos desvios dos deveres universitários, aos espirros, à tosse,
to em todos os cômodos da casa, menos nesse quarto dos à sangria, ao desentupir de poros, ao escrever solto, que o
fundos de janela para o quintal onde a pele oblíqua feita convocam. As páginas da gaveta de cima, quando preen-
de escamas de barro se insinuava nua e bela. Quem diria chidas, passam à gaveta de baixo, que quando abarrotada
que esse cadáver aí escutou o clamor do telhado, foi lá no dessas ideias inacabadas, tempestade a ser domada, reparte

PROVA
depósito de construção, comprou a telha transparente, es- seu peso com o Baú. Estava já maduro o salto à escriva-
calou pela janela, sem escadas ainda mais, e instalou-a no ninha, pernada sobre o abismo, quando veio outro toque,
teto! O telhado suplicava por essa circuncisão, aliança com com toda carga erótica da palavra toque. As escamas da
o universo, o Sol e a Lua dentro do quarto atravessando pele se contraíram para ricochetear mais esse assédio das
a telha de vidro quando a janela estivesse fechada, como sextas-feiras passadas. O celular tremia e gritava sobre o
agora. Estrangulado pela inércia desse espantalho, o toque criado-mudo, ao lado dos óculos repousados sobre o vo-
cessa. Os olhos de Anselmo se cruzam com os meus nesse lumoso livro, um Kant. Era Maria. Maria, agora aparecida.
pequeno intervalo escuro cavado no teto. O toque do celular era uma chicotada do rabo do Leviatã.
Mais uma sexta-feira marchando. Mais uma semana Atirou o braço sobre o criado-mudo e derrubou o livro
de acédia, sem labor, sem fruto, sem talhar a monografia e os óculos no chão. Prolongou o gesto dilatando o movi-
de conclusão de curso. Pecado. Mais uma sexta-feira feito mento contido, ergueu o tronco… A cabeça se enevoou,
manada pisoteando a cama. Mais uma semana rumo ao calma, é distúrbio na circulação sanguínea por conta da
matadouro das sextas-feiras passadas. Lá morriam as mal- brusquidão no movimento. Calma. Deitou novamente e
ditas sextas-feiras passadas! Passavam por ele como água respirou fundo. Como respirar fundo com as escamas da
de chuveiro e de descarga, e se reservavam nos esgotos. pele estreitadas feito blindagem? Mais graciosidade no mo-
Têm razão certos ecologistas, uma hora essa água suja re- vimento, Anselmo. Devagar, suave… Apoiou o tronco nos
calcada retorna para causar problemas. E seria melhor ele- cotovelos dobrados feito uma hipotenusa, e erigiu a coluna
ger o eterno retorno como modelo para o saneamento – ao deformando a geometria. Ofegava. Desdobrou a reta do
menos nesse caso uma ideia metafísica seria bem-sucedida braço ardido, e ia manobrá-la como um chicote quando
aplicada à técnica. Ciclo de reciclagem dos fluxos no lugar esbarrou na escritura na parede. O toque silenciou.
da linha reta, da ordem unida do tempo. Águas passadas Semanas atrás, invadiram seu quarto. Anselmo só tran-
não movem moinhos – e por acaso somos moinhos? Nada cava o quarto se estivesse dentro dele, por garantia. A Avó
mais mentiroso do que um dia após o outro. A sexta-feira e a Tia o tinham por templo inviolável, não havia necessi-
que se arrasta na cama é apenas a cauda do Leviatã nascido dade de passar a chave ao sair. Então quem mais poderia
da sopa das sextas-feiras passadas. Sopa. Ah, que saudade violar o templo, estuprar as gavetas, arrancar delas o estojo
da sopa da Tia! embora não estivesse com fome… de giz de cera, e com o vermelho mais intenso rabiscar essa
Os pés coçam para chegar à escrivaninha e às folhas obra de arte aí na parede, um mene mene tequel parsim es-
brancas na gaveta da esquerda. O vazio da cadeira o es- crito por um deus infantil que mal dominava a mão? O
perava. Gavetas da direita, sosseguem que aí tem manus- colega do Colégio Militar contou-lhe do pai, sargento de
critos, umas cem páginas de rascunhos sobre a Estética intendência recém-transferido para o Mato Grosso do Sul,
Transcendental, fichamentos de livros, páginas a ordenar e que o cercava de livros e negava brinquedos. Mais uma
ordenhar, revisar e recortar! Deus, já é setembro, em cima mudança de cidade não prejudicaria a educação do filho
da hora, o orientador quer algo pronto no fim do mês! de seis anos? Vai ele custar tanto quanto o pai a aprender
Águas passadas não movem moinhos… Sim, em cima da a ler? Quando o menino entendeu que rabiscos numa su-

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perfície geram o próprio nome, o escreveu de carvão em
letras grandes no muro branco de casa, na Vila Militar. O
pai chega do quartel e encontra o filho sorrindo na sala,
aguardando sua recompensa. Três estalos nos lombos com
o cinto retirado às pressas, “uma para o Pai outra para o
Filho e outra para o Espírito Santo”, disse o colega às garga-

PROVA
lhadas. Recordou a história diante da escritura na parede.
Foi revanche, castigo, concluiu também às gargalhadas. No
meio da conversa o celular tocou. Maria chorava. Arran-
cou-se da mesa, pegou o ônibus e foi socorrê-la. Por que
chorava? Dor de barriga e tristeza. Antão teve de esvaziar
as garrafas sozinho. Levantou inspirado, profanou a porta
do templo e pintou esse número de telefone na parede do Louco
quarto do filho, que agora obedece ao comando apertando “Agora de novo busquei refúgio em Kant, como sempre
nas teclas o bendito número. O pai gagueja do outro lado.
que não posso tolerar-me a mim mesmo.” Hölderlin.
— Dez da noite?… No Seu Benício?…
Esmagou o aparelho na mão suada, tomado de cólera,
Uma questão antiga o assedia: a onipresença, a onis-
e arremessou o braço como se ele fosse uma funda, quase
ciência e a onipotência do confinamento, como escapar?
desconjuntou o ombro. Então a ilha feita de quarto e quin-
Como fugir, se toda resistência a ele talvez seja apenas dis-
tal desancorou, Anselmo abriu os braços para saborear o
puta pelos melhores lugares, ou reforma nas paredes?…
fruto do penoso trabalho de sua alma. Sua embarcação es-
Não! O confinamento tem de ter um núcleo e um con-
tava livre, à deriva. Por que não fez isso antes? Estava solto
torno. No limite, a fronteira do confinamento é o crânio!
da teia pegajosa, rumo à pureza… Porém, o prometido alí-
Sim, a caixa craniana serve de modelo às demais caixas,
vio pós-vômito não chegava, como se restasse algo entala-
que em nome da segurança, da saúde, da educação, da boa
do na garganta, uma irritação nas mucosas, uma tosse, um
moral, do bem-estar, se tornam aceitáveis. Os próprios en-
espirro por fazer. Sim, restava algo a fazer, uma sangria,
caixotados combatem para conservar e reparar o cárcere.
um escarro, a barba, arrancar os insetos de dentro dos po-
Mas furemos o crânio, como alguns povos antigos, faça-
ros. Restava se converter numa forma geométrica limpa,
mos uma trepanação e receberemos uma lufada de oxigê-
reta e pura como uma cruz sem crucificado. Ah, Maria,
nio no cérebro, e esse edifício de mil camadas ruirá…
as nuvens que te cobriam se dissiparam e a glória solar de
Mas os buracos são perigosos… No fundo são eles que
tua nudez fulminou Anselmo deixando-o assim, madeira
aprisionam. Janelas e portas, mais do que paredes, são o
podre infestada de cupins!
coração do confinamento. O que encarcera o cérebro não
Um estilhaço do troço atirado na parede ricocheteou e
é a redoma óssea e maciça que o envolve, e sim os olhos,
passou de raspão em sua testa. Derrapou no suor que lhe
os ouvidos, a boca e as narinas; cavidades que garantem
banhava a cara e caiu no chão, ou penetrou fundo na cabe-
o abre-e-fecha e o entra-e-sai, a respiração, a nutrição e a
ça. Pois os clamores das sextas-feiras passadas, os rugidos
excreção. Diamantes e ouro são lacrados em cofres ma-
do Leviatã, as súplicas de Maria, os toques do celular, se
ciços, mas animais domésticos como nós só os buracos
faziam ouvir no quarto e na cabeça.
confinam! A parede é o fundo dos buracos e o suporte
das cavidades. Os muros são ligações de furos arranjados

22 23
numa determinada lógica. Sem buracos, animais domés- lheres – até a “ressurreição” do menino dividir as águas e
ticos morrem. O confinamento, pelo contrário, quer fazer abrir os “olhos da fé”, binóculos de ver o invisível. Amné-
sobreviver, preservar, cultivar, manter sob rédeas o cres- sia? Não, uma benção! Perda de memória? Não, dádiva!
cimento, a reprodução, os movimentos, a visão. Paredes No Céu as memórias ruins serão apagadas, ou o inferno
têm ouvidos, diz a Avó. Os buracos são cus, bocas, narizes se reduplicaria lá. Ninguém pode ver Deus e viver, diz o
e ouvidos nas paredes policiando quem entra e quem sai dogma. Uma versão apócrifa mais honesta diria: ninguém

PROVA
como funções vitais. Os buracos nas paredes são pupilas pode ver Deus e manter o olho vivo. Os olhos da fé tendem a
de raio variável controlando a entrada da luz. Os buracos encaixar as miudezas numa grade que lhes garante sentido,
nas paredes são cus controlando a saída de substâncias. No como telhas na armação de caibros e ripas. O diabo é quem
crânio e nas camadas que o encapam, qual casca de cebo- mora nas miudezas! Quem além de Anselmo fica horas a
la, tem janelas da alma regulando saídas e entradas como contemplar as telhas, fascinado com esses blocos capazes
burocracias de aeroporto, alfândegas. O corpo se desen- de compor e decompor peles aeradas? Quando a morte
volvendo e assumindo a postura de homo erectus tem os fungou no cangote do menino, as duas mulheres correram
portões da graça fechados junto com os ossos parietais. E para a missa. Os dedos soluçaram nos rosários o evangelho
como reabrir a moleira do bebê? Questão antiga. O mé- lido ontem: “Essa doença não veio para a morte!”. E Deus,
dium e o xamã conseguem reabrir a moleira, terceiro olho, como sempre, concedeu mais do que o pedido, para o bem
e assim se tornam os senhores de suas entradas e saídas, e ou para o mal: o filho de direito se fez de fato, incensado
podem se abrir aos espíritos que o crânio tranca do lado de com miasmas de hospital.
fora, como as crianças… Eu deveria ter começado ordeiramente: o nascimento
Mas como respirar no vácuo? Animais domésticos são de Anselmo seguido da morte da mãe no parto, seguida
moluscos necessitados de conchas. Como viver fora das pela reação de Antão, seguida pela infância sob os cari-
conchas? Questão antiga. “Renunciar a si mesmo”? “Cruci- nhos da Avó e da Tia, sob os carinhos da ausência do pai,
ficar-se com Cristo?”. Até que ponto, nós, filhos dos pretos seguida pela adolescência enferma, por aí vai. A narrativa
nativos e dos pretos da África, não tivemos nossas conchas, parece pobre de talento e de rigor, não nego. Mas pobre
com suas curvas reguladoras da entrada de luz, destruídas? mesmo, consinta o leitor, foi a reação de Antão à morte
Sim, fomos condenados a ser lesmas rastejantes, a viver à da amada; incolor, mecânica, quase morta. Que reação? O
flor da pele… esquecimento. Ponto final. Ou melhor, vírgula: o esqueci-
Deixo de lado os delírios febris de Anselmo, e me atenho mento da morte da amada, e com ela a criança. Um fran-
às marcas de agulhas em seus braços e antebraços, vestígios zir de sobrolhos e um trincado de mandíbula, nada mais.
do internamento no Hospital Menino Deus, aos doze anos. O médico não insistiu mais de três vezes para que Antão
Seis meses no leito por conta de um hematoma subdural, fosse ao berçário, o caso era delicado e insistências apenas
acúmulo de sangue entre as meninges – veja quanta revolta fortaleceriam a negativa. “É preciso esperar o açúcar dis-
nesse sangue! A enfermidade veio com as explosões hor- solver, e quando a dor esfria, a afeição reaquece”, disse às
monais da puberdade, e resultou no branqueamento dos duas mulheres o médico que trabalha com generalidades e
anos anteriores às dores de cabeça; amnésia que a Tia e a ignora a existência de carne e osso de gente como Antão.
Avó logo engastaram na Divina Providência, obcecada em Anos se passaram e o pai continuou a desviar os olhos do
orquestrar as miudezas dos mortais, segundo elas. filho. A família em nome da qual se enfiara na vida militar,
Paquiderme empalhado sobre a estante era a Bíblia ganha-pão, desmoronou em instantes. Culpava o bebê pela
aberta no Salmo 91 para que anos o lessem e fossem bons. tragédia? Era mais simples. A paisagem idealizada, balão
Eis a suma teológica e todo o catolicismo das duas mu- de vidro, espatifou no chão. Antão colheu os cacos, pôs

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tudo num saco e o lançou no mar do esquecimento. Resta- panturrilhas, assim como as cicatrizes de tumores que po-
va o quê? Atolar-se fundo e ir morar no quartel. Chamam voam as pernas, são marcas das dentadas do Colégio Mili-
isso de “ser laranjeira”, desconheço a origem do dizer, mas tar, onde ficou por oito anos. Dádiva de um pai terreno. O
Antão deitou raízes no quartel feito uma sequoia. Uma vez “maior dos presentes”, “a melhor educação do país”. A ma-
por mês vinha visitar a mãe, deixava algum dinheiro e ou- trícula no Colégio Militar foi o monumento à paternidade
via os rogos da irmã gêmea andando pela sala embalando recém-nascida. Mal Anselmo chegou do hospital, Antão

PROVA
o miúdo Sol nos braços: “Venha aqui e dê uma olhada, é a começou a pintar as paredes da casa com essa ideia, que
cara da mãe! Venha e segure ele um pouquinho!”. Antão deslumbrou as duas mulheres. Um eletroencefalograma
arrancava-se dali. falso apagaria os últimos meses, exigia-se plena sanidade
Eu deveria ter começado ordeiramente, mas estou apal- mental. Não delegou a tarefa à irmã, enfermeira-chefe do
pando hieróglifos na pele de Anselmo. O tempo passou? Hospital Menino Deus, que teria facilidade em manobras
O passado persiste menino desenhando no chão da carne assim. Estava em disputa com ela, o que requeria pôr em
feito bicho geográfico. No fundo da pele os fatos se fundem questão o rumo das coisas até aquele ponto. Competição
em fodas perversas e procriam monstros. Tenho orgias de lúdica que tinha a serventia, nada acessória, de ocupar a
abelhas entre os dedos, embora o semicadáver na cama boca e preencher os espaços entre irmãos, ou o silêncio in-
seja inadequado aos versos de Schiller na Nona de Beetho- cubaria ódios dispendiosos.
ven, que tanto gosta. — Por que você não internou o menino no Hospital
Militar onde o tratamento seria mil vezes melhor? Oficial-
Alegremente, como seus sóis voem mente ele é meu filho, tem direito!
Através do esplêndido espaço celeste — Sou enfermeira-chefe do Menino Deus, impossível
Se expressem, irmãos, em seus caminhos, tratamento melhor! Pai é quem cria!
Alegremente como o herói diante da vitória. — E quem criou esse menino senão eu? Ele saiu aqui
das minhas bolas, ora!
Sóis copernicanos! Anselmo não tinha muita história, A Avó, prumo da economia das vontades e dos gestos
não era nenhum herói. Segundo uma tradição cabalista, sob aquele teto, bradava da cozinha:
a Torá foi criada com fogo negro e com fogo branco. O — Chega, o menino está vivo! Vão procurar o que fazer!
fogo negro fez as sedentárias letras no pergaminho que Antão foi cobrar o favor de um colega, sargento do Hos-
prometem maldição a quem mexer nelas. O fogo branco pital Militar, e conseguiu o exame falseado. A Avó, alfaiate
fez a cabala, murmúrios que se mudam de ouvido a ouvido de mão cheia, como eram as mulheres do seu tempo, faria
e só assim se conservam. Tem fogo negro e fogo branco os ajustes no uniforme e costuraria as divisas nas mangas
no corpo estirado na cama. Ossos e fluxos que leio como da camisa. A Tia se encarregaria do material didático e do
quem interpreta os búzios. O hematoma subdural foi mes- enxoval, e de eventuais emergências.
mo uma dádiva, mas não de Deus. Foi o Sangue que tateou A casa pipocou em leprosário de alegrias como nos pre-
os contornos, forçou os limites e deu coices – e pedra dura parativos do Natal. Perfeita divisão do trabalho, eficiência
em água mole tanto bate até que explode! Foi dádiva do turbinada de euforia com a vantajosa ausência da melan-
Sangue que deu golpes mortais e escapuliu. Leio tudo com colia dos fins de ano. Que alvoroço! Empurravam Ansel-
calma porque é fácil se enfadar e reputar por desenxabida mo de cá para lá, o mandavam experimentar essa e aquela
a vida de Anselmo, lavar as mãos e evitar sujá-las com san- peça, o entupiam de recomendações, suspiros e exultações.
gue da tragédia iminente. “Um tição tirado do fogo!”, um “sobrevivente!”, “ressuscita-
A robusteza dos bíceps, dos ombros, das coxas e das do dos mortos!”, sim, sim, tudo isso, mas o atribulava de-

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mais essa elefantíase de felicidade sem motivo! O que sa- fácil, mas juntos, mãe e filhos, se esforçaram por repetir o
bia sobre o tal do Colégio Militar? Que febres se soubesses, cosmo da antiga casa.
Anselmo! Que febres! Se a mera justaposição das palavras Do outro lado da porta, a euforia repicava o tal Colégio
“colégio militar” já o empala de intuições aflitas. Trancava Militar. É melhor se debruçar à janela e analisar a conversa
a porta do quarto e mantinha-se escorado na janela, com infinita das galinhas. Dava febre atritar os nervos no pala-
os sentidos ciscando o quintal, embotados para a tagarelice vreado que batia à porta; mantenha-a fechada e maquie o

PROVA
acerca do tal “colégio militar”. O alambrado do galinheiro, rosto de ironia, esconda a febre – lar mesmo é da porta do
vizinho à janela, dava a ver o engenhoso sistema de polei- quarto para trás até onde dá a vista! Seu quarto é o rabo da
ros. O chão coberto com uma camada de pó de madeira, casa prolongado em quintal. Sua tribo dançava ali dentro!
sobre ela uma mão de detritos orgânicos saídos da cozinha Tranque a porta, escore os cotovelos no beiço da janela,
e borra de café para neutralizar o odor de bosta. Periodica- mantenha os olhos no quintal. As galinhas, as pedras, os
mente esses lençóis eram misturados e levados aos cantei- porcos, os patos, os cães, irmãos filiados aos sonhos da
ros de couve, rabanete e tomate. Terra, todos protegidos pela porta trancada. A Porta, proa
Do lado esquerdo, no fundo, o chiqueiro dos porcos. O da embarcação, é um porto conclamando comércios agres-
chão ali é de lama para não contundir os pés do Joaquim sivos e cruéis aprendizagens de cálculos e preços. Do outro
e da Valentina. Daqui a uns anos, quando construírem o lado, mercadores apressados transpiram usuras, exigem
primeiro shopping center onde ficavam as casas de taipas, trocas, pagamentos, compras, negociações, compromissos,
acolá, um vizinho novo reclamará do cheiro, “como uma pactos, diplomacia, amor. Amor que com amor se paga.
enfermeira pode criar porcos em casa? Não sabe que isso Por detrás da parede, a jangada feita de quarto e quintal só
faz mal à saúde?” Ia-se embora o tempo em que os bois, queria navegar, mesmo sem poder abrir mão da circulação,
cavalos, cabras e as galinhas andavam nas ruas entre os pe- das refeições à mesa, de responder perguntas constantes,
destres. O gado entrava pelos muros sem portão e capinava de dar e receber e aperfeiçoar a arte das trocas.
o terreiro com os dentes. Se a cabra estivesse inchada, os O esfigmomanômetro e o gélido estetoscópio da Tia
meninos a ordenhavam e bebiam o leite ainda quente. “Mal auscultavam-lhe o peito magro. As febres apagavam os
à saúde? O veneno está no supermercado!”, a Tia replicará próprios rastros, mas quando flagradas, a Tia empurrava
sem perder a compostura. Com uma simpatia cortante, ba- os antitérmicos que o estômago regurgitava. Que as febres
terá na porta do vizinho com um pernil do Joaquim pelado se escondam. Que o peito magro se entregue aos cuidados
e cortado por ela mesma: “Prove, veja a diferença de sabor da Tia e da Avó, supremo analgésico. O crucificarão? Sim,
que tem um porquinho criado em casa!”. e quem na vida escapa da cruz? O crucificarão? Sim, mas
No quintal se armazenam as memórias da infância ale- sem tétano, com amor e higiene – a higiene é essencial!
gre e difícil. Os irmãos tinham dez anos quando se mu- Anestesiado pela cegueira da fé, Anselmo convencia-se de
daram para o bairro, depois do pai caminhoneiro se aci- ser um pessimista reclamando de barriga cheia. O crucifi-
dentar em serviço. Comprara a casa meses antes de falecer. carão? Sim, mas quem o empurrou à via crucis? Apesar da
Um bom negócio, baratinha; pouca gente se aventurava a miopia, via muito bem, foi Antão, dito pai. Fique ele lá do
morar no Conjunto Jerreissati, na época. “Homem, pra que outro lado da porta!
isso de mais uma casa?” “Mulher, esta casa aqui não é nos- No grande dia, defronte à fachada do prédio principal
sa”. “Como não é nossa, se faz mais de dez anos que aqui do Colégio Militar, na quadra de jogos, eriçavam-se a ban-
estamos?” “Foi negócio torto, papéis assinados sem ler, de- da, as tropas, as bandeiras e os alto-falantes. Cardumes de
pois explico”… O velho ficava mais de mês fora. Depois de garotos uniformizados com cabelos raspados enfileirados
sua morte chegaram os homens do negócio torto… Não foi em destacamentos retangulares. Entre eles, Anselmo en-

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charca a camisa de suor frio. O Sol, como que fendido e diminuiria o valor de sua dor. Pois desde o início dessa via
arredio à harmonia que imperava na banda e nas colunas crucis sua capacidade de doer foi banalizada! Com abraços
e linhas de corpos, irradiava luz e calor assimetricamente. e lábios molhados, quem nos ama apaga nossa capacida-
Os sapatos engraxados e as fivelas dos cintos reluziam na de de doer, a única alma de que dispomos, vela acesa que
manhã úmida, prometendo transições suaves. O cinza me- escondem debaixo da cama. “Vai passar…” “Vai dar tudo
tálico do céu se mesclava ao chão da quadra e gestava um certo!…” “Tenha calma, é só uma fase de adaptação”. Es-

PROVA
mundo plano, firme para os pés. O quadrículo que sepa- caldado pelas lágrimas da Avó, marcado em brasa por suas
rava Anselmo dos demais se encastelava em cela abafada, rugas felizes, Anselmo divagava. “E se eu soltasse as per-
apesar da frescura do dia. Da plateia, os olhos da Tia e da nas nesse desejo fluvial, corresse pela Av. Santos Dumont,
Avó engrossavam os contornos do menino destacando-o driblasse automóveis e desaparecesse da vista de todos?”…
do fundo indiferenciado. Elas mereciam o alívio dessa ilu- Coisa doida, a banda estourou de repente em cortejo de
são de mundo entrando nos eixos. Sem os óculos para ficar palhaços! Sorriam, saltavam e gargalhavam com seus bum-
bem na foto, Anselmo não dava com o sorriso das duas bos, baquetas, pistons, taróis e clarinetes enxertados. Ci-
mulheres, mas sabia-os e sofria-os. borgues! Simbiontes dançarinos! O Circo chegou trazendo
Os alto-falantes cospem o comando e do fundo indife- as aberrações de além-mar! Os pulmões se encheram de
renciado vem surgindo a silhueta da Avó com seu sorriso cócegas e os joelhos amoleceram com o riso entalado. A
de borboleta. Ela tem a boina vermelha nas mãos e está cabeça soçobrou e o sargento acorreu quicando no chão
envolta no perfume amadeirado familiar. Ficou bonita no com suas pernas entroncadas e seu sistema multifuncional
blazer cinza combinado à vida. Ela impõe as mãos eufóri- no pescoço que lhe dava uma visão em 360º.
cas sobre a cabeça do menino e ajusta a boina no cabelo — Aluno, se estiver passando mal saia de forma!
raspado. Está consumado! Com essa coroa de espinhos o Anselmo respirou fundo e enrijeceu a postura. O punho
uniforme está completo. A mão do ente querido enfia o esquerdo estrangulando o pulso direito na posição de des-
cravo final, o golpe de misericórdia, mel do ritual. Uma cansar. Acenou ao sargento um “OK” com a cabeça. Não
rasga-mortalha atravessou o céu e grasnou em silêncio, frustraria as mulheres evadindo-se do desfile, posaria para
o Espírito de Deus selando o ungido. Na plateia, os cílios as fotos, não saltaria a mureta nem correria pelo sedutor
molhados da Tia pintam o final feliz e telegrafam que valeu asfalto. Aguentaria firme, nenhum sofrimento dura para
a pena a travessia do purgatório. A vida chega a ser cinza sempre; não é o inferno. A fachada do prédio principal o
por causa das provações, mas esse fogo também ilumina o ameaçava como uma onda gigantesca. As linhas da parede,
caminho. perfurada por mil janelas, encurvavam-se sobre ele num
Se Anselmo se confessasse, escutariam? O que um garo- tubo. No alto da beirada da fachada, estátuas de soldados
to com saúde mental abalada sabe da vida? O leitor não es- com uniformes e fuzis arcaicos o miravam. “Aluno, se esti-
tranha tamanho drama num rapazote com um pouco mais ver passando mal saia de forma!”. O sargento tinha razão,
de doze anos? Mais literário do que literal! Se Anselmo de um mal-estar o constrangia a escorrer por aquele furo aon-
sua ilha se esgoelasse, e do outro lado da porta as mulhe- de as retas do prédio convergiam, toca do coelho. A cabeça
res esticassem o pescoço, o grito atravessaria o alambique soçobrava para se meter na vagina que se apresentava no
do amor, as curvas das orelhas, e seria destilado. Orelhas, ponto de fuga das linhas da parede. Mas do lado direito, a
como pupilas diante da luz, contraem suas espirais como o bandeira verde-amarelo escalava o mastro, hipnótica, rit-
plissado do cu. E se Anselmo abrisse a porta? A Tia e a Avó mada pelo vento e pelo hino nacional, chamando a aten-
esquentariam a fornalha do inferno sete vezes mais, acele- ção. E a corneta dispara o “apresentar arma”, e os bumbos
rando as máquinas do cuidado, excesso de produção que só ribombam, e finalmente comandam o “ordinário marche”

30 31
Nunca deu corda nesse despertador mecânico aí sobre o
criado-mudo, redondo e vermelho feito olho gordo irrita-
do. Presente do pai que perdurava sem tempo, de ponteiros
imóveis, mudo. Não tinha necessidade de sua sonoridade
perturbadora. Levantava com o Sol sem sacrifício como
um títere puxado pelos fios de luz. A Avó o aguardava na

PROVA
cozinha. Café, pão e ovo aromatizando a mesa, o uniforme
limpo e passado no cabide pendurado num armador de
rede na sala. A última ilustrada nos sapatos com uma meia
velha, mais um pouco de polimento na fivela do cinto, a
mochila nas costas. Avexava o passo para a Praça da Esta-
salvando Anselmo da vertigem. ção. Naqueles dias a manhã recém-nascida no Maracanaú
tinha um hálito friorento, era mais suave o âmbar sobre as
Torre tinturas das casas. Nos meses de chuva, janeiro e fevereiro,
corriam riachos adjacentes aos paralelepípedos, no calça-
Abarco o tempo: série de fatos encadeados por relações mento, onde fervilhavam guppys, guarus, baratas d’água,
de causa e efeito. Tenho os olhos de Deus, sou o narrador. girinos. Os postes se enxameavam de tanajuras e os meni-
Bisbilhoto a sanguinária cena que irromperá no Bar do Seu nos as caçavam para comer-lhes a bunda. Algumas vezes,
Benício daqui a pouco. Espio a palidez nua de Maria e seu regressando do Bar do Seu Benício no raiar do Sol, reen-
rosto ressumando sobre o peito de alguém. Dou uma olha- controu a antiga paleta da rua, graças ao colírio do sono e
dela mais adiante, vejo Antão revirando os olhos numa ala da embriaguez. No horizonte, as serras borradas cantavam
psiquiátrica do Hospital Militar, sedado e insano. Tateio o polifonias verdejantes respingadas com o amarelo dos ipês.
abismo que circunda o escrito, a escuridão espessa que o A umidade matinal se faz fio condutor dos odores das
separa da vida, sempre mais confusa e mais profunda. As- indústrias na Praça da Estação, os ares adocicados da fábri-
sentado no trono de Deus fico cego para os esboços que ca de biscoito chegam a causar enjoo. Melhor do que pelas
borbulham no corpo estirado na cama. Não vejo tremores bandas da Av. Parque Central, empesteadas com o fedor
de pele, nem os ossos gesticulando dentro da carne. Por de uma fábrica de agrotóxico, que, aliás, já rendeu alguns
isso desço as escadas e me enterro nas virilhas da maté- casos de câncer nos moradores do Novo Maracanaú. Eis a
ria, entre as dobras gordas do tempo. Pouso no telhado grande vantagem de se morar aqui: gestos comuns, como
do quarto de Anselmo e me visto com a passagem das ho- andar pelas ruas entregue aos automatismos do sistema
ras. Tomo a telha de vidro por lente de aumento. Obser- respiratório, se tornam condições de possibilidade do conhe-
vo tudo misturando os olhos à pele. O caído do céu mora cimento, um a priori para a entrada, pelos trilhos da lógica,
nos detalhes. Vejo a maturação do alavancar-se da cama. nos dramas desse continente colonizado, nossa industria-
Em poucas horas Anselmo apanhará os óculos do chão, lização precária conjugada à urbanização miserável, nossa
tomará banho, enfiará as pernas na calça jeans e os braços economia dependente parasitada por multinacionais, nos-
na blusa amarrotada. Arrastará os membros doloridos, o sa subcidadania… Mas do útero desses odores e das tosses
cabelo crescido, a barba por fazer, a aparência tresloucada das chaminés hão de emergir a gente-caranguejo, a gente-
e os gestos extravagantes pelos três quarteirões da Rua 12, calango, a gente-mandacaru, mutantes prenunciando um
até uma das mesas na calçada no Bar do Seu Benício, onde mundo por vir…
o pai o espera nervoso. Anselmo pega o trem das cinco e meia, desce na Esta-

32 33
ção João Felipe, caminha até a Praça dos Leões e apanha o
ônibus que o deixa em frente ao Colégio Militar. Sentado
e olhando pela janela, ele atravessa o sonho do Barão de
Ibiapaba cuja história lera numa das publicações militares
amontoadas na biblioteca do Colégio Militar. No final do
século XIX, o Barão doou ao governo toda essa área da

PROVA
Av. Santos Dumont por onde segue o ônibus, do Colégio
Imaculada Conceição à Praça da Bandeira. Terreno consa-
grado à construção de um Asilo de Mendicidade, grande
dejetório dos desgraçados retirantes, excrementos dos la-
tifúndios, escultores das axilas e das virilhas da cidade. O
Asilo de Mendicidade foi abortado, e sobre suas carcaças
ergueu-se o Colégio Militar. Vinha um cálculo à cabeça: Força
até que ponto o Colégio Militar encarna o sonho do Barão? “Kant nunca me convenceu de que estávamos definiti-
Anselmo se tinha como mais um fio de cabelo da quimera vamente limitados; enquanto ele afirmava isso, um tal Je-
feita das gentes danadas nas ruas, que transpiram a fome an-Paul (Richter, não se confunda) e um tal Novalis já dan-
do mandacaru e do caranguejo, a qual a piedade moderna çavam num ritmo que o pedantismo não me impedirá de
do Barão tanto temia. chamar de cósmico […]. Negar a suposta unidade e finitude
dos fatos, essa é a questão.” Julio Cortázar

Outra vez afundando.


Caído no mesmo limbo do qual erguera-se fazia três
anos, e tendo de suportar os mesmos alvoroços, os mes-
mos rangidos e choros, as mesmas súplicas e silêncios
arranhando o outro lado da porta. O cheiro salobro dos
lençóis encardidos denuncia que há um mês a roupa de
cama não é trocada, e que tem relaxado com a higiene; e
higiene é fundamental, como diz a Tia. Estava mais ver-
sátil do que naquela época. Aprendeu a beijar a boca do
abismo. Aprendeu a habitar o próprio corpo sem ressen-
timentos adolescentes. Evidência disso é a ruminação do
Instante que o atirou no buraco pela primeira vez. Amassa
o Instante misturando-o à totalidade do tempo, no lugar de
ignorá-lo, como outrora. Embora dele só recordasse o cla-
rão de luz que desarrumou o corpo e o mundo de um gol-
pe, o arrepio e a sensação de um lenço suave repousando
nos ombros. Fazia mais ou menos seis anos. E ruminando,
vislumbrava a gênese do escorregão rumo ao inferno. O
ponto de ruptura estava aquém, antes de suas pernas e bra-

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ços se estilhaçarem feito granada detonada, durante aquela matagais do Bairro Luzardo Viana, o Jardins na Selva, feti-
aula de História da Filosofia Moderna. A verdade é que o che de alguns maracanauenses que se mudavam para lá na
demônio o possuíra bem antes. Quando? base de endividamentos infinitos e sob a dura lei viva-o-lu-
A data precisa foi aquela véspera de Natal. Sim. Anun- xo-e-morra-o-bucho. Chegando o fim do ano, insistiu que
ciou à Tia e à Avó sua decisão de fazer vestibular para Filo- o pai fosse com ele para a casa de praia, “mais um sonho
sofia em vez de rumar à Escola Preparatória de Cadetes do conquistado”, onde celebraria as festas; quarto é o que não

PROVA
Exército. Desperdício, é atirar na sarjeta a “melhor educa- faltava e tinha até piscina! “E o Bar fica às traças?”. Meu
ção do país”. Na sala, a mesa coberta com uma toalha que filho, não é bom mudar o endereço de um Quartel-general;
a Avó terminara de bordar anteontem, preparativo indis- nessa casa você nasceu e aqui estão os seus. O filho não
pensável. As louças e talheres cintilavam aos pisca-piscas escutou os pensamentos do pai prudentemente escondi-
da árvore de Natal plantada junto à estante. E ao lado do dos na cabeça. Odeio essa muvuca e o entra-e-sai desses
pinheiro de plástico, tão estúpido e verde quanto, Ansel- retardados beberrões, cambada de vagabundos inúteis, ga-
mo agitava um envelope na mão esquerda e desenhava no linhas beliscando o chão, essa gentinha que o senhor serve
ar os diagramas da incerteza. Gaguejava e transpirava no sorrindo! Eu sou uma águia, pai! Nem a paulada passo o
circunlóquio. Esgotado de sua gesticulação nervosa, entre- Natal nessa joça, que dá azar! Seria a réplica do filho, caso
gou logo o envelope à Tia, que o segurou frouxamente sem Seu Benício soltasse a língua. Mas pai e filho se abraçam
curiosidade nem surpresa, sem abri-lo como um presente. num sapiente silêncio, ainda bem. “Fico aqui. Se o ladrão
Deu dois tapinhas no ombro do sobrinho, as pestanas elé- arromba é prejuízo. Se levam o Januário, então. A insegu-
tricas num código Morse vago. rança aqui só aumenta, aqui não é a gaiola onde você mora,
Quando o teto era um telhado, e não essa laje de con- filho, lá no Jardins na Selva!”. Na fúria a gagueira sumia.
creto, a sala não era uma mormaceira só, quentura que se Januário era um labrador preto que só metia medo pelo
acentuava no fim do ano. A vontade é de tirar a blusa preta tamanho e pela cor, mas era um verdadeiro puto que sorria
de mangas longas dobradas até o cotovelo, e a calça jeans a quem lhe roçasse as mãos nas orelhas. Vá lá, meu filho,
nova, incômoda de aspereza. A sala, ventre da casa, limbo com essa sua esposa dondoca que me detesta. Advogada é?
entre a cozinha e a varanda, acumulava as emanações dos Filha de empresário é? Pois nem parece que teve pai e mãe,
dois extremos: os sussurros do fogão, e o odor melancóli- mal-educada e fresca, narizinho arrebitado e gasguita. Vá
co do Natal que embebia o bairro. Que arames farpados lá, meu filho, e venham cá os bêbados do Maracanaú! Uni-
a Avó cozinhava? Aí vem ela saindo de trás de seu crisol vos, ó familiares postiços! Vinde a mim vocês cansados
para ouvir esse solilóquio patético. Será que Antão apare- e oprimidos que eu vos aliviarei! Venham à ceia do Seu
cerá só amanhã, como sempre, e com a mesma desculpa, “o Benício que hoje se permite algumas taças de champanha,
Natal é hoje, ontem foi a véspera”? O presente etiquetado mas mantém a regra de ouro de jamais passar troco errado!
com seu nome aguardava ao pé do pinheiro de plástico. Será uma música para vocês e outra pra mim, Rock e Bre-
Caso venha, talvez seja o dia de ir ao Bar do Seu Benício ga. O salgadinho e o arroz com creme de galinha são por
com o pai. Já estão às mesas senhores solitários e garotos conta da casa. Bebida de graça nem a pau, que acostuma!
opiniosos fugitivos de celebrações cristãs. Punks de moica- O pensamento de Seu Benício não gaguejava.
no, integrantes de motoclubes com suas jaquetinhas pretas Antão não veio, Anselmo não debutou, e ficou adiada
ostentando o nome e a patente, metaleiros e outras crias sua expertise de degustador de bares mais do que de be-
da promiscuidade cultural. Seu Benício os pastoreia e dis- bidas. Mais tarde desenvolverá a vidência comum aos na-
farça a tristeza. O único filho se casou ano passado e foi tivos da periferia, a de que a cerveja dos bares do Benfica
morar no condomínio fechado recém-construído sobre os é diferente da dos bares daqui, que tem gostinho de terra

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e chaminé de fábrica. Nos bares do Maracanaú, os assen- os bêbados são peças de Xadrez, todas bem definidas com
tados evocam a descrição que Euclides da Cunha fez da seus nomes próprios, com sua ordem e seu rosto rígido. O
vegetação do Sertão. movimento das peças é determinado pela identidade das
peças, essa é a regra infalível.
Vistas em conjunto, semelham uma só família de poucos A Tia e a Avó o miram e ele ri sem graça arrancando a
gêneros, quase reduzida a uma espécie invariável, divergin- gagueira do peito estreito. Escondia o rosto movendo a ca-

PROVA
do apenas no tamanho, tendo todas a mesma conforma- beça bagunçadamente, a ponto de não se encantar com os
ção, a mesma aparência de vegetais morrendo, quase sem cabelos amarrados da Avó, que reluziam prata combinada
troncos, em esgalhos logo ao irromper do chão. É que por ao brilho de suor das bochechas, a colher de madeira tre-
um efeito explicável de adaptação às condições estreitas do mendo na mão como o cetro de uma fada triste. Finalmen-
meio ingrato, envolvendo penosamente em círculos estreitos, te, o menino tomou jeito, caiu em si, deu-se conta! Escon-
aquelas mesmo que tanto se diversificam nas matas ali se dia o rosto movendo a cabeça, a ponto de não decifrar as
talham por um molde único. Transmudam-se, em lenta me- piscadelas elétricas e os lábios se mordiscando da Tia. Que
tamorfose vão tendendo para limitadíssimo número de tipos explosão de boas notas foi aquela, menino? Até em Mate-
caracterizados pelos atributos dos que possuem maior capa- mática e Física! Desembestou-se o menino, e estava mais
cidade de resistência. taciturno do que nunca. Pudera, a cabeça pesa! Planejava
Esta impõe-se, tenaz e inflexível. meter-se na Escola de Cadetes? Arre! Despacho daquelas
malditas psicólogas do Serviço de Orientação Educacio-
Todos anônimos e ninguém azeda essa bem-aventuran- nal, que nas reuniões trimestrais apelavam para um “tra-
ça. A conversa se enrola sobre si mesma liberta dos con- balho em equipe” que alavancaria o menino ao “Padrão”.
versadores e engorda a nuvem que faz sombra, mão invi- Exibiam gráficos e resultados de testes, “tem potencial!”.
sível do lugar. Os bêbados são peças do jogo de Damas, Seus “diagnósticos” pronunciados em sotaque infantil não
arredondadas e do mesmo tamanho, o que as diferencia tinham o menor rigor científico. Não percebiam os limites
é a movimentação. Quem é você? Pouco importa, conta é do garoto? Devem ter sido as piores da turma, contratadas
como você se move, como pisa no chão. Nos bares do Ben- pelo critério da árvore genealógica. Ao inferno com o “tra-
fica a vegetação é ostentosa, espalhafatosa, árvores-de-na- balho em equipe”, suas lambisgoias! Essa dondoca grã-fina
tal ambulantes enfeitadas com medalhas de honra ao mé- que acaba de sair da sala, dessas estúpidas que curam chi-
rito; ameaça constante do cerco de universitários; gente do liques viajando a Miami, que engula a papagaiada de vo-
mestrado, do doutorado, da antropologia, da sociologia, cês! Equivocavam-se com esta mulher aqui pertencente à
do cinema, do teatro. Que curso você faz? Curso da puta espécie de profissionais que encarna os altos valores de seu
que o pariu, arrombado! Estamos num parque temático? ofício! Soubessem que ela escapuliu da miséria puxando-
Há salvação fora da universidade! Que livro é esse na sua se do pântano com as próprias mãos! Competiu correndo
mão?. Sou o vencedor do prêmio Avestruz de literatura, a pé com os que voavam a cavalo. Dias e noites mineran-
às ordens! Esse aqui é fulano especialista em Sartre. Pra- do dos livros o metal de cunhar a chave da universidade
zer, eu sou sicrano especialista em Foucault. Ah, Foucault, pública, donde nascera expulsa. Ninguém mais do que ela
careca e sadomasoquista? Ah, Sartre, vesgo e machista? O conhece as peculiaridades do menino. Soubessem essas
chapéu do Foucault está na cabeça do Deleuze! Prepare-se charlatãs o quanto a doença do menino foi para ela uma
para a justa, sacarei meu curriculum lattes! No Benfica, à universidade! Sossegue, menino, não nos deixaremos cair
sombra das Universidades, departamento do departamen- em tentação. Não cairemos na lábia fraca dessas capitãs do
to do departamento do departamento francês de ultramar, mato. Nada lhe faltará, menino, vá com calma; pelas nossas

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feridas você foi curado. Trabalhamos duro foi para lhe dar qualquer que seja o resultado, seria uma campanha heroica
o necessário. Não tente se enfiar na carreira militar que o a esses olhos inchados de graça. Um cérebro aleijado deve
motorzinho dentro de sua cabeça é frágil! E essa claridade usufruir da eterna indulgência que lhe dispensam. Não se
pelas frestas da porta do quarto até o raiar do dia? Conhe- exigirá dele os esforços descomunais dos antepassados. Ah
cia bem essa luz: combustão das pestanas nos livros. Olhe o é? Pois vamos lá, abram logo esse envelope aí!
exemplo de seu pai, menino, que na carreira militar enlou- A Tia pôs a mão na boca, a Avó pediu os óculos. E en-

PROVA
queceu. E se um Golias cai que dirá um Davi! tão, satisfeitas? Entendem essa numerologia aí? Sobrenatu-
A língua ressecou de gaguejar, calou-se, desabotoou ral? O Querubim se assombra perante Deus? Até em Ma-
a blusa e a sacudiu despregando-a do peito suado. Sob o temática e Física!
peso de ideias confusas e gestos desbaratados, Anselmo Anselmo marchou até a cozinha para escapar da irra-
baixou a cabeça e riu de si mesmo. Elas não podiam en- diação ali na sala. Sua vista se embaçava de um rancor lí-
tender. Só viam o lado de fora das coisas. O comprido áti- quido. Fungava asfixiado com os cheiros picantes da fome
mo se passou, mas ainda faltava um tempo pastoso correr e da fúria. Balançou a garrafa de café que estava sobre a
até a hora da ceia. O suor escorria da testa pelas pálpebras mesa, seca, quis atirá-la contra a parede. Abriu a geladei-
e melava as lentes dos óculos. Piscou, piscou, cabisbaixo. ra, esfriou-se, viu uma garrafa de vinho deitada, agarrou
Quando levantou os olhos esbarrou no coração da Tia e -a pelo pescoço. O calor torturava, a camisa se empapava.
da Avó palpitando em carne viva nos rostos condoídos e Regressou à sala com a garrafa e o saca-rolha em mãos,
rachados. As faces das mulheres se fundiam como vasos intrincou-os. Exibiu ao Querubim a garganta gorgolejan-
comunicantes de bordas moles que não suportavam sozi- do sonoramente, a boca junto ao punho fechado no gar-
nhos a carga. Surgiu na sala uma quimera de quatro bra- galo ereto. Espremia as pestanas, o sumo rubro descia pelo
ços, como os querubins do livro de Ezequiel. Seu braço di- queixo ao peito desnudo. Num relance, avistou o embrulho
reito empunhava a varinha de condão de madeira que fazia com seu nome junto à árvore de Natal. Foi lá e rasgou a fo-
mágicas no fogão, e nos tempos difíceis de outrora até mul- lha laminada; uma caneca. Encheu até a borda e limpou-a
tiplicava pães. Seu braço direito segurava o envelope com de um só gole. Repetiu uma, duas, três vezes. Resfolegava
papel timbrado ainda lacrado, contendo o boletim, laudo feito um cão, o focinho molhado, os dentes à mostra, o re-
que com toda certeza constataria a debilidade do menino, dor dos olhos enegrecidos. Erguia e baixava os ombros dis-
pois não é possível que um raio caia no mesmo lugar duas tendendo e esvaziando o peito. “O melhor filho do mun-
vezes, que outra vez tenha tirado notas boas em Matemá- do”, estava gravado na caneca entre corações vermelhos.
tica e Física. Prolongava-se a abertura do envelope, carta Estupefatas, as mulheres observavam esse empilhamento
com notícias ruins; decerto o menino fracassara, por conta de gestos indiscerníveis; beber o vinho antes da hora da
das notas baixas, em sua trágica tentativa de ingressar na ceia, abrir os presentes antes de comer – o que significava
Escola de Cadetes. O olhar do Querubim se avermelhava tudo aquilo?
prestes a espocar de compaixão. A quimera derretia de Muito bem, afinal o cérebro aleijado não é tão previsível
candura estendendo as quatro asas para abrigar o menino assim, não é? O Querubim se assombra perante Deus? Ah,
e acolhê-lo de modo absoluto, sem negociatas, sem exigên- pois esperem, vocês ainda verão os anjos de Deus subindo
cias, absolvendo-o de sua dívida para com a tradição da e descendo sobre o filho do Homem! Verão prodígios ain-
família, linhagem dos filhos da escravatura que precisam da maiores que esses! Verão raios caindo no mesmo lugar!
sempre ser heroicos e percorrer quilômetros a mais, des- Verão! Foi nessa hora que satanás entrou.
medidos para escapar dos grilhões. A nossa graça te basta, Há eventos capazes de rachar a vida. Podem ser es-
menino! Qualquer empreitada, qualquer direção tomada, trondosos como um acidente de trânsito ou tácitos feito

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um câncer. Bifurcam a língua e a largam ciciante entre es- res afins conheceriam seu nome: um bolsista promissor,
combros, como a das cobras. Só depois lhe emprestamos um bom filiado para o mestrado e o doutorado. Os demais
linguagem, só depois, distantes, fatiamos o evento e mar- alunos é que o desconheciam; fugia dos entretenimentos
camos o início, o meio e o fim. Só depois ordenamos seus universitários, das festas, das calouradas e das animadas
elos marcando de giz o ponto de ruptura e esboçando seu sextas-feiras no bosque. Monge dedicado a inflar o Eu ab-
desenvolvimento. Raios que nos partem? Um deus-ho- soluto. Não esmurraria o ar, não correria como indeciso;

PROVA
mem que bloqueia a estrada com o fulgor de sua glória? eia, Tempestade e Ímpeto! Aprender o alemão, afinal, não
Nada disso; as conversões de Lutero e do apóstolo Paulo é coisa fácil.
são fábulas e desperdícios de pólvora. Vejam nosso herói Pois de tanto inflar o Eu absoluto explodiu! O cataclis-
cortado ao meio na véspera de Natal, à tardinha, com o mo chegou ao final do terceiro semestre, numa aula sobre
Sol ébrio se debruçando nos cumes das serras, numa hora Kant, História da Filosofia Moderna I. O Professor esque-
podre de calmaria! cera a amarelecida caderneta, na qual rascunhara certa vez,
A decisão se apoderou de Anselmo feito espírito imun- como se psicografasse, a ordem correta da apresentação
do, frivião. Redimiria a vida pelo autoflagelo na sala de do sujeito transcendental. Saiu apressado de uma sala para
estudo. Entre as estantes da biblioteca montaria sua cela outra e deixou a caderneta sobre a mesa. As catástrofes
monástica e se metamorfosearia em gigante, verão! Mo- tendem a se acumular num só dia, numa só hora, como
enda de ossos, ginástica, treino infinito. Veloz, sem perda o Livro de Jó revela. Anselmo coçava o queixo e bocejava
de tempo e sem se distrair com as frivolidades juvenis do numa cadeira próxima à mesa do Professor. A aula come-
Centro de Humanidades. Aplicaria sem dó a austeridade çou pontualmente, a sala abarrotada, mas a mercadoria
adquirida no Colégio Militar. Converter-se em gênio, em não honrava a propaganda. Outra peça da “máquina de
monstro, empregar esforços hercúleos e elevar-se sobre os comer tempo”, entretenimento universitário. Com que ré-
demais! gua os Doze mediam para recomendarem as aulas desse
esclerosado?
Subirei até o céu, Os “Doze” era como chamavam o Grupo de Estudos
acima das estrelas de Deus colocarei meu trono, Kantianos, baluarte da Razão, casa edificada sobre a rocha
estabelecer-me-ei na montanha da Assembleia… contra os modismos acadêmicos oriundos principalmente
Subirei acima das nuvens, da França, os chamados “novos filósofos” que empestea-
tornar-me-ei semelhante ao Altíssimo1. vam o Centro de Humanidades. As conversas do bosque
se impregnavam com os vocabulários molengas, cheios
No primeiro semestre encontrou sua paixão, sua Dul- de imagens ofuscantes. Ler os “novos filósofos” assumia
cineia, a filosofia alemã, principalmente o Romantismo. uma feição revolucionária pelos obstáculos à decifração
Fichte, Novalis, Tieck, os irmãos Schlegel. As intrigantes que apresentavam, os problemas de tradução, as metáforas
tramas acerca do Eu. Encarnaria o sonho dos românticos quase cabalísticas e o modo assistemático com pretensões
alemães, o Eu absoluto, o esconderijo do Reino do Céu poéticas – claro, sem a grandeza e a pureza de um Novalis!
na Terra. Penaria para aprender o idioma a fim de extrair O que causava mais repulsa aos Doze era o mau hálito de
todo o néctar das páginas. Escreveria sobre temas áridos “fim de mundo” que esses devotos bafejavam. Para eles a
evitados pela maioria, e se felicitaria: o cérebro aleijado, Filosofia iniciava com os “novos filósofos”, Ano Zero do
afinal, não ia mal com sua oratória trovoando nos encon- Pensamento, marco a partir do qual “nada mais será como
tros e congressos dedicados ao Romantismo. Os professo- antes”; toda a História da Filosofia tem de ser revista por
1 - Isaías. 14. 13, 14. aqueles olhos. O século, afinal, pertencerá aos “novos filó-

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sofos”! Viviam a escarnecer de quem ainda não tinha es- coração mole, sabia, tinha um fraco pelo estético, pelo fei-
cutado a jubilosa notícia de que “O Homem está morto”. tiço das imagens poéticas, pelo delírio, pelo emotivo, razão
Era contra a peste negra desse irracionalismo todo que os de ser do tesão pelo Romantismo. Convém a prudência.
“Doze” se amuralhavam. Convém ensurdecer um pouco, criar escamas, obedecer ao
Anselmo ingressou nos Doze por razões particulares, imperativo da Razão, ao ímpeto do Eu absoluto. Triunfar
embora comungasse com a rejeição deles à corrida maluca contra esses filisteus do espírito! Recuemos então aos fun-

PROVA
para acompanhar as “tendências internacionais”, sofregui- damentos, à Terceira Trindade, às Três Críticas. Eia! Suba-
dão institucionalizada. Mal se aprendia os rudimentos de se na torre mais alta do castelo edificado sobre os montes!
um autor e o largavam para estudar outro recém-nascido Com os pés firmados estaria a salvo e se tornaria colossal.
dos fornos estrangeiros. Costurava-se pedaços de um no Faria um retumbante uso público da Razão. Eia! Esmague-
outro, formando colchas de retalhos sem nenhum rigor mos o molenga l’ esprite de finesse com o peso de bigorna
metodológico, ecletismo de um mau gosto abominável. do l’ esprite de géométrie! Foi por isso que entrou no grupo
Certa vez, como experimento, entrou num desses encon- dos Doze apóstolos do Kryptoniano de Königsberg.
tros dedicados aos tais “novos filósofos”. Chamou atenção O Professor arreganhou a boca e pôs o dedo no vértice
o título do evento, “Microcefalias” – boa publicidade, mas do diagrama rabiscado no quadro, precisamente na linha
só podia ser piada. Não era. Com direito a glossolalias e que separava a faculdade da imaginação da faculdade do
simulações de ataques epiléticos, as palestras curtas se in- entendimento. Eufórico por ter recordado o próximo pas-
tercalavam com apresentações artísticas – não, nada a ver so, salivava palavras. Nesse instante, uns estalos o acossa-
com a poiesis de um Novalis! As falas eram indiscerníveis ram nas costas e as palavras caíram no chão junto com o
não por excesso de erudição ou de raciocínio, mas por um copinho descartável que estava sobre a mesa. Fez-se uma
grosseiro espontaneísmo imaginativo ao qual designavam poça d’água no piso e o Professor quase escorregou nela.
de “criar”. Julgavam cumprir assim o imperativo “filoso- Susto! A cabeça torceu na direção do barulho sem que o
far é criar conceitos” – e tome imagens bizarras a torto e a corpo estivesse sincronizado suficientemente, rendeu-lhe
direito! Carrapato, porífero, rizoma, porco-espinho. Tá, é um torcicolo. Junto de seus sapatos bem engraxados um
verdade que Schlegel e Novalis puseram o porco-espinho corpo se debatia. Todos na sala reconheceram de pronto a
como um ideal estético, mas eles tinham uma imensa flo- convulsão, o ataque epilético, e ficaram pasmos feito está-
resta filosófica na qual colocar esse porco-espinho! Ó, dê- tuas boquiabertas.
me aqui ao menos três ideias vinculadas por nexos lógicos Alguém destoou e correu por entre esse museu de cera,
necessários! Não, isso é Teologia, é chamar o Homem dos e empurrou as cadeiras limpando o palco para a dança epi-
infernos e trazer a Razão de volta do céu! Rompamos as léptica. Ajoelhou-se e segurou com leveza a cabeça elétrica.
correntes – morte a toda ortodoxia! Criaremos realidades! “Me dê esse caderno aí!”, sua voz de comando dirigiu-se a
Urge pensar na modalidade confete, picadinhos coloridos, um dos embasbacados. “Dê-me seu boné!”, disse ao rapaz
soltos, livres, “Por uma Filosofia-folia”, rezava a palestra de com uma boina estilo Chê Guevara. Outro rapaz arrancou
um deles. Aquilo era uma Babel! “Não compreenda – sin- a cereja do bolo da torre de livros e a entregou, era a Críti-
ta!” E quanto mais repicado e “artístico”, mais revolucioná- ca da Razão Pura. O socorrista, sujeito alto, corpulento e
rio. Saiu do auditório rindo, mas preocupado: e se aquela cabeludo, acolchoou o livro com a boina e nela repousou a
peste o corroesse, como se apresentaria grandioso à Tia e cabeça fervente. O Professor assistia a tudo de pescoço doí-
à Avó? Deuses o salvem! Tinha de se tornar gigantesco de do, sem saber onde pôr suas delicadas mãos com unhas en-
fato e de direito! Não cederia à tentadora lei do engane e vernizadas, os olhos como botões de ametista em almofada
seja enganado que imperava na universidade. Mas tinha o branca. Ajoelhado, o Cabeludo virou a cabeça fervente de

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lado para que as secreções vazassem do nariz e da boca. tureza o destinara ao despotismo amoroso da Tia e ele que
Seu nome? Não sabemos, era pouco conhecido, trabalhava se acostumasse? Se acelerasse os motores a geringonça fi-
de vigilante no hospital onde aprendera a prestar primeiros siológica dava pane, convulsão? Foi se confinar no quarto
socorros, e não dispunha de tempo para gozar aquela me- por uns meses. Tivesse outro ataque estaria protegido dos
tade ociosa da vida universitária. olhos alheios, salvo da vergonha e do cerco de expectado-
Os membros espatifados bateram na mesa do Professor, res. Seus gestos espalhafatosos e sua baba raivosa nunca

PROVA
derrubaram o copinho descartável e balançaram a coluna mais salpicariam em ninguém.
de livros. Como sabemos, a mesa do Professor só tem es- As duas mulheres zumbizavam do lado de fora, esprei-
paço para um livro, o copinho d’água fica na beiradinha. Se tavam pelas frestas com rosários gastos nas mãos aflitas,
o Professor chegasse com mais de um livro que os empi- murmuravam rezas, batiam à porta, sussurravam choro-
lhasse sobre a mesa, ou ficasse com eles à mão. A torre de sas, questionavam as razões. Ora razões! “Deixem a comi-
livros, aliás, causava incômodo nos alunos, pois acontecia da aí no chão, por obséquio”. Engoliam o pranto e aten-
de ser alta o suficiente para esconder o Professor, que por diam prontamente, ou o menino passaria fome.
detrás dela emitia a voz sem boca contrariando os vícios Tampouco contaria a Antão as razões de sua “vagabun-
oculares gerados pela televisão. Também os volumes varia- dagem”, como o pai batizara sua reclusão. Escutou-o falar
dos dos livros tornavam a torre oscilante, e davam a enten- do outro lado da porta: “Se tudo já foi feito e o cabra não
der que ela ruiria a qualquer momento. Por consequência, sai da toca, ignorem e relaxem, respeitem sua opção pela
os alunos a observavam como se pudessem fixá-la com o vagabundagem! Deixem ele pedir socorro”. Antão tinha
olhar, e nisso a voz sem boca batia inútil nas orelhas, cujo o fito de ultrapassar as duas mulheres, e aproveitar-se da
sangue escapava para encher os olhos atentos. No caso, a ocasião para aproximar-se do filho. Apareceria com mais
coluna era mediana, encimada pela mais recente edição da frequência em casa, por volta das dez da noite, e bateria
Crítica da Razão Pura, de capa dura, saturada de notas de a falange do dedo médio duas vezes na porta do quarto,
rodapé, volumosa de comentários do tradutor e do espe- suavemente, sussurraria para que as mulheres não escutas-
cialista – eis o motivo por que a torre não caiu quando um sem, “vamos tomar umas…”. Anselmo fingiu dormir nas
membro de Anselmo golpeou a perna da mesa. primeiras noites, mas a constância do pai foi amolecendo
O Professor recuperava o fôlego. Retirou do bolso da a porta. “Ah, finalmente, pedra dura em água mole tanto
camisa sua caixinha de comprimidos, engoliu dois, e sus- bate até que explode!”, uma hora o filho abriu.
tentou o queixo com uma mão trêmula. O amontoado de A Avó e a Tia se extasiaram com a novidade e fizeram
rostos ao redor voltou a corar, pois os gestos e as expressões vista grossa para a iniciação do menino no álcool, o que
absurdamente desalinhados que respingavam de Anselmo perigava agravar seu quadro de depressão, ponderava a
se amainavam. Concluída estava a tortura, a moenda nos Tia. Piorar? Como piorar? O menino saiu da tumba! É a
afetos que é contemplar um possesso, martírio, tufão arre- Bíblia que diz:
batando todos à comunhão com o protagonista despeda-
çado, revirando inconscientes e dissolvendo a ordenação Dá licor ao moribundo, e vinho aos amargurados:
da sala de aula com pasmos. Graças a Deus tudo estava em bebam e esqueçam-se da miséria…2
seu lugar. “Chamem um Táxi, por minha conta”, gaguejou
o Professor dizendo a si mesmo que era o mínimo a fazer. Replicou a Avó com seu pragmatismo sapiente. Tudo
Contar o acontecido à Tia e à Avó? Autenticar sua de- corria bem. Os chás da Tia e a presença do Pai faziam mi-
bilidade credora de cuidados infinitos? Resignar-se à ideia lagres. A porta do quarto começou a se abrir com mais
de que seu cérebro tinha limites insuperáveis, de que a na- 2 - Provérbios 31. 6

46 47
frequência. Anselmo ousava caminhar pelo quintal e pela “Porventura é este o homem que fazia tremer a terra…
calçada em frente de casa. Aprendia a andar novamente. ?”3
No entanto, qualquer variação por minúscula que fosse –
febre, calafrios, inchaço nos pés – sepultava-o no quarto Era preciso amolecer a mandíbula com cerveja, tamanha
por mais um mês. Voltava a suportar o martírio do zelo a fúria de seus dentes na própria carne. Era preciso distrair
sufocante das duas mulheres do outro lado, que na hora os ouvidos com as longas narrativas do pai, no Bar do Seu

PROVA
certa, todos os dias, batiam à porta com uma bandeja, e su- Benício, e ensurdecê-los um pouco para as maledicências
plicavam que abrisse. Tanto cuidado gratuito, tanta graça, da própria consciência. Já ultrapassava o portão de casa, ia
tanta indulgência – que humilhação! Mas a porta fechada cortar o cabelo, caminhar nos arredores da Lagoa próxi-
o protegia daqueles excessos, e convertia o quarto na cela ma à Câmara Municipal para fungar o bafo das árvores e
monástica onde cultivaria austeridade e disciplina. As mu- meditar no tempo que elas ainda tinham. Tirava as tardes
lheres acolchoavam o lado de fora da cela com generosi- de quarta e de sexta para fuçar a Biblioteca Municipal. As
dade infinita, ausência de interrogatórios e de exigências, febres começaram a rarear. Ocupava sua “vagabundagem”
rogos em vez de ordens, impedidas de acolchoar o lado de com um programa de estudos, do que testificam os cader-
dentro. Mas a espessura desse lacre causava uma pressão e nos e as páginas avulsas apuradas. Sem dúvida, etnografia
um calor tal no interior da cela, que era preciso despressu- dos povos amazônicos e história da América Central esta-
rizá-la com respostas indiferentes e demorados silêncios, vam no plano, no qual também entraram esquecidos auto-
com provocações à impaciência e pequenos maus-tratos res brasileiros e latino-americanos expurgados das univer-
às duas mulheres. Era inútil. Elas permaneciam firmes em sidades, e de todo canto, pelos Anos de Chumbo. A Biblio-
seus postos, vigilantes, ardentes de amor e cuidado – que teca Municipal, precária que fosse, concedeu-lhe a graça de
humilhação! Inútil hostilizá-las. Anselmo foi gradualmen- dois dos doze volumes da Suma Latino-americana, célebre
te substituindo esse gozo perverso pelo monasticismo da coletânea dedicada a pensadores sul-americanos publicada
leitura e da meditação: satisfação superior condimentada no início dos anos 80. Antologias de gigantes como José
com as delícias do ressentimento e da mágoa, saborosas Martí, Mariátegui, Ruy Mauro Marini, Guerreiro Ramos e
ruminações do projeto estilhaçado – ah, que gozo indizível outros. Anselmo descreve esse encontro como um “evento
se autoflagelar com os cacos dos planos espatifados! Deita- soteriológico” análogo a uma “cura psicanalítica”, uma “re-
do na cama, muitas vezes febril, levantava a saia das ambi- patriação”, “reconquista do território”, “pés no chão e olhos
ções que o conduziram até aquele ponto, até aquele buraco. na cabeça”. A leitura servindo para corrigir o grau das len-
Delirara em acelerar os motores, em elevar-se acima dos tes dos óculos. Sentiu-se as galinhas do quintal, com seus
demais encarnando o Eu absoluto dos românticos, sim, pés e bicos riscando a areia, com seus olhinhos cintilando
adquirir terras, erigir um império, ser o Paulo Honório da o Espírito de Deus. Sim, as galinhas são divinas! Mais do
filosofia! que as exaltadas águias com suas enormes asas alienígenas
e visão alheada acostumada a ver no chão somente presa e
Como caíste do céu, carniça. Águia, predadora, oportunista, que voa nas alturas
ó estrela d’alva, filho da aurora! de nossas metáforas, ideias e analogias mais queridas, sím-
Como foste atirado à terra… bolo ianque, sabe andar com seus pés e cultivar quintais?
foste precipitado ao Xeol, O entusiasmo por essas leituras moldava até seu “Diá-
nas profundezas do abismo rio de sonhos”, um caderno no qual narrava, sem rigidez
Os que te veem fitam os olhos em ti, cronológica, viagens oníricas. Essas páginas guardam de-
e te observam com toda atenção, perguntando: 3 - Isaías. 13. 12, 14.

48 49
senhos intrigantes, imagens e diagramas aparentemente em termos objetivos, significa que o ajustou aos interesses do
absurdos que faziam referência às novas leituras. Curiosas grupo dominante.
crônicas como aparições de Simon Bolívar, e guerrilhas
ao lado de José Martí. É exemplar o sonho em que Kant Os maquinários da Universidade lhe apertavam a car-
estranhamente não aparece como Papa, mas como che- ne, sufocavam seu sangue e tapavam seus poros. O brilho
fe da Companhia de Jesus. Ele saía de uma nuvem com de um conhecimento puro sem contraparte concreta, pe-

PROVA
o nome no peitoral em forma de anagrama, TANK, e no ças abstrusas e abstratas que lhe exigiam o aprendizado de
chapéu, envolto por um halo no qual fulgurava AD MA- uma mecânica inútil, que não servia para consertar má-
JOREM DEI GLORIAM, estava a palavra THINK, talvez quina nenhuma. A convulsão, no fundo, foi uma salva-
sugerindo o cogito cartesiano. Anselmo ensaiou algumas ção, uma soteriologia instintiva; ímpeto do sangue contra
interpretações; o sonho aludia ao opúsculo A Questão da aqueles maquinários. Converter-se em gênio, em monstro,
Universidade, escrito por um obscuro filósofo brasileiro empregar esforços hercúleos para se elevar sobre os de-
chamado Alvaro Vieira Pinto, que lera num dos tomos. Su- mais, tornar-se Capitão do Mato e espezinhar a ralé iletra-
geria a “missão catequética” das universidades brasileiras, da. Sim, castrado cão de guarda do Castelo da Filosofia de
a “conversão dos gentios” e “dos selvagens” que elas empre- Kant, déspota esclarecido apartado da realidade do bairro,
endem. Reproduzo abaixo o trecho do opúsculo transcrito da carne, do sangue e do suor dos maracanauenses. Lacaio
no comentário ao sonho. produtor de artigos de entretenimentos para o consumo
da canalha de mãos atrofiadas que se esconde na Univer-
A Universidade absorve e amortece o surto da consciên- sidade. Capado e recapado por aqueles maquinários. Ora,
cia popular, representada pelo elemento estudantil descom- Romantismo alemão!
prometido com os poderosos. Sabendo que, por força das cir- Agora peço licença ao leitor para torturá-lo um pouco
cunstâncias, tem de operar numa área cada vez mais hostil expondo, da maneira mais enxuta, umas ideias cunhadas
e resistente aos seus propósitos, enquanto Instituição – as durante essa estadia no inferno. Reduzindo e podando
massas, os estudantes oriundos das camadas modestas das partes inassimiláveis, dois temas se destacam nos manus-
classes média e mesmo proletárias – a Universidade compre- critos dessa época.
ende que uma das suas missões específicas é a que chamarí- 1. A “terceira intuição”, “intuição sem forma” ou “ter-
amos de “conversão do gentio”. Tem de agir sobre populações ceiro olho”, são a mesma coisa. Com certeza variação da
sempre mais numerosas de “selvagens”. Por isso empreende Estética transcendental do Kant, que será tema da mono-
a tarefa catequética de fazer os elementos da massa estudan- grafia de conclusão de curso. Nesse primeiro comparti-
til “converterem-se” aos interesses da classe dominante, ace- mento da Crítica da Razão Pura, a intuição do espaço e do
nando-lhes com a ilusão de vir um dia a se tornarem mem- tempo são postas como condições gerais da sensibilidade
bros dessa mesma elite onipotente. É decisivo assinalar essa humana. Bem, não convém enchermos a cabeça do leitor
“missão catequética”: a de destruir no estudante pobre ou de dores com explanações que nem filosofantes versados
procedente das camadas populares o espírito de luta pela as- nos guturais do alemão, carecas de lamber o kryptoniano
censão coletiva de sua classe aos planos superiores da cultu- de Königsberg, dominam. Vamos nos contentar em saber
ra, isolando-o, e levando-o a crer que é ele, como indivíduo, que Anselmo quebrava a cabeça na tal “terceira intuição”,
que deve adquirir o conhecimento que almeja, desse modo terceira via de acesso aos fenômenos; o “terceiro olho” que
desarticulando-o no seu papel, desintegrando-o do meio, e os videntes, os xamãs e os poetas possuem. Esses “des-
inutilizando-o para a luta social, justamente porque o “con- pertos” “elastecem de modo aberrante a sensibilidade e a
verteu” em aspirante individual à cultura, o que traduzido percepção humanas”, reconciliando-nos com “os espíritos

50 51
não-humanos”. Segundo Anselmo, a História da Filosofia é Motivo de espanto te tornaste4
feita por furadores de olhos de videntes, expulsos da Cida-
de Santa da Filosofia. O arranca rabo de Kant com o visio- E agora, seis anos depois, de volta ao vale das sombras
nário Swedenborg exemplifica bem isso. da morte, fundo do poço, abismo da cama. Ao lado da
2. Os cinco opúsculos inacabados, assinados por um cabeceira, o criado-mudo sustentava um Kant; os óculos
heterônimo, Al Sonali, mouro que viveu anônimo em Lis- deveriam estar ao seu lado ou em cima dele, mas foram se

PROVA
boa de 1500 a 1536, especulam acerca da similitude entre esconder debaixo da cama. Anselmo não se erguerá para
orelhas humanas e a forma espiralada das galáxias. O estilo vasculhar o Baú e procurar os escritos da adolescência, es-
parece imitar Pico Della Mirandola. Fundamentavam-se tavam do outro lado do abismo. Só às nove e meia da noite
na ideia de um princípio imanente que ordena o cosmo, levantará a cabeça do travesseiro – e levantará de uma vez
um logos como “imagem acústica primordial”. Os ouvidos por todas!
humanos surgiram para escutá-la. Dessa tese se extraíram
algumas polêmicas, exortações para que os humanos per-
manecessem na escuta do logos, pois só assim se mante-
riam no centro do mundo, no umbigo do cosmo. Quando
os humanos se ensurdecem por desvios de ordem política
ou filosófica, tornam-se bestiais, “expulsos do paraíso”, pois
esse é o autêntico pecado original, a única Queda.
Apouquei o assunto expondo tudo de maneira pecami-
nosamente sintética a fim de não desanimar o leitor com os
raciocínios extravagantes de um convulso.
Por volta das oito e meia da noite, para emprenhar o té-
dio com alguma distração ou tortura, Anselmo considerou
rever aqueles escritos antigos, corrigi-los, poli-los, remo-
ver deles a gordura ingênua. Estavam bem ali no Baú. O
tempo corria viscoso como uma cobra que acaba de comer
uma ratazana gorda. Ah, delirara com a velocidade sobre
os trilhos, mas a locomotiva pifou logo no início. Sonha-
ra em armar a carne sobre o esqueleto abstrato do sujeito
transcendental como um papel de seda revestindo a grade
de palitos de uma pipa. E assim elevar-se, e subir, e tornar-
se celestial, universal, depurado de acidentes mundanos!
Uma pipa que julgava ser águia, com suas grandes asas
imóveis ao léu das correntes quentes. E o Ícaro tombou
feio. A convulsão, o sangue, o grito do sangue sufocado.

Fiz sair fogo do meio de ti,


um fogo que te devorasse.
Eu te reduzi a cinzas sobre a terra,
aos olhos de todos os que te contemplavam… 4 - Ezequiel. 28. 18, 19.

52 53
vida, atirados nas valas e esquecidos. E apesar dos esfor-
ços de alguns para conservação da memória dessas coisas,
o vale de lágrimas deve ser soterrado, escondido; os sem-
nome enterrados, os documentos queimados, os tratores
farão seu serviço.
Anselmo não é nenhum Walt Whitman, que com seu

PROVA
Folhas de Relva, em 1855, erigiu o chão da democracia es-
tadunidense. Sua voz falha não pode bradar:

Sou o parceiro e o companheiro das pessoas, todas tão


imortais e impenetráveis quanto eu mesmo;

Pois lhe falta talento poético, e aquele transbordo de


Enamorado afetos como erva libidinosa grassando por entre todos os
Sob o comando de capatazes cruéis, gentes desterradas habitantes de sua terra; gentes de todos os ofícios, de todas
martelaram o aço e cavaram o chão estendendo as estra- as cores, de todas as classes; argamassa de uma América
das de ferro para que os insumos da terra escorressem ao igualitária e democrática.
seu destino. Gente-mandacaru, gente-caranguejo, gente-
calango, gente-carnaúba; gente marcada pelo aço e pelas … Germino tanto em zonas amplas quanto estreitas
feitiçarias da técnica. Os sobreviventes daquela época cho- Grassando em meio a gente negra e branca…
ram de saudade ao recordar da locomotiva a lenha; lágri-
mas que reluzem o fogo de Prometeu no ventre da Maria Como grassar assim, se a populosa relva escura foi sis-
Fumaça, ardente e faminto como o de seus filhos – e pres- tematicamente arrancada da terra? O jesuíta, o bandeiran-
tes a devorá-los! te, o europeu com suas botas e esporas sujas de sangue,
De tênis gasto, calça jeans desbotada e camiseta preta, o latifundiário, os grandes comerciantes, meia-dúzia de
Anselmo salta na Estação Otávio Bonfim. Seus ouvidos es- brancos rapinando a carne de Deus, a terra, escravizando
cutam os últimos apitos do trem que será substituído por a gente preta, estuprando as mulheres, procriando em ca-
um metrô, segundo a lenda. E tem aí uns anos que quebram tiveiro crias bastardas para usá-las como anjos da guarda
asfaltos, esburacam o chão, interditam estradas e erguem e da morte. Como os afetos grassarão tão igualitariamente
montões de barro – e nada de metrô. Caminha apressado se existe o campo de concentração, o arame farpado com
pela passarela por entre paredes condenadas à mastigação baionetas circundando os amontados, esquálidos e fétidos,
do trator, apesar dos esforços de alguns para conservá-las irmãos que clamam por uma esmola aos que passam ao
como memorial. Aqui fizeram o campo de concentração lado do cercado? Como, se a romaria dos sertanejos des-
onde os retirantes foram confinados; gentes desterradas e terrados foi confinada em currais para não contaminar
esfaimadas escorreram para cá em trens abarrotados. Esta- com seus miasmas o ar afrancesado da capital?
ção do Matadouro, da qual O Quinze de Rachel de Queiroz Quem brada aqui, mais do que a relva, é o mandacaru
testemunha. Os mestiços sertanejos, selados com a marca com seus espinhos contra a violência dos tempos! Meia-
da extinção, foram amontoados, empilhados, espremidos, dúzia de brancos dividindo a amplidão da terra, bebendo
cercados por soldados e arames farpados, alimentados os rios e devorando as árvores. Quem grita mais alto aqui
com porções irrisórias de carne seca e farinha, mortos em é a voz da malva ansiosa por se alastrar sobre os crânios

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dessa meia-dúzia de brancos! Não, os afetos não grassa- fissão correta, ajustada às suas inclinações, coisa rara! O
rão benfazejos por “entre a gente negra e a branca”, pois a que seria se tivesse um ofício em desarmonia com o san-
terra está cortada por arames farpados. O que lhe falta em gue, e não pudesse espatifar, profissionalmente, um lábio
veia poética excede em ódio, um prudente, afiado e cur- quando acordasse de mau humor? O policial era preto,
vo ódio àquela meia-dúzia e seus anjos. Se Anselmo teve o lábio que ele estourou de um soco era grosso, lábio de
na vida alguma vocação poética, foi assim: o serafim da preto. Palmas! Todo apoio aos executores do saneamento

PROVA
visão arrancou a brasa do altar e crestou não apenas sua moral e estético da cidade! Palmas! Há muita demagogia
língua, mas seu corpo inteiro, fez da pele uma crosta dura em caluniar os momentâneos descontroles emocionais dos
qual exoesqueleto. Sua caixa torácica fazia valer a palavra guardiões de nosso bem-estar! Quem nunca acordou de
caixa, e encaixotava o coração. Sua economia de gestos e pá virada, hem? Se os dentes de alguém se quebram, vez
de expressões lhe dava uma aparência cadavérica e neutra. ou outra, convém não julgar a mão amiga que nos protege,
Só eventualmente ressuscitava, a caixa se abria e na pele o “não julgueis”, diz o Cristo! Tem um homem dentro da far-
coração aflorava. da que sofre e se estressa, o salário é baixo e o serviço não
Anselmo caminha na direção do primeiro dia de aula é dos mais fáceis. É preciso compreensão, sejamos huma-
pós-exílio, pela Av. 13 de Maio, outrora estrada barrenta nos! Mas o Brasil prefere romancear a bandidagem! E ain-
trilhada por manadas e tangedores de gado. Um carro ras- da tem quem defenda esses vagabundos que podem matar
pou o canteiro e arrastou um saco de lixo em frente à Praça e estuprar nossas filhas! Direitos Humanos para quem é
da Gentilândia. As vísceras do saco se espatifaram; ruma Humano! Vagabundos são cães raivosos que precisam ser
de papel higiênico esvoaçante. O plástico preto levitou no exterminados. O respeito à polícia tem de ser ensinado nas
vento, as longas fitas brancas manchadas, rodopiando no escolas, e nas telenovelas também, no lugar de tanta pou-
ar, enroscavam-se nos pneus e deslizavam nos para-brisas ca-vergonha! Ah, que saudade do tempo em que se adora-
– uma bailarina invisível manobrava as fitas brancas. Tudo va a bandeira nacional e se tinha aulas de moral e cívica!
isso é encantador, mas ele se esquiva das pregas imundas Ditadura? Não, tempo bom, tempo do bem. A solução é
sopradas em sua cabeça, e apressa o passo para não chegar simples: os militares de volta ao poder! A corrupção na po-
atrasado. lítica, a defasagem na segurança, a crise econômica, e esse
Os moradores das tendas armadas na costa da Praça da surto de homossexualismo combinado à deterioração da
Gentilândia já estão acordados, rodeados de cães, irmãos família, tudo se resolve com os militares de volta ao poder!
com quem repartem o pão. Cabelos desgrenhados e barbas Amém! Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos ho-
espessas, indigentes, indígenas, Diógenes a quem ninguém mens de boa vontade! – eis algumas vozes da Praça.
oferece presentes. Estendem tapetes no chão, mostruários — Ei amigo, dá uma olhadinha aqui no meu trabalho!
enfeitados de colares, pulseiras e brincos, tudo feito por Anselmo fez um aceno de mais tarde. Desacelerou o
mãos magras, tatuadas e próprias. passo ao se embrenhar no matagal da memória. Seivosas,
Um policial a cavalo trotou sobre uma dessas tendas, as lembranças armazenadas na Praça esvoaçaram em sua
dias atrás. direção como uma nuvem de gafanhotos. Ainda bem que
— O senhor não faça isso não, por favor! os policiais não estavam, e há buracos no matagal da me-
O policial devia estar com prisão de ventre ou ter briga- mória. Cavalos em cima, policiais embaixo, cascos baten-
do com a esposa. do devagar nos dentes e nos narizes desses anjos guardiões
— O senhor não faça isso, não… do bem-estar – espetáculo educativo e delicioso de se ver!
Deu um pinote do cavalo e largou um soco na boca do Ainda bem que os policiais não estavam, e dava para pre-
falastrão. Que sorte a desse homem que ingressou na pro- encher os buracos do matagal da memória com delírios.

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Pena era o sangue sujando a Praça. Policiais ainda têm san- rejuvenescedora, alma que dava vida ao lugar. Pela tarde
gue? as mesas se depenavam, imperava um silêncio melancóli-
Como eu disse, Anselmo não é nenhum Walt Whit- co no terraço contornado de árvores junto ao muro. Nessa
man. O leitor perceba a austeridade de suas entranhas, hora Anselmo sentava ali solitário e bebia cerveja medi-
que não grassam universalmente sobre todos, mas seguem tando, com um bloco de notas à mão. Pedia uma tigela de
uma linha dura, rasteira e curva no horizonte. Uma linha sopa e degustava calmamente, as mesas e a mente um tanto

PROVA
que passa pelos nativos massacrados, pelo gado destinado vazias.
ao abatedouro, pelos caboclos desterrados e esfaimados Vinte minutos para cinco horas, dirige-se à Estação
martelando o aço dos trilhos, pelos Pitaguary em sua re- Otávio Bonfim. Se perdesse o trem das cinco e meia da
sistência contra os comedores de pedra ao sopé da Serra de tarde se privava de um pedaço magnífico do dia: a viagem
Aratanha, pelos Anacé em sua luta pela água e pela terra, num vagão vazio. Por consequência, duplicava o bocado
pelos “homens de branco” trabalhadores da cal de Itapó, e mais abominável do dia: a viagem num vagão abarrotado,
os fazedores de telhas e tijolos, e as parteiras mães de mui- irmão gêmeo do trem das seis da manhã.
tos filhos do Riachão, que tiveram seus lares alagados e que Uma boa caminhada que fazia ligeiro como uma leitura
foram desterrados para a construção do Complexo hídrico dinâmica daquela fração da Av. 13 de Maio. Podia abreviá
Pacoti-Riachão/Gavião; pelos malucos de rua, nômades -la pegando o ônibus para o Maracanaú ali no Benfica, mas
das praças, e até pelos inocentes cavalos. Jamais essa linha além de abarrotado e mais demorado, o preço da passagem
subia ao nível dos policiais, dos governantes e dos capa- estava o dobro. E, sobretudo, é preciso fugir do empantur-
tazes, daquela meia-dúzia branca e seus anjos cinzentos. ramento, do abarrotamento e de gastar dinheiro.
A ortodoxia de suas paixões lambe o pó, conserva-se no No trem das seis da manhã o vômito lhe subia ao quei-
chão, e se prolonga pelos lados serpenteando para derru- xo. Carnes empilhadas dentro do vagão, o bramido de
bar do cavalo qualquer capataz, elo ferrenho entre pretos vozes, chocarrices e gargalhadas formavam um tutano es-
e brancos. pesso. Seus nervos atritavam nesse recheio e entravam em
Nas terças-feiras Anselmo dedicava-se às atividades do combustão. Se o jato ácido lhe escapasse pela goela, pronto,
Programa de Bolsas de Iniciação Científica. Nos demais derreteria as pernas dos passageiros e abriria no chão um
dias ficava na sala de estudos ou deitado num banco do buraco negro que sugaria meio mundo! Um buraco negro
bosque contemplando as árvores e o azul-claro do céu com é exagero, calma, só precisa de uma mínima fratura por
um bloco de notas à mão. O bosque do Centro de Huma- onde escapulir e respirar. Inspire, expire, respire fundo,
nidades fervilhava de estudantes nas mesas ao redor de feche os olhos, calma, paciência… Mil braços se entrame-
garrafas e livros. O murmúrio de vozes e cantorias ininter- lavam no teto, palitos numa caixinha de fósforo sacudida
rupto se misturava aos rumores das mangueiras e ao cheiro por um deus sambista. Experimenta o brutal fato metafísi-
dos baseados. co da ausência do nada, a totalitária inexistência do vácuo,
Na esquina vizinha tinha um bar chamado Cantinho a onipotência, a onipresença e a onisciência dos corpos.
da Filosofia, “extensão da universidade”, diziam. Ficava Há dúvidas de que esse seja o verdadeiro inferno? O empi-
num espaço largo e arborizado, que também servia de es- lhamento dinâmico de corpos com seus calores e vapores,
tacionamento para os alunos que tinham carro. As mesas com seus rangidos e rompimentos de invólucros gerando
se punham na área central, pavimentada, frequentemente edemas, inchaços e contágios. A contínua destruição dos
enxameada de estudantes que nem sempre tinham grana seres pela ausência de lacunas, de intervalos e de vácuos.
para o álcool de cada dia. Mas havia partilha do pão, afi- No princípio eram os corpos! Eternamente os corpos, os
nal todos cultivavam a mesma massa de ar embriagante e algos privados da preexistência dos nadas, se amontoan-

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do no tempo em conflitos explosivos. Eternamente a dis- entra no último vagão, o mais distante das entradas e saí-
solução dos invólucros e a liberação dos ácidos. Oh, face das da estação, o menos frequentado. Meia volta, sedentos
horrorosa de Dionísio! A bile alheia golfando em nossas de saliva alheia e necessitados de empréstimo de ossos!
papilas e pupilas! Inspire, expire, feche os olhos, respire Então, que corpo estranho é esse que se aprochega, sen-
fundo. Anselmo engoliu pela terceira vez o vômito. Sentia- ta ao seu lado e suscita o lascivo ímpeto de se afastar para
se no trem empanturrado de retirantes rumo à Estação do reaver os carinhos do vazio?

PROVA
Matadouro.
Não se lembra em que altura da viagem, entre quais es- 2º Dia
tações a coisa aconteceu. De repente abriu os olhos e deu — Você tem uma caneta…?
com as dobras de uma orelha a um palmo do nariz. Os mui- As falanges, abelhas atiçadas, arrancaram a caneta do
tos ombros, cabeças e braços se atravancando, e por uma bolso da calça. O universo se escureceu com os cachos ves-
curta brecha, abaixo de uma axila peluda cruzada com um tindo o ar que entrava pelas janelas emperradas. A garo-
queixo infestado de espinhas, insinuou-se uma orelha com ta sorridente, cruelmente sentada ao seu lado, encurvou-
suas dobras como frêmitos de um lago. A quem pertencia? se contra os sacolejos do trem para escrever no caderno.
Pouco importa. Abriu-se em flor um olho d’água no ma- Como quem sacode baratas da camisa, Anselmo decepou
ciço, e ao seu borbulho os átomos no interior do vagão se de si gestos e imaginações impertinentes, e aprumou o li-
orquestraram. Por essa flor, Anselmo viu as moléculas se vro sobre as pernas cruzadas. O calor que lhe empalava
combinarem gerando uma ilha crescente contra o cance- pelo flanco esquerdo o desajeitava todo. O corpo estranho
rígeno oceano sangrado dos atropelos dos corpos. Por ela ao seu lado, ontem ignorado, o atravessava como um Cris-
vislumbrou as vísceras mais íntimas do vagão, e sentiu o to ressurreto permeando a parede. O balanço do trem au-
peito dilatar. Viu-se poeira, torvelinhando nas ondulações mentava a probabilidade de desastres, fazia descarrilar os
daquela orelha. olhos do livro para margens cada vez mais largas. E foi por
Já o trem da cinco e meia da tarde era o paraíso, e foi um fio que escapou, como de um incêndio. Distraíra-se,
nele que deu o primeiro beijo em Maria. sua estação era aquela, deu um salto, a porta quase aboca-
nhou seu pé esquerdo.
1º Dia
3º Dia
As portas se abrem e o ventre da baleia de ferro exibe
seu recheio, um deus respirável – o vazio! Anselmo cami- — Não vi quando você desceu, levei sua caneta e acabei
nha dentro dele rente com os bancos surrados e sem gente. perdendo…
Os sons do metal, depurados de vozes humanas, são sal- Deusa! Sou uma nuvem de insetos presa por alfinetes
mos. Senta, cruza as pernas, retira da mochila um tijolo, o em teus cachos negros! Deusa! – vozes assim mariposaram
livro, e o apoia nos joelhos. É uma festa! A caatinga não é no esôfago de Anselmo.
um deserto, são os olhos doentes de miopia que a revestem — Você tem um rosto… intrigante. Branca, mas com
de vazio. Com a lamparina dos olhos acesa, vendo bem, es- traços indígenas… Pelo sotaque, não é daqui…
cutando bem, o que chamam de deserto é farto de delícias, — Tomara que isso seja um elogio! Sou de Manaus. Mi-
riqueza de fauna e flora, de seres rasteiros e invencíveis, de nha mãe era indígena, Munduruku para ser mais precisa.
umbus e umbuzeiros espirituais. O deserto, mesmo dentro E você…?
desse retângulo de ferro, o vagão, é farto. Das chagas aber- — Sou de Maracanaú.
tas pelo trem das seis da manhã brota um oásis. Anselmo — Sou Maria…

60 61
— Maria… Maria… Maria… Minha mãe, minha avó esse mundo deserto… Apenas esse “céu estrelado acima de
e minha tia também se chamam Maria, mas ninguém as mim”?
chama de Maria, chamam sempre pelo segundo nome ou
os dois nomes juntos, um cobrindo o outro, como se Maria 4º Dia
fosse um nome sagrado que não se invoca em vão…
Anselmo falava eufórico, embriagado pelo aperto de — Boa tarde… Anselmo.

PROVA
mão. — Boa tarde, Maria.
— Que ideia, rapaz! Você nunca foi à feira? Nunca ou- Anselmo não leu sequer uma frase do livro sobre as
viu quitandeiros se esgoelando às donas de casa, “Dona pernas. Os músculos tensos e a garganta entalada. Sentada
Maria, isto. Dona Maria, aquilo”? Maria é um nome tão ao seu lado esquerdo, Maria enfiou os fones nos ouvidos
sagrado quanto a Santíssima Trindade, Fulano e Sicrano e e emudeceu. A última conversa não terminou bem. Deus,
Beltrano! Deus, que diabos ter de falar de Deus! Não recebeu os sa-
Os dois riem. cramentos, isso era verdade, mas nunca havia pisado em
— Seu nome…? igreja? Ora, passou a infância e parte da adolescência as-
— Anselmo. sombrado por não ter sido batizado. Os colegas o inferni-
— Ah, aí sim, taí um nome pra gente escrever em itáli- zavam, “pagão, pagão! Se morrer vai preto pro inferno!”.
co! Sua mãe é devota do santo que provou a existência de Tinha medo de dormir no escuro, o diabo o carregaria,
Deus… diziam. Na precária memória restam os rogos para que
— Minha Avó me deu esse nome… Minha mãe morreu a Tia o levasse ao batismo. “Menino, o batismo é só um
no parto. Mas em minha casa todos são ateus, é uma sín- banho mal tomado! Se Deus existe nem no mar ele cabe,
drome hereditária… quanto mais naqueles pinguinhos do padre!”. A blasfêmia
— Todos ateus?!… Oh, sinto por sua mãe… era pra ser da Tia não o aquietava, e antes de dormir fazia o sinal da
uma piada… Desculpe. cruz, rezava o Pai Nosso e a Ave-Maria. Nunca pôs os pés
— Isso mesmo, todos ateus. numa igreja? Exagero. E sua contrição durante as missas na
— E você não tem angústia? capela do Colégio Militar? E sua curiosidade pelos misté-
— Não tenho lembranças dela… rios da Trindade? Não, ele não escapou tão incólume assim
— Digo… Claro, perder a mãe é terrível, eu também… do cristianismo, como arrogava. Exagerou para desviar o
— Não cheguei a perdê-la, nasci órfão… rumo da prosa, e a prosa desonerou. Foi um tapado, na
— Perdi minha mãe cedo, com sete anos, ela morreu de certa.
câncer… Anselmo se embebia no lado esquerdo, meio de banda.
— Não cheguei a perdê-la… Câncer?! Os fones nos ouvidos de Maria zumbiam feito besouros e
— Mas eu me referia a Deus, entende? o picavam no rabo do olho. Coçava as orelhas numa urti-
— Deus?! cária, azucrinado. Respirou fundo mas acabou desembu-
— Sim, o céu vazio não lhe dá angústia? O mundo de- chando como num espirro.
serto, sem encanto, sem mistério… Esqueça o departa- — Não incomoda…?
mento moral da religião e a encare de um ponto de vista Maria destapou a orelha direita e se inclinou para ouvir
poético… As crianças, assim como os povos originários, em meio à zoada das rodas na ferrovia. Seus cachos negros
Munduruku entre outros, têm mundos fervilhantes de es- encheram a boca do Kant nos joelhos de Anselmo.
píritos, mitos, cosmogonias, narrativas e personagens fan- — É Belchior. Essa é linda, escuta aí.
tásticas… Você nunca se angustiou com esse vazio no céu, Maria ficou com o braço estendido por alguns segun-

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dos tendo na ponta dos dedos um fone de ouvido. Depois sendo ameaçados por empresas de mineração e especula-
o recolheu largando em Anselmo, crispado e inerte numa ção imobiliária, e isso com o aval do governo. Isso é em
careta de nojo, metade do seu mal-estar. A outra metade Maracanaú, não é?… O que vocês pensam sobre isso?…
ruminaria sozinha, sua dádiva caída no vazio, sua vergo- — Na verdade isso é em Pacatuba, município vizinho…
nha. E o que custava receber a oferenda de Maria e só por Bem, desço aqui… Até amanhã!
uns segundos encaixar esse inseto repugnante em um dos

PROVA
ouvidos? Vale tanto escrúpulo consigo se agora sobrevêm 5º Dia
um surto de tagarelice que tenta aplacar essa corrosiva sen-
sação de arrependimento? Mil vezes melhor o fone socado Anselmo e Maria entram no vagão pela mesma porta,
no ouvido! Mil vezes! Agora tente aí apagar esse fogaréu de cumprimentam-se com um aceno de cabeça e assumem
inferno a cusparadas! seus postos, um ao lado do outro. Maria remexe na bolsa e
— Você não acha incômodo enfiar essas coisas nos bu- saca uma caneta metálica.
racos da cabeça que afinal são pra ficar abertos…? — Ah, você encontrou…
Os lábios de Anselmo se mexiam ao longe. Estivesse ele — Não tinha perdido. Menti! Menti pra ter mais o que
menos absorto em disparates, menos afobado, teria lido o conversar…
corado naquele rosto ensurdecido de vergonha. O fone de O trem partiu, uma rajada entrou pela janela e disper-
ouvido zunindo entre os dedos de Maria era elemento da sou os cabelos de Maria. Anselmo mirou a belezura da-
eucaristia, oferta de comunhão, tida por repulsiva. Ansel- quele rosto por entre brumas, penas de graúna que lhe
mo palavreou até rouquejar, abusar e enojar-se da própria lambiam os olhos e arrancavam escamas. O trem para, os
voz. A garota perdurou muda e divina, entronizada nos cachos negros repousam, Anselmo também. Uma senhora
estrépitos do trem. Os dois amargaram no silêncio por al- preta rechonchuda e vestida com o branco de sexta-feira
gumas estações. carrega sacolas cheias e dá um passo difícil para fora do
— Incômodo mesmo é ler esse livro aí!… Só presa sem vagão. O vazio inchou mais. Matreira, Maria meteu logo os
nada pra ler eu comeria uma palha seca dessa!… Você é fones nos ouvidos e fechou os olhos precavendo-se. O olhar
estudante de filosofia, não é? Só pode! de Anselmo a obsedava, impessoal feito ostra em simbiose
Maria apontou o queixo para o livro nos joelhos de An- com as ferragens do trem. O anjo agitava as águas. Saltar
selmo desfazendo a postura de estátua que já enfadava. nas águas agora é se dividir em antes e depois, irreversi-
— Minha língua adoeceu de poesia, perdi o paladar pra velmente. Maria se movia com prudência e recordava uma
esses filósofos. passagem de O Ateneu, de Raul Pompeia:
— Mas tem poesia em Kant.
— Como é? Ah, essa é boa! Convidava à adoração colhendo aos ombros o manto da
Maria retirou os fones dos ouvidos e sorriu zombeteira. candura, refugiando-se na indiferença hierática das vestais.
— Poesia em Kant? Ah, agora você terá de destrinchar
isso! Era sobre Ângela, personagem que grudou em sua pele
Anselmo respirou fundo, coçou a testa e o nariz levan- quando ainda era criança. Ângela é um vestido curto co-
tando os óculos para procurar o fio da meada. Já ia abrir a biçado na vitrine; “grande, carnuda, sanguínea e fogosa.”,
boca quando Maria o interrompeu. tão humana e perversa quanto os personagens bíblicos.
— Não, não, esqueça, esqueça isso, acredito em você. Vá Parecia com ela, exceto pela cor castanha dos cabelos que,
lá, deve de ter… A beleza está nos olhos de quem vê. Mu- pelos inusitados deslocamentos da encarnação, foram dar
demos o tom. Li ontem no jornal que os Pitaguary estão nos olhos. Ângela “era, como os elementos, sem remorso

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das desordens e depredações”. Anjo caído que assombrava a mochila contra os pulmões em carnaval, mas, e se esti-
os internados do Ateneu e também Maria. Sentada ao lado vesse a empurrar a água mais para dentro?. Por que não
de Anselmo, de olhos fechados e ouvidos entupidos, co- comprar uma mochila emborrachada? Gosta dessa, suave
bria-se de “indiferença hierática”, como um buraco negro. e maleável, depois, para que gastar dinheiro?
Saltemos do primeiro beijo para adiante visando eco- Maria desponta no corredor e vem crescendo.
nomia de papel. Casais são fenômenos repetitivos. É de-

PROVA
sonestidade tomar a parte pelo todo, verdade, mas o crime Quem é essa que desponta
compensa tratando-se de casais. Aí a novidade só nasce da como a aurora
fusão das mesmices de ontem com as mesmices de hoje. bela como a lua,
Lei de Malthus do casal: a novidade dos gestos cresce em fulgurante como o sol,
progressão aritmética, a novidade dos gostos em progres- terrível como esquadrão
são geométrica. Tanta vez a novidade nem dá as caras, não com bandeiras desfraldadas?
passando de variações nas papilas e nas pupilas. Varremos
para debaixo do tapete da língua os desvarios no paladar, Abre, minha irmã, minha amada,
engolimos o sapo a seco, colamos com cuspe os elos en- pomba minha sem defeito!
ferrujados da corrente dos gestos – e assim se faz o amor. Tenho a cabeça molhada,
Saltemos então para três anos adiante, e cheguemos à casa meus cabelos gotejam orvalho!5
de Maria, por volta das oito da noite.
É março, Rua Leandro Monteiro, esse fiapo mal ilumi- Ela açoita a teimosia da fechadura e o portão se abre.
nado que sai da Av. 13 de Maio e se arrasta por detrás do Vem revestida com o espírito santo composto de sabonete,
Pitombeira Bar. Anselmo espera ao portão de um dos pré- xampu, cremes e humores. Não se incomoda de molhar o
dios quase na esquina com a Rua Padre Miguelino. Toró vestido no abraço demorado. Sob a seda, os mamilos se
grosso. Pela terceira vez ele aperta o terceiro botão do in- hasteiam contra o peito arquejante. O espírito santo em-
terfone, sem se distrair com o coral de gotas na parede. panturra o corredor, como uma gelatina libidinosa a ser
As gotículas estouram feito minúsculos gomos de tange- saboreada pela carne dos que caminham dentro dela. O
rina liberando sumos sonoros no amarelo plano. Óculos prédio de dois andares é um cortiço que empilha alvéolos
orvalhados, ciscos nos olhos. Abraçado à mochila jeans com três divisões, a cozinha, o quarto, o banheiro. A porta
ensopada, mantém-se fito no breu do corredor adiante. do apartamento dá na cozinha que se dobra em cotovelo
A água pode penetrar na mochila, embora tenha confec- e se prolonga no quartinho onde se cava o banheiro. Na
cionado seu forro com zelo cirúrgico, como aprendera nas parede da cozinha, a dois palmos do teto, uma janelinha dá
instruções da infantaria, quando aluno do Colégio Militar. para outra parede lá fora. Através dela, o Sol acha caminho
Um pedaço de encerado dobrado feito um quadrado do e se projeta na cama.
tamanho da mochila; esquenta-se as bordas com um ferro Por que Maria veio morar num cafofo desses?
de passar roupas até derretê-las e emendá-las; faz-se um As medidas nanicas dos compartimentos desagrada-
saco para forrar o interior da mochila. Mas como evitar vam, mas a higiene que emanava do todo, da brancura nas
as fissuras? Como limitar a esperteza da água? A fluidez paredes, do rigor na ordenação dos poucos móveis, chega-
e o vapor são duas antenas tateando vias. Se o carimbo da va a ser confortável. A ocupação do espaço, sofisticada por
biblioteca na contracapa se borrar, terá de repor o livro, e inconscientes cálculos de geometria e de estética, prolife-
gastar da merreca, a bolsa de iniciação científica; não acei- ravam o espaço. Do limiar da porta se vê o fogão abaixo
tava dinheiro da Tia nem Antão lhe dava nada. Comprimia
5 - Cânticos. 6. 10; 5. 2.

66 67
da janelinha, na parede da esquerda. Ao centro, diante do alto dos prédios, as Chambres de Bonne. Se isso é fácil para
fogão, a mesa redonda de mármore se cerca de quatro ca- o sangue francês, para esse desnudo de pernas peludas, na-
deiras acolchoadas. Na parede adiante, uma pia reluzente tivo do baixo-ventre do mundo, é uma puta tortura. Ansel-
e sem louças sujas. À direita, numa parede que vinha até mo respira fundo para expelir o desequilíbrio provocado
a metade do compartimento, se recostavam o armário e a pela pequenez do lugar. Por que Maria veio morar aqui?
geladeira, e se abria a passagem para o quartinho. E nele, A questão o apertava de mãos dadas com as paredes. Falta

PROVA
unido à parede, a cabeceira da cama, a cômoda e a estante de dinheiro é que não é: o papai coronel lhe manda uma
se concatenavam no limiar entre os dois compartimentos. gorda quantia todo mês. Gosto pela austeridade? Pode ser,
Sobre a cômoda, o rádio relógio latejava o tempo e a tele- tempo demais sob a canga do calvinismo. Talvez, mas vá
visão palrava incessante. As emissões dos dois aparelhos com calma, cuide mais em arrancar os espinhos e se anes-
faziam parte da frugal mobília e se revezavam na ocupa- tesiar; você acabou de chegar e longa é a jornada, Anselmo.
ção do espaço, conforme o arbítrio de Maria. Os móveis Cuide, que a saudade da janela para o quintal e do cacarejo
estavam tão bem conectados que uma ínfima falha abriria das galinhas virá assombrá-lo mais tarde.
um buraco crescente, e interromperia o circuito do sistema — Você prefere acordar às cinco e fazer esse êxodo ru-
abrindo espaço para a insurreição da bolha do vazio advir ral todo santo dia num trem entupido de gente? Tome aqui
do fundo. Daí a precaução contra o silêncio, a sagacidade a chave, eu preciso de sua companhia! Não gosta da minha
de não deixá-lo entrar sorrateiramente naquele espaço. Daí companhia?
a funcionalidade do som da televisão e do rádio relógio, — Querida, tenho duas mães, senhoras de idade…
que se alternavam conforme a necessidade. Por um triz! Não seria besta de mencionar a saudade
O sistema eliminador de vazio, que ordenava o interior das galinhas.
e o exterior de Maria, também era útil para quem estivesse As paredes apertavam seu pescoço, mas os vapores de
deitado na cama. Com gestos curtos e simples, o tal pode- Maria dilatavam as paredes. O cheiro de sua pele mesclado
ria abrir as gavetas da cômoda, arrancar livros da estante, às fragrâncias da comida se fazia uma sofisticada gastrono-
contemplar o espelho pendurado ao lado da porta do ba- mia combinando tons de amargos, salgados e doces; ten-
nheiro e, sobretudo, a deusa enrolada numa toalha tempe- sões ultrassaborosas. Divindades são indissociáveis de seus
rada de aromas alucinógenos saindo do banho. lugares sagrados, orixás e seus terreiros.
Anselmo limpou os óculos com toalhas de papel do Os ritmos certeiros da rotina, um shabat, mecanismo
rolo guardado na primeira seção do armário de portas do amor que se tornava extensão dos nervos. Sexta-feira,
transparentes. Despiu-se no mesmo ímpeto com que es- às oito horas, o jantar. Ela faz a comida e ele lava a louça.
vaziou a mochila. Sorte! O livro da biblioteca se umedeceu Assistiam a um bom filme, faziam amor, dormiam abra-
só um pouquinho nas pontas, os apontamentos da mono- çados.
grafia estavam intactos. Ficou grato à água mais do que ao O problema é que Maria desfiava a tapeçaria insistindo
forro da mochila. O ventilador de coluna ao lado da cô- que Anselmo não a deixasse nunca sozinha, “pois onde já
moda é mesmo indispensável até nessas noites chuvosas; se viu um casal que só se encontra às sextas-feiras?” Retó-
seus sopros giratórios se repartiam entre as costas suadas rica, caricatura. Anselmo ficava até o sábado, até metade
e os papéis sobre a mesa. Remansado numa das cadeiras, do domingo e chegava a regressar todos os dias depois das
quedou o queixo sobre o peito e respirou como se corresse. aulas, fixado pelas pontiagudas súplicas. “Estava em boas
Por que Maria veio morar num cafofo desses? mãos” diziam a Avó e a Tia que, segundo Antão, tinham
Em Paris, por moda ou necessidade, ou amálgama dos uma “simpatia exagerada” por Maria. “Bonita, boa moça
dois, estudantes se amofinam em quartos milimétricos no e branquinha!”. Estavam maravilhadas com a primeira na-

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morada do rapaz, fato que invalidava as insinuações do pre pela culatra, na direção do rosto de maracujá murcho
pai. Está claro agora que o menino não é efeminado coi- da mulher, que levanta as mãos e abre o redondo da boca
síssima nenhuma? É cabra macho, sim senhor! E mesmo encarquilhando os vincos cheios de lágrimas, saliva e suor.
que fosse efeminado foi muito bem-educado e limpado de Um tiro – a campainha! –, a onça salta da cama e bate com
trejeitos afrescalhados – com sorte os vizinhos nem nota- as patas no trinco, porém hesita em abri-la: o cigarro entre
riam! Mas não, não, o menino é cabra macho, sim senhor! as garras queimará os olhos do esperado messias!

PROVA
Ó, Maria, bendita és tu entre as mulheres, e ainda por cima Abraça-o e o vestido de seda sobe desvelando as opu-
branca, bem branquinha, para branquear a família! Tudo lentas coxas pálidas. As mãos do Amado deslizam em seu
seria o paraíso se Anselmo deixasse do lado de fora seus dorso sem tatear os sintomas. Maria o conduz pela escu-
desconfortos, como um chapéu pendurado no cabide atrás ridão do corredor levando os olhos míopes grudados em
da porta, exatamente como faz o cristão com sua cabeça ao suas pernas feito lesmas.
entrar no templo de seu deus. Como se a eterna sonoridade da televisão não inferni-
Anselmo também não é inocente. Seus atrasos abala- zasse o suficiente – o fedor do cigarro impregna o aparta-
vam o edifício da rotina. Sexta-feira, sete e meia da noite, mento. Contra o assédio das paredes, o único revide dispo-
o relógio na parede observa o tormento de Maria. O mo- nível é se despir, e ir retirando a roupa devagar como numa
vimento dos ponteiros do impassível olho sem pálpebra dança japonesa, que adorna a truculenta necessidade de
esfrega nos seios suados um caco de nada. A terra é sem atenuar o calor. Nu, senta numa das cadeiras e apoia os
forma e vazia, há trevas sobre a face do abismo. Só a tele- cotovelos na mesa. Os dígitos vermelhos do rádio relógio
visão e o cigarro por luz. Deitada no abismo da cama, Ma- sobre a cômoda o queimam, 21: 05, está atrasado, prepare-
ria dá tragos sôfregos sugando as areias do tempo a fim de se. Em pé, imóvel, com os braços rígidos ao lado do corpo,
acelerar seu escoamento – ou morreria. Mas a ampulheta Maria observa as costas do Amado secando ao ventilador.
é virada outra vez, a fumaça vaza pelas narinas e o peito A música mórbida enxovalhada de gritos de “aleluia!” e
recupera o oco que lhe é próprio. Por onde Ele andará? “glória a Deus!” de fundo. “Tragam ele aqui para o altar!…
Tá amarrado! Ponha as mãos para trás!”… “Em nome de
Meu amado põe a mão Jesus, tá amarrado!”.
pela fenda da porta: Cão raivoso! A dança japonesa danou-se. Rosnando e
as entranhas me estremecem, rangendo os dentes, Anselmo assaltou a cama. Garrafas
minha alma, ouvindo-o, se esvai. vazias, embalagens de chocolate, potes de sorvete, latas
Ponho-me de pé de cerveja, papéis amassados, copos, xícaras, embalagens
para abrir ao meu amado: de iogurte, livros, uma coleção imunda se entesourava na
minhas mãos gotejam mirra, cama. “Qual é o teu nome? Fala pra mim, fala!” Levantou
meus dedos são mirra escorrendo devagarinho uma das pontas do edredom e parte do mon-
na maçaneta da fechadura. turo deslizou ao chão. Então, impaciente, puxou de supetão
Abro ao meu amado, um dos lençóis embolados, e um objeto metálico saltou no
mas o meu amado se foi… ar feito peixe-voador. “Meu nome é Legião porque somos
Procuro-o e não o encontro6. muitos! Ouviram isso, igreja? Esse aqui é o Legião, o mes-
mo do evangelho! O que você quer nesse corpo, Legião?”.
Na televisão uma mulher clama pelo Espírito Santo. No lugar de escorraçar Anselmo como faria um animal se
Maria empunha o controle remoto, revólver de tiro sem- outro metesse o bedelho em seu ninho, Maria se empedra.
É que o brilho da cigarreira de prata, o objeto metálico que
6 - Cânticos. 5. 4 – 6.

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pulou de dentro dos lençóis, cortou-lhe o ventre pelo meio. guém com seus deveres não desperdiçaria tempo e energia
Suas vísceras caíram no chão, expostas, suas memórias. com passatempos, Literatura. Embora às oito da noite des-
“Em nome de Jesus, sai capeta! Sai todo Exu, sai todo Zé se umas lambidas no Euclides da Cunha para aliviar a esta-
Pelintra, sai todo Tranca Rua, sai agora que esse corpo não fa mental, só por amor à filha triscava em livros de poesia.
te pertence!”. Anselmo ainda fuça nos lençóis grunhindo: Entortava-se todo para acompanhá-la e presentear como
“onde está esse maldito controle remoto?” convém. E agora vem isso de Teologia! Era mais fácil iden-

PROVA
Suas memórias: a cigarreira de prata morava na mesa tificar os clássicos, ler as orelhas dos livros, tratando-se de
lateral à destra da poltrona do pai, na sala de estar. Todos romances e versos. No começo do mês trouxe à filha um
os dias, por volta das oito da noite, Coronel Cláudio senta- livro, sucesso de vendas, chamado Uma vida com propósito.
va em seu trono, fumava uns cigarros, tomava chimarrão, — Papai, esse livro mais parece um manual de instru-
e continuava a leitura de um romance. O da vez era Os Ser- ção.
tões, de Euclides da Cunha, que estava sobre a mesa havia No mês seguinte, dois “best-sellers”, A Cabana e Deixa-
dois anos. dos para trás, pois talvez agrade essa mescla de teologia e
Por força da equilibração própria dos lares, os filhos vi- literatura.
ram de ponta-cabeça a ordem dos pais. Maria é apaixonada — Papai, isso nem é Literatura nem é Teologia, são li-
por Literatura e Poesia desde a infância. Evento raro é o pai vrecos estilisticamente repulsivos e teologicamente ruins,
aplaudir as piruetas da filha, e se colocar como trampolim. enlatados…
Todo início de mês, Cláudio presenteava Maria com livros, A filha teve sua “fome de Deus” despertada pela leitura
romance e poesia. A filha retribuía recitando Pablo Neruda de Irmãos Karamazov, presente do pai. Tal como no Encon-
de cor e arrancando-lhe lágrimas, com apenas dez anos de tro das Águas dois rios se roçam, um saturado de substra-
idade. Lá pelos quinze, “estourou uma revolução” e a me- tos orgânicos, o Rio Negro, e outro de substratos minerais,
nina fez profissão de fé na Igreja Presbiteriana, onde a mãe o Rio Solimões, assim o espírito de Maria é feito de impul-
fora batizada e velada. A falecida ainda amamentava a fé sos religiosos e estéticos; águas de cores diferentes que se
da casa. Cláudio ainda se dizia presbiteriano e herdeiro da beijam. Mas como Cláudio atentaria para o dégradé entre
Reforma calvinista, mensalmente enviava sua contribuição esses rios, essas delicadezas do espírito?
financeira à igreja, onde tinha alguns colegas presbíteros Cláudio vem de uma dinastia de oficiais e fazendeiros
que simpatizavam com a Maçonaria, da qual fazia parte, do Rio Grande do Sul, combatentes da Revolução Farrou-
tradição da família. Mas ficou no túmulo da esposa sua as- pilha que remontavam aos imigrantes dos Açores. Tinha
siduidade aos cultos de domingo. no sangue o caráter excessivamente prático. Cultivava uma
É a inabilidade dos militares brasileiros no manuseio ascese positivista, uma religião dos atos e dos fatos preca-
do termo chamar de “revolução” as mudanças de Maria. A vida contra a introspecção e o devaneio. Austeridade evi-
única alteração digna de nota foi o recente interesse pelos dente em seu modo de falar lacônico, com ideias claras,
empoeirados tomos que mofavam na biblioteca da Igre- simples e bem concatenadas, depurado das inoperantes
ja, Teologia. Já ia pelo segundo volume das Institutas de pausas para pensar sonorizadas por fonemas como “ahn,
Calvino, e lia pela terceira vez as Confissões de Agostinho. hum”, e glosas estúpidas como “aí” e “né” e outros cacoetes
O novo interesse da menina empurrava os romances e os assim. Como os dois irmãos mais velhos, aos onze anos
livros de poesia a um lugar secundário, vizinho ao Eucli- ingressou no Colégio Militar de Porto Alegre, onde nas-
des da Cunha na mesa lateral do pai. Como acompanhá-la ceu. Desde então usa uniformes cobertos de medalhas e
agora? Com que livros presentear no início desse mês? condecorações. Oficial do Exército, ainda jovem ingressou
Cláudio sacrificava o cérebro a coisas muito sérias. Al- no corpo docente da Escola Superior de Guerra, no Rio de

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Janeiro. Era respeitado nas altas esferas por seus artigos e nha sua unidade garantida por um Papa, esconde debaixo
suas contribuições para a melhoria dos manuais de campa- da casula um prostíbulo de santos regionais, promiscuida-
nha. Progrediu suavemente de patente. de sincrética abominável. Veja só a umbanda e agora mais
Todavia, só foi encontrar a felicidade em Manaus, onde essa epidemia de cultos em torno da ayahuasca, tudo com
entregou-se de corpo e alma às atividades do Centro de o dedo do catolicismo!
Instrução de Guerra na Selva, e conheceu uma bela uni- Cláudio simpatizava com o fervor religioso da filha.

PROVA
versitária de ascendência indígena, que viria a ser a mãe de Como qualquer adulto, alienado do mundo da criança, es-
Maria. Dedicar-se ao treinamento de novos combatentes piava a mente da filha pelo olho mágico dos contos de fa-
de selva lhe garantiu o máximo prazer da carreira militar. das que ela lia; as orelhas dos livros que lhe dava todo mês.
Autodidata excepcional, aprendeu alemão, francês, espa- Simpatizava com os incompreensíveis livros de teologia,
nhol e inglês usando de métodos próprios, cuja regra áurea eram funcionais e eficientes; preservavam a filha na obedi-
era ter em vista a utilidade de um saber e sua necessidade ência a uma ordem superior. Encantava-se ao vê-la sentada
inadiável. O espanhol e o inglês serviam às atividades que à escrivaninha devorando as Institutas, como quem se ex-
desenvolvia na Amazônia, das quais pouco sabemos. A ex- tasia com as falas poéticas de uma criança. Muito embora
pressão quadrada de seu rosto pálido, com os olhos verdes essas “falas poéticas” sejam tão somente substratos do au-
comprimidos pelas sobrancelhas ruivas e espessas, dava a tismo próprio do psiquismo infantil, a ser superado pelo
entender de imediato a dureza de seu espírito. Não obstan- desenvolvimento da inteligência, se a criança for normal
te, o jeito da filha o amolecia; através dela recebia o amor como esperamos. Mas enquanto a idade adulta não chega,
da esposa falecida. é fascinante ver Maria sentada à escrivaninha nutrindo a
Esse surto religioso, com certeza, vinha da mãe, cujo alma com fantasias.
sangue fervilhava de personagens lendários e mitologias. Ela não trancava a porta do quarto, mas Cláudio ficava
A mãe de Maria se converteu ao cristianismo logo que in- sempre do lado de fora. Ele dobrava os joelhos e se colo-
gressou na universidade, por obra da Cruzada Estudantil cava à altura da filha quando ia lhe falar algo, conforme a
para Cristo. Mas não superou o autismo primitivo que lhe boa técnica pedagógica, ainda assim permanecia do lado
era próprio, a infantilidade do pensamento selvagem. Não de fora. É que seu espírito mecânico, cego e ferrenho, re-
há contradição entre o paganismo indígena e o cristianis- duzia os milagres naturais à mente da criança a binarida-
mo; os dois estão nivelados como infantilidade humana des como o “sim” e o “não”. Quando Maria tinha dez anos,
dos períodos pré-científicos. Evidentemente o cristianismo Cláudio se pôs de cócoras:
tem elementos superiores; sua superestrutura organizada — Filha, você quer estudar no Colégio Militar?
com hierarquia e disciplina, racionalidade útil à forma- — Não, papai, eu não quero usar aquele uniforme hor-
ção da cidadania. Porém, sua infraestrutura mitológica, as roroso não, e também não gosto de marchar não.
fantasias e crenças, os ritos místicos como oração, jejum e Matriculou-a então num colégio de freiras.
adorações entusiásticas – exatamente as superfluidades às — Você está gostando do colégio, filha?
quais os incultos mais se apegam – são tão infantis quanto — Sim, papai. Mas as pinturas e os santos da capela
o pensamento selvagem. O protestantismo está acima do estão precisando de restauração, e a roupa das madres é
catolicismo por ser autenticamente monoteísta, logo, mais muito feia.
apurado pela Razão, mais limpo, mais branco. O monote- Aferrando-se aos fatos e ao aspecto prático das coisas,
ísmo, como se sabe, conduz à fé no Estado, colabora para embotava-se para a genialidade das respostas da filha.
a unidade nacional e para a disciplina exigida pela Razão Ninguém soube, mas Cláudio teve um “início de de-
universal. Embora o catolicismo se diga monoteísta e te- pressão”, segundo a opinião de um tenente do quadro de

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saúde, seu amigo. cadela e já está lá em cima no olho da árvore! Para onde?
— Depressão? É hora de piada? E por que o Nordeste? Fortaleza, Ceará? Não há escolas
— Amigo, você anda introspectivo, devaneando e até teológicas no Sul? Logo no Ceará, terra de cabeças planas?
gaguejando! Tem certeza disso, filha? Não é desperdício? Nada lhe falta
A moléstia se instalou quando a filha tinha dezenove aqui! Não prefere estudar Direito, Medicina, Engenharia.
anos. O Conselho da Primeira Igreja Presbiteriana de Ma- No Exterior, no Sul? Mando você para a casa dos tios…

PROVA
naus foi unânime na decisão: Maria seria a nova seminaris- Ah… Descobriu o que quer? Entendo, entendo… Sim,
ta da congregação, receberia uma bolsa para se bacharelar sim, sim, claro, tem razão… Sim, sim, sim, é verdade…
em Teologia. Há anos ela vinha fazendo um excelente tra- Sim, sim, sim… Bem, se essa é “sua missão”, se é essa “sua
balho educacional na classe de preparação para a profis- vocação”, se os Céus assim ordenam, quem sou eu para me
são de fé e na Escola Bíblica Dominical. Explanava como intrometer entre uma alma e o seu Deus?… A moral da
ninguém os Cinco Pontos Calvinistas e o Catecismo menor obediência que cultivara na filha encontrou uma autorida-
de Westminster. Uma jovem brilhante, sem dúvida, com de superior ao pai à qual se resignar. O que restava a fazer
soberbo futuro ministerial. Recentemente, a retórica dos senão abençoar as piruetas da filha, como sempre?
presbíteros mais jovens enfatizava a decisão do sínodo, até Ignoro as atividades do Coronel Cláudio na Amazônia,
então desprezada, pela ordenação de mulheres. “Ecclesia e detalhes como seu entusiasmo pela integração do territó-
Reformata et Semper Reformanda est!” – Igreja Reformada rio nacional. É preciso habilidade para destrinchar a mecâ-
sempre se reformando! Repetia-se insistentemente esse cli- nica psicológica que harmoniza o pai amoroso ao militar
chê. E ainda mais agora que a Teologia feminista se popu- capaz de dizimar uma população indígena para garantir os
lariza na América Latina. tais “Objetivos Nacionais Permanentes”. Aliás, o que Cláu-
O remorso carcomeu Cláudio por um ano inteiro. Por dio mais gostava no livro Os Sertões era a ideia de que as
que não persuadiu a filha a ingressar logo na Universidade, raças inferiores serão fatalmente exterminadas pelo Pro-
como seus amigos aconselharam? Por que não usou de au- gresso. Como esse sentimento se combina à piedade cris-
toridade? Amolecera, acomodara-se. Via a filha debruçada tã? É simples, basta consultar o escrito de Lutero Contra as
nos livros, distante das outras jovens da Vila e ignorando o Hordas Salteadoras e Assassinas dos Camponeses, de 1525.
que elas amavam; namorados, festas pela madrugada, álco- E o que direi de seu casório com uma Munduruku combi-
ol, drogas etc. Queria mantê-la sentada à escrivaninha, em nado à sua ordem de cortar as mãos de “índios insolentes”
seu quarto; uma hora ela descobrirá por si mesma o que como exemplo? Direi que todos podem ser bicho de sete
fazer, é jovem, tem tempo. É inteligente, nasceu sabendo cabeças. O que devo mesmo explicar agora é por que Maria
de tudo, arrancava dos livros o que precisava, sozinha – é furtou a cigarreira do pai.
o sangue, puxou ao pai! Os amigos da Cruzada de Milita- Cláudio casou com uma garota da idade da filha. De-
res Espíritas, admirados da eloquência de Pablo Neruda na pois disso, o ritual de sentar em sua poltrona, às oito da
voz da menina, especulavam que talvez Maria fosse reen- noite, com seus objetos sagrados sobre a mesa lateral, tor-
carnação de algum escritor, e “tinha uma missão”. Tem sim, nou-se uma zona de tolerância. A nova esposa decretou o
amigos, fazer o pai feliz! Agora fique aí, Cláudio, pague o extermínio da memória da antiga, e no codex a ser atirado
preço de não ter empregado métodos racionais e eficien- na fogueira incluiu a “filha que não era sua” – não é assim
tes na criação da filha! Veja o que é deixar o coração no também o tal do Progresso?
comando! Oh, foi o tempo que desembestou veloz. Nesta A secretária veio à sala de estudos avisar do telefone-
Vila Militar à sombra da Amazônia, a vida é lerda feito um ma do pai. Maria deixou seus rascunhos sobre a mesa e
bicho-preguiça que cega a gente com seu butô; uma pis- foi atender na secretaria. Redigia as cinco páginas de sua

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defesa havia alguns dias. Já compareceu a duas assembleias Olhe aqui o ofício que nos foi enviado pelo Conselho da
com a direção do Seminário, nada ficou decidido. Tinha Primeira Igreja Presbiteriana de Manaus, agora no início
esperança de tudo não passar de um mal-entendido. Aque- de agosto. Ele revoga sua bolsa alegando que você tem de-
las páginas, as cinco pedras de Davi, trovoarão e tudo se turpado a sã doutrina e “deixado satanás entrar no cora-
esclarecerá. Sua defesa amansará a tempestade, e as calú- ção”. É claro que sabemos que satanás não passa de uma
nias e ameaças de expulsão se dissiparão. Decidira não ir casca mitológica que abriga verdades morais, mas o que

PROVA
a Manaus no recesso de julho, queria usar da biblioteca e conta é a intenção… Não, ao menos nesse caso, o proble-
empenhar-se no trabalho de conclusão do curso. Além dis- ma não é dinheiro; se você pode custear os próprios estu-
so, nas férias passadas teve um pequeno desentendimento dos, o melhor é que conclua o curso em outra instituição
com alguns presbíteros. “Herética”, “falastrona”, “histérica”, como o Seminário da Prainha. O regulamento é claro: se-
murmuraram depois de seu sermão de Santa Ceia. “Essa é minarista excluído não pode mais fazer parte da casa. Sim,
a filha do Coronel Cláudio?” Telefonara ao Reverendo soli- sim, você tem razão, nossas regras são um híbrido de laico
citando compreensão e licença dos deveres de seminarista e religioso, mas convenhamos: essa é a marca de todas as
da Congregação. Se foram seus sopros no púlpito, nas casas instituições educativas do país. Você tem um mês para dei-
e nos ouvidos dos acamados, que produziram essas venta- xar o quarto no Casarão, Maria. Que Deus a abençoe.
nias – são bons ventos! Se de fato comemos do fruto da lín- Como é, Papai? Casar amanhã? E por que o aviso só
gua, vale ser otimista. Denunciar a chacina de camponeses agora? Sim, entendo. Tantos preparativos que se esqueceu
e indígenas. Recordar o assassinato dos povos originários de sua única filha, claro, claro. Oh, pois me desculpe, pai,
amazonenses, desde o princípio. Repassar a construção da não vou comparecer. Não, não, o problema não é dinhei-
Transamazônica, mencionar o atual massacre, da semana ro. Pai, nem sempre o dinheiro resolve. Não se preocupe.
passada, enfatizar a ordem social pecaminosa que produz Meus parabéns. Seja feliz!
esses eventos, era o mínimo a fazer! Afinal, beber do cálice Um mês depois, Maria regressa à Casa paterna. O pai
de Cristo é comungar com todos os crucificados, massa- durava atlético e bem cuidado. Depois de tanto tempo viú-
crados pelos poderosos. Da perspectiva do Espírito Santo, vo “merecia ser feliz”. Frase esquisita, tudo é sorteio, a ideia
índios, brancos e pretos, são palmas da mesma palmeira, de felicidade é inadequada, valor criado por homens im-
unidos querendo ou não. Mas as etnias crucificadas, embo- pregnado de teleologia, “fim último da vida”; ficção ardi-
ra chamadas de pagãs e idólatras, estão mais próximas do losa, uma arapuca. Mas quando o queixo áspero do pai lhe
Cristo do que nós, sãos e salvos dentro dos templos – assim roça a testa, ela sussurra, “o senhor merece ser feliz”.
falou Maria no último culto. Sussurros ao ouvido, só assim. A Rainha louca não
Maria, não há nada de réprobo em sua conduta, em despregava, não deixava pai e filha sozinhos nem por um
seus hábitos e em sua dedicação intelectual bem conhecida minuto. O que é isso, o pai de eunuco no palácio? A Rai-
por nós. Mas sejamos honestos aqui – e o que mesmo isso nha louca ronronava e o pai a lambia? Fofocas de vizinhos
importa? Manchas na conduta podem ser acobertadas. O descem a ribanceira. Meus pêsames, Maria, a profissão de
problema está na língua, esse órgão indomável que trans- sua madrasta. Calem-se, que estupidez dourar de virtude
borda o que o coração esconde! Maria, não se esconde uma a viuvez e o luto! A solidão e a falta de calor estão na lis-
vela acesa debaixo da cama – a casa pega fogo! Você tem ta das fraquezas e não das virtudes! Profissão: dançarina
razão, não há máculas em sua conduta, mas atente: a man- de cabaré, e o que tem? O pai se entregava a celebrações
cha está no que você tem tagarelado sobre os telhados, no noturnas em lugares impróprios? Grande surpresa! O ho-
que tem escrito e pregado nos sermões de domingo. O que mem é saudável e forte como um touro, e vive dos próprios
você faz em segredo não é problema nosso mas de Deus. recursos. Só para os faltosos de vigor e imprudentes esses

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excessos estão proibidos. Oh, querida, que desonra à sua sea? Certos fatos, de imediato, aparecem criminosos ao
santa mãe!, dizia revirando os olhos a mãe de um oficial entendimento. Depois de um exame, o entendimento os
do quarteirão da frente. Maria empurra a cadeira de rodas absolve – nada de mais, bobagem. As vísceras se revol-
da senhora no passeio da tarde, como antigamente, e cons- tam com a decisão do entendimento, agarram de volta os
tata a poda maldosa nas árvores da Vila, algumas arranca- tais fatos para linchá-los ou reabrir o processo. Hesitantes,
das por mandíbulas de um trator estacionado ao lado. O puxados em direções opostas por cavalos possantes, que

PROVA
cinzento floresce e espezinha o verdejante. É bom ouvir a fazer? Examinar com mais rigor os fatos até encontrar a
voz dessa senhora, e recordar suas conversas com a mãe na mácula que justifique a revolta das vísceras? Ou inspecio-
sala, as falas misturadas. Não mudou muito seu rosto es- nar os resmungos da sensibilidade, se não passam de birra?
curo com traços indígenas, menos ainda suas convicções, Maria se esforçava no segundo procedimento. Não obstan-
que não acompanhavam as reformas na Vila Militar. Maria te – a náusea!
empurra a cadeira de rodas pelas novas calçadas, passando Regressou à Casa paterna para ficar. Jurou que só po-
por cima da pregação indignada da senhora, cobiçosa de ria outra vez os pés numa igreja se fosse para pisoteá-la.
varrer a corrupção do mundo. Nessa idade e tão ingênua, Por que não escutou o pai e foi estudar em Porto Alegre,
soubesse ela a qualidade dos empoleirados nos púlpitos. na casa do Tio? Regressou como o Pródigo, esgotada, sem
Maria escuta mansa os trovões da senhora recordando planos, sem fé. Só queria repousar, respirar o fantasma da
suas lágrimas no dia da despedida rumo ao Seminário, mãe misturado ao cheiro do pai, à sombra das grandes
anos atrás. Vai com Deus, minha filha, cumpra sua missão, árvores e dos muros baixos da Vila Militar onde nasceu.
e não se esqueça de mim, avó postiça! Deus estaria naquela catedral, e apenas.
A mesma idade, a mesma cor nos olhos e nos cachos, as Mas a Rainha louca havia se apoderado do principado.
mesmas medidas de Maria. Que mal há nisso? Não obstan- A mudança das cores das paredes e a nova mobília expres-
te – a náusea! Como negar tamanha moléstia provocada savam sua soberania. Os novos caracteres da casa eram
por fatos tão irrisórios? O coração se afogando no mar en- arames farpados demarcando a propriedade e ferindo os
capelado da náusea, como ancorá-lo? Como domar essas dedos. Em uma semana, ajuntando os signos, a reforma na
vagas gigantescas com rédeas curtas? Não se versou o sufi- casa e na conduta do pai, Maria desvendou o enigma – não
ciente na situação histórica, social e política das mulheres? era bem-vinda ali. E por quê? Sua presença fazia da nova
Não pôs a Moral dos Homens debaixo dos calcanhares? esposa um porco-espinho. “É a minha enxaqueca de sem-
Sua monografia de conclusão de curso era um ensaio que pre, por favor, me deixe. Vá dormir com sua querida filha,
relacionava duas variáveis: a) A “percepção dos aspectos vá!”. Com a tática de Lisístrata, a Rainha louca cavalgava
femininos da divindade”; b) A “simpatia social pelo femi- a vontade do Coronel. Com mãos, pernas e boca, manan-
nino”. A hipótese é a de que os graus da primeira variável ciais de gozo estancados, chantageava. E Cláudio começou
são diretamente proporcionais aos graus da segunda va- a gaguejar.
riável. O ódio à imagem de uma mulher amamentando, a “Pai, basta! Retorno amanhã ao Ceará”. Coronel Cláu-
criminalização do adultério feminino, e o índice alarmante dio alargou os dois buracos da cara. A agitação espalhafa-
de feminicídios no Brasil podem ser abordados por esse tosa de suas mãos e pernas era notória, a língua limpava
ponto de vista teológico? Essa era sua questão fundamen- continuamente os lábios ressequidos que tinham um fio
tal, teologia prática, experimental, influenciada pelo psi- vermelho beirando o bigode ruivo. Seu modo no falar, la-
cólogo assassinado por uma tropa de elite do exército de cônico e lógico, se destrambelhava na medida em que o
El Salvador em 1989, Ignacio Martín-Baró. A excomunhão rosto branco se abrasava. “Ahn?. Você acha mesmo, filha?
do Seminário sabotou o trabalho, mas isso explica a náu- Bem, hum… Certo… Tá…” De pronto entregou um talão

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de cheque em branco à filha. Aliviado, vergonhosamente lhe vaza dos olhos. Caia!
aliviado. Os lábios arenosos tremiam por balbuciar algo Desvirginar uma casa pode ser difícil. Nascer para den-
que a cabeça não soltava. Como olhar Maria nos olhos? tro, afinal, pode ser tão duro quanto nascer para fora. O es-
Girava a cabeça de um lado para o outro, pois talvez a Rai- forço de renascer para dentro esbarra nos cacos de outros
nha louca o bisbilhotasse atenta às suas declarações à filha. lares fincados na pele – estreito é o caminho e apertada é a
Mas hoje, ah!, finalmente, as portas do paraíso se abrirão! porta da salvação! É mil vezes mais descomplicado para os

PROVA
Como um Sansão ele afastaria as duas colunas do templo, nus e desterrados, para quem um simplório barraco pode
o céu desabaria, e ele morreria de gozo. ser o abraço de Deus encarnado em templo. Oh, que o Ar-
Na última madrugada na casa do pai, Maria deambulou gemiro de João Ubaldo em Vila Real, para quem o teto ale-
pelos compartimentos farejando resquícios, odores, cores, gra tão somente pelo seu ofício de cobrir, viesse lhe fazer
formas e objetos, ânforas do passado. Proust lhe veio à ca- companhia na noite de inauguração do apartamento, que
beça junto com todos os livros da estante que ficava bem embora menor que o quarto na casa do pai, impõe os as-
nessa parede aqui. Arrastava o lençol, enorme língua can- sombros de uma catedral gótica. O deserto de dentro pode
sada, e alisava os dedos nas coisas feito borboleta extraindo ser tão imenso quanto o de fora.
néctar. Asas amassadas e caídas como o pano rastejante. A Maria senta na cama e retira da mala a cigarreira de
reforma da casa dividiu a história e afundou uma Atlântida prata, presente de casamento de um general, recordava.
de memórias. O cenário mudo não partejava lembranças; Desenraizada da comunhão de objetos à destra do trono
o cheiro de tinta fresca não perfumava, os móveis luxuo- do pai, a cigarreira emudecia. Foi preciso violá-la para ex-
sos não ejaculavam centelhas divinas. Só o altar do pai se torquir segredos, abri-la e encontrar três cigarros de resto.
impunha, ilha no dilúvio universal. Na sala de estar, a pol- Nessa escuridão medonha, por que não acender um cigar-
trona e a mesa lateral flutuavam no oceano do nada. Maria ro e conjurar os espíritos que a socorram, que auxiliem na
se aproximou da orgia dos objetos sobre o altar, o ícone, defloração da nova casa? Põe o cigarro do pai entre lábios
os incensos, o livro. Tomou nas mãos o porta-retratos de salgados de lágrimas, caminha até a cozinha e o acende na
ferro esculpido com adornos minimalistas. Sob o efeito da boca do fogão, que comprou no bazar dos angolanos, ali
sagrada imagem da mãe com um bebê no colo, chorou. perto, o moço simpático veio deixar de graça. Quase tor-
O dia raiou com dificuldade. As malas feitas fizeram ra os cílios curvando-se sobre a chama. Prometeu tombou
saltar as enjoativas delicadezas das despedidas. “Volte do Olimpo na cozinha! Tanta vez a brasa do cigarro é a
sempre, boa viagem, a casa é sua, venha nos visitar quando única luz no fim do túnel – e basta! Maria surpreendeu-se
quiser.” Maria, já que você se vai para o quinto dos infernos de já saber tragar. O saboroso gole de fumaça inundou a
agora, receba aqui minha cortesia, recompensa por nos garganta e fartou o ventre de prazeres. Quanto de alívio
deixar em paz. Beijinhos nas faces frias. Você veio cedo e já se escondia naquela fina haste! A nuvem divina vaza em
vai tarde, Maria! Pai, volto para o seu aniversário. Ah, que- gomos dos lábios e das narinas, e escorre pelo rosto em
ridinha, em fevereiro viajaremos, mas venha com a gente, deliciosas carícias.
traga o namoradinho, vamos adorar, não é querido? Não Furtou a cigarreira para ter uma recordação do pai? A
tenho namorado, sua besta! Beijinhos nas faces frias. cena originária da mão malfeitora desplantando o obje-
O concreto e o cinza da Vila Militar se arvoram univer- to lhe parecia tão absurda quanto uma possessão. Furtou
sais, desertificam a vida, aplainam os picos, soterram os a cigarreira para vingar-se do pai? O ponto de apoio da
vales e esmagam as papilas da língua. Pela janela do Táxi alavanca, sua mão anárquica, afundou-se no mangue da
em direção ao Aeroporto, Maria lança mau-olhado à cida- memória. O cenário da noite de despedida ressurgia como
de e ao mundo. Que o avião não caia com o maremoto que um velório presenciado na infância, sonho embaçado e

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ruim. O motivo do furto furtava-se, deslocava-se na linha fogo arderá continuamente sobre o altar e não se apagará”.
do tempo – para onde? A linha se embolava. Se não estava Quando Anselmo chegava depois das oito da noite, quei-
acolá nem ali, a única pista era o aqui! Por que furtou a mava as narinas no fedor do cigarro, e perguntava se ela
cigarreira? Simples – para agarrar-se ao cigarro, para gozar havia fumado. Maria não mentia:
esse delicioso trago, para exorcizar a escuridão devorado- — Fumei só um.
ra, para que a nuvem de Deus entrasse em sua nova casa! Anselmo pegou o controle remoto e desligou a televisão

PROVA
Na noite de despedida abriu-se o buraco negro da vida ignorando o barulho da cigarreira caindo no chão. Maria
com seus dentes cariados de antimatéria. A fumaça do ci- reagiu de imediato: bateu a mão no interruptor acenden-
garro paira sobre esse abismo, espírito de Deus sobre a face do a luz como se matasse um mosquito. Isso para apinhar
das águas, aroma do Pai. Com os dedos agarrados ao cigar- olhares pesados sobre esses ombros bem repousados aí no
ro, não cairia no abismo. encosto da cadeira.
Além disso, o cigarro se sustenta na boca por si mesmo. — Não fiz o jantar, vamos comer aquele sanduíche com
O alento físico que concedia bastava para fundamentá-lo pão árabe que você gosta, na Praça da Gentilândia.
no organismo. O gole de fumaça produzia ramificações O pescoço de Anselmo reclinou como um caule fino
profundas nos brônquios e no estômago, vegetação híbri- pisoteado. As pernas peludas que batiam feito asas de mor-
da, orgânica e abstrata, como bromélias entranhadas em cego gordo congelaram-se.
troncos de árvore. É claro que a cigarreira podia funcionar — Querida, não tenho fome…
como recordação do pai. Mas com toda certeza a cigarreira — Mas eu estou morrendo de fome!
era também uma coisa em si, com metabolismo próprio e Retirou os óculos, espremeu os olhos com o indicador
evolução autônoma. E essa coisa viva que era a cigarrei- e o polegar, respirou como se voasse. Maria o chicoteava
ra cavalgava a fumaça do cigarro, que por sua vez crescia com o fedor dos cigarros e com a suspensão do jantar.
pelos enxertos das coisas que incensava. É claro que a ci-
garreira podia valer como recordação do pai, mas não se Mea culpa, mea maxima culpa!
reduzia a isso. A recordação do pai era como o cotoco do
cigarro que nunca virava brasa, logo, não participava do Quem mandou se atrasar? Vestiu a cueca e a calça com
circuito entre a cigarreira, a fumaça do cigarro e as coisas. presteza. Ao dar o último laço no cadarço, mãos frias lhe
A recordação do pai era como um resto, soluto no fundo afagam as costas.
do copo. — Não precisamos ir se você não quiser…
Maria fumou o primeiro cigarro, e antes de acabá-lo A voz veludosa acompanhava as mãos friorentas. Veio
emendou nele o segundo e depois o terceiro, fundindo as um déjà vu, adivinhação de não sei o que difícil de discer-
hastes pela brasa, fazendo delas um só cigarro. E por toda nir por ser do pântano do presente. O peito sobre o joelho
a vida Maria fumará um só cigarro. Interrompia-o eventu- como o Newton pintado por William Blake, mas sem ter à
almente, fatores externos como placas “é proibido fumar”, disposição um tempo interminável para o uso do compas-
a chegada de Anselmo, acidentes. Maria não deixava o ci- so. Maria contava os minutos da amarração de cadarços.
garro chegar à parte seca e sem sabor, o cotoco, o soluto no 21:15. Encurvado pelo laço do cadarço no indicador e pe-
fundo do copo – o fundo é a vala horrenda donde emerge los elefantes do olhar de Maria nas costas, lamenta:
a bolha do vazio devorador! Por toda a vida fumará um só
cigarro cultivado pela fusão de uma haste a outra ad infi- Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa.
nitum. Um só cigarro a ser produzido e consumido num Ideo precor beatam Mariam semper Virginem…
mesmo processo indiviso, num mesmo ato infinito. “O

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Vamos lá, engula a seco o ouriço dessa intuição que
quem tem fome tem pressa! Está vendo esse relógio aí na
parede, olho sem pálpebra? Ele tem torturado Maria desde
o ocaso! Vamos, corra! Amarre o cadarço que não é hora
de visões! Dê o laço e regresse às relações causais, à roda
viva do samsara – quem tem fome tem pressa! 21:20.

PROVA
Roda da fortuna
O contraste entre a brisa na Praça da Gentilândia e o ar
fechado do cafofo de Maria maltratam as narinas de An-
selmo. Quando ela abriu a porta, o pó de vidro rasgou-lhe
as mucosas nasais. Tomou a frente e enfiou as fuças nos
arames farpados, seguiu o fio fedorento. Agachou-se e en-
fiou a cabeça debaixo da cama, viu um pires de louça abar-
rotado de guimbas e cinzas – vela acesa debaixo da cama.
Transportou para a privada esse penico de merda. Despe-
jou a garrafa inteira de desinfetante e deu descarga uma,
duas, três vezes. No centro do pires tinha uma mancha
asquerosa, atirou-o no cesto feito papel higiênico usado,
com o delírio de nunca mais ver esse objeto de nome plural
deslocado de sua função original. Pela vidraça transparen-
te do armário se pode ver numa seção um conjunto deles,
e amanhã mesmo Maria elegerá outro pires para vaso de
desonra.
Derramava a garrafa de desinfetante até a última gota,
Maria atravessou a via estreita entre a parede e a privada
manchando-lhe a camisa com o suor dos seios. Abanou-se
com as mãos e resmungou até o chuveiro amainar o incên-
dio na carne, e os resmungos virarem gemidos, e as mãos
espumosas começarem seu trabalho. Venha aqui, Ansel-
mo! Venha acalmar a fome dessas labaredas que nem os
oceanos aplacam! Venha, tire a roupa! O fogo arderá con-
tinuamente sobre o altar e não se apagará. Ensurdecendo
para os comandos telepáticos de Maria, Anselmo retira-se

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deixando-a livre em sua alegria solitária. As mãos cheias PREENCHER.
de espuma trabalhavam. A porta bateu furiosa às suas cos- Essa frase em letras grandes, no verso da capa, foi a úni-
tas – nunca que ele romperia a ortodoxia de seus hábitos, ca que Anselmo conseguiu ler.
deveria tê-lo agarrado e o arrastado com roupa e tudo, só — Se Deus preenchesse meus vazios eu morreria…
assim, só assim. Não, não, que estava exausta. Reclinou o Nesse minuto a porta do banheiro se abriu e a glória de
pescoço sob a torrente e assistiu aos cabelos afilarem-se até Maria encheu a casa. O nariz de Anselmo imediatamente

PROVA
os pés, até o chão, até o ralo, até o fundo, até o buraco da se desentupiu! Seus olhos alimpados grudaram nos qua-
vida. dris carnudos e úmidos feito carrapatos. Maria esfregou a
Do outro lado da parede, Anselmo deu um nó nas qua- toalha nos cabelos assanhando perfumes e exorcizando de
tro pontas do edredom embarrigando o monturo numa vez o fedor de cigarro. Com um gesto furtivo de serpen-
trouxa. As garrafas de iogurte, as embalagens de chocolate, te se enroscando num tronco de árvore, embrulhou-se na
as latinhas de cerveja etc. Salvou os livros metendo-os de toalha, ciciou por entre os dentes como se picasse, e num
volta na estante. Deixou a trouxa no chão, ao pé da cama, bote arrebatou o caderno das mãos de Anselmo.
esticou um lençol limpo e largou-se nele. Despiu-se deita- — Entendes o que lês?
do mesmo, exausto. O som do chuveiro afagava o cansaço, “Acha pouco violar meu ninho e quer agora bisbilho-
rara música de fundo que locupletava a higiene do quarto tar meus segredos?”, Maria quis gritar isso e outras verda-
agora restaurada. Para afagar mais o cansaço, meteu os de- des, mas guardou o veneno. Pegou o pente que estava em
dos na estante e tomou um volume qualquer; o tomo I das cima da cômoda, e se pôr diante do espelho. Serpente e
Institutas da Religião Cristã, de João Calvino. Enrugou a ao mesmo tempo deusa espezinhando a serpente, ela tem
testa e o enfiou de volta. Sacou dessa vez um caderno de os olhos chamejantes e a boca curva em foice. Uma Têmis
capa preta e lisa. Fungava e espremia os olhos. A porta do sem vendas nos olhos, muito pelo contrário, com um espe-
banheiro fechada prendia o olor de desinfetante e deixava lho diante de si.
a fedentina do cigarro campear no quarto. Respirava pela — Pascal fala aí da incompletude do ser humano, essa
boca e esfregava o nariz com o verso da mesma mão que lacuna que nós temos na alma, esse buraco que é do tama-
passava as páginas, o caderno aberto sobre o peito e a ca- nho de Deus, e que só mesmo Ele pode preencher…
beça no travesseiro. Não, a higiene do quarto não foi res- Maria discursa como um metal que soa, de costas para
taurada como convém. Irritados pelo fantasma do cigarro, Anselmo, diante do espelho, com uma voz monótona e in-
os olhos lacrimejantes não conseguiam ler as letrinhas mi- diferente. Foi buscar seus cremes e óleos no armário do
údas. banheiro, e agora besunta as pontas dos cachos e esfrega as
A água do chuveiro e o movimento das mãos arrefece- mãos nas mechas. A verdade é que não gosta de pentear os
ram o cio por cigarros. Dependurados ao lado do corpo cabelos antes de dormir, mas como ir para a cama agora?
curvo, os braços relaxados chegam até os pés, até as pontas — Eu tenho essa lacuna, esse buraco?
dos cabelos, até o fundo. Maria resmungou do calor duran- — Se você não for um animal…
te todo o passeio. “Em Manaus as noites não são quentes — Bem, se eu tenho de ter essa lacuna, ela tem mesmo
assim?” Ela fingiu não ouvir a provocação. Calculara mal, de ser preenchida?… É que eu não gosto de ter meus ori-
flanar pela Praça não driblava o desejo de fumar; as bocas fícios tapados… Não seria essa lacuna como uma janela,
nos cigarros que por ela passavam a beijavam pelo pescoço uma porta que deve ficar aberta, como o nariz, como o ou-
e a excitavam. vido, como os poros?…
DENTRO DE CADA UM DE NÓS EXISTE UM VÁ- Como ir para a cama agora com esse tagarela desagra-
CUO COM A FORMA DE DEUS, QUE SÓ DEUS PODE dável deitado nela? Ligaria a televisão ou o rádio, de prefe-

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rência bem alto para não escutar a sua voz. Não, permane- dão pendentes da cabeça salpicando gotas perfumadas no
ça em seu posto, de costas, empedrada, isolada na solidão chão, no espelho, e até no troço estirado na cama, às suas
do espelho. A tagarelice às suas costas não a deixaria em costas, com os olhos secos para cima. Dardejar com pala-
paz tão cedo, picaria a pedra até arrancar água dela. Não, vras venenosas esse boneco de madeira duplicado no es-
não, de jeito nenhum mancharia seu rosto de estátua com pelho é o que desejava fazer. Quais palavras? Palavras que
chororôs – de jeito nenhum! E para que o veneno ocultado corroessem feito cupins, palavras que transformassem pau

PROVA
debaixo da língua não acabasse vazando pelos olhos, ne- em carne ou incendiasse! Quais palavras? Recordou as que
cessitava cuspi-lo, imediatamente. renderam a expulsão de David Brainerd da Universidade
— Você não sofre esse vazio, Anselmo? Yale, século XVIII. Numa reunião de estudantes, o Prof.
— Se eu sofro esse vazio… Whittelsey gaguejou ao orar em público. Brainerd, íntimo
— Sim, você não sofre esse vazio? do Deus branco como um anjo, sussurrou na orelha do co-
— Se eu sofro… lega ao lado: “Ele não tem mais graça do que esta cadeira”.
— Você é mouco, abestado ou o quê?… Não sofrer esse O colega o caguetou ao reitor e Brainerd, que depois virou
vazio é sinal de animalidade! Esse é o sofrimento que nos missionário do Deus branco, acabou tendo de ir sugar o
constrange a transcender, a ter espírito, a amar, a criar! Pelo sangue dos silvícolas de Kaunaumeek sem diploma. Leu
amor de Deus, será que você não sabe disso? Que merda essas coisas anos atrás, no diário de Brainerd que deve es-
de estudante de filosofia é você?… Por que os povos ditos tar aí nessa estante. Por que lembrou disso agora? Eram as
primitivos começaram a embelezar sepulcros? Pra lutar palavras certeiras!
contra a sensação de miséria, pra tapar o buraco! Foi assim O que esses olhos secos estão a ver no teto se estou cá?
que nasceu a Arte, assim nasceram as coisas do espírito, Anselmo, preste atenção: você não tem mais graça do que
pelo esforço de tapar o buraco, de embelezar sepulcros e esta cadeira!. Por que não estende a mão e me amassa as
resistir à morte… coxas e sobe os dedos por dentro da toalha? Ah, você pre-
O sotaque de Maria evoluía em vulcanismo, sua voz e fere observar o teto! Muito bem, pois preste atenção: você
seus gestos engrossavam. Anselmo se refestelou assistindo não tem mais graça do que esta cadeira! Deu-se conta ago-
à deusa de pedra perder a compostura e se avermelhar de ra da trouxa de edredom ao pé da cama, conteve a fúria.
cólera, seu nariz branco se macular de rubro. Penteava os cabelos.
A deusa se consumiu no próprio fogo, cigarra que ex- — Então, qual é a razão dos cigarros?
plode de tanto cantar. O sarau de raios que ribombou de Anselmo sentou na cama como o Cristo no Sermão do
sua boca deixou um palito de fósforo esturricado e curvo Monte, boneco de madeira insuflado pelo sopro divino.
diante do espelho. O pente fadigado se arrastava nos ca- Sorria demoníaco.
chos, o par de nádegas balançava lerdo ainda cegando os — E então, Maria, me explique isso: se só Deus preen-
olhos de Anselmo para o par de brasas, ainda acesas, refle- che o vácuo, o tal do buraco, por que você fuma? Deus so-
tidas no espelho. “Como ele não sofre falta de nada? Se não zinho deveria tapar o buraco, ou estou enganado?
sente falta de nada o que diachos ele faz aí nessa cama?”. O Deitou de novo na cama sorrindo para o teto. O pente
espelho tem quase o mesmo formato da porta do banheiro tremeu na mão para acertar aquelas fuças arreganhadas.
ao lado, e guarda a imagem de Maria que é como um prato Maria engoliu o choro – nenhuma lágrima riscaria seu ros-
de leite aparando gotículas de sangue. Engoliu o choro. Foi to! Segurou firme o pente e comprimiu as pálpebras como
à geladeira e bebeu um copo d’água – de jeito nenhum su- se entrasse num rio até a cabeça e desaparecesse na profun-
jaria de lágrima seu rosto de estátua, de jeito nenhum! Re- didade, mais Iara do que Ofélia.
compôs-se. Continuou a pentear os cachos, fios de escuri- Anselmo se apercebeu da soltura da língua. Mas a fle-

90 91
cha já foi atirada – pois que a palavra não volte vazia! Que pontas do silogismo de Maria, chifres debaixo do cabelo.
a flecha fosse certeira e arrancasse o cigarro da boca de Deus está no cigarro – e se for verdade?
Maria! Maria pôs o pente exausto sobre a cômoda, foi quando
Os cigarros de Maria causavam irritação nos olhos, en- se deu conta que o riso de Anselmo havia sumido. Empali-
tupimento do nariz, perda do olfato e do bom humor. No decera como quem disfarça uma dor de barriga. Ele tinha
fundo, Anselmo tinha inveja de Maria e de seu vício. Com dessas coisas, de uma hora para outra ficava amarelo e es-

PROVA
tragos rápidos e profundos ela obtinha agudez de espírito, tático feito parede. Sabe-se lá o que causava isso. Apostava
fineza no olhar e atenção multiplicada. Com tragos lentos que era tédio. Ele tinha dessas coisas.
conquistava suavidade e quietude. Com tragos superficiais Anselmo bateu nas pontas do silogismo, chifres, Deus
usufruía a própria respiração, o ar temperado de sabor in- está no cigarro. Se na concepção de Maria Deus é o tapa
flando os pulmões, como alguém que medita. Para ela o -buraco universal, e se sua ligação com Deus é do tipo va-
cigarro era uma ginástica, um instrumento de mexer em si zio-preenchimento, e se Deus estiver mesmo no cigarro.
mesma, de colocar-se no estado desejado. E não um ácido Então, será preciso, em primeiro lugar, derrubar Deus, e só
nas mucosas, um suscitador de coices na carne, um obs- então poderá derrubar o cigarro. Logo, o gracejo atirado
truidor de passagens. Quando os orifícios da carne são ta- em Maria foi inútil, a flecha não mirou o alvo certo, foi
pados, inicia-se a revolução para reabertura dos orifícios; murro no ar – coisa detestável é murro no ar! A imagem
por todos os meios necessários, por automatismos de so- do Deus se escondendo dentro do cigarro era infinitamen-
brevivência e funcionamentos bioquímicos e mecânicos. te mais repugnante do que a dos simplórios cigarros. O
Assim era o vício de Anselmo. A diminuta brasa do cigarro Deus de Maria era um caranguejo-eremita transcendente
tinha o poder de evaporar seu espírito e acender o inferno dentro de uma concha feita de cigarro. Anselmo teve ódio
das reações orgânicas involuntárias. Reações grosseiras, de Deus. Seu pescoço começou a enrijecer, sua nuca doía
como esse gracejo atirado em Maria. apertada por tentáculos de pensamentos venenosos. As
Maria interrompeu a meditação de Anselmo com uma mãos congelavam, os olhos ardiam.
voz branda e quebrantadora. O fenômeno de sempre: de uma hora para outra ele
— Deus está no cigarro. amarela e se estagna, vira parede. Maria assiste à deteriora-
— O quê?… ção do amado no reflexo do espelho. Será que o sanduíche
Deslizava calma o pente por entre os fios ondulados, lhe fez mal? Ele tem mesmo o estômago sensível, não come
equilibrando-se. qualquer coisa, e por isso come sempre as mesmas coisas.
— Deus está no cigarro. Será isso? Ah, Anselmo, você não tem mais graça do que
— Deus está no cigarro, Maria? essa cadeira. E sim, sim, você carece! Sim, sim, você neces-
— Questão de lógica: Deus está em tudo, o cigarro é par- sita do meu perpétuo socorro! O que se passa com você
te do tudo, logo, Deus está no cigarro… agora, hem? Ah, meu amor, você carece.
—Isso é piada, não é? O gosto de pele fresca perfumada despenca no tártaro,
— Não. Deus está no cigarro. e enxames de graúnas enegrecem o céu, cachos negros. Do
Demorava a terminar de pentear o cabelo, pois o que céu plano e branco do teto, se derrama a carne leitosa nos
faria depois? Deitar na cama agora? Se a vontade é de trin- músculos febris de Anselmo, membros fluidos e carnudos
char com o pente as tripas desse aí que zomba dela e de seu feito uma jiboia. Sim, você carece, Anselmo. Sim, sim, você
silogismo. necessita do meu perpétuo socorro! Dilúvio inundando os
Arreganhar os músculos da cara no riso faz mexer as poros entupindo-os de prazeres. Abrem-se crateras sem
orelhas e altera o jeito de escutar. Anselmo se chocou nas fundo que só mesmo aquele corpo fresco e perfumado po-

92 93
derá preencher. Asfixiado de gozo, confluindo nos esterto-
res dos quadris e nos abafadiços da volúpia, Anselmo fecha
os olhos e mergulha na amplidão desemparedada, na tem-
poralidade pastosa que desarticula os ossos e desinflama
os nervos. Sim, oh, sim, você carece, e como carece. Você
necessita do meu perpétuo socorro! Ah, meu amor!

PROVA
Inflamado de paixão, Anselmo deixa escapulir por
entre os dedos um cardume de visões. Visões ainda mais
aterradoras do que o Deus-cigarro. É que ele, ele mesmo,
Anselmo, é também uma concha vazia na qual se esconde
o Supremo Caranguejo cósmico! Ele, ele mesmo, é um bu-
raco no qual Maria esconde seu Deus! O amor de Maria
é um vício fundamentado teologicamente. Deus está nos Sol
cigarros e também está em Anselmo. E nesse momento de
dilúvio, Maria cava bem fundo procurando Deus dentro de Como esta peça antiquada foi parar aí no quarto? Os
Anselmo e recebendo o Deus que está em Anselmo dentro braços do menino cresceram empurrando-a para baixo da
de si, bem fundo, bem fundo. janela e escondendo-a de volta no lugar, à direita. Os pés
As cigarras não explodem de tanto cantar, elas sobem moles pisavam em sua corcunda de madeira e absorviam
até o alto de uma árvore, rompem a pele de ninfa e saem um pouquinho de sua dureza. A cabeça curiosa e peque-
dela com asas exuberantes. na enfiava-se na janela para assistir às galinhas arando e
cacarejando canções de trabalho. Quando dava, o menino
pulava a janela e despontava entre as pedras, sempre cheias
de grandes segredos que só mãos pequenas, forjadoras de
civilizações visíveis e invisíveis com o fogo dos sonhos, po-
diam guardar. O Baú, escada que elevava o menino ao jar-
dim de Deus. Pular a janela era encarnar deus ou divinizar
o menino, tanto faz.
No quintal se refugiavam as quinquilharias repudiadas
pelo lar. Objetos que se associavam para criar mundos.
Nesse Éden era bom que o menino estivesse só. O Baú era
a perna postiça com a qual ele se agigantava até o quintal.
Ao regressar ao quarto escalando a janela com o pé num
balde emborcado, empurrava o Baú de volta ao lado direito
e escondia a ponte entre os dois mundos. Assim as peripé-
cias do menino evoluíam em segredo.
De início, o enigma do Baú estava em sua casca carim-
bada pelo barro do terreiro no pé do menino-deus. Quan-
do os pés se enrijeceram e as pernas já valiam por escada,
o Baú se enraizou no lado direito da janela e adormeceu
feito rocha. Então, os enigmas inscritos em sua corcunda

94 95
desceram ao estômago. O menino passou a guardar papéis leitor saber que Maria se declarou apaixonada – por outro,
dentro do Baú, desenhos e escritos, que de início eram pa- óbvio. Romeu reagiu conforme sua infantilidade espiritu-
recidos. al, com deselegantes arrotos teológicos, a amizade ficou
Mais tarde, meu amigo Romeu exumará o corpus de comprometida; chegou à tolice de acusar Maria de “devas-
Anselmo do estômago do Baú e o trará a mim, metido a sidão”. Nunca mais se falaram. Bem feito!
tanatólogo e necromaquiador, a escritor – delinquência de

PROVA
diabo cobiçoso. ***
— Romeu, o que você sabe de Maria?
O homem corou e olhou os pés. Meu amigo Romeu,
— Ela Morreu? Proíbo você de entoar lamentações ao pé do meu ouvi-
Com aporrinhações e chantagens arranquei de meu do – que precisa andar! Não seja uma pedra de tropeço à
amigo mais do que ele tinha; ele escondia o ouro. Quando, minha ação de graças ao destino. Já estou rica de tristeza e
nas horas vagas que dispunha como professor de matemá- não careço da sua. Estou bem, creia nisso e se salve.
tica no ensino médio, se bacharelava em teologia naquele Passei no vestibular da Universidade Federal para Le-
extinto seminário presbiteriano do Bairro Damas, na Av. tras, espanhol. Pretendo fincar raízes em Fortaleza. As au-
João Pessoa – atualmente falido, abandonado e comido las começam em fevereiro. Decidi não comparecer esse ano
pelo mato, como se estivesse amaldiçoado – Romeu tor- ao aniversário de meu pai, pouparei minha saúde. Outrora,
nou-se amigo de Maria cuja beleza, amalgamada à contun- estar com ele fazia tudo mais leve, esse lenitivo me foi ti-
dente inteligência e ao espírito impetuoso, exercia sobre os rado. Como lhe disse, meu plano era voltar para Manaus
demais seminaristas uma espécie de horror paralisante e de vez. Meu retorno em agosto, quando saí do Casarão,
afugentador. Foi talvez seu único lucro desse erro de ju- não foi bem-vindo. Foi duro ver um Coronel de Infanta-
ventude, o de se empenhar em áridos estudos teológicos ria, treinador e comandante de tropas militares, “Centauro
para aplacar a angústia, compra de um remédio inadequa- dos Pampas”, manipulado por sua “Pequerrucha”, como ele
do à doença. Mas, como dizem, todo bônus tem seu ônus, a chama. Quando eu me vi baiacu, cascavel chocalhando
e Romeu, apaixonado à altura do nome, encenou a ingra- o rabo, anunciei a hora da partida. Coronel Cláudio me
ta farsa de melhor amigo. Não há perdão nem arrependi- manterá distante enviando-me boas quantias de dinheiro.
mento suficiente para quem comete o pecado de amar em Na abundante Graça não falta condenação, sabemos.
segredo. Maria acabou expulsa do Seminário por conta Chegando aqui, fiquei um dia e uma noite num hotel
de picuinhas doutrinárias. Depois que deixou o Casarão, na Beira-mar recomendado por meu pai. Odeio hotéis!
onde se hospedavam os seminaristas internos oriundos Quanto mais luxuoso, mais os odeio. Fui galgando lugares
de várias regiões do país, começou a se corresponder por cada vez mais confortáveis, mais modestos, passando por
cartas com Romeu, diálogo por correio eletrônico na dis- pensões e quartos alugados, descendo e ajustando a casca
tância que assegurava os nervos de meu timorato amigo. externa aos ânimos internos. Peregrinando nas redondezas
Com mil recomendações e censuras, me deu a conhecer a do Benfica, encontrei um apartamento onde aconchego e
correspondência. Apresento-a aqui parcialmente e corta- modéstia se encontram. É numa espécie de cortiço pró-
da pela metade, depurada da prosa de meu amigo a fim de ximo ao IFCE. É pequeno, mas quando o ocupei, parecia
poupá-lo da vergonha e o leitor da canseira. Vamos direto uma ilha deserta. O lavrei até obter aquele sentimento de
ao fundo driblando as epístolas paulinas psicografadas por Bernardo Soares, “o conforto que dá dignidade ao tédio”.
Romeu. Afinal, problemas teológicos só se aclaram à luz de Recheei com uns poucos móveis e livros, e ele se tornou
sua fonte: o pântano das paixões. Não fará falta, basta ao um Éden. Venha conhecê-lo!

96 97
Não, eu não frequento mais templos. Acordo cedo e vou minário, de meu pai, de você – único e ausente amigo – e
passear na Praça da Gentilândia. Degusto árvores, observo de tudo mais, até de dores antigas e do que não lembro
a materialidade dos silêncios e faço disso o meu devocional mais. Saudade do futuro, do passado e do que não existe. É
matutino. Não é de ajuntamentos religiosos que sinto falta. a saudade a minha grande tentação, o meu deserto, o meu
À tarde, a casa fica um pouco abafada, ainda não comprei diabo, o meu espinho na carne, a minha guerra… Nos dias
o ventilador, e vou me refugiar na biblioteca da universida- em que essa sensação-sem-nome se prolifera em meu quar-

PROVA
de, fico lá até o anoitecer gozando o refrigério dos livros e tinho, eu saio para me alienar de mim, como Deus em seu
do ar-condicionado. Respondendo sua pergunta, suspendi amor pelas criaturas, e peregrino pela cidade. Acredita que
as leituras de teologia. Atenho-me à Poesia. Sei que você eu nunca tinha andado de trem? Às vezes caminho até a
é deficiente de leitura de poesia, o que é uma pena; isso Estação Otávio Bonfim, pego o trem, vou até o fim da li-
pode causar sérias doenças no espírito, então cuide-se! Ex- nha e volto. Você espera sensatez de um entediado? – Não
perimente os poetas ao menos como “teólogos anônimos”. espere!
Os teólogos, principalmente os sistemáticos, desconhecem
um atributo essencial de Deus – a musicalidade (eu quis ***
dizer essência e não atributo). Os poetas são os profetas da
musicalidade divina, não esqueça disso. Ah, a coisa mais Como ele é? É um negro claro, altura mediana, cabe-
teológica que li ultimamente foi Resistência e Submissão, de los pretos e curtos, usa uns óculos de lentes grossas que
Bonhoeffer. Acho até que a ideia de um “cristianismo secu- escondem o tamanho e o brilho dos olhos escuros. É estu-
lar” despido de firulas religiosas é mais minha do que dele! dante de filosofia e ateu. Claro, eu sei que sua pergunta não
Dê-me notícias suas! mira esses acidentes, mas é tudo que sei dele por enquanto.
Beijos e abraços… É cedo pra dizer que estou apaixonada? Ora, a paixão só
acontece enquanto é cedo! Quando tarde demais, é sempre
*** tarde demais: o anjo moveu as águas e não pulamos no tan-
que, perdemos o tempo da graça. Encontrei Anselmo por
Você debruçado numa monografia sobre eclesiologia. acaso, há exatos dois meses, em minhas viagens de trem.
Eu correndo léguas de igrejas. Você não acha que Kierke- Ele me lembra você, um pouco… Vocês seriam bons ami-
gaard tem certa razão, ou uma certeira desrazão, ao dizer gos. O ateísmo das pessoas vale tanto quanto elas; ele pode
que a Igreja é um covil de gente medrosa, de gente com ser brilhante, ascendente, divino, como pode ser baixo, im-
medo da vida e do mundo? Quem quiser tornar-se cristão becil, desagregado – exatamente como a fé.
que renuncie a essa sagrada família e aprenda a peregrinar
no deserto. ***
Saúde e paz, querido Romeu!
Foram alegres as festas de fim de ano. Franqueza: não
*** me arrependo de ter trocado de família e não ido a Ma-
naus. Em dias de serenidade, usufruo a revelação de que
Saudade – que assombro! Saudade, e não solidão. A tudo naquela Vila Militar, naquela casa, só me caem bem
saudade é o ingrediente que faz da solidão um inferno. Tal- na Saudade. Não me faltou amor no Natal e nem na pas-
vez o fogo do inferno seja nada mais que uma nostalgia sagem do ano junto à família de Anselmo. Ele mora com
sem limites. Morre-se de saudades. Doença mortal por não a avó e a tia, duas mulheres formidáveis e fortes. O pai,
matar. Morro de saudades do quartinho no Casarão do Se- ao que parece, mora no quartel. Ele é um caso à parte. Na

98 99
Ceia, todos exalavam simpatia e atenção por mim; o pai o que posso fazer, querido. Sabe a Besta do Apocalipse, a
destoava. É um militar ranzinza chamado Antão, que nada que enfeitiçará o mundo com palavras? Você que é “sábio
tem do santo de Flaubert – tinha mais era de anta! Ríspi- para calcular seu número” talvez descubra quem ela seja…
do, sarcástico, deselegante. Segundo Anselmo, estava com Economize sua hybris. Como disse o Nazareno a Pedro,
ciúmes; que Édipo mais estranho, não é? Será que todos “embainhe a espada”. Não cutuque uma onça com esse seu
os militares são desprovidos do dom de conjugar sober- curto sotaque paulino! “Eu sou aquela que disse!”

PROVA
ba e charme? Exageradamente extravagantes, agem como
se pudessem intimidar a qualquer um facilmente. Ora, foi ***
só por fineza de espírito que não o coloquei em seu de-
vido lugar. Ele até tem uma aparência jovial que lembra Você me julga, isso não é culpável. Você me julga mal,
Anselmo, mas é gigantesco, o velho fenômeno da massa também não é tão culpável; é como chutar um pênalti e
corpórea inversamente proporcional ao espírito. A única não fazer gol, “errar o alvo”. Você diz que vendi a Fé pra
vez que se dirigiu a mim, disse: “conheço seu pai”, o resto comprar a Razão? Meu amigo, largue dessas infantilidades
foi linguagem subliminar. Antão parece uma mistura de e aprenda a formular direito o problema! Não esmagarei
Dimitri Karamázov, dos Irmãos Karamázov, com Antônio essa falsa oposição agora, que o meu método é começar a
das Mortes, do Glauber Rocha. Consegui me divertir ima- destruição do mais para o menos importante; metodologia
ginando estar num apócrifo de Dostoiévski. do bom gosto. Se é como você afirma, se o meu pecado é
E você? Como foram suas festas? “ultrapassar as Escrituras”, o que sou senão a desmesura,
tão somente um exagero do mesmo gesto de vocês, teólo-
*** gos? O que é um teólogo senão peão na esteira da divisão
do trabalho fabricando o Pássaro Encantado, sua sobe-
Traçar uma lacuna entre mim e você. Uma lacuna como rania e liberdade absoluta, suas asas feitas com o éter do
uma ponte. Seja esse o meu gesto de reverência a você, si- pensamento, mas que só canta confinado em vossa gaiola?
nal da santa cruz para nossa proteção. Começaremos a nos Vocês todos “ultrapassam as Escrituras”, são todos “poetas”
morder, Romeu? E nos iniciaremos agora, tardiamente, no de quinta!
fanatismo? Cheios de fé e do espírito santo não sobrevoá- Aliás, vocês não fabricam nada, apenas reciclam mitos
vamos de mãos dadas esse pântano, embora em direções – europeus caducos. Sabe qual é o meu Mal, a doença que
ou alturas – diferentes? Com avalanches de ideias esmaga- padeço? Coragem! Eu atirei meu espírito como uma flecha
remos um o coração do outro? Você quer mesmo duelar? lá onde vocês não podem ir, bando de ventres preguiçosos!
Restará algo depois? Não me delicio em debates – minha É por inveja que você me calunia, querido? Falei coragem?
língua prefere vinhos e beijos! E é mais contra mim do que Oh, me expressei mal sobre o meu Mal! Quando não posso
contra você que decido não atirar. Você, meu amigo, dei- cuspir espadas gaguejo e me expresso mal. Não é nada dis-
xará o fel da Verdade amargar o fruto da amizade, que se so de coragem a minha virtude – é a fome! Você consegue
gesta na paciência da evolução das espécies, sem a pressa ter inveja de uma borboleta que se queima na lâmpada se-
criacionista de um deus arbitrário que tira tudo prontinho denta de calor e luz? Venha cá em meu sepulcro, querido!
da cartola? Então a “Verdade de Deus” não é mais útil que Venha tocar minhas mãos e meu lado. Venha colocar seus
uma guilhotina ou uma forca? Não provoquemos um no delicados dedinhos matemáticos nestas feridas. Você con-
outro a embriaguez da retórica, amigo. Não masturbemos segue ter inveja de feridas, querido Romeu? Liberalismo
um no outro a volúpia de levar cativa a mente alheia – teológico? Seu discernimento de espírito está embotado,
ou espancá-la até a morte. Você ficaria maravilhado com suas faculdades pouco exercitadas. Talvez você seja um ga-

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rotinho carente de leite espiritual, ainda carnal, privado da e sobem ao púlpito para papaguear a tosca mitologia do
gnose dos pneumáticos. “Novo Mundo”, o “Destino manifesto”, o Cristo branco…
Quando o fogo sagrado da Razão começou a lamber as Vocês coxeiam entre dois pensamentos – não é assim que
Escrituras pelos finais do século XVIII, no Velho Mundo, deve fazer o pastor presbiteriano? É que vocês sabem que
foi restando delas apenas as escórias insossas dos mora- não podem atrair passarinhos com as pérolas que vocês
lismos do Homem Branco. Os teólogos chamados liberais derretem no Seminário. Estamos nos Trópicos! Os pássaros

PROVA
se refestelaram coroando a si mesmos com as grinaldas que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá! Metade de nosso
das virtudes europeias, as virtudes Brancas, as virtudes povo morre de fome e não encherá o bucho com pérolas.
burguesas – as virtudes de Deus! A Razão, o Progresso, a Vocês sabem que é preciso enlaçar as multidões com fan-
Civilização… Os teólogos chamados liberais começaram a tasias, conservá-las dóceis num infantilismo pré-moderno,
matar mitos antigos para criar mitos novos, assassinando despidas de dignidade e de alguma razão, de voz. Por isso
o Pai, Supremo Déspota, para obter a herança – a Lei, a inventam essa inimizade entre Fé e Razão, por isso o men-
Moral. Vocês, jumentinhos das colônias, com suas viseiras tiroso princípio sola scriptura, por isso a paranoia contra o
para não olhar a realidade e a espiritualidade dos Trópicos. liberalismo teológico… Ora, não há nada mais racional do
Vocês com suas orelhas enormes carregando os fardos da que uma igreja, nada tão sistemático, tão newtoniano, tão
erudição alemã e relinchando línguas estranhas. Que tipo econômico, tão calculista! Não seria rentável apregoar nos
de doença, pecado ou perversão colocou vocês assim de telhados as peripécias teológicas dos europeus, dissecado-
quatro, jumentinhos presbiterianos? Oh! e vocês ainda se res de Deus, não é? Esses artigos de luxo importados que
orgulham de suas teologias sistemáticas e confissões de fé? a elite sacerdotal consome nos seminários. Atirar as tripas
Não percebem: nós, abaixo da Linha do Equador, estamos de um Rei aos súditos, as vísceras do Pai aos seus filhos?
dentro “cativeiro da corrupção” engenhado por coloniza- Não, vocês não têm estômago para isso…
dores. Sobre essas grades se atrepam as teologias sistemáti- Eu fui essa louca que rasgou véus caros e himens sagra-
cas que vocês comem intoxicados. Não, meu amigo, minha dos. Confesso o meu pecado: fiz isso mais por desespero do
posição predileta é em cima, cavalgando, vaquejando, e que por coragem. Blasfemei mais para saciar a fome do es-
não de quatro. Sou a mistura dos Munduruku, os maiores pírito! Eu, munduruku trânsfuga. Eu, menina meio-branca
guerreiros dessa terra, caçadores e mumificadores de ca- de classe média, vou aproveitar bem minha condição para
beças, com monarcas das coxilhas. Sou a interseção entre saciar direito a fome do espírito. Você espera que um morto
a Amazônia e os Pampas – não tenho nada com isso de de fome seja racional? Eu injuriei belezas usando bem essa
Teologia Liberal! maquininha, a Razão – fui sacrificada aos áridos estudos,
ao grego e ao hebraico. Porém, o que será de mim se a co-
Não existe pecado do lado de baixo do Equador bra mordeu o próprio rabo, e os dentes da Razão se desgas-
Vamos fazer um pecado, rasgado, suado a todo vapor7 taram? As moedas de Judas não deram para o pão. Como
posso ser uma coluna do Templo da Teologia Liberal se
Vocês, jumentinhos seminaristas, teólogos e pastores, vejo o fogo de seu altar apagado? – E eu mesmo inteira es-
entram no quarto, trancam a porta e se masturbam com tou em cinzas! Que tenho eu com Mestres de Moral? Que
a razão do Velho Mundo, as peripécias exegéticas e her- tenho eu com o conteúdo moral das Escrituras? Que tenho
menêuticas dos dissecadores de mitos cristãos. Mas ao sair eu com o noúmeno se sou uma porta aberta para todos os
do quarto, lavam as mãos e o rosto, vestem a toga ianque, espíritos? Eu mataria Deus se fosse para roubar seu fogo,
colocam a máscara de anjo que oculta as grandes orelhas, seu espírito poético, seu vento, sua malícia de artista – não
7 - Chico Buarque, Não existe pecado ao sul do Equador. a Lei e a Moral, como vocês fazem. Você tem um mau olho

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e uma má luz, ou apenas ingenuidade? Acredita mesmo da nos calabouços do crescente castelo, por fim, tornou-se
que deixei a Fé pela Razão, essa Cinderela às avessas que só maior que o castelo. O que eu era? – o que todos vocês são:
vale pra limpar o chão? Se eu injuriei belezas foi pra parir discípulo de um Cristo reencarnação de Platão, morbida-
outras! Meu amigo, eu morro de fome, e o faminto é um mente apaixonada pelo Mundo das Ideias perfumado de
animal para além do bem e do mal. Na fome não há Deus – Reino de Deus; caluniadora da Terra e do corpo, como o
tudo é permitido! Eu pari belezas pra me nutrir – há fêmeas Nazareno nunca foi. Vocês que confiam nesse erro histó-

PROVA
que comem a própria placenta. Eu amo os mitos, eu amo rico, não sabem que houve uma segunda Queda, o mais
a mentira, eu amo a verdade escondida na mentira; eu sou terrível peccatum originale? – a invenção do Cristianismo.
Maria, a mãe de Deus! E no meu útero procrio monstros, Por vingança esmaltaram o Crucificado com a lenda do
diabos, centauros, curupiras e caiporas. O universo, essa Messias salvador de almas, mestre do post mortem, para
máquina de produzir deuses, grita e chuta no meu ventre! escapar de suas reais exigências. Por que o cristianismo
foge tanto de seu Protagonista? É estratégia dos instintos
*** fracos baratear a graça oculta na humilde crisálida da vida
terrena e trágica do Crucificado. Vocês crucificam Jesus
“Tira-lhe tudo, poupa-lhe apenas a vida”, disse Deus a novamente chamando-o de Salvador! Sim, meu amigo. E
Satã acerca de Jó. Atenta para isso, é o que nos resta, amigo eu renuncio a mim mesma! Renuncio a paz e a ingenui-
– a Vida! As demais questões são tolas! Sofro, logo existo! dade que vocês tanto prezam. Condeno ao inferno minha
Do Credo dos Apóstolos basta um “creio”: Creio na ressur- antiga beatitude!
reição (ou insurreição) do corpo – e essa graça me basta!
***
***
Se a fé é a pulsão que antecede a racionalização, como
O que me aconteceu? – o Acontecimento! você diz, então, de fato, decaí da fé. Fui de mãos dadas com
Recordo a quietude de bela adormecida, o regalo no esse Virgílio aos infernos, e o fogo refinou minha razão
berço dogmático. Alguma filosofia inoculou dinamites em deixando-a modesta. Quem diviniza a razão nunca desceu
minha carne, ovos de moscas? Ah, sequer suponho que eu aos infernos. Os teólogos – e mesmo os filósofos – enten-
tenha despertado! Apenas passo de um sonho a outro, cavo dem lá nada de inferno! Os poetas sabem mais, glória a
um túnel dentro de outro túnel. Recordo a paz do meu oti- Dante nas alturas! Eis a boa nova que dei a mim mesma, e
mismo quando as coisas divinas se aproximavam claras e que trago ao ser cuspida do ventre da baleia: Deus só pode
eu as hospedava em mim. Ah! Eu me reconhecia cristã. ser conhecido pelo corpo! A fé é a fome dos sentidos! Não
Saboreava Deus, absorta, tão dócil, bem-aventurada… Eu está escrito, “a Terra está cheia de Sua glória”? O Deus que
podia ver claramente o meu Deus e apalpá-lo entre frestas podemos saborear é a carne e o sangue das coisas terrenas.
de rochas sólidas, as Escrituras. Eu podia subir suas esca- Cerimônias sagradas sempre se avizinham de banquetes.
das de degraus firmes ao alto, tocar com a ponta do indi- Eis o meu evangelho – para o qual poucos são chamados
cador a orla da túnica de Deus, e estancar a hemorrágica e poucos são os escolhidos. O Absconditus transcendente?
Nostalgia infinita. Meu coração submisso pisava calmo. Deixo pra vocês que sem misterium dei perdem o empre-
Meu peito atendia quando eu chamava; falcão adestrado go. Vocês, pastores, sequer sabem mendigar, não é mesmo?
que pousado em meu punho serenava, vendado. Contudo Absconditus para a plebe – Revelatus para os sacerdotes. O
– Aconteceu! Um devir selvagem me atropelou. Avistei-o Guardador de rebanhos de Alberto Caeiro saboreia mais
pelas costas, um vulto veloz já distante. A alma encarcera- de Deus do que qualquer pastorzinho presbiteriano!

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Plagiando Fernando Pessoa: o mito é nada que é tudo! culadas
O inexistente em socorro do existente. Falando nisso, vou Com drogas miseráveis, amores magros e rostos mirrados
lhe contar uma história que no mínimo servirá de entrete- Costurados nas fábricas, nas escolas, nas prisões a lições
nimento. Anselmo é o herói do conto. Ela começa quando ou a pauladas
o herói deixa a princesa esperando, esse é o conflito que Nem eu nem você nos contentaremos com poesia alheia
dá ignição à narrativa. Veja só a lenda que ele me conta e alheada

PROVA
para fugir da ira vindoura, essa raposa que sabe valorizar Sem a pujança onça de nosso pó e nossa maresia
o covil. Sem febre xamanística e belicosidade tropicália
Praça da Gentilândia. Sexta-feira. Farfalhar de árvores, Sertões transpirarão seus cangaços e seus mares de cactos
garotos jogando bola na quadra e vendendo venenos. Ansel- Somos nós, do Gênesis, os malditos espinhos e cardos!
mo perambulava por ali quando o cerca “a roda dos escar-
necedores” subitamente. Munidos de vinho barato e copos Sigamos mastigando tristezas portuguesas e cuspindo sa-
descartáveis, os estudantes de filosofia que se consideram os raivas
tataravôs do Super-Homem o constrangem a sentar-se no Sigamos espezinhando a pureza, convertendo em precio-
chão e a participar do sarau. Anselmo não prova o vinho sidade
barato que sempre lhe ferra o estômago, mas é incitado a As escórias e os amálgamas das raças condenadas
declamar. Rugiu um poema curto que reproduzo aqui. As imundícies reluzentes das cores de nossa precariedade
Filhos da Caatinga, filhos do Rio Negro, filhos do concre-
Levantem-se, ó assentados nas sombras to, filhos do ultraje
Dos bosques e dos bares Sigamos, filhos do carbono e do subdesenvolvimento!
Para o balé das emboscadas
Aos berrantes e aos baques Cerveja para as onças em nossa carne
Levantem-se, ó infectados de varíolas Corre na jugular dos homens de Estado e de Empresa
Dos pensamentos e pulsos frouxos Nossa humanidade se esticará sobre
Para o baile das enxadas O dorso desta terra como um couro de montaria
As bacantes serão seduzidas pelos deuses Acolhendo os minérios e os vegetais
Fabricados por nossos rios confluentes Na verve que estrugirá mil ais;
Abeirados de nossas fulgurantes artérias São eles as cinzas de nossos irmãos e nossos pais
Que os comedores de pedra arrancam aleijando nossa
Venhamos, façamos as cortantes curvas! alegria
Venhamos, ultrapassemos as estreitas portas!
Vocês não vão dormir para sempre nessas teias de aranha Não vi você na rua
Vocês não vão roncar para sempre bacharelismos sem sa- Alongando canções como colunas do céu
nhas Numa gaiola livresca, só sua
Tomem posse de nossas dores, vamos! Você andava de lá para cá
Baionetas, baiacus, bois-bumbás eriçados! Chorava e sorria
Banzos plantando bananeiras e planejando badernas Levantava e caía
Sejamos flautas nos lábios do abismo Cego para a biosfera de espíritos
Surdo para o sangue dos violados
Nem eu nem você nos contentaremos com alforrias cal- Embotado para a educação das pedras

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Tolhendo a intuição mediúnica das feras. repente eu descubra como driblar o garçom e a segurança. O
Dedilhei com meus dedos de foice nas grades do seu cár- perigo nos faz inventar. Sairemos ilesos. Verão!” As garga-
cere lhadas explodiram e levantaram-se os copos, outra vez. Mas
Plangeram oráculos pontiagudos o ponteiro do relógio foi arrancando as pétalas da mesa uma
Voltem! Voltem os videntes do vórtice porvir! por uma, e a brisa friorenta foi soprando-as por entre as per-
Faltam é poetas do mundo caduco! sonagens da Praça. Anselmo deu cabo do vinho, que não era

PROVA
bom, mas ao menos não causaria dor de barriga. “Saia do
meu caminho eu prefiro andar sozinho…”. Falar a verda-
E uma das línguas envenenadas o pica, “palavras, pala- de, aqueles instantes de solidão foram os mais agradáveis da
vras! Estamos fartos delas! Quando os poetas renunciarão a noite, que não estava quente, a brisa do mar chegava até ali
essa virgem auréola e coroarão suas bundas com os espinhos e benzia a movimentação da Praça. Teve a ideia de ir ao ba-
da Vida?” E esse dito bastou pra unir os frangalhos num só nheiro e ficar lá por algum tempo, desaparecendo. Num bar
fôlego. Você fala de excessos e fala “venhamos!”? Pois que tudo é mais onírico, e talvez não seja difícil criar confusão
tal agora? “Queremos o mundo e queremos agora!” Vamos nos olhos. Sentou na privada e amadureceu o coração, lutou
peregrinar no dorso da Noite! contra a vontade de me telefonar e explicar o que se passava.
Abriu a porta do banheiro devagar. Antes, armou-se de ma-
Let’s swim to the moon neiras ousadas. Inflou-se numa postura de dono do mundo.
Let’s climb through the tide Estava bêbado. O ar soberbo do Thor na boa fase do Walt
Penetrate the Simonson se fundiu à imagem do caboclo Mata Virgem que
Evening that the vira numa loja de artigos de Umbanda no Centro da Cidade.
City sleeps to hide8 Foi como retirar um tampão e ver saltar um bestiário: Lam-
pião, o Ajax de Sófocles, o Julien de O Vermelho e o Negro,
A Beira-mar nos espera! Quem se atreve a ser mais do o Raskholnikov de Crime e Castigo, e também o mito de seu
que um zumbi tagarela, hem? Os risos consentiram e ergue- clã do qual o pai falava. Agora era gigantesco! Pisava firme,
ram-se os copos descartáveis. Anselmo seguiu arrastado por o mundo era seu! Deu quatro passos para fora em direção à
essa quimera embriagada. Era mais de oito da noite. A cam- luz dourada, que contrastava rudemente com a lâmpada de
bada seguiu em procissão ao Centro Dragão do Mar, turbi- neon do banheiro. No quinto passo, um homem realmente
nada às gargalhadas. Abancaram-se numa daquelas mesas gigantesco com um cassetete na mão o abordou; “por favor, o
ao ar livre, num bar onde o violeiro cantava Belchior, cientes senhor queira pagar a conta”. Gigantesco, mas nem tanto. O
do que fariam sem tostão no bolso e pedindo o melhor do Dono do mundo o olhou com desdém. Cambaleava. “Vocês
cardápio. A Lua minguante sorria e se perfumava com in- costumam pedir por favor pra que os clientes paguem a con-
censo de violão. Mas o passar dos minutos foi regelando o ta?… E isso na sua mão é pra matar baratas? Um bar não
sangue, deixando sólida a situação. E agora, José? É meia- pode ter baratas!”. O gigante bufava, esbugalhava os olhos e
noite, uma dupla de policiais jornadeava por ali “cumprindo batia com o cassetete na palma da mão esquerda, “isso mes-
seu maldito dever e defendendo seu amor…”. No terceiro gole mo, pra baratas!” Anselmo gargalhou alto, “Sou eu algum
de um vinho mais potável, Anselmo exorcizou a ansiedade cão para vires a mim com pedras e paus…?” Uma moça saiu
da mesa. “Não se preocupem! Ao chegar a hora, podem sair das sombras e pôs a mão no ombro de Anselmo sussurrando
todos à francesa. Deixem-me aqui que de francês não tenho melodiosamente ao seu ouvido. Com a maior das simpatias,
nada. Talvez eu saiba como me safar, como saber? Talvez, de o conduziu devagar ao caixa. “Você é tão bonita!” Anselmo
8 - The Doors, Moonlight Drive. diz com olhos sorridentes e retirando a carteira do bolso de

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trás. “Mas diga-me, diga-me, moça bonina, olhe bem pra sabotar meu paladar exibindo os “fundamentos da Verda-
mim – já virei uma barata?” de”, a mecânica da História, a Lei caída do Céu, o “Jesus
Anselmo sempre anda com dinheiro porque vez ou ou- Histórico” etc. Que são essas coisas todas senão mitos cal-
tra encontra bons livros à venda nas calçadas ou em sebos. cificados descorados de modéstia, que perderam o perfu-
Ele é muito econômico e sabe multiplicar a merreca da bolsa me e a leveza da Poesia?
de iniciação científica. Dos cinco tataravôs do Übermansch

PROVA
que estavam à mesa, ele era o único disciplinado o suficiente ***
para dedicar algumas horas semanais às atividades de bol-
sista. Os demais “espíritos livres”, avessos a esses pesadumes
burocráticos, podem contar com a mesada dos pais. Pagou a
conta e ainda deixou gorjeta pra garota bonita. Antes de ir,
deu alguns passos na direção do gigante, a moça bonita o pe-
gou pelo braço e o dissuadiu com seus murmúrios melódicos,
e o acompanhou até a saída.
O combinado era se encontrarem do outro lado da Praça.
Quando Anselmo chegou ileso, foi uma festa. As gargalhadas
retornaram – eram de fato invencíveis! Os malditos triun-
fam! Mas a verdade é que no trajeto Anselmo vinha calcu-
lando a parte de cada um, dividindo a conta igualitariamen-
te. Econômico que era, o montante no bolso tinha destino
certo. Gastá-lo assim, inesperadamente, era um distúrbio
que precisava ser sanado; tinha de compartilhar o prejuízo
ou ao menos mencioná-lo a fim de aliviar a perturbação.
Mas ao se chocar com o calor festivo, as felicitações, os abra-
ços, os brados e as gargalhadas, Anselmo se deu conta do
arreio de almas em suas mãos. Nasceu um egoísmo superior.
Assumiria a função de fio de cabelo suportando aquela noi-
te de triunfo. Questionado sobre como conseguiu a façanha,
respondeu, “ora, apenas me levantei e saí! Não houve ne-
nhum heroísmo. Às vezes os olhos alheios estão apenas por
dentro, e é tão somente isso que nos impede de fazer o que
precisamos”. Flutuantes, foram até a praia, despiram-se e se
desaguaram no mar para batizar a noite de triunfo. Depois
disso, o grupo passou a reverenciar Anselmo, “poeta coroado
com os espinhos da Vida!” Naquela noite Anselmo se tornou
um mito, um socorro nascido do que não existe.
Eis, caro Romeu, a Verdade! Assim nascem os heróis e
os salvadores. Assim nascem as ilusões libertadoras. Não
transforme o mito em ciência ou você morrerá de fome. A
verdade bem pode ser a mentira que faz viver. E não queira

110 111
lacrimogêneo.
— Gás lacrimogêneo! Gás lacrimogêneo?…
É verdade que os alunos voltam do campo fodidos, mas
com queimaduras no rosto era novidade para mim. Não
cheirava bem. Também é verdade que o Curso de Sargen-
to, principalmente os acampamentos, têm seus segredos e

PROVA
alguns devem permanecer por lá. Certamente não era o
caso. Não cheirava bem.
— Guerreiro, que gás era esse? Nunca vi nem ouvi falar
de gás lacrimogêneo fazer isso… Era material padroniza-
do?
— Padronizado?
— Padronizado, previsto pelo manual, com uma com-
posição química testada. Você não teve nenhuma instru-
Imperador ção sobre isso, aluno? Vai mal assim o Curso de Sargento?
O aluno arregalava o olho e perdia a fala. Dava pra ver
“O homem é o principal instrumento da guerra. Outros que era rapaz tímido, de temperamento conforme o porte
instrumentos podem variar, novas armas aparecer, novos franzino. Era um bom soldado. Quando se volta do acam-
processos de combate surgir; mas – o homem – instrumento pamento a cabeça fica meio atordoada, depois passa.
primordial, permanece constante”. Manual de Campanha — Senhor, na verdade foi um spray.
Básico do Exército Brasileiro. Princípios de Chefia. Não disse? Cheirava mal!
— Calma aí, guerreiro, se decida: spray ou gás lacri-
Ah, é bonito esse pau de arara carregando duas fileiras mogêneo? Eu nunca ouvi falar de spray em instruções de
de soldados com fuzis entre os joelhos, sonolentos e can- Curso de Sargento. Olha que na minha época a coisa era
sados o suficiente para se pouparem da chocarrice costu- menos “humanizada”, como se diz. Ninguém sonhava com
meira, e submergirem num silêncio que mistura alívio e essas associações de assistência jurídica aos praças que
saudade do acampamento!… Era por volta de sete da ma- existem hoje…
nhã, uma hora antes da formatura matinal, quando o QT Todo mundo sabe que o acampamento é o lugar por
do Curso de Formação de Sargento Temporário chegou ao excelência das sacanagens. Tem grande diferença entre as
quartel. Eu estava na cantina tomando café e o vi por de- sacanagens, entretenimento de militares pervertidos, e o
trás. Um dos alunos veio à cantina… Olha, nesses mais de rigor da formação. A confusão entre as duas coisas já é si-
trinta anos de Exército já vi muita coisa… O aluno tinha nal de degeneração. Os acampamentos exigem crueldade?
a nossa cor, mesmo assim, o inchaço e a vermelhidão no Sem dúvida! O treinamento militar deve ser severo, mo-
rosto dele doíam na vista. Uma mancha de carne viva to- delar os homens e torná-los aptos? Claro, senão ficam im-
mava o lado esquerdo da cara, do supercílio passando pela prestáveis. Mas veja que essa severidade é racionalizada,
orelha até o queixo, uma baita queimadura! calculada, organizada. É como método científico ou recei-
— Guerreiro, que diabo foi isso aí na tua cara, pelo ta de bolo. Cada golpe tem sua utilidade e seu lugar; tudo
amor de Deus? dentro do regulamento oficial, que exprime o acúmulo de
O aluno tomou posição de sentido e gaguejou. experiências antigas em fórmula algébrica. Nada nos ma-
— Senhor… foi… reação química do suor com o gás nuais é arbitrário. Gente experiente pesquisa e se dedica a

112 113
confeccioná-los e melhorá-los através dos anos. Cada regra pele. Resultado: o vitiligo cresceu e o guerreiro ficou todo
ali tem sua função na formação do militar. É como fazer branco que nem mandioca descascada. Foi pra reserva
um bom perfume ou uma boa comida. É uma crueldade com pouco mais de 30 anos com perturbações mentais. Às
disciplinada, e não a lambança que esses pervertidos fa- vezes, ele aparece por aqui, ficou meio doido, coitado.
zem. Está lá no Manual de Campanha Básico de 1954, ter- O aluno tremeu a xícara e quase ganhou outra queima-
ceiro princípio da chefia militar: dura.

PROVA
— Guerreiro, e se tivesse atingido teu olho?
Conhecer seus homens e interessar-se pelo seu bem-es- Ele piscou com força três vezes.
tar. — Aluno, você tem que ir na enfermaria fazer o atesta-
do de origem… Afinal, quem fez isso?
Quando o soldado é afligido pelo autêntico rigor sai Inventei na hora o tal do atestado de origem, fazia parte
disso orgulhoso, acrisolado, cheio de amor-próprio e ad- do improviso e da investigação.
mirando a rudeza de seu superior. Passa a valorizar sua — Senhor, o tenente queria atingir nos olhos, aí eu virei
formação e o pertencimento ao grupo, pagou caro por isso. o rosto no último segundo…
Quando o soldado é apenas vítima de sacanagem torna-se — Como é? Que tenente?…
odioso, vulgar, vingativo, descontrolado, e disposto a repe- Vi o ódio reluzir naquela carinha de cão dócil, a fero-
tir em dobro as mesmas sacanagens na primeira oportu- cidade revoltosa dos pretos; um ódio que poderia me ser
nidade. Se você deixa um soldado desses como xerife, ele útil. Pela obra eu reconhecia o artista; era o tenente filho
trucida a tropa brincando. É uma reação em cadeia, por da puta que estava na minha mira havia algum tempo. Não
isso coisas assim não param de acontecer. Militares dege- era a primeira vez que esse tarado fazia sacanagens assim.
nerados estão cagando pra reações em cadeia, cegos para Era preciso pôr um fim nisso.
os efeitos do que fazem; dane-se a economia e os cálculos Pensei comigo: pronto, tenho uma bomba. Tenho e vou
necessários para se produzir tropas eficientes. Não cum- usá-la. Mas antes usarei da ameaça e do suspense. Pois se
prem os regulamentos oficiais, não têm em vista a guerra. o ataque surpresa derruba o inimigo enquanto ele coça o
Nisso se reconhece um autêntico comandante: ele sabe dar saco, o suspense e a ameaça agigantam os medos do ini-
uma ordem que será obedecida por um século! migo, sem acarretar grandes desgastes. É a magia do ter-
Sim, pois bem, então improvisei na hora uma histori- ror que desloca a ameaça de seu equilíbrio com o real para
nha: ajustá-la ao medo; é a arte de vencer a guerra sem desem-
— Aluno, numa turma do Curso de Sargento, o instru- bainhar a espada… Refleti nisso por horas, planejando,
tor inventou de lançar um explosivo estranho, mais parecia costurando, turbinado pela raiva. Mas o excesso de cálculo
um foguete, em determinada instrução. Ele riscou o chão e também estrangula os bons impulsos. Os covardes sempre
foi parar dentro da gandola de um aluno. Conheci o cara. calculam demais, refletem demais, hesitam demais e ter-
Ficou com o peito tostado, mas foi queimadura leve. Pas- minam por desperdiçar o estado de graça, a possessão da
sou-se o tempo. Um ano depois, a cicatriz começou a virar fúria quando o espírito de Deus nos toma e viramos um
vitiligo. E nenhum médico conseguiu prescrever o trata- Sansão. Uma ação instintiva é sempre certeira; o animal
mento, pois o tal do foguete não era um material previsto, em nós é infalível!
regulamentado pelo manual… E ainda por cima, o aluno Fui ter uma conversa com o sargento instrutor do Cur-
não fez o exame do atestado de origem da queimadura de- so de Sargento, maldito capitão do mato.
pois do acidente. Não se sabia quais eram os componen- — Sargento, que tipo de instrução é essa que faz chur-
tes químicos do foguete, nem o tipo de reação química na rasco com a cara dos alunos? Isso está previsto no manual?

114 115
E esse spray aí? Ele é padronizado? ro, proteger-se em condomínio de luxo, não é?… E você
— Sub, Sub, calma, fomos nós mesmos que compramos não tem sangue, não? Gosta de ser lacaio de tenente filho
o material, e é só um spray de pimenta, calma, a gente sabe da puta, louro bode de merda, gaúcho desgraçado? Você
o que faz, o soldado era alérgico e não sabíamos, azar mi- tem intestino grosso no lugar de neurônios, sargento? Você
litar, acontece… O Senhor já tem muito o que fazer, deixa é praça, porra! Vai cagar mesmo na cabeça de seus irmãos
isso com a gente, Sub, deixa isso pra lá… de arma?…

PROVA
Ah, o miserável falou a senha… Minha língua pegava fogo, você me conhece…
Nada, nada desperta tanto minha fúria quanto essa fra- — Calma aí, Sub, o senhor está me ofendendo…
se, deixa isso pra lá! Vou coar camelos e mosquitos, vou às — Olha pra esta cara! Olha aqui pra minha cara!… Tem
últimas consequências!… Como assim deixar pra lá? uma queimadura aqui, vê! Tem uma queimadura aqui!…
— Ah, tudo bem, tudo bem, sargento, está tudo na mais Quem está ofendido?…
perfeita ordem, não é? Só um sprayzinho de pimenta… Comuniquei o ocorrido aos demais sargentos, soldados
bobagem. Comprou com dinheiro do próprio bolso, filho e cabos, de um por um, trabalho de formiga. Deixei claro,
de uma égua, ou do contribuinte, verba federal? Ah, tudo não vou deixar pra lá, não senhor!… Então, ontem, depois
bem, tudo bem! Você pega a mísera verba federal destina- do toque de fim do expediente, quando eu afofava o jardim
da à formação de novos sargentos, e compra a merda de com umas minhocas – aliás você precisa ver como está,
um spray de pimenta para queimar os olhos deles. Tudo plantei umas hortênsias agora que no contraste com as
na mais perfeita ordem, e eu devo procurar o que fazer, outras ficaram lindas! – aí de repente, uma sombra cresce
devo ficar lá cuidando do depósito de materiais, não é? Ah, às minhas costas – era o tenente filho da puta! Acocorado
então é assim que vocês formam novos sargentos, quei- estava, acocorado fiquei. Olho pra cima, olho pro jardim,
mam os olhos deles – lindo! É um verdadeiro poema! É fico na minha, vou cortando minhocas ao meio e enfiando
realmente lindo! Sargento, o elo entre os soldados e os ofi- na terra. O tenente filho da puta estava de oficial de dia.
ciais, com olhos queimados, cegos. Pois, meu caro, isso é Começou a esbravejar e me cuspir com aquele sotaque ri-
imoral! Mas esperem só, você e esse tenente filho da puta, dículo.
gaúcho escravagista de merda! Esperem só o que farei. Veja — Que é que tu andas dizendo aí, Antão?
só como vou deixar isso pra lá. Tenho uma bomba e vou Bufava feito vaca. O louro bode dá assim uns dois de
explodi-la, entendeu? Tenha você vergonha na cara seu ba- mim, branco feito vela, olho azul, nariz afilado e bom de
ba-ovo de merda! Respeita ao menos a cor da própria pele. esmurrar. E se ele sacar a pistola? Levantei e cerrei os pu-
Você faz isso com um irmão de arma, desgraça! Você goza, nhos.
é? Você tem orgasmo queimando cara de aluno? Você é — É esse o caminho que o senhor vai pegar? Por que
algum tipo de tarado ou o quê? Vá procurar sua diversão se for…
longe do quartel. Olha, e você nem suspeita do que um ca- Parti uma minhoca grande dando a entender… Aí a
bra desses pode fazer. Você não imagina o que ele tem no vaca recuou. Foi demais! O filho da puta teve a audácia,
sangue, não? Você acha que todo mundo é um doce, é? Se a ousadia, o… de diminuir o timbre e invocar a “camara-
o aluno de cara queimada pega você na rua desprevenido dagem”, ouviu isso? “Camaradagem”! Só faltava uma har-
ele come o seu cu, abestado! Sangue com armas: combus- pa pra acompanhar a voz doce que ele fez. Como respirar
tão incontrolável, entendeu? Você é um abestado; se esse o mesmo ar de tipos assim, Anselmo? O cara comendo o
aluno não conseguir dormir, e rolar na cama sonhando em cu dos alunos e vem me falar de “camaradagem”! Que eu
estourar a sua cabeça… Você com seu soldo de sargento deveria ter conversado com ele primeiro, que eu deveria
deve ter dinheiro pra andar com segurança, blindar o car- ter me informado melhor da situação antes sair tocando a

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trombeta por aí… Eu já estava fora de mim, possesso. lência e preguiça. Todos satisfeitos adormecidos na mes-
— Tenente, olha aqui, entenda bem: eu-não-tenho-ca- quinhez… Como suportar isso? Você me conhece, sabe
maradagem-com-ilegalidade! O senhor entendeu? Eu não que não posso suportar isso… Despedaço-me, mas viro
tenho camaradagem com essas perversões não… as costas a esse deixa pra lá! Espatifo-me contra o muro!
Aí a vaca bateu a mão no coldre. E se ele sacar a pistola E viro as costas também para a hierarquia e a disciplina,
agora? Você sabe que oficial de dia anda com uma pistola que só valem enquanto fabricam gigantes! A hierarquia e

PROVA
no coldre, não é? Sabe que enquanto ele está de serviço ele a disciplina militar só têm produzido anões aos milhares,
é o militar mais antigo, a maior autoridade da caserna… então são falsas – hora de transcendê-las!… Olhe pra mim,
Acredito que o filho da puta se aproveitou disso, covarde… Anselmo. Olhe pra mim – o que sou eu?… Sou o efeito
Alisou o cão da pistola com o dedão dizendo arrastado, colateral dessa máquina! Sou um rebento tardio do passa-
“Cuidaaado, Antão!”. Mas será possível que ele tenha es- do!… Você sabe, socaram-me no serviço militar contra a
perado entrar de serviço pra afrontar um subtenente? A minha vontade. Cheguei a arrancar um dente para que me
covardia sempre me surpreende; coragem não é talento, é reprovassem na inspeção. Governo Figueiredo, a camufla-
apenas sangue! Pois dei um passo adiante olhando-o no gem da Ditadura em Democracia, os dias eram outros…
olho. Atualmente uma massa de jovens sonha em fazer faxina e
— Isso é uma ameaça, tenente? Ouvi mesmo uma ame- perder o sono nas guaridas do quartel. É a miséria de nossa
aça?… Se o senhor prefere resolver as coisas fora das ar- época, a falta de gênio dessa geração, mais uma herança do
tificialidades, muito bem, resolvamos! Permissão para me Regime que eliminou boa parte daquele fulgor rebelde da
retirar! juventude. O deserto cresce, a miséria prolifera, a pobreza
Prestei continência, dei meia-volta e entrei na minha assola… quem pode mesmo ser talentoso de barriga va-
sala. zia, não é? Bem… mas a pobreza também atiça o espírito!
— Volte aqui, Antão! Volte aqui! Como Napoleão diz:
Teve peito pra entrar na minha sala?
Ficou duro comer e dormir depois. Aí hoje na hora do A adversidade é a parteira do gênio.
rancho eu me descontrolei, explodi e foi feio. Todo mundo
já sabia do episódio. Os sargentos vieram à minha mesa Esses jovens de hoje querem se pendurar no Exérci-
pedir que eu tomasse cuidado etc. É incrível como alguém to como carrapatos. Havendo esse excesso de retardados
sempre vem papagaiar a ladainha: deixa isso pra lá. A con- ansiosos por vestir um uniforme, como o serviço militar
trassenha subiu pela garganta como um vômito, e o mons- pode na prática ser compulsório? Canso de ver marmanjos
tro tomou conta… Gritei, esbravejei e foi uma comoção choramingando, reprovados para o serviço militar; estou
no refeitório. Sargentos de outras mesas acorreram aumen- de cabelos brancos de tanto ver isso. Quem dera naquele
tando a algazarra. Soquei a mesa e quebrei uma cadeira e final dos anos 70 tivessem me perguntado, “você quer ser-
um prato. O Adjunto de dia, amigo meu, veio me retirar vir?” como se faz hoje! Tivessem me deixado ao léu do meu
do refeitório. talento eu teria brilhado!… Nossa família é pobre, mas tem
Anselmo, o deixa isso pra lá é o axioma da moleza dos o sangue forte. Somos de linhagem nobre, nunca esqueça
militares, da falta de espírito, da ociosidade, da inércia disso; viemos de guerreiros africanos e indígenas, sobretu-
que apodrece o quartel. Onde está a força e a bravura que do somos rebentos do Tenente Benedito… Eu poderia ter
cantamos feito macacos treinados? Esse deixa pra lá é a sido político, artista, livre pensador… Sempre me empe-
conserva da nossa morosidade institucionalizada, o impe- nhei nos estudos, pergunte a sua avó! Acabei enraizado no
rativo que preserva nosso infrutífero sossego, nossa indo- quartel “entre malandros e otários”, como diz Sérgio Sam-

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paio. O fascínio das miragens me engabelou. Os rituais, as da vida – morte e nascimento. Repousou pela última vez
cores, as canções, as bandeiras, essa glória falsa do Exército, o olhar encardido no rosto da morta, face já intangível e
pregos! O patriotismo dos militares? Foderam com a Ama- infinitamente distante, próxima aos deuses, entre a matéria
zônia durante o Regime! Patriotismo de merda esse que e o espírito. E como uma tora arrebatada pelas correntezas,
entrega nosso espaço vital de mão beijada aos inimigos! Antão apanhou o voo para o Rio de Janeiro.
Patriotismo de merda se sabota nossa economia, nosso Meses depois, a irmã gêmea recebe uma carta com cali-

PROVA
mercado interno, e enriquece uma minoria escravagista! O grafia esfarrapada em folha de receita médica, que chegou
patriotismo dos militares? Piada! As virtudes do guerrei- ao destino trapaceando a vigilância hospitalar e os limi-
ro, tão adoradas entre nós nas canções, nos hinos, aquilo tes fisiológicos do emissor. Quase desmaiou ao decifrá-la;
tudo enfeitiçou meus olhos… Anselmo, você fez bem em bem que teve um sonho ruim, elo misterioso entre gêmeos.
não ter se enfiado naquele covil que é a escola de cadetes; Poupou a mãe dos detalhes. Um Tio residente no Rio de Ja-
isso de filosofia, ao menos, é melhor que carreira militar, e neiro, tenente reformado da Aeronáutica, ficou encarrega-
se você for bom, vai conseguir sobreviver… No Curso de do de resgatar Antão do pavilhão psiquiátrico do Hospital
Sargentos, você conhece a história… e no Curso de Guerra Geral Militar.
na Selva, outra vez sacaneado! Não sou um efeito colateral? No ano seguinte, Antão reingressou no Curso de Sar-
Quem está à minha altura? Por acaso estou tendo o delírio gento e o concluiu com louvor entre os melhores. Introme-
do diabo? Vá lá e veja! Pergunte quem é Antão nos quartéis to aqui notas de rodapé: Antão foi atirado no manicômio
por onde passei. Está tudo documentado. Nos arquivos. Na por conta de excessos de saúde e vitalidade, algo intolerá-
memória… E se a saída for a guerrilha?… O Brasil precisa vel num curso de formação militar. Recorda-se da gargan-
de guerrilheiros, cangaceiros urbanos saqueando bancos, ta inflamada, efeito da mudança de clima. Nos intervalos
distribuindo a renda, causando pavor nos mandachuvas… entre as instruções, ia no armário e dava uma talagada no
“Você conhece a história”: Aos dezoito anos Antão foi frasco de antibiótico. Aquele foi um dos verões mais quen-
prestar o serviço obrigatório como soldado de artilharia tes já registrados, quase 40º, e pode ser que o frasco cozi-
no 10º Grupo de Artilharia de Campanha, atualmente de- nhando no armário tenha se alterado… Recorda-se de ter
sativado. questionado tal oficial durante uma instrução, e empunhar
— Estou grávida, o que faremos? a voz amolada, com uma força animalesca e explosiva nas
É o que escuta meses depois da garota um ano mais veias… “chegar até general como o Brigadeiro Sampaio!”,
nova que ele. Extasiado, o soldado recosta a mão grossei- era o lampejo. Acordou três dias depois, sedado e sujo, no
ra na barriga da amada apalpando um pedaço de si. De pavilhão psiquiátrico do Hospital Geral Militar do Rio
moral exemplar e notável inteligência, recebeu dos sargen- de Janeiro. Um cabo internado há cinco anos, viciado em
tos o conselho de se inscrever na seleção para a Escola de psicotrópicos, foi seu Virgílio durante essa temporada no
Sargento das Armas, solução plausível para o sustento da Inferno. Sintoma de déficit na sanidade mental só veio no
nascente família. Ficou entre os primeiros colocados sem ano seguinte: a disposição de repetir os mesmos passos
dificuldades, e tudo mais ocorreu aos borbotões sem dar reingressando no Curso de Sargento, os níveis de saúde e
tempo para uma decisão entre parênteses. Pelos cálculos, vitalidade se equilibrando na adaptação, na formação…
o bebê nasceria um pouco antes do voo para o Rio de Ja- “No Curso de Guerra na Selva, outra vez sacaneado”:
neiro, onde ficaria por um ano e meio no curso de forma- Conta-se nos dedos as vezes em que Antão se referiu ao
ção. Complicações na gestação e o parto prematuro espe- passado dessa maneira. Só agora Anselmo fica sabendo
zinharam as previsões. O que aconteceu depois o leitor já que por muitas noites o pai teve pesadelos com a Selva
conhece: duas tempestades mescladas, duas extremidades Amazônica, e quase pirou com isso. De serviço, dormindo

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uniformizado, abria os olhos no ar livre da Mata; caminha- vam pistolas em cipós, uma das armas despencou no chão.
va empunhando o fuzil por entre as brenhas e sombras dos Estava travada, não disparou, não feriu ninguém exceto
grandes troncos, afastava com a mão os gordos cipós ver- Antão, que foi imediatamente desclassificado por imperí-
des cinzentos, a folhagem úmida chilreava sob os coturnos; cia.
pelos pubianos da Terra. Harmonizado, sem pensamentos, A irmã quase não o reconhece no Aeroporto; mais pa-
puro como uma onça, feliz como um sapo-cururu. De re- recia um sobrevivente de campo de concentração, um re-

PROVA
pente a luz do Sol viola as copas e lhe esmurra as pálpebras, tirante da seca. Ali mesmo a irmã lhe conta que seu filho
e ele desperta na cama sufocado pelas paredes do dormitó- está internado há alguns meses. Antão murmura entre os
rio. A repetição desse pesadelo o agoniou até ele aprender dentes, “Não vai escapar dessa vez”. A irmã finge não ouvir,
com os instintos, que antes de repousar a cabeça no tra- e engole o choro. Meses depois, Antão tirava o serviço de
vesseiro tinha de mentalizar sua saída da selva, despindo- adjunto ao oficial de dia quando transferiram o telefone-
se do uniforme, vestindo a roupa civil, pegando o avião, ma da irmã ao ramal da Guarda. Os soldados de serviço,
voltando ao Ceará. Assim desamarrou a alma dos cipós da sentados com fuzis entre as pernas, notaram a mudança na
Amazônia. expressão do sargento, que pôs o telefone no gancho e se
Voluntariamente o militar envia a solicitação ao Cen- apresentou imediatamente ao oficial de dia. “Uma viatura,
tro, com vários documentos e comprovantes. A papelada é tenente! Meu filho teve alta são e salvo; vou pessoalmente
examinada e eles decidem se a solicitação será aceita. Em deixá-lo em casa”. Não é coisa recomendável, o oficial de
caso afirmativo, ele viaja para longe da família e passa me- dia sabe que procissão assim só em emergências como a
ses sob a tutela de uns putos oficiais. Fome, sede, privação captura de um desertor. Mas quem faz o pedido é Antão
de sono etc. O militar aprende coisas que será bom se nun- e o oficial de dia, 1º tenente recém-chegado da Academia,
ca precisar praticá-las. O soldo não aumenta, pelo contrá- com menos de trinta anos, recomendou que fosse rápido.
rio, há dispêndios. Para ganhar o quê? Mais rugas e cabelos “Uma hora basta, senhor!”.
brancos. E para quê? Exibir no uniforme um brevê. Sim, Anos mais tarde, um assalto às sentinelas da hora ar-
uma bosta de brevê feito de pano bordado, e talvez com rebatou três fuzis. Antão, promovido a subtenente, estava
umas bordas de borracha, a ser costurado no gorro ou na fora da escala de serviço, mas solicitou ao sargenteante que
gandola! Entenda então os punhais espicaçando os tímpa- o reintegrasse temporariamente. Cabra mais doido, pensa
nos de Antão, diariamente, quando uma tropa em marcha o sargenteante, é todo mundo fugindo da escala de serviço
entoa a ladainha: e vem esse! Pediu também que o pusesse como adjunto da-
quele mesmo tenente, de preferência. O assalto aconteceu
Olha a onça dele no chapéu no serviço dele, e o tenente andava mal, se equilibrando
Olha que essa onça é o seu troféu com remédios, não sorria mais, diziam – e sorrir é essencial
Olha que essa onça não é fácil de se ter à saúde do militar, a solenidade interminável é um veneno
A fome e o frio é grande e o cansaço é pra valer! e é por isso que as chocarrices e as pilhérias são essenciais
ao funcionamento da caserna. Os assaltantes, decerto ex-
Antão foi grandioso no Curso de Guerra na Selva. Pe- soldados, conheciam os meandros do serviço de guarda
gando carona em seu moral, outros concluíram o curso. do quartel, as horas de troca de sentinela e outros deta-
Todos os dias os instrutores trombeteavam, “Alguém quer lhes. Pois que viessem quando Antão estivesse de serviço!
ir pra casa hoje?”, sempre tinha quem levantasse o braço. O sargenteante ouviu falar, Antão era do 10º Depósito de
A dureza do treinamento sobrepujava as expectativas. Na Suprimento quando houve a invasão. A multidão dos sem-
última semana, numa instrução na qual os alunos amarra- teto cortou as cercas e se apropriou de parte da área mili-

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tar adjacente ao quartel. Antão estava de adjunto ao oficial no à narração de Antão.
de dia, sem conseguir dormir, embora o Comandante do — O Comandante, o homem lá de cima, desceu do seu
quartel tivesse se calado, a ordem era para não fazer nada, trono de glória e veio falar com o relé aqui. “Antão, você
os trâmites se processavam nas altas esferas. Passaria o seu anda se preocupando com os alunos, pelo amor de Deus,
serviço com alteração ao próximo adjunto, como dormir? com os alunos! Tem sargento e tem tenente pra cuidar
— Serviço com alteração. disso aí!” Com a mão no meu ombro, o Coronel sussur-

PROVA
— Qual? rava essas coisas no meu ouvido. A conversa não foi no
— Invasão na área militar do quartel. seu gabinete, foi diante do jardim plantado por mim, no
Não, isso nunca! Mas Antão, é uma multidão de sem-te- meu lugar de poder. “Coronel, está na minha esfera; sou
to, já tem vereador, partidos, advogados e a cambada toda o praça mais antigo da caserna. Minha esfera, se não por
do suporte. Mesmo o Comandante ainda não se pronun- ordem oficial, por ordem moral. Além disso, eu me preo-
ciou a respeito. Sim, sim, é um bando de maltrapilhos que cupo comigo também; uma alma sebosa daquela de arma
necessita dessas terras mais do que o quartel, é evidente. E na mão… Bem, se é esse o caso… Se é pra deixarmos as
sim, com razão, toda razão, o bando força as coisas, invade formalidades, ora, o que ata as minhas mãos é um fio de
e pilha. Até aí tudo bem; são efeitos de injustiças profundas cabelo! É pra cuspir nas artificialidades? É barbárie, pois
no país, com toda certeza; sem Reforma Agrária não se cria bem, aux armes, et caetera!”. O Coronel já não suportava
República que preste. Mas, no meu serviço?… mais me ouvir. Apertou meu ombro pra me fixar no chão
— Serviço com alteração. e perguntou, “Antão, o que você quer? O que você quer
— Qual? afinal? Deixa isso pra lá, homem!”.
— Invasão da área militar… Anselmo, a Academia de oficiais é continuação da Casa
Isso é que não! Registrado no livro de partes para ficar Grande. O oficial é descendente do colonizador europeu.
na memória que no serviço de Antão invadiram a área mi- Os praças são a descendência dos nativos, os que nascem
litar do quartel? Isso é que não! da mistura das “raças tristes”. O Curso de Sargento é uma
De madrugada, bateu na cama de dois soldados e pas- espécie de elo entre Casa Grande e Senzala, escola de capi-
sou as instruções. Só agir por comando, armem baione- tães do mato. Você, que é o filósofo, faria bem se pensasse
tas, mantenham a empunhadura, o de praxe. A equipe es- nessa direção em vez de papagaiar Kant ou Marx ou outro
correu pelo mato escuro até as tendas. “Quem é o cabeça qualquer… Acha que isso não tem a ver com você? Acha
aqui!” Quando a multidão viu os fuzis e a pistola, levantou que a escravidão é um fato acabado, turismo africano que
as mãos. “É o seguinte, a razão está com vocês. O certo é apimentou nosso sangue?… Lembrei agora de uma pia-
esse, tomar na luta o que é preciso tomar, agora – no meu da… Ah, mas sabe o Capitão Monte Negro, um louro bode
serviço não! Então, metam o pé na carreira daqui senão alto que comandava a terceira companhia quando você es-
vai ter morte e não tem advogado, vereador, partido que tava no último ano, no Colégio Militar? Dia desses encon-
devolva a vida! Amanhã, depois que eu passar o serviço, trei ele aqui, no churrasco do Dia da Infantaria. Veio vo-
vocês voltam”. O sargenteante recordava a história, que só mitar bêbado nos meus ouvidos dizendo que você era um
podia ter exagero, enquanto registrava os pedidos do sub- “apagadão”, um “bisonho”, um “moita”, isso para me atingir.
tenente. “O cabra é doido e com doido não se discute!” Que você não dava mesmo pra Academia das Agulhas Ne-
— E você tem filho, Antão? gras, “é mesmo seu filho, Antão?”… Entende o que quero
— Agora tenho, tenente. dizer?… Eu tremi com vontade de enfiar o copo na boca
O tenente não entendeu bem, deve ter escutado mal en- dele. “Capitão, ainda bem que o senhor não mexeu com
tre roncos da viatura velha. Concluo esse anacoluto e retor- ele, porque dentro dele tem um igualzinho a mim que o

124 125
senhor não gostaria de conhecer. Com licença, permissão se apropria de nosso trabalho! Quantas vezes fui babá de
pra me retirar!”. Anselmo, a escravidão perdura; o sistema tenente? Ah, lembrei agora de uma historinha que conto
se prolonga e se aperfeiçoa… Ah, a piada, o Brasil morreu nessas festividades militares. Fábula baseada em fatos:
e foi pro inferno, conhece?
O filho do general acabou de sair da Academia de Ofi-
O Brasil morreu e foi pro inferno. Chegando lá, tinha um ciais. O pai o chama até seu gabinete e diz: meu filho, tenho

PROVA
monte de brasis dentro do caldeirão fervente, e o cão mexen- orgulho de você, peça-me o que quiser e eu concederei. O
do. Tinha o Brasil imperial, o Brasil paulista, o holandês, o aspirante coça a testa, fica em silêncio por alguns instantes,
Brasil da Revolução Farroupilha, o da Primeira República, o e finalmente responde: pai, o senhor pode conseguir um sar-
do Estado Novo, o da Ditadura, enfim, porrada de brasis. O gento só pra mim?…
cão mexendo com a colher. Aí um lá com sotaque imperioso
gritou: Não é boa? Conto para arrancar a casca da ferida. Os
— Para! oficiais se atiçam: “Ô, Antão, nunca ouvi falar disso aí, não!
— Hum? Que foi? Em que unidade aconteceu isso?…”
— É que tá faltando gente aqui. Antão olha as horas no relógio de pulso: três da madru-
O cão contou, um, dois, três… gada. Com um aceno chama Seu Benício. As palavras em-
— Não, tá todo mundo aqui. briagaram mais do que a cerveja. Pai e Filho estão exaus-
Voltou a mexer. tos e sonolentos. Seu Benício já tinha recolhido as mesas
— Não, tá faltando pelo menos três aqui. Cadê o Brasil e recusado novos clientes, “já já já tô fe-fechando”. Teria
do negro, o do índio e o dos cabeças-chatas sertanejos? baixado o portão rolante às duas, que amanhã cedinho fará
— Ah! Fugiram. Os pretos fizeram um quilombo no céu. compras e resolverá uns problemas para o filho. Pretendia
Os índios estão tentando demarcação de terra por lá. Os dormir cedo, mas estava ali “o Sargento”, chamava-o assim,
sertanejos, como sempre, retirantes, saíram em procissão no à maneira do filho, ex-soldado de Antão. O Sargento salvou
rumo de lá; parece que São Pedro vai reservar um campo de sua vida e isso não será esquecido. O velho quase enfartou
concentração pra eles… temendo perder o unigênito para a “vagabundagem”. O
Aí o Brasil de fala imperial se revoltou: rapaz fugia dos estudos e dos serviços no bar. Depois da
— Se é assim eu vou fugir também! morte da esposa o que lhe restava no mundo senão o ga-
O cão caiu no chão de tanto rir. roto? Trabalhou duro e pagou o melhor colégio que pôde;
—Ah, não meu senhor. Pra fugir daqui tem que ser muito na escola pública só aprenderia o que não presta. Não foi
mas muito bom, tem de ter passado a vida inteira durante fácil bancar as mensalidades acrescidas de taxas e outras
séculos fazendo a mesma coisa. tantas invencionices. Valia a pena: negociaria até com o
E voltou a mexer a sopa fedorenta. Cão para fazer do filho alguém, de preferência um médi-
co, para cuidar da saúde do velho pai quando chegasse a
[…] Somos nós, praças, que educamos esses retardados, hora, porque cair na mão dos médicos do hospital público
os oficiais. Somos nós, praças, que ensinamos a sabedoria é caixão na certa. Danou-se; o garoto de dezessete anos se
diária do quartel. Que seria deles sem nós? Perdi as contas trajava feito delinquente com brincos nas duas orelhas. No
de quantas vezes fui babá de tenente! Não nego minha an- que tinha errado, meu Deus? Tatuagem? Tiro ela do seu
tipatia ao comunismo soviético, atentado à nossa sobera- couro com ferro de passar, seu vagabundo! O dia inteiro
nia nacional, mas como negar que no quartel tem trabalho assistindo à televisão, e só levantava do sofá para comer,
alienado e luta de classes? Os oficiais são uma classe que cagar e deambular pelo mundo até de madrugada. Como

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se não bastasse a preguiça, tão destoante da juventude do mem para homem. Seis felizes anos de infantaria se passa-
pai, em Mulungu, que andava quilômetros para chegar à ram, dois de soldado e quatro de cabo.
escola onde fez até a quarta série; carregava baldes d’água — Um excelente infante, excepcional auxiliar do qual
do chafariz até em casa, no alto, ao lado da Igreja de São sinto falta até hoje…
Sebastião; tirava o café do forno e do pilão, e para comer Dizia Antão ao velho relembrando-o a quem ele devia a
cuscuz, mugunzá e canjica era com o suor das horas traba- vida. Enchiam d’água os olhos verdes enrugados. Chegan-

PROVA
lhando o milho. “Tem tudo nas mãos, esse é o problema!”. do o tempo da baixa, o rapaz convertido em homem su-
Como se não bastasse a criminosa preguiça, meteu-se com pereficiente e disciplinado engenhou um empreendimen-
drogas. “Nesta casa não, seu vagabundo!” O único filho um to no mercado da segurança, e foi bem-sucedido. Agora
drogado? Antes fosse abaitolado! “E essas bitucas aqui de- nutria o sonho de ter Antão como chefe do treinamento
baixo da cama? Maconheiro você não vai ser que eu não dos guardas. Assim esse pipocar de empresas de segurança
trabalhei feito mula pra isso não!” Deu-lhe uma sova com privada não ameaçaria seu negócio – teria esse “Curinga”.
cabo de vassoura e no dia seguinte o garoto desapareceu. Ano passado implorou para que o Sargento fortaleces-
O filho pródigo regressou três dias depois, magérrimo e se sua campanha para vereador e “desse uma palavra” no
fedorento. Deus é Pai! Seu Benício agora pisava em flores comício que faria ali mesmo, no Bar, juntando vizinhos e
e cobria o filho de mimos. Até aumentou a mesada e com- familiares. Em troca doaria fundos à recente associação de
prou o videogame, parafernália comedora de tempo pela amparo jurídico aos praças, da qual Antão era cofundador.
qual implorava há meses. O garoto dormia até o meio-dia — Quando eu for reformado ainda estarei inteiro o su-
enquanto o velho grudava os olhos com fortes remédios e ficiente para me dedicar a coisas assim; por ora tenho ou-
chá de camomila. Ouvia um ruído na sala e saltava da rede tras prioridades…
– era o filho metendo a mão no caixa e escapulindo pela O ex-soldado consentia recordando o estilo empreen-
madrugada! Não, era um cão mijando no portão rolante; dedor do Sargento, um exemplo – “o senhor deveria escre-
o filho era um corisco impossível de ser flagrado. Onde ele ver um livro!”. Com ele aprendera as lições que aplicava co-
estaria às duas da manhã, meu Deus?… Falta pulso forte, é tidianamente; “caminhe o quilômetro extra!” Não esquecia
isso? Será falta de compreensão da “crise da adolescência”, a fórmula e renovava sua eficácia repetindo-a diariamente
como disse o doutor na televisão? No meu tempo, lá em aos seus empregados. Em suas palestras comovia-se nar-
Mulungu não tinha isso de “crise da adolescência”. Mato, rando o episódio emblemático que ilustrava a “lei do qui-
se for o jeito, mas vagabundo ele não será! Raimunda, que- lômetro extra”. O Comandante da companhia foi à sala de
rida, de onde esteja, ajuda teu velho aqui! Virgem Maria, Antão com uma lista de tarefas não cumpridas no prazo
rogai por nós, pecadores!… estabelecido. Na posição de descansar, o Sargento ouviu
Seu Benício conhecia Antão desde que ele era um mo- pacientemente o oficial debulhar a relevância daquelas três
leque brigão. Apelar para ele foi o último recurso, o franga- tarefas. Quando o Comandante se calou, Antão desfez a
lhar dos nervos amolecendo a altivez de interiorano. posição de descansar para retirar da gaveta um bloco de
— Deixe comigo, Seu Benício. Deixe comigo… notas e entregá-lo ao oficial.
Antão estancou as lágrimas do velho e arranjou tudo — Capitão, reconheço minha falha, não cumpri no pra-
para ingressar o rapaz nas fileiras do Exército, por ocasião zo, e pedirei ao senhor compreensão pois só poderei termi-
da prestação de contas com o serviço militar. Como era de nar essas tarefas depois de amanhã, e o senhor tem toda ra-
se esperar, o rapaz bateu o pé e ameaçou fugir se tivesse zão, não cumpri no tempo previsto as missões dadas pelo
de vestir uma farda. Mas Antão o convidou para sentar-se senhor, mas, veja aqui as missões que eu mesmo me dei.
com ele à mesa, beber umas cervejas e conversar de ho- Na página do bloco tinha uma lista de dez trabalhos

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de importância e urgência superiores. E como ele, Coman- mesa, Seu Benício vislumbra as modificações que faria no
dante da companhia, ignorava aquelas urgências? Antão bar, e infla o peito com o oxigênio que sai das caixas de
havia se antecipado, tomado a iniciativa, “proatividade”. O som:
capitão se demorou observando a lista farejando vírgulas
fora do lugar. Teu infinito sou eu, sou eu, sou eu…
— Ok, Antão, mas que não passe de depois de amanhã! No Corcovado, quem abre os braços sou eu…

PROVA
Quando o Comandante deu as costas, mestre e lacaio
caíram na gargalhada. Antão cai morto de sono no sofá da sala depois de bal-
Seu Benício queria ter fechado às duas da madrugada, buciar algo ininteligível.
mas agora tinha concorrência lá na ponta da Rua. É o filho — Esse louro bode filho do Benício… um imbecil!… Só
do Babau, um maconheiro pichador de merda que havia pensa em grana… Você é mil vezes melhor do que ele, An-
virado crente, agora desvirou e inventou de montar um bar selmo! Mil vezes… Você será gigantesco… Eles são todos
no começo da Rua. Vivia aqui cercado de uns universitários anões… anões…
metidos a besta, e agora inventou isso de montar um bar… Anselmo tranca a porta do quarto, sonolento e exausto,
Fecha em menos de um ano, com certeza, aposto! Não é má e senta à escrivaninha; não pode dormir sem escrever al-
pessoa o rapaz, mas vai quebrar a cara – inveja mata! Sim, gumas linhas. Transfusão à anemia do papel, sangria que o
o Bar é até bonitinho, cheio de firulas e tem até caricaturas desintoxicaria da palavra do Pai. As folhas brancas na ga-
de deuses desenhada nas paredes, Belchior, Cartola e Chi- veta da esquerda, nunca tão neutras, nunca tão passivas…
co. E tem até banheiro perfumado para as mulheres… Mas Deitados, os papéis esperam quem nunca está tão pronto,
qual Bar tem a “Criação do Homem” de Michelangelo no tão ereto e tão possante para o coito. O branco nesse papel
teto, hem?… Dia desses fui lá jogar uma partida de sinuca não é vazio. Urge fazer sangria e abrir um deserto nos pa-
e desejar boa sorte, ver de perto. Gadinho, perdeu feio; eu péis com a aspersão do sangue, limpá-los da palavra do pai
não jogo – leciono! Não tenho estudos, mas leciono isso e camuflada neles como soldados entrincheirados na neve.
outras coisas… Escuto que o rapaz não tem jeito pra coisa, Urge escurecer a página, ejacular trevas e moldá-las a pon-
que não contenta a clientela; ora é molenga ora exagera na to de elevar a página e a ele ao apagamento da palavra do
indispensável grosseria que o dono de bar precisa ter. Falta Pai. Escrever é apagar a palavra do Pai, esse é seu sentido,
virtude, falta experiência! Vocação de dono de bar é como sua função, seu poder, seu feitiço e seu ideal.
a de pescador, tem que conhecer a movimentação do mar A palavra do Pai desenhava o plano para o Filho fixan-
e dos peixes. Não é pra todos. O ponto é bom, ponta da do-o no cruzamento de um curto-circuito. Palavra de pre-
Rua 12 beirando o Calçadão, mas um bom navio exige um gos que imobiliza seus membros. O Filho cresceu puxado
bom capitão, ou afunda. Mas aqui, cu da Rua, está quem por duas cordas. Uma linha interrompida, a iconoclasta li-
faz da noite festa, quem apazigua a vizinhança e a polícia, nha do ódio aos oficiais. Uma linha inteira, a idólatra linha
e é como árvore plantada na beira da lagoa, graças a Deus! do amor aos oficiais. As oscilações do Pai se apresentavam
Ah, Raimunda, olha por mim do céu, tenho de vencer nos em trigramas e hexagramas feitos da combinação dessas
negócios! Deixe estar que vou fazer a reforma e incremen- duas linhas. Com a orelha esquerda o Filho ouvia as de-
tar, fazer o banheiro das mulheres, encher as paredes de núncias das falsas glórias dos tenentes, capitães, coronéis
quadros e colocar a cerâmica xadrez. O Maracanaú sou eu! etc., o desmascaramento das estrelas mortas nos ombros,
A noite perfeita é aqui! Deus que nesse teto se estica todo da frouxidão dos oficiais diante da guerra. Com a ore-
para tocar o dedo preguiçoso do Homem, segura aqui na lha direita escutava as descrições entusiastas do caminho
minha mão!… Enquanto aguarda pai e filho deixarem a rumo ao oficialato, até a entrega do espadim na academia

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de oficiais, ritual de conclusão do triunfo. Que o Filho fos- dequada. Todavia era essa ideia que endemoninhava o Pai
se além do Pai, corresse o quilômetro a mais, e se tornasse quando falava de seu Avô, Tenente Benedito, e atualizava a
um oficial. Tem o dever de honrar a memória do Bisavô, mito do clã; quando apresentava as lições das raças guer-
Tenente Benedito cuja fama se espalhava no sertão e no li- reiras… Para as civilizações antigas a concepção atomista
toral, e punha medo até em Lampião, segundo contava-se. de indivíduo era estúpida. Estar plantado na nobreza dos
Em homenagem aos seus esforços, uma lei deu seu nome à ancestrais é que era vital, e só assim nascem os gigantes.

PROVA
Cadeia Pública do Município do Trairi, onde fora delegado Cada homem é a ponta de uma linha amarrada a tempos
até 1935. Curioso é que só pelo primeiro nome se diferen- remotos. Os tupinambás, os gregos, os romanos e até os
ciava de Lampião; Benedito Ferreira da Silva e Virgulino judeus com sua obsessão por genealogias pensavam assim.
Ferreira da Silva. Silvas nascidos do mesmo solo seco, com O Pai tomava a postura de caminho estreito por onde o
a mesma pele curtida, caboclos brabos, no fundo próximos Filho teria de passar; cruz na qual o Filho seria crucificado
como o mandacaru e o xiquexique. para alcançar a glória de um deus. O Pai materializava as
O Filho cresceu forçando as linhas do plano do Pai re- emanações da divindade ancestral do clã, Tenente Benedi-
desenhando-as por meio de minúsculos deslocamentos, to; o Filho era a matéria amorfa na qual o Pai imprimia as
como os que os alunos cometiam na posição de descan- ideias retiradas do seio do deus do clã. Caso o Filho não
sar ou de sentido, durante os exercícios de ordem unida, se sujeite ao modelo original, resta-lhe apenas o caos e a
à revelia dos gritos do sargento, “não mexe, só respira!”. degeneração. Esse é o céu onde se firmavam as constela-
Sua decisão de cursar Filosofia no lugar de rumar à Escola ções abstratas. Abaixo dele, no chão, Antão era um penoso
Preparatória de Cadetes do Exército fez emergir relevos bi- regime de extravagâncias, de oscilações bruscas excessivas
zarros no plano do Pai. A prudência das serpentes picava a e desmedidas da natureza. Era insolações intercaladas por
carne, as linhas serpenteavam, o crucifixo eclodia em rosa- aguaceiros ácidos sob forças de agentes desordenados e fu-
dos-ventos. O espírito do Filho vagabundeava em procis- gitivos, orquestrações das leis caóticas do clima sertanejo.
são por lugares ermos ignorados pelo Pai. O mau-olhado E ao pé dele, no chão, Anselmo cresceu desenvolvendo seu
tinha de se virar em mal-olhado como questão de vida ou sistema imunológico, os antídotos do sangue, as feições es-
morte. O mau-olhado e o mal-olhado permutavam matan- tratégicas da caatinga, a neutralidade armada dos cactos
do e ressuscitando o Filho, mordendo e assoprando. Quem que se acostumam aos regimes excessivos, como bem des-
chega à porta dos fundos que une a cozinha ao quintal en- creveu Euclides da Cunha:
xerga o menino falando sozinho sentado numa pedra per-
to do chiqueiro dos porcos, sem perceber as civilizações Tipos clássicos da flora desértica, mais resistentes que os
que brotam de seus dedos. De sua altura, o Pai ignorava o demais, quando decaem a seu lado, fulminadas, as árvores
quanto sua pregação socorria as revoluções do Filho. Por todas, persistem inalteráveis ou mais vívidas talvez. Afeiçoa-
isso é que não tinha importância explodir o império do ram-se aos regimes bárbaros; repelem os climas benignos em
Pai; em certo sentido ele seria cada vez mais expandido que estiolam e definham. Ao passo que o ambiente em fogo
com proliferações aberrantes. O Filho depurava o plano do dos desertos parece estimular melhor a circulação da seiva
Pai de seus cancros malcheirosos, das torres inúteis, das entre seus cladódios túmidos.
alfândegas, das muralhas, dos gases esterilizantes e das lu-
zes incertas de ideias confusas. Por exemplo, a ideia de que Sonolento e exausto, não dorme sem escrever, sangria
o Pai é um tipo de sargento, (único) elo entre o oficial e o que o desintoxica da palavra do Pai. Escrever contra a pa-
soldado, único mediador entre o Espírito do Deus e o Fi- lavra do Pai, contra a palavra-prego, contra a palavra-té-
lho, o liame entre o Passado e o Futuro, era uma ideia ina- tano, contra a palavra-crucifixo! Escrever para afrouxar o

132 133
destino de ser a carta interminável do Pai, a “ordem que
seria obedecida por um século”. Escrever para neutralizar a
saliva que cai na circulação sanguínea e catalisa e direciona
a herança genética. Contra a Palavra, jorrar a sangria que
expia a vida, a escrita. Sangria que produz a saudável ane-
mia que limpa as veias para que insurja um sangue novo

PROVA
das profundezas; um sangue que produz zinzum, vazio di-
vino a ser engravidado.
Das venezianas o Sol coroou Anselmo, que murchou
feito um vampiro e dormiu com a cabeça caída nos braços
sobre a escrivaninha. Os deslizes dos pés no outro lado da
porta o despertaram horas depois. Ergueu a cabeça, oito da
manhã! Depositou as folhas rabiscadas no Baú e se estirou Morte
na cama. É quinta-feira, já perdeu a aula da manhã. “Nada mais indispensável para a verdadeira religiosida-
de que um termo médio – que nos vincule com a divindade.
Imediatamente o ser humano não pode em absoluto estar em
relação com ela. Na escolha desse termo médio o homem tem
de ser inteiramente livre”. Novalis.

Sábado. Casa de Maria. Cinco da manhã. Náufrago de


um sonho tempestuoso, Anselmo acorda entre algas gela-
das, pedras roliças e espumas amargas. Respiração difícil,
as narinas entupidas com a areia salgada da praia. Tem
uma bola cabeluda flutuando em seu peito de água-viva.
Respiração difícil, mas já tem ouvidos para se irritar com a
música do rádio relógio. A bola cabeluda sobe e desce em
seu diafragma, e ele já tem olhos suficientes para a réstia
que cai da janelinha acima do fogão. Como um rio por en-
tre as pedras, ele desliza por debaixo da cabeça cravada em
seu pulmão, e senta à mesa adiante. Entre o fogão e o quar-
to, no umbigo da casa, ele enxerga melhor. Ainda tem gala
onírica e algas marinhas entranhadas nas articulações dos
ossos. Sentado na cadeira, ele aguarda que esses vestígios
evaporem, que o ventilador e o feixe de Sol da janelinha os
vaporizem de vez – e que a glória de Maria ocupe o quarto.
A réstia que cai da janelinha engorda lambendo as cores
dos móveis e das paredes, escalando a cama para degustar
a colcha de retalhos feita de seda, pano e pele.
Na Capela do Colégio Militar acontecia algo assim, e

134 135
pouco importa se ele recorda; acontecimentos assim abrem
buracos no cérebro! Sobre os pavilhões das Companhias, Levantou-se da cadeira sem motivo e deambulou ao re-
dos prédios e das pracinhas, o Sol escarrava desprezo ao dor da mesa. Deu-lhe o ímpeto de pôr o pé direito na boca
chão infestado de insetos murmurantes nos jardins move- aberta do forno, escalar o fogão e olhar lá fora através da
diços, às feições curiosas das raízes e dos troncos chorando janelinha. As partículas de poeira viajando no feixe de Sol
resinas, às formas tristes das estátuas nas praças, às varia- davam a ideia, mas os músculos flácidos o fizeram desis-
ções de tamanho e cor das cabeças dos alunos… Era a Luz tir da empreitada. A mancha de dor se esparramava pelas

PROVA
branca e puritana de Newton se enojando das dez-mil-coi- costas. Deu dois passos arrastados com os pés descalços no
sas coloridas, o despotismo do Sol de Platão e Agostinho chão frio. Aproximou-se da cama e apreciou o ronronar
que pisoteia as multiplicidades terrenas. Mas quando a luz de Maria. Ela estava nua e umedecida de suor, uns fios de
atravessava os vitrais da Capela, se estilhaçava em tonali- cabelo grudavam em seus lábios entreabertos e uma me-
dades incandescentes, em cores histéricas e atonais, e en- cha ondulava ao sopro do ventilador. Encurvou-se, e com
carnava o Deus ao vivo e a cores expresso no lascivo grito o indicador e o polegar, despregou os fios de cabelo de sua
dos santos de pedra. As pedras viravam pães! A dor se per- boca e os ajeitou atrás da orelha. Sucedeu-se então um mo-
sonificava nos pés e nas mãos do Cristo em brasa, feridas vimento que só pode ser apreendido de dentro, do ponto
que afloravam salivantes vaginas entre o Céu e a Terra. Os de vista do miolo do instante.
vitrais da Capela eram as lentes com que a Natureza cha- Pode esse ajeitar fios de cabelo atrás de uma orelha abrir
muscava os neurônios e abria neles buracos de minhoca. bocarra no chão? O que esse gesto simplório teria a ver
Pois bem, a mesma luz despenca agora da janelinha acima com um terremoto de liquefazer joelhos? A sucessão de
do fogão e se estica até a cama para revelar a glória de Ma- dois eventos não quer dizer causalidade entre eles, sabe-
ria. Bastava sentar à mesa e esperar. mos. A sorte de Anselmo é que a cadeira estava um tanto
Anselmo esfrega os olhos na carne da Amada, e uma afastada da mesa e ele conseguiu aparar as nádegas no as-
dor suave lhe pesa na nuca e nas pálpebras. Foi à geladeira sento quando as pernas se esmigalharam de supetão junto
e bebeu um copo d’água, os pés chumbados quase não con- com o piso. Não fosse isso, a bocarra infernal o teria en-
sentiram. Sentou cambaleante de volta à mesa, os cotovelos golido.
crespos no tampo frio de mármore. A dor se dissemina- A cabeça desmaiada no antebraço sobre a mesa, Ansel-
va pelo pescoço feito mancha negra em rio. Sempre que mo aguarda a passagem do terremoto. Diabos! Esperava
tinha variações assim temia ser a tal aura, prenúncio de a glória de Maria e veio o quê, um disco voador, o Sol em
uma convulsão. Os anos não dissolviam o pavor de uma pessoa pela janelinha! Diabos! Arribou as pálpebras para
segunda convulsão. Águas passadas não movem moinhos. afugentar a névoa de imaginações com a visão das paredes.
De ouvir falar sabia da aura. Não tinha conhecimento A febre às vezes produz ideias sem contrapartes concretas
experimental acerca dela como tinha da febre, sinfonia e se torna uma usina de confusões e delírios. Céus, os pés
conhecida em seus muitos sons e instrumentos. Seria a quase foram devorados pela vagina dentada que se abriu
convulsão uma experiência de liberdade a ser explorada? no chão! Seria isso a tal aura? Sustentava os olhos abertos
Desaparição, completa ausência de controle, êxtase… Não, sobre os ângulos de concreto, sobre os poucos móveis, com
as vísceras pressentiam o inverso, que a convulsão era o dificuldade.
triunfo do automatismo dos gestos, da mecânica orgânica Caminhar! Pôr os pés no chão! Enrijecer os músculos
irresistível e determinante, vício… Peixes não padecem o com alguma ação!…
peso do rio… Sua vida inteira podia estar imersa na tal da Talvez isso sacuda a tontura modorrenta. Levantou-se
aura e por isso nunca a tinha sentido?… da cadeira e sob o peso do corpo os pés criaram carne.
Convém inquirir a ordem das causas, conhecimento

136 137
indispensável sem o qual estamos à mercê da superstição. Em geral, são práticas que dependem da perícia do adivi-
O que vem primeiro e o que vem depois? Qual é a relação nho, que além de vocação divinatória, marcada por uma
entre o instante X e o instante Y? O instante segundo é que “doença de chamamento”, exigem um longo aprendizado.
explica o primeiro?… Com custo, saindo da infância, nos- Talvez por Anselmo ser ainda um noviço, na arte, o que
sa inteligência desenvolve a aparelhagem que coordena as se passa nesse instante seja confuso, e destoe de tudo que
percepções e concebe o espaço, único e contínuo, onde as aprendera a respeito. Era crucial conhecer adequadamente

PROVA
coisas se relacionam por nexos causais. Convém não retro- o encadeamento causal dos fenômenos, o rosto claro dos
ceder, e ir além. Suprimamos as fantasias atentando para fenômenos, e a necessidade e a irreversibilidade de seus
a experiência. Basta repetir o movimento armando-se de encadeamentos constrangedores. Nunca mais na vida se-
uma atenção disciplinada. Trata-se de saber se esse desfa- ria uma pipa que supõe ser águia, nunca mais! É saudá-
zer dos joelhos em água resultaram do escanchar os cabe- vel conhecer os limites. Mas também era urgente penetrar
los atrás da orelha da bela adormecida… Levantou-se ou- mais fundo, romper a película dos fenômenos, e instalar-
tra vez da cadeira – as articulações das pernas se racharam. se no olho borbulhante donde os fenômenos, como raios
Sentou-se. Muito bem, verifique-se se não foi perturbação solares, brotavam, sendo ele mesmo um desses raios. Era
na circulação sanguínea pelo levantar-se bruscamente, isso imperativo conquistar a liberdade, romper com as cadeias
costuma acontecer – seu sangue corre lento. Respirou fun- que determinavam sua economia libidinal à dependência,
do, levantou devagarinho, um pé depois do outro, aguar- as causalidades que decretavam sua debilidade cerebral, a
dou o coração esfriar. Pronto, agora pode refazer o experi- inferioridade de seu sangue, seu subdesenvolvimento, sua
mento. Deu passos até a cama, atravessou o feixe de Sol que escravidão. Não poderia viver sem conhecer a liberdade,
caía da janelinha, o elmo da lógica em sua cabeça reluziu… sem escapar da velocidade e da lerdeza que lhe impunham,
Zás! Os joelhos se estilhaçaram como pernas de pau escapar da teia, da cruz, do confinamento, do empilha-
puídas, e Anselmo se estatelou no chão, ao lado da cama. mento dos corpos, do campo de concentração… Para isso
O elmo da lógica caiu tilintando… Não teve arranhão, Ma- servia a leitura de orelhas; buraco, trepanação, terceiro
ria nem se mexeu com o estampido. Ficou caído ali por olho; ultrapassagem dos fatos em direção ao vir-a-ser, aos
alguns minutos com as nádegas gelando na cerâmica fria. potenciais, aos reservatórios nos átomos… Acerca disso se
Torceu o pescoço dolorosamente para o lado e olhou de- versara bem, mas é que a orelha de Maria deu um salto-
baixo da cama – lá estava o maldito pires de novo! O teto mortal cavalar e trepou bem no meio de sua testa pulando
com um amarelo confuso parecia distanciar-se. A mão trê- por cima de todos os procedimentos ortodoxos da leitura
mula agarrou o beiço da cama, e ergueu o resto do corpo. de orelhas!
Anselmo sentou junto dos quadris desnudos de Maria. O E agora? Como determinar a causa de um fenômeno
cérebro nocauteado batia nas paredes do crânio. Ajeitou a tão bizarro como esse? Como entendê-lo, como é que você
postura angulosa do corpo, o tronco torcido, o braço es- vai ler e analisar o acontecimento de uma orelha de mulher
querdo dobrado em ângulo reto, os joelhos atirados para trepanando a cabeça de um homem?… Dos milagres cap-
o lado direito, os pés virados para dentro. Aparou a cabeça tamos só os efeitos. A Virgem perguntou ao anjo que anun-
com uma das mãos, e foi nesse instante que teve um arre- ciou sua concepção, “como poderá ser isso?”. Simples, o al-
pio e a sensação de um tecido levíssimo lhe cair sobre os tíssimo te cobrirá com sua sombra, disse o anjo. Ou seja, a
ombros. Súbito, algo lhe arregaçou as pálpebras e sugou sombra cobre todo o processo; só ficamos com o produto
seus olhos abruptamente, como um buraco negro… final facilmente conversível em fetiche. Sombra, tal é a fé!
Uma leitura de orelhas tem algo de análogo ao tinhlolo Sombra: origem da superstição e das inversões de causas
de Moçambique, à quiromancia e à decifração de vísceras. e efeitos. Como se deu a imaculada conceição? Sombra!

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O resultado, o efeito, o rastro na areia, é tudo que temos; aqui, no Semiárido?
fetiche. “Rogo-te que me mostre tua glória”, disse Moisés a Por ora, nos contentemos em saber que o nariz de An-
Javé. “Ninguém pode ver a minha face e viver, mas poderás selmo corre por esses fios entre o asco e o feitiço. Surpre-
me ver pelas costas, o rastro, um vulto veloz, as pegadas sa maior foi chegar ao ponto aonde as linhas convergiam.
no chão”, responde Javé. E agora, Anselmo? Como obter a Quem diria que os fios se esticavam até a porta dos fundos
visão direta das coisas, o conhecimento do que aconteceu? de sua casa, onde um gigante se escora na ombreira, com o

PROVA
Você só tem rastros na areia, sombras, efeitos… Num ins- braço direito movendo-se lento de cima para baixo tendo
tante, o crânio e suas cavidades policiadas estavam firmes uma haste fumegante entre os dedos! A cabeça do gigan-
e fortes reprimindo uma massa de visões deixando-as do te toca as nuvens e seus pés têm adiante as galinhas dese-
lado de fora. E, no instante seguinte, uma orelha enxertou- nhando hieróglifos no chão, o espírito de Deus reluzindo
se na cabeça esburacando a muralha e deixando entrar a em seus olhinhos apaixonados pela terra. Junto ao muro
multidão bárbara, que invadiu o cérebro com tudo! do fundo, entre gangues de pedras e patos cintilantes; de
Maria nem se mexeu quando Anselmo espirrou duas um lado fragmentos de granito se erigiam até o cimo do
vezes, tinha o sono pesado. Dois estrondos que não conse- muro, e do outro um quadrilátero de tábuas de madeiras
guiram livrar o olfato da força magnética que o prendia. O velhas e encaixadas abrigava Josefino e Josefa, que esparra-
nariz seguia puxado pelo anzol, pela linha que ia engros- mados entre restos de repolho e jerimum, inocentes do dia
sando ao se aproximar de sua origem: o pires de louça feito de hoje, roncavam adormecidos. Quando o menino de sete
de cinzeiro debaixo da cama. Além de engordar, a linha ia anos viu ao longe o gigante, atirou-se com suas perninhas
se bifurcando em ramificações divergentes e capilares pi- rechonchudas driblando os jarros, as fileiras de mudas de
votantes. E o que parecia um simples fiapo odorífero sain- arruda em sacos de leite, o assentamento das couves, e um
do do corriqueiro pires de louça abarrotado de guimbas pneu de caminhão cortado na horizontal feito de prato
sob a cama, revelava-se uma arquitetura complexa, uma para os bichos. Deu um olé no filhote de pequinês que jul-
teia estendida por toda a casa. Surpreendeu-o a descoberta gara ser a hora da brincadeira, e que quase o derrubou pas-
de que o pires não era a pedra fundamental desse edifício sando por entre suas perninhas. Ofegava. Chegou diante
de linhas difusas e movediças, pois afinal ele estava vazio, do gigante. Ofegava. A Avó gritou da cozinha.
viu bem isso. Não. Não havia fonte simples; cada cruza- — Não fume na frente do menino!
mento de linha, cada ponto de bifurcação, cada gancho na Trazia as mãos beijadas de barro e o desejo de abraçar
parede, era um sustentáculo autônomo e móvel, como cé- as colunas do universo, as pernas do gigante. De seu alto
lulas de uma rede nervosa. Acrescente-se que essas linhas, celestial, cego, o gigante cuspia preguiçosos jatos de fuma-
ao se esticarem, ganhavam novas qualidades, revestiam- ça, nuvens…
se de nuances de brasas coloridas, mudavam de natureza. Gente grande costuma ignorar a telepatia das crianças,
E se quisermos o fundamento desse edifício, teremos de tal como esse gigante despenhando um olhar sobre o me-
afirmar que é o cérebro. Sim, o cérebro seria a fonte desse nino. Um olhar que matou e depenou todas as galinhas do
sistema radicular cujos filetes se entreteciam pelas paredes quintal! Com um peteleco atirou a chaminé em miniatura
como a instalação da rede elétrica. Mas essa afirmação le- que tinha na boca, e foi virando as costas e desaparecendo
varia a outros questionamentos. Por exemplo, quais seriam no cômodo seguinte, depois da mesa. Entre galinhas nuas
as razões desse surto de excentricidade cerebral? O que nos em fúnebre silêncio, o menino virou pedra. A Avó veio
faria perguntar pelas causas externas desse surto, ou seja, preencher a moldura vazia da porta, com suas rugas as-
por algo que está fora do cérebro. Seria a tal Flor Azul, o sombradas e olhos crescidos de dor, e deparar-se com uma
santo graal que Novalis buscava? Mas ela poderia brotar seca atroz no rosto do menino. Enxugou as mãos engordu-

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radas no vestido e assistiu ao líquido quente escorrer por Completa treze anos hoje, mas já com formosura madura.
entre suas perninhas, choro da pedra. Acorreu e ajoelhou- Passa apressadamente o embrulho às mãos da menina para
se para abraçá-lo, beijou um olho e depois o outro olho se desembaraçar logo do fardo. O quê? Um abraço? Sim,
de cascalho, num ritual de transfusão de lágrimas, Deus um abraço! A Professora sorri com sua cara turva. Tortu-
soprando nas narinas, no barro endurecido. ra. Anselmo entrelaça a menina com braços débeis, e por
No dia seguinte, o menino revivido investigou o terreno acidente trisca os lábios e a ponta do nariz em sua orelha

PROVA
até encontrar a ponta de cigarro, que estava caída perto dos fria cortinada de cachos. O rosto da menina linda também
cacarecos de liquidificador e ventilador, à direita da por- é um borrão, mas a orelha e suas curvas brancas são nítidas
ta. Pôs na boca a guimba para vestir-se de gigante e obter e inesquecíveis! Não conseguirá dormir a noite, começam
aquela força de estrangular o universo com um apertar de as dores de cabeça, a Tia o leva ao hospital.
pálpebras. Foi pegar a caixa de fósforos na cozinha, acen- O fluxo elétrico continua sua enxurrada, a cabeça pres-
deu a bituca e mergulhou nos movimentos do pai. Deu tes a estourar, o antebraço já se melou todo de sangue ao
uma chupada, engasgou-se, as veias do pescoço incharam, esfregar-se no nariz. Levantou-se da cama cambaleante,
os olhos e o nariz expeliram água vermelha, a cabeça qui- sacudiu a cabeça, e procurou a calça.
cou de tosses compulsivas…
Uma hora e meia depois a Tia o encontrou estirado no
chão, com sangue vazando do nariz e espuma da boca. No
umbral entre a cozinha e o quintal, sozinho, o menino teve
sua primeira convulsão, longe dos olhos alheios.
Sentado ao lado dos quartos largos de Maria, um fio
quente desce de uma narina formando uma cruz com os
lábios. Anselmo se vê emaranhado numa geometria aber-
rante feita de arame farpado, crucifixo que se desdobra em
teia de aranha, em orelha labiríntica trançada com fios cor-
tantes, como aquelas linhas embebidas de cerol que os me-
ninos secavam esticadas nas ruas. Linhas curvas, dobras
de um sexo ululante, vagina com lábios sedutores e anéis
assombrosos. Arrastado pela cascata de sinapses, Anselmo
chega a uma sala esfumaçada. Está com doze anos, é o mês
de abril, o dia do aniversário da menina que senta à sua
frente, essa que a Professora chama pelo nome. Batem pal-
mas e cantam. A Professora balbucia algo inaudível porque
nas visões há esse excesso de imagens combinado à rarefa-
ção de vozes, as vozes são entrelinhas. A Professora acena
com as mãos e com seu rosto de borrão o chamando. Vai
até ela e fica ao lado da menina, recebe o embrulho com
o laço azul que terá de entregar em nome do coro trágico.
Palmas e gargalhadas… Aluno número um, o mais edu-
cado, e de melhores notas, óculos fundo de garrafa, a Pro-
fessora sabe de seu fraco pela menina, pudera, ela é linda!

142 143
são variações de humor. Portanto, é um fio de cabelo que
separa um do outro. O Céu de Maria é a abundância de
misturas de corpos; mastigação e digestão – estado de gra-
ça! O Inferno de Maria é a fome, que aliás é o mesmo vácuo
de que falava Pascal.
DENTRO DE CADA UM DE NÓS EXISTE UM VÁ-

PROVA
CUO COM A FORMA DE DEUS, QUE SÓ DEUS PODE
PREENCHER.
O Deus de Maria, rústico e sul-americano, não se en-
troniza entre pomposos querubins. Deus mora na fome. Os
antigos disseram, Deus não está à mercê do entendimento
humano. O numinoso só pode ser “conhecido” pelos pro-
Sacerdotisa cessos de mastigação e digestão, assim fala Maria. Os autên-
ticos problemas teológicos são benditos frutos do vosso ven-
“A onipotência do amor talvez não se apresente jamais tre, gerados no estômago e não na cabeça; os Pais da Igreja
com tamanha força como em suas aberrações” Freud. erraram feio a respeito. As cansativas provas da existência
de Deus são ingenuidades masculinas. Várias querelas te-
O que se segue esclarece a natureza do amor de Maria ológicas podem ser resolvidas ou dissolvidas no comer,
por Anselmo e, ao mesmo tempo, por que o Conselho da trazendo para o ventre o que eles amontoavam na cabeça
Primeira Igreja Presbiteriana de Manaus enviou carta ao – evitando com isso até perda de cabelo! É nesse ponto que
reitor do Seminário solicitando sua excomunhão. Como a Religião se separa da Moral, que o Totem se distancia do
uma labareda voraz, Maria lambia livros e outras coisas, Tabu, e a Religião apresenta seus valores puros, próprios,
na busca da visão, no esforço de anunciá-la. Enquanto isso, diferentes por natureza dos valores morais – Totem contra
nas assembleias eclesiásticas, barbudos com hemorroidas o Tabu! Na prática isso significa formular os problemas de
se intitulavam “neopuritanos” e renovavam querelas, as modo exclusivamente religioso, depurando-os da contami-
suspeitas sobre a ordenação de mulheres, o perigo do libe- nação com a Moral. Claro, isso é nadar contra a correnteza
ralismo teológico etc. Os escritos e os sermões eram escru- secularista europeia, que define a religião como um está-
tinados, os times opostos se dividiam, estouravam as veias gio primitivo, infantilidade racional e moral a ser superada
nos pescoços gritantes que coagulavam o juízo de Deus so- pela Idade da Razão.
bre a cabeça de Maria, acusada de “gnosticismo populista”. Por exemplo, o problema da luta entre matéria e espíri-
Maria tinha intolerância fisiológica à ideia de felicida- to, corpo e alma só fica bem colocado se formulado a léguas
de. A felicidade, a beatitude, a bem-aventurança, como da teologia masculina que triunfou no Ocidente. O corpo
queiram, roupa folgada demais sobre as medidas da vida. vive constrangido pelas obrigações sociais e pressionado
O que é felicidade? Sintoma. Um sintoma a ser mensurado pela Moral; a ordem acidental do mundo. Regulamentos
em cada caso. Para isso, ela tinha uma fórmula tão precisa que impõem aos corpos hábitos estáticos visando a do-
quanto equações de psicofísica: a felicidade é proporcional mesticação e a regulação estatal, que separa os corpos uns
ao grau de promiscuidade, ou seja, de mistura do corpo dos outros e higieniza os espaços entre eles, que os conde-
com outros corpos. Logo, a ausência de misturas com ou- nam à fome, à fraqueza, à paralisia. Mas a ordem acidental
tros corpos é a perdição, o inferno. Céu e inferno, obvia- é apenas uma casca sem substância, sem polpa, vazia. Ela
mente, não são demarcações de uma geografia metafísica, é o que diziam os gnósticos, o véu fabricado pelos arcon-

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tes para que não vejamos a Luz. Quem são os arcontes? Os go divino soprado das profundezas da Terra. Nossa lingua-
poderes que organizam a vida social e política, que crista- gem habitual testifica isso quando falamos da paixão e do
lizam a História, as normas, que impõem as tradições e os amor como um fogo – a carne é o próprio fogo e o fôlego
hábitos, que nos confinam. Eles forjam uma moralidade de Deus! É a carne que come e realiza a combustão dos
semelhante à matéria, donde copiam as diretrizes básicas: elementos da matéria por meio da digestão, e assim cria o
inércia, impenetrabilidade, estabilidade, peso, divisibilida- movimento. Por isso a fome é divina! A fome é o impulso

PROVA
de, homogeneidade. Regime que impõe ao corpo um es- da carne para assimilar a matéria e ao mesmo tempo se
tado sólido, manobrável, dócil às leis da física, passível de libertar dela, e arvorar oscilante e indeterminada em seus
divisão, restrição, manipulação e distribuição no espaço, próprios fogo e fôlego.
escravidão. Os arcontes são os poderes colonizadores que O mandamento do Amor tem nisso o seu fundamento:
instituíam centros de comando acima de nós, alheios, ído- amar é alistar-se para a guerra da Cidade de Deus contra
los fascinantes que desviavam nosso coração da verdade a Cidade dos Homens – de fato arquitetada pelos homens;
profunda da carne, nosso corpo e nossa terra. as mulheres são eternas nativas da Cidade de Deus. Amar
A História da Teologia e da Filosofia se encastela sobre é participar da promiscuidade do Espírito de Deus contra
alguns erros masculinos fundamentais. Enfiar uma moral a inércia da matéria e da moral dos homens, que faz do
de império no problema da relação corpo e alma é um de- corpo pedra, pecinha entranhada num maquinismo geral.
les. E isso com o objetivo de reprimir o feminino, a fugaci- Daí por que, diferente do que diz Freud com seus tapumes
dade poética dos êxtases visionários, os influxos imprevi- de europeu, não é exatamente o Eros que gera as grandes
síveis do Espírito Santo mesclados aos impulsos da carne, generalidades humanas, as nações, os estados, a cidadania.
as línguas estranhas originárias da Terra que afloram nos É provável que o Eros tenda a mastigar essas generalida-
úteros. des que nos aprisionam. Tampouco o Eros nasce de uma
Qual é a ordem essencial do mundo? A fusão incandes- ruptura com a carne, de uma renúncia à nossa potência
cente e criadora do coração magmático da Terra, o fogo vital primitiva, que amaldiçoa nossos impulsos incandes-
primordial do Amor divino donde brota todas as coisas, centes e nossa unidade profunda originária. Ora, é a carne
que é o próprio Espírito de Deus. O nosso espírito é apenas mesma, em sua animalidade erótica mais crua, próxima
fagulha, fio de cabelo do Espírito de Deus em suas inces- do divino, do mito e das esferas primordiais, o autêntico
santes misturas abrasadas. A luta da ordem essencial contra Eros, o elã vital, o Hálito de Deus! Nós, nativos do Novo
a ordem acidental é o verdadeiro sentido da guerra entre a Mundo, devemos sacudir o jugo dos arcontes, reformular
Cidade de Deus e a Cidade dos Homens de que fala Agos- as imprecisas descrições e narrativas oriundas do Velho
tinho. Mundo, que nos castram, nos enfeiam e nos condenam.
Maria simpatizava com algumas ideias gnósticas, em- Rompendo esse véu de trevas, ordem acidental do mundo,
bora divergisse delas em alguns pontos, por exemplo, re- isso que chamam de “educação moral e cívica”, “garantia
cusava a cegueira de não enxergar a distância entre a carne da segurança nacional” etc., podemos alcançar uma gno-
e a matéria, a diferença de natureza entre elas. Ela identi- se coletiva e nos enchermos do hálito e do fogo de Deus.
ficava a carne ao pneuma, o único espírito e a única alma Vela acesa debaixo da cama! Então, nós, aqui, o verdadei-
que temos. Portanto é a carne que se opõe à inércia e às ro Novo Mundo, seremos a Cidade de Deus que a Europa
determinações da matéria – e esse é o verdadeiro sentido nunca foi!
das relações entre alma e corpo! A carne é o único espírito Todavia, a Moral dos homens se deitava na cama de
e a única alma que temos, é fogo buliçoso que se opõe ao Maria sem pedir licença, manifestando que a efígie da
marasmo da matéria. A carne é o barro animado pelo fôle- Cidade dos Homens marca todos os corpos. Tantas vezes,

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deliciando a fartura das misturas, fazendo amor com An- procurando o amado da minha alma…
selmo, uma dor de barriga forçava a interrupção dos mo- procurei-o e não o encontrei!…
vimentos… E ela tinha de se levantar para ir ao banheiro
quando o que desejava era mesclar esperma, saliva, suor, Encontraram-me os guardas
fezes e urina e fazer da cama um caldeirão divino de flui- que rondavam a cidade:
dos e excrementos da carne – fazer do amor o regresso à “Viste o Amado da minha alma?”

PROVA
sopa primordial no Espírito de Deus! A cama, berçário Passando por eles, contudo
de estrelas, de cosmogonia de universos, um crisol para encontrei o amado da minha alma.
transmutar em ouro líquido essa vidinha ordinária feita de Agarrei-o e não o soltarei…9
chumbo determinada por generalidades inertes! Todavia,
Maria tinha de se levantar para ir ao banheiro, interrom-
per a grande obra, e realizar a miserável higienização do As redes afinadas e os ganchos afiados feriam. A hipe-
corpo. Assim rezavam os bons costumes, mesmo na hora ratividade de Maria causava edemas como as extravagân-
do culto e da hierofania. Talvez, suas crises de gastrite e cias do sexo. Enganava-se, o Amado não fugia, e se fugia
refluxo nascessem dessa penúria de ser envergada, contra era para regressar, regressar, eternamente regressar… Para
sua vontade, à ordem acidental da Cidade dos Homens. De ele nenhuma delícia na terra era maior do que encontrar
alento, só a Poesia, Arte pela qual embelezamos o sepulcro Maria, o “órgão da divindade”, o “mediador teístico”, o “ob-
e aliviamos a fome. jeto amado que se faz o centro de um paraíso”, para usar o
modo de falar de Novalis. Trocando em miúdos, Maria era
*** um jeito de Anselmo tocar o divino.

Maria testava novas maneiras de usufruir dos próprios Como és bela,


membros que, por acidente, estavam em Anselmo. Aman- quão formosa,
tes são uma só carne, segundo as Escrituras. Geniosa na que amor delicioso!
arte de matar a fome, ela fabricava seduções frescas, redes Tens o talhe da palmeira,
mais afinadas e anzóis mais afiados. Não percebia o ar en- e teus seios são os cachos.
tediado nas feições do Amado? Por onde vagabundeava Pensei: “Subirei à palmeira
seu espírito durante aqueles lapsos de inércia e palidez?… para colher dos seus frutos!”
Fugia. Fugia como vento – tinha de detê-lo! Era preciso Sim, teus seios são cachos de uva,
apanhá-lo oferecendo novos sacrifícios, diariamente, mo- e o sopro das tuas narinas perfuma
mento a momento. Sim, correr atrás do vento, lutar com como o aroma das maçãs.
seu deus para que ele jamais a abandone. Tua boca é vinho delicioso10.
.
Em meu leito, pela noite,
Procurei o amado de meu coração. Ele não fugia, cavava intervalos, tempo para cicatrizar
Procurei-o e não o encontrei! as feridas, pausas para respirar. Sem essas lacunas as feri-
Levantar-me-ei, das se multiplicavam e se interpenetravam umas nas ou-
rondarei pela cidade tras formando latifúndios de chagas. Pequenas as feridas
pelas ruas, pelas praças 9 - Cânticos 3. 1-4
10 - Cânticos 7. 7-10

148 149
tinham sabor, cor, cheiro, nuances… Pequenas as feridas prestável, que não servia para encher a boca e o estômago,
são ilhotas paradisíacas, olhos d’água, oásis. Crescidas são um fantasma. Mas a fome, com a gnose que lhe é própria,
monocultura do inferno, deserto, seca. As pequenas feri- sabia o que fazer. Devidamente molestado e submetido a
das não queriam se fechar nem se expandir; eis o equilíbrio certas regras, Anselmo aparece! Aparece nos gestos, nos
a conservar, mesmo embriagado. Era preciso ser esperto movimentos, no trajeto de um ponto a outro. Só assim o
e bom no cálculo das compressas de ausência para impor Amado se torna comestível, palpável, inteligível. O verbo

PROVA
alguma medida à fricção dos corpos – fricção deliciosa e se fazia carne para ser devorado, para saciar a fome. O fan-
desejada. tasma tinha de reencarnar. Danem-se os segredos íntimos
As pequenas feridas eram o rastro da glória de Maria e os abismos da alma! Fiquem lá para Deus que a boca se-
em sua carne, hieróglifos por decifrar. Porém, regular a denta quer beijos e não mistérios! O Amado deve se mexer
medida da fricção e garantir o tempo de lamber as feridas e aparecer. E deve se mexer e aparecer de tal maneira… Só
era como pentear a cabeleira de uma tempestade. Veio de assim saciaria a fome de amor.
Anselmo a proposta de se encontrarem apenas na sexta- Anselmo tendia à decifra e Maria à devora, tendências
feira, tentativa de instaurar a ordem na confusão das mis- divergentes que se interpenetravam concebendo um único
turas. Que ingenuidade! Como a fome de Maria engoliria axioma:
uma lacuna tão áspera? Ela que se declarava alérgica ao
látex dos preservativos, essa fina película separadora de Decifra-me enquanto eu te devoro
mucosas… Se fôssemos usar como lentes as ideias que
fascinaram Anselmo, as ideias de Novalis, esse jovem ale- Embora as duas tendências se interpenetrassem, não
mão dos finais do século XVIII, pertencente à aristocra- deixavam de, cada uma particularmente, formular um
cia agrícola do Eleitorado da Saxônia – ah, tão distante da enigma próprio, singular e solitário.
grosseira e escravagista aristocracia agrícola das bandas de A decifra sibilava:
cá! Aliás, Maria repeliria completamente esse “véu fabrica- Se a beatitude é a promiscuidade,
do pelos arcontes do Velho Mundo”, e encararia isso como Donde tamanha voracidade?
uma tentativa de enfiar sacos pretos em sua cabeça. Mas
vejamos, por essas lentes Maria seria idólatra e irreligiosa. Sim, donde e por quê? Na cama, faminta de velocidade
É que ela não admite nenhum mediador na relação com e de novidade, Maria comandava.
a divindade. Sua fome é de enfiar os dentes diretamente — Mais rápido, mais rápido!
na carne de Deus, coisa um tanto selvagem, grosseira e E ditava a cadência e a potência dos golpes.
pagã, para o barão do Romantismo. Anselmo, sim, seria — Mais força, mais força!
o autêntico religioso, pois tinha em Maria uma via para a E definia a movimentação.
Flor Azul. Maria, em sua intolerância visceral a invólucros — Agora assim, agora assim!
e membranas, as mucinas de seu espírito repelindo o que E punha as palmas das mãos de Anselmo na cara como
quer que impedisse a plena mistura dos corpos, qualquer máscara; a excitava tê-las quentes sobre as contorções do
mediação e qualquer véu, dava golpes de estado nos diques rosto prendendo-lhe a respiração durante os esforços do
que Anselmo levantava. Ela sempre encontrava frestas em amor. Depois as colava nos generosos seios, “aperta!”, or-
suas trincheiras. Anselmo intentava pactos, Maria atentava denava, “com mais força!”. Agora nas nádegas, “Bate! Bate!
possessões! Bate!”. As mãos de Anselmo eram seu fetiche, fazia delas
A verdade nua e crua é que Anselmo, em si mesmo, era o fórceps que o arrancava do buraco negro onde ele se so-
uma espécie de buraco negro para Maria, um noúmeno im- cava; eram o instrumento cirúrgico de uma maiêutica, a

150 151
metonímia da revelação de Anselmo. eu – isso é o Amor! Então sem dúvidas tinha algo de férreo
e violento no amor de Maria, um desejo de rachar a crosta
Eis que a mão do Senhor não está encolhida para que do corpo e libertar a quintessência de Eros – a devora!
não possa salvar… A devora é a prática por excelência da fome. É a práxis
da alergia ao mistério, ao absconditus, ao noúmeno, ao bu-
Ela punha aqueles dedos grossos e curtos na boca, suga- raco negro – e nem mesmo Deus será poupado! A devora

PROVA
va-os, mordia-os. Anselmo perturbava-se; parte de sua ex- separa o de comer do que não é pão, separa o fantasma do
citação vinha da visão do rosto de Maria, de suas caretas de que é carne, e se esforça por converter o segundo no pri-
gozo assomadas aos gemidos, que ficavam obliterados por meiro. Esse é o procedimento da fome: método de conhecer
essas mãos grosseiras, entroncadas, engelhadas, que Ma- e de viver ao mesmo tempo.
ria comandava ao seu bel prazer. A sofreguidão toda junto A Razão é Luz, a inteligência é Olho interior, o enten-
com o regramento minucioso afligiam. Fazer amor com dimento é Clareza etc. Tudo isso é o papo furado dos ar-
Maria mais parecia uma marcha, um exercício de ordem contes! A devora tem aversão a essas metáforas óticas, gíria
unida com suas transpirações alucinógenas. Por que esse importada! O olho cobiça contornos fixos e objetos deli-
controle obsessivo dos gestos? Por que sempre novas pos- mitados, e tem por condição a distância. Enfiar as peças
turas, novas receitas? Por que essa velocidade cavalar rumo do mecanismo ocular no espírito só pode é gerar graves
aos orgasmos? Por que tanta agressividade e violência? erros e maus funcionamentos. As metáforas óticas acabam
Condimentos extravagantes para uma comida sem gosto? estrangulando um tipo de conhecimento vital mais pro-
Seriam os vestígios de antigos apetites canibalescos em seu fundo cuja condição essencial é a supressão das distâncias
sangue Munduruku, eficiente aparelho de apoderação ele- – essas que o olho exige entre ele e os objetos. A gnose da
trificado pela libido, como diria Freud? Tamanha voracida- fome fecha a ferida entre o sujeito e o objeto e faz do estô-
de às vezes entristecia seu pênis e enuviava sua cabeça com mago, da boca, do paladar e do tato receptores de imagens
sombrias meditações. Anselmo decifrava em Maria uma vivas com tanta dignidade quanto os olhos. A gnose da
vontade de fim, uma repulsa ao processo da experiência fome quer fazer o que canta Belchior.
em si mesma, à mescla dos corpos em si mesma; o meio, o
caminho, o movimento livre desatrelado de finalidades… Libertar a carne e o espírito
Seu pênis murcho ejaculava meditações melancólicas. Mas Coração, cabeça e estômago
era tristeza que enuviava os discernimentos privando-os o verbo, o ventre, o pé, o sexo, o cérebro
de rigor e generosidade. Pois se Maria suspirava pelo fim Tudo que pode ser e ainda não é.
também atrelava o fim a um novo começo – essa entrelinha,
dobrinha na víscera, Anselmo não estava lendo. O trem se Grave erro da Teologia cristã, a redução da palavra he-
atirava de uma estação à outra, e depois à outra e depois à braica nephesh e a palavra grega psique ao mesmo significa-
outra ad infinitum… Ímpeto que só ficava esclarecido à luz do: alma, olho interior que aspira a Luz, o Bem, o contorno
da guerra da Cidade de Deus contra a Cidade dos Homens. nítido das ideias, o fim das sombras. Ora, nephesh significa
Em virtude desse combate, a pulsão de aniquilamento do literalmente garganta e dá a imagem de uma boca que res-
corpo material se intensificava em Maria, para libertar o pira e come, uma imagem próxima ao que disse Artaud,
magma carnal dos constrangimentos do corpo organizado esse francês meio xamã, meio Tarahumara:
pela Moral dos homens. A libido funcionava para engen-
drar uma carne ressuscitada, incandescente, que ultrapas- Eu procuro em minha garganta o nome, e como que o
sava o cárcere da individualidade, esse corpo reduzido ao cílio vibrátil das coisas.

152 153
Com sua grosseria masculina a Teologia cristã apaga
delicadas diferenças de natureza e nivela coisas muito dis-
tintas, como a tendência de Maria e a tendência de Ansel-
mo, cujas perversões divergiam, de acordo com Freud em
seu Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade.

PROVA
a) extensões anatômicas das áreas do corpo determina-
das para a união sexual; ou b) permanecimentos nas rela-
ções intermediárias com o objeto sexual, que normalmente
seriam percorridas com rapidez, no rumo da meta sexual
final. Julgamento
“Com efeito, um soldado, por exemplo, ao ver os rastros
Maria é do tipo a e Anselmo do tipo b. de um cavalo sobre a areia, passará imediatamente do pen-
samento do cavalo para o pensamento do cavaleiro e, depois,
Maria, lambendo e mordendo os dedos curtos e enge- para o pensamento da guerra”. Benedictus de Spinoza.
lhados de Anselmo, Caipora sedenta por devorar o corpo
inteiro de seu amado, protegida pela escuridão que apaga Uma borboleta beliscava as flores, Antão conteve o
os contornos e mistura todas as linhas… Anselmo afas- jorro d’água apertando o polegar no bico da mangueira.
tando-se um pouco e pedindo luz para nutrir o espírito Contemplou as asas esvoaçantes se confundindo às péta-
com a belezura dos contornos de Maria e os signos que las. Um ignorante que o flagrasse aguando o jardim de cara
ela fervilhava, e se esforçando para reter a ejaculação a fim abobalhada para um voo de borboleta, talvez o julgasse o
de se demorar no ato amoroso, perdurando no meio, des- tipo de militar pacato, um tanto efeminado, esforçado em
viando-se da meta sexual final, do orgasmo, do repouso da repousar no lado frio da caserna, em afazeres burocráticos,
conclusão, e nisso conflitando com a voracidade da fome longe de treinamentos brutais. Não é difícil encontrar mi-
de Maria, podia grunhir como Raul Seixas: litares assim, mesmo num quartel de infantaria. Nos qua-
dros de todo ofício se escondem os que foram parar ali por
Você é a vil Caipora acidente, os que vivem driblando os valores e as funções do
Depois que me devora ofício assumido. Há professores que odeiam ministrar au-
Ó jiboia do amor! las e médicos que preferem canetas a bisturis. A categoria
dos que estão no lugar errado é a mais numerosa do mun-
Negar que me cospe aos bagaços do. E dentre esses, em número menor, há os que vivem a
Que me enlaça em seus braços inadequação de maneira excelente. O farmacêutico que,
tal qual uma lula do mar. em desavença com seu ofício, vira poeta e compõe remé-
dios espirituais. O engenheiro que, em contenda com sua
profissão, vira escritor e engenha a palavra. Casos raros.
Comuns são os dribles e a manutenção das aparências. O
resultado é que um farmacêutico como Drummond e um
engenheiro como Euclides da Cunha encontram mais difi-

154 155
culdades na vida do que os dribladores. vivificados por alucinações. Os olhos não se incharão irri-
O ofício de Antão também foi decidido pelo azar, em- tados com verdades pontiagudas. Há de chover, isso é tudo.
bora ele não seja um exemplar da categoria dos desajusta- A rotina da caserna é uma sepultura. Dentro dela, todos
dos, ordinário ou raro. Pertence antes a categoria dos que estão tapados para o cheiro das flores.
encarnam os supremos valores do ofício assumido. Quem “As borboletas têm o paladar nas patas!”, leu isso numa
o vê a essa hora da manhã regando o jardim espremido das revistas de jardinagem empilhadas no lado direito de

PROVA
entre o asfalto e a Companhia de Apoio, dá bom dia e pres- sua mesa. Verificava isso interrompendo o fluxo da man-
ta continência. O flagra que cogitei de início é impossível gueira e afiando o olho para a borboleta. No lado esquerdo
graças aos automatismos da rotina na caserna; ninguém se de sua mesa tem um telefone de modelo antigo, daqueles
dá conta de miudezas como a cara abobalhada de Antão com um disco de enfiar o dedo no orifício. O telefone grita
para o voo da borboleta. Também ninguém nota como esse incapaz de alcançar os ouvidos abotoados pelo revolutear
Subtenente tem ruminado a rotina na caserna, e respirado da borboleta.
a atmosfera que dissolve o cume dos montes e nivela tudo — Grupamento, atenção!
por baixo como um fedor insuportável – Ai, esse maldi- Maquinalmente, atirou a mangueira e prestou conti-
to tempo de paz! Ninguém nota o quanto esse Subtenente nência ao grito do terceiro-sargento que conduzia uma
tem delirado com ventanias, revoltas, revoluções, guerri- tropa de recrutas com seus fuzis desajeitados nos ombros
lhas… aguando o jardim – Ah, que uma tempestade venha feito varas de pescar. A mangueira caiu sobre o caule de
varrer os entulhos e os pesos mortos, e faça refulgir como uma tulipa branca. A borboleta assustada esvoaçou e desa-
diamantes brutos os valores do Exército Brasileiro! Estoure botoou os ouvidos de Antão:
uma revolução que reverta o “rebaixamento dos fortes e a — É Anselmo!
elevação dos fracos”, ressuscite a descendência dos gigan- Exclamou saltando dentro da sala por cima dos três de-
tes! graus. Reconheceu a voz de imediato, custou a acreditar.
A umidade da manhã unge o jardim, mistura seus odo- — Encontrei seu número num guardanapo no bolso de
res ao esperma do Sol, e os propaga ao redor da Compa- uma calça…
nhia de Apoio. Com a camiseta e o calção do uniforme de A irmã telefonou anteontem, conversa de sempre: a
educação física, Antão degusta a refração da luz nos res- mãe já estava velha, o filho tinha “peculiaridades”, era bom
pingos da mangueira, inspira os aromas do jardim e enche ter o pai por perto etc. “Vai tudo bem com Anselmo?”. “Ve-
o pulmão de orgulho. É o ar do próprio espírito, gás peço- nha ver você mesmo!” Replicou a irmã. “É bom ter o pai
nhento pronto para empestar o quartel. Quem conceberia por perto”, repetia a frase como um mantra. Ou seja, o cur-
um jardim aí? Para Antão, parteiro das flores, o jardim fal- so ordinário das coisas. Tudo nos conformes. O filho não
tava. O jardim não é para exalar perfumes, e sim o veneno estava morto nem doente, então…?
das zonas abissais, o gás provocador de mortes, alucina- Confinado em seu quarto há semanas, Anselmo ainda
ções e visões. Ah, que o Exército Brasileiro seja conduzido tem saúde suficiente para influenciar as duas mulheres: “Se
à sua glória! vocês chamarem Antão aqui eu nunca mais abrirei essa
Nuvens cinzentas se adensam numa extremidade da re- porta!”. Assombradas, as mulheres invocavam a Deus no
doma celeste como se deslizassem pela abóbada azulada e lugar. Ao telefone, a Tia mordia a língua para não gritar
se depositassem na retaguarda cinzenta. Há de chover. Há por socorro. O menino está em crise outra vez, socorro! O
de chover e essa será a única revolução, a única extravagân- telefonema costumeiro era um jeito de aliviar a tensão. Fa-
cia esburacando a monotonia da caserna. Os fracos não se zia um mês que a porta do quarto do rapaz estava lacrada,
engasgarão com a própria baba. Os adormecidos não serão as duas mulheres não respiravam direito.

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Coturnos metralham o asfalto lá fora, é a tropa de re- o caboclo monta, a égua galopa e a bunda se estatela no
crutas que regressa. chão. O pior é a vergonha… Você tem inteligência? Tem,
— Alô?…. Está me ouvindo?… Pois bem, encontrei seu mas é preciso mais do que isso; treinamento, experiência.
número num guardanapo, no bolso de uma calça que An- Aí você replica e me solta uma pérola tirada dessas ostras
selmo deixou aqui. O que está acontecendo com ele? Ele invioláveis, livros de filosofia:
não atende minhas ligações. Está doente? Estou preocupa-

PROVA
da! Sei que você não gosta de mim, mas não tive escolha. A máscara do adulto se chama ‘experiência’11.
Era ligar pra você ou aparecer lá. Eu ligo, chama, chama e
ninguém atende, o telefone deve estar quebrado… Apare- Máscara? Não, marcas! Cicatrizes no rosto. Marcas que
cer lá com que cara?… o olho míope da juventude chama de máscara. A feiura
Maria se engasgou com um soluço. que a experiência esculpe na cara é irremovível. Mas como
Antão escrevia o número do telefone com o ramal de você entenderia se essa é a primeira mulher que lhe abre
sua sala na Companhia de Apoio, e entregava ao filho. Re- as pernas? Cuida, se passaram três anos! O grande mal do
petia o gesto no Bar do Seu Benício. Anselmo tinha um vício é que come o tempo da gente privando de prazeres
desses aparelhos repulsivos que agora todo mundo tem, maiores. Um prazer só mostra o auge do sabor numa pale-
celular, presente de Maria. Presente de grego, coleira ele- ta de prazeres, como um prato do cardápio. É nos lambu-
trônica. Não lhe dava o número, o que achava? Que o pai zando com uma variedade de sabores que nos livramos da
tem tempo para incomodar com ligações inconvenientes? monotonia do gosto por uma coisa só. Comer por três anos
O que achava? O pai telefonaria de hora em hora para ve- a mesma fruta? Uma andorinha só não faz verão e uma
rificar onde estava e o que fazia, como a namoradinha? No mulher só não faz um homem!
auge da conversa, Maria de longe se intrometia, e Anselmo Essa Maria com carinha de santa não engana. E as apa-
se levantava da mesa ao comando de sua voz. O diálogo rências não enganam, não! Vai coroar essa cabeça dura ro-
se esfrangalhava irremediavelmente. Pedir o número? Não mântica com um par de cornos, prêmio merecido. Filho,
é humilhação suficiente entregar pela milésima vez esse viciados não domam mulheres! Você adora uma mulher?
guardanapo? Isso pode ter serventia aos poetas, pobres poetas que não
Precavia-o: é a primeira de muitas, calma! Saiba lidar. comem ninguém! Românticos, efusivos, descontrolados,
Isso, como tudo, exige treinamento, aprendizado. Filho, só ejaculam em papéis. Filho, aprenda a amar essa mu-
muito mel enoja. O homem que se viciar numa só mulher lherada; coma-lhes a carne, sugue-lhes o sangue… Muito
verá seu preço aumentar acima do que pode pagar. Saiba bem, o pai cumpriu sua missão, deu o toque, apontou a via.
lidar… Quando saí da Escola de Sargentos e fui servir em Não escuta? Paciência. Olha a queda do cavalo aí!
Recife, mandei o soldado desenhista pintar um cavalo no Por infeliz coincidência, a menina é filha do Coronel
muro da companhia. O desenho saiu mais parecido com Cláudio! Pode essa loteria? Deus é um lance de dados. É
um cachorro, horrível. Quis punir o soldado, ele se defen- razão mais do que suficiente para domar e montar como
deu: “Sargento, mulher e cavalo são os bichos mais difíceis convém. Quem diria, o filho de Antão comendo a filha de
de desenhar!”, não pude contestar. Parafraseando o solda- Cláudio? É uma coincidência que poderia ser bem apro-
do, mulher e cavalo são bichos difíceis de dominar; em cer- veitada. Filho, o que você tem feito com a leitura de Ma-
to sentido, a mulher é como um cavalo que é preciso do- quiavel? A filha de Cláudio cai em suas mãos, Fortuna que
mar para continuar montando. Montar e domar, você pre- tem de ser aproveitada com Virtú. E o que você faz? Vira
cisa aprender. Você monta sem domar? Cuida, que é queda um escravo, um barriga-branca! Pior é a vergonha. Aí eu
do cavalo na certa! E acontece da égua fingir docilidade, 11 - Walter Benjamim, Experiência.

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lembro do Capitão Monte Negro… Se é porque é filha de pai repousar.
oficial a antipatia? Não, é porque ela desgraça a paideia que Maria estrangulava Antão, eis a razão da antipatia.
faria de você um homem. Maria é um míssil! Exagero? Sim, Aqueles pezinhos de lã pisoteavam sua garganta, o priva-
mas é como se fosse. Cláudio é um dos poucos oficiais dig- vam de seu sacramento medicinal, de usufruir da inocên-
nos de respeito, mas não conseguiu gerar um filho homem. cia cambiante do olhar do filho… Filho, naqueles anos de
Então enviou esse míssil para destruir a descendência de falsária redemocratização, eu, soldado, jovem, sob ordens

PROVA
Antão. Exagero? Sim, mas quanto já não se fez para rebai- precisas, pela Pátria… O espectro do comunismo rondava
xar os fortes e elevar os fracos? Farão de tudo para impedir o país, os “inimigos de dentro”. Não, de jeito nenhum a Di-
o surgimento dos gigantes e a revolução que instaurará a tadura foi a glória do Exército Brasileiro, foi sua maior bai-
glória dos fortes! xeza! Os militares se tornaram a mão de ferro de latifundi-
Deixando as especulações de lado, há razões práticas ários escravistas, elite vira-lata que abana e levanta o rabo
para essa antipatia por Maria, que arruinava a educação para os ianques. O Exército trocou sua sagrada vocação
do filho e roubava o ar do pai. A conversa na mesa de bar por um prato de guisado de sangue, profanou seu destino
era um rito de instrução, de catequese. Por meio dela o pai de guiar o país à autêntica independência nacional, e mol-
fincava seu maquinário produtor de grandeza na carne do dar um povo gigantesco, uma raça mestiça gloriosa, um
filho; a narrativa de feitos heroicos, a sabedoria sintética “povo novo”, uma nação com alma própria que honrasse o
dos aforismos. Mas havia também, no inconsciente des- sangue forte dos pretos, eliminando de uma vez por todas
se rito, um conteúdo latente medicinal. O ar gracioso do os resquícios da escravidão… Mas, filho, no meu serviço,
filho, como ópio, amolecia o desespero de ser Napoleão, e no meu horário, se eu estava na escala, se me convocavam,
desacelerava o funcionamento das máquinas da grandeza. sob ordens precisas, fui chamado de “cachorro doido”, de
O filho apoiava os cotovelos na mesa e oferecia os ouvidos “cara de cachorro”, fui o jagunço mais eficaz do batalhão…
em oblação ao pai, que discursava pelos intestinos. Confes- Maria pisoteava a jugular e bloqueava a procissão do
sasse ter matado, estuprado, torturado, o filho perduraria à espírito entre o Pai e o Filho. Antão entrava no quarto de
mesa, todo ouvidos. Anselmo, acendia a luz e o vazio na cama lhe esbofeteava a
Filho, ouça bem, nos anos do General Figueiredo, eu, cara – era a mão de Maria. Sentaria sozinho no Seu Benício
soldado, sob ordens precisas… Filho, eu, jovem, fiz o que remoendo ideias fixas, tendo de escutar o velho contar as
fiz em nome da Pátria para eliminar os “inimigos de den- novas conquistas de seu filho imbecil.
tro”… Do outro lado da mesa, de boca cerrada, sem julga- Então o que significa isso: faz um mês que Anselmo se
mentos e tábuas da lei, o filho absolveria os crimes do pai. esconde de Maria?… Ah, não esqueceu a última vez que
Ora, Antão jamais confessaria seus crimes a Anselmo; lan- entregou aquele guardanapo ao filho. O maldito celular
çara já tudo no mar do esquecimento! Os filhos do Sertão cortou a conversa. Anselmo se levantou da mesa, pegou
se nivelam ao território e também se tornam excessivos; um ônibus e foi enfiar o nariz entre as pernas da branquela.
ora insolação medonha, ora precipitação abundante de Deixe estar, ele ainda sentirá falta do pai, ainda… Sofrerá a
águas estourando profundidades. Mas a profundidade do saudade dessas conversas de bar, ainda. Conversa de bar é
mar do esquecimento se engolfa na beira da praia, as ondas tapeçaria; o último copo é um intervalo no artesanato. Sem
coléricas escumam contra o quebra-mar, e pedra dura em recordarmos de onde paramos, recomeçamos o trabalho
água mole tanto bate até que explode. O filho, com o ar de no encontro seguinte tecendo com linhas de outras cores.
sua graça infinita, afrouxava as escamas da armadura do O rosto completo do tecido só é vislumbrado na saudade,
pai, e os vapores da alma escapavam atenuando a pressão quando a ausência senta do outro lado da mesa. Faltan-
interna. A face maiêutica do filho fazia o maquinário do do aquele que nos alivia de nós, desenrolamos o tecido na

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lembrança. Cedo ou tarde o filho chegará a esse ponto. Mas grafias debaixo do vidro transparente, fita um retrato. Ele,
já corria um mês e o viciado não tirava a cabeça de entre segundo-sargento, recebendo o brevê de Combatente de
as pernas da santinha, nem pra respirar. Deve estar ocu- Caatinga das mãos de Cláudio, na época Capitão. Primeiro
pado demais lavando a louça e fazendo a comida, barriga lugar do curso. Cláudio foi o melhor instrutor que já teve
-branca, não duvido. Pior é a vergonha. Fique então por lá na vida, difícil esquecê-lo. Esparramou-se na cadeira e lan-
o frouxo! Talvez seu miolo mole seja mesmo irrecuperável, çou a cabeça para trás inflando os pulmões com os delicio-

PROVA
apesar de irrigado por um bom sangue. Depilar a cara com sos sofrimentos da Caatinga. Um bolo etéreo, como uma
cera já diz tudo. A conta que não fecha é Anselmo fugindo cerração ao redor da cabeça, se pendurava num fio amar-
de Maria. rado acima não se sabe onde. Para escapar de sua sombra,
O turbilhão de raciocínios troa na cabeça de Antão en- levantou-se e caminhou até a porta, observou o horizonte.
quanto Maria soluça. Nuvens sobrevinham em revolta contra o sol. Vai chover.
— Posso conversar com você pessoalmente? Desceu os poucos degraus da sala para a calçada junto do
A pergunta sapecou como um raio na cadeia dos racio- jardim, flexionou os joelhos para se sentar nos degraus,
cínios. mas apercebeu-se a tempo do gesto descabido, aprumou-
Não é incomum, vez ou outra, nos julgarmos mestres se. Aproximou-se do jardim e retirou a mangueira de cima
de adivinhação e convertemos uma ideia nublada, que do caule da tulipa. Deu vontade de regar o jardim outra
surge de supetão, em certeza rochosa. Tolice! Somos seres vez… Também seria bom fumar o baseado guardado na
racionais, deveríamos usar bem a cabeça, construir os vín- última gaveta da mesa. Sentaria na privada, acenderia in-
culos entre uma ideia e outra, emendar os elos da corrente. censos, mastigaria cravos-da-índia; não seria a primeira
Certo. Mas e do ponto de vista de quem vive, sofre e se vê vez. Porém, uma estranha temperança o segurava, efeito
resvalando no abismo? Tolice? Convenhamos, é uma tolice do clima sombrio? Olha aí na abóbada celeste esse recheio
plausível que alguém caindo no vazio esperneie feito louco de nuvens de zinco… Os temperamentos da alma e do cli-
e agarre o que tiver pela frente, seja uma sombra ou um fio ma tendem a se nivelar. No sertanejo moldado ao Sol e ao
de cabelo, na tentativa de não ser comido pelo abismo. Há chão seco, a chuva pode injetar sentimentos confusos, me-
vantagem em ser engolido estoicamente? Um movimen- lancolia e inspirações estranhas. Inspirações estranhas…
to de falanges agarrando sombras ou fios de cabelo, ideias Soltou a mangueira de súbito e regressou à sala. Retirou
nubladas sopradas pelo vento, é o gesto de Antão ao afir- da mochila um livro preto e desgastado. Sentou à mesa,
mar sem titubear, “É isso! Então é isso!”, como quem grita frenético, puxou a primeira gaveta do lado esquerdo e reti-
eureca. rou delas duas moedas de um centavo. Onde estaria a ou-
— Desculpe incomodar… é que… eu preciso muito tra? Vistoriou as outras duas gavetas abaixo até encontrar
conversar com alguém… a terceira moeda. Coçou os cabelos grisalhos da nuca…
— Não é incômodo. Diga-me onde e quando encontrá Começou a ler o I Ching, antigo livro chinês de adivi-
-la e conversaremos sobre esse assunto. nhação, quando soube que oficiais da esquadra japonesa,
E Maria mais uma vez o surpreende. na Segunda Guerra, o liam como um dever. Depois passou
— Pode ser agora? a sacar o livro nos bares como um recurso para disparar di-
*** álogos com mulheres. Mas se as motivações eram frívolas,
Sentado em sua mesa, Antão apoiou a testa na mão fe- a consulta ao oráculo tinha de ser com máxima destreza.
chada. Esfarinhou o couro cabeludo grisalho com a outra, Sabia de cor a descrição de mais da metade dos 64 hexa-
coçando a nuca; a seborreia se agrava em momentos de gramas. Atirava a queima roupa com um riso curto e uma
tensão. Afasta o cotovelo apoiado sobre o mosaico de foto- distorção insinuante nos sobrolhos:

162 163
— Você quer conhecer seu destino? vimento:” – as linhas fortes estão crescendo e aumentando.
Daí se originava a sequência que ele manobrava ao Não vemos em Fu a vontade do céu e da terra?
quarto mais próximo. Domar e montar. Então por que esse
tremor nas mãos no lançamento das moedas? “Podem uns O GRANDE SIMBOLISMO
tracinhos de nada acessar as entranhas do destino?” Nun- (O símbolo da) terra e do trovão no meio dela formam
ca havia ponderado sobre isso. Atritou as moedas entre as Fu. Os reis antigos, de acordo com isto, no dia do solstício (de

PROVA
palmas suadas e fechou os olhos. “Basta uma olhadela nas inverno), fechavam as portas das passagens (de um Estado
entranhas do destino para que ele se altere, basta…” para o outro), de modo que os comerciantes ambulantes não
pudessem (então) prosseguir em suas viagens, nem os prínci-
pes continuar com a inspeção de seus Estados.

Lambe as sílabas, as paredes de cada sílaba. A paciência


é uma sonda no aquífero das palavras. Paciência, com jei-
tinho abrir as pernas das palavras. Lamber as virilhas entre
as sílabas. Domar e montar o cavalo selvagem das sinta-
FU xes… Releu pela terceira vez as OBSERVAÇÕES DE LE-
REGRESSO GGE, o que já demonstra deficiência; elas não fazem parte
do oráculo, é comentário de especialista acadêmico, merda.
acima: K’un – a terra, feminino, passivo, receptivo Perdeu a paciência. “Lá servem de nada essas linhas! Com-
abaixo: Chen – trovão, movimento, perigo. binação de linhas inteiras e linhas interrompidas, grande
coisa!”. Nunca havia ponderado acerca de sua eficácia, o
JULGAMENTO oráculo sempre foi um entretenimento, uma manipulação
Fu indica que haverá livre escolha e progresso (no que ele exterior repetitiva. O soldado amazonense que conheceu
simboliza). (O sujeito) não encontra ninguém para estorvá no Curso de Guerra na Selva, cafuzo de quase dois metros
-lo em suas saídas e entradas; amigos o procuram, e nenhum de altura, na hora da caça noturna despia-se e desaparecia
erro é cometido. Ele voltará e repetirá sua (própria) conduta. no mato, “é assim que se faz”, dizia ele sumindo na escuri-
Em sete dias será seu regresso. Haverá vantagem em qual- dão esponjosa da Amazônia. Por que recordou isso ago-
quer direção que se faça o movimento. ra? Sacode a cabeça e recobra a atenção. Lambe as sílabas.
Paciência, beijar a vagina das palavras até que o orgasmo
COMENTÁRIO secrete seu sumo viscoso.
“Fu determina a livre escolha e progresso (o qual ele sim- “Que diabos estou fazendo?”… é influência do clima,
boliza):” – é o retorno do que é pretendido pela linha inteira. com certeza, distúrbios eletromagnéticos que perturbavam
As ações (de seu sujeito) mostram movimento dirigido as sinapses. Circulam no mundo energias desconhecidas
de acordo com a ordem natural. Portanto, “ele não encontra que podem afetar a sensibilidade por radiocinestesia. A
ninguém para estorvá-lo em suas saídas e entradas” e “ami- mente exausta concluía que o oráculo emudeceu, talvez
gos o procuram, e nenhum erro é cometido” castigo por anos de uso frívolo. Antão se ergueu da cadei-
“Ele retornará e repetirá a sua própria conduta; em sete ra evasivo e levado por automatismos foi até a porta. Uns
dias será o seu regresso:” – tal é o movimento da revolução sargentos tomavam café tranquilamente recostados ao bal-
(celestial). cão da cantina, e mais adiante, as instalações brancas da
“Haverá vantagem em qualquer direção que se faça mo- enfermaria obliteravam a cabeleira verdejante das árvores

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ao fundo. tel sem gente tinha algo de selva, de antigo, de primitivo,
— Moro próximo ao 23º BC12, anote aí o endereço, pas- de mundo antes da queda. Deambular pela caserna nessas
se aqui… Há um barzinho aqui perto, conversaremos lá. horas era regressar ao mundo dos gigantes, regressar ao
A cabeça de Antão moía a rouquidão chorosa de Ma- mundo futuro. Os frutos das árvores, nesses instantes, re-
ria. Não se sentou mais durante o expediente. Andou de velavam seu secreto sabor – a ele, apenas a ele… Não su-
lá para cá, divagando, possesso por uma rara flacidez de portaria um só dia nesses quartéis minúsculos e burocráti-

PROVA
vontade. Deixou os olhos rolando nas flores do jardim sem cos como a 10ª Região Militar, onde se contava as árvores
atenção firmada. Até o sagrado cocô de depois do almoço nos dedos. Como ficaria longe das mangas, dos cajus e da
ficou preso! Ora, nem para almoçar queria deixar sua sala, terra dos gigantes?
mas tinha de verificar a documentação da compra dos ma- Hoje é um dia atípico. Quando o corneteiro se dirigir ao
teriais para a reforma da Companhia, fazer a vistoria do seu posto e comprimir os beiços na corneta, Antão, como
depósito e da nova horta, perto do estande de tiro. Deixou qualquer militar ordinário, o acompanhará com um olho,
dois bons soldados como responsáveis, mas convém reno- o outro olho no relógio de pulso.
var as ordens, fortalecê-las com elogios e fazer correções,
ou a coisa desanda. As exigências o obrigavam a suprimir
a ansiedade, e venciam sua crescente inclinação de adiar
tudo para amanhã. Olhava as horas no relógio de pulso
com uma repetitividade nervosa.
Antão cuspia no famigerado suspiro coletivo pelo fim
do expediente, uma praga no quartel. A canalha aguardava
o toque da corneta à paisana e de mochila nas costas, con-
tava os segundos e murmurava palavrões se o corneteiro
atrasasse um único minuto. Alguns desenvolviam sagazes
métodos de escapar do quartel antes do toque da corneta,
máxima emoção do dia. Antão era um baluarte contra essa
baixaria. Deixava o quartel horas depois do melancólico
toque, que sempre o surpreendia no meio de uma tarefa.
Continuava aferrado à atividade enquanto o quartel se es-
vaziava, o que melhorava sua concentração. Desfrutaria
a quietude da caserna, a vermelhidão do crepúsculo nas
companhias limpas, a poeira torvelinhando nos pavilhões
sem gente, a emissão de ecos secos e puros. O drapejar das
bandeiras no céu enegrecendo fazia mais vivaz o cromo
dos brasões. O quartel, depurado da canalha, se tornava
ele mesmo: o castelo dos gigantes ainda não nascidos. E
nos arredores, perto das guaridas da Av. Luciano Carneiro,
rente aos muros no fundo verdejante, caminharia sozinho,
cataria mangas e cajus, se fosse tempo, e os comeria lambu-
zando o rosto e um pouco a farda, como um símio. O quar-
12 - 23º Batalhão de Caçadores – Batalhão Marechal Castelo Branco.

166 167
do Rio Maranguapinho, num barraco de taipa coberto de
encerado, onde crescera. Laranjeira, não ia em casa desde a
incorporação dos recrutas, em março. Não só porque gos-
tava do alojamento dos cabos e soldados, principalmente
da sala de jogos; é que morar no quartel era uma economia.
Podia deixar o soldo quase inteiro com a mãe, que o usava

PROVA
para cobrir de cimento o chão batido e rebocar as paredes
da casa. Faltava pouco, agora. Como estarão a mãe e as três
irmãs? A ameaça constante dos desmoronamentos e dos
aguaceiros gotejava em sua cabeça sob o capuz do poncho.
Antão leva a mochila vazia nas costas só por hábito. O
fardo das imaginações ele carrega na cabeça, balaio equili-
brado. Fenômeno curioso: em momentos de tensão como
Justiça esse, seu falo ficava ereto causando dificuldade nos passos.
Grávida de trovões e precipitações bizarras, a conversa
Ao passar pelo Portão das Armas, Antão suspirou ali- com a namorada do filho engorda no horizonte cinzento.
viado: esquecera o I Ching sobre a mesa. Um toró despen- Antão dava passos quase a correr, se adiantando às trevas
cou quando ele pôs os pés fora do Corpo da Guarda. O livro crescentes. As bestas camufladas nas chilreantes folhagens
se encharcaria na mochila, teria um destino semelhante ao em redor o observam. Coágulos de nuvens abrasadas rebo-
de seus irmãos gêmeos esquecidos nos balcões e nos quar- cam a extremidade do céu, e o cerco das matilhas se estrei-
tos de motel. A sentinela da hora se aprumou ao ver que o ta, resfolegante e atento aos seus movimentos. Contra essa
Sub vinha. O céu tempestuoso, o uniforme se ensopando e correnteza de imagens ácidas, Antão marcha.
a água escorrendo pela aba do gorro, compunham um ce- Chegou ao endereço. Rua Leandro Monteiro, apertou a
nário de guerra hollywoodiano. Outro soldado no Corpo tecla 3 do interfone, como recomendado. A chuva enchar-
da Guarda cobriu-se com um poncho, e correu para deixar ca a roupa, mas não incomoda. Nunca pegou resfriado por
o poncho da sentinela. Mas o tal se negou a receber antes conta de chuva. “Doenças para os doentes!”, o aforismo é
de prestar continência ao Sub. Bateria firme os coturnos e da irmã gêmea, inclinada à medicina alternativa; ao menos
a palma na coxa, estrondo de dar inveja aos trovões! Não nisso concordavam. A chuva só adoece os já fisiologica-
estragaria a solenidade do momento vestindo um estúpi- mente debilitados. Aí vem ela…
do poncho. Sua continência enérgica, numa feição sisuda e — Não é melhor deixarmos a conversa pra outro dia?
simpática, o peito inflado, consagraria o instante cinema- Antão simula hesitação.
tográfico. Uma pena que Antão tenha passado, cabisbaixo — Vamos, entre logo! Saia já dessa chuva ou vai acabar
e tateando a mochila nas costas, e ignorado os bons modos gripado!
da sentinela. A cerâmica branca contrasta com a imundície dos pés
— Bem-feito, baba-ovo! Vai de novo! Vai de novo! Vai que seguem Maria até o apartamento. Abrindo uma via la-
de novo baba-ovo!… macenta pelo corredor, Antão caminha feito um carangue-
O outro soldado se avexava tomando momentanea- jo na tentativa inútil de sujar menos.
mente o posto da sentinela, para que o “bisonho” enfim — Não se preocupe, limpo depois.
se cobrisse com o maldito poncho. A zoada das gotas no Os tênis enlameados estacionaram no umbral. Os olhos
couro sintético evocava os dias difíceis da família, na beira correram dentro do apartamento, pela mesa redonda co-

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berta com uma toalha amarela manchada de café, pelo exibição. Pouco importa, a camisa ficou justa evidencian-
fogão encimado de panelas destampadas, a pia entulhada do o saliente tórax. Um cheiro de chocolate se capilarizava
de louça suja e a torneira gotejando. Maria não estava no dentro do cheiro de cigarro. Deu um passo na direção do
compartimento cuja estreiteza, para quem observa de fora, limiar entre a cozinha e o quarto, contornou o ventilador
se apresenta hostil. Mas um cheiro de cigarro temperava o de coluna com a camisa ensopada na mão.
ar com algum sabor. Ele esquecera de comprar cigarro um Sentada na extremidade da cama, Maria tem nas mãos

PROVA
dia, depois dois, e já iam meses que não fumava. Mas nesse uma caneca à boca. Ela sorve a fumaça doce que enuvia
mês sem ver o filho bateu a vontade. Sacode três vezes a o nariz avermelhado e se dissipa no sopro do ventilador.
calça jeans ensopada pinçando-a com o indicador e o pole- Vento que também bafeja nas bordas de seu roupão e o
gar na altura do joelho. O caldo barrento escorre inchando faz lamber o chão. Baralhada ao sonido, a música do rádio
a mancha na soleira da porta. Onde está Maria? Deu dois relógio se achata sob a soada de chuva. Sem virar o rosto,
passos à frente e a encontrou de cócoras revolvendo gave- imóvel, Maria murmura.
tas, com os olhos comprimidos na fumaça que exalava do — Na pia, na pia, na cozinha!
cotoco aceso na boca. Os lábios queimavam, interrompeu Antão foi espremer a camisa na pia zangado, impacien-
o alvoroço e amassou a bituca no pires sobre a cômoda, e te com a pose empedrada de Maria. Situação mais absurda.
voltou a fuçar as gavetas. Tendo encontrado o que buscava, Ensaiou severidades: qual é mesmo o assunto da conversa?
atirou a toalha verde, Antão agarrou no ar. O que queria? Fui chamado aqui pra quê? Onde fica esse
Depois de enxugar o cabelo e a cara, depois que retirar bar?… Ali estava ela em seu roupão de seda branca, bem
a toalha de cima da cabeça – a vida será outra! O mundo repousada e sem pressa, virando-se com chocolate e café
estará nos eixos, a situação esclarecida pelas palavras de porque os cigarros acabaram. Ali estava ela, alheia, silen-
Maria, o drama concluído. Quanta bobagem! Com as duas ciando-se com goles, como se não fossem estranhas de-
mãos pesadas ele esfrega a toalha no rosto, como um jabuti mais as circunstâncias. Garota esquisita do caralho! Frases
que retrai o pescoço para dentro da carapaça. Cegar-se um grosseiras se gestavam no peito inquieto, esbarravam no
pouco é sempre bom para desoprimir o peito. A sonorida- semblante glacial de Maria e se mantinham emboladas na
de encorpada lá fora sinaliza que o toró não cessaria tão garganta. Os estrépidos da água insinuam a chuva longa.
cedo. Maria agora lhe atira uma camisa que Antão reco- Mas pode acontecer de bruscamente a hemorragia se es-
nheceu de imediato. tancar, e precipitar-se um céu límpido, de uma hora para
— Vai caber, em Anselmo ficava enorme. O que não dá outra. Pode acontecer, Antão especula aguçando os ouvi-
é sua camisa molhando meu chão! dos. Com o cessar da chuva, os dois rumarão ao bar, terão
Antão desabotoou a camisa de mangas longas dobradas a conversa e fumarão…
até o cotovelo, a mais elegante que tinha no armário do alo- Então, de repente, se rompe sob a pressão das águas o
jamento. Cena descabida, o gesto de desabotoar a camisa rochoso semblante, que lhe aparecia só pela metade, Dama
diante de uma garota nascia bizarro; em geral ele compu- do baralho. Carta rasgada. Um emplastro de dedos vem
nha um sistema diferente, atrelado ao rito da corte animal. barrar o aguaceiro, mas sem sanar a rachadura de sua ori-
Quem com mais de cinquenta anos tem um abdome e um gem. Maria chora e soluça compulsivamente, com uma
peitoral como esse? Mas foi titubeando que Antão retirou a mão no rosto e a outra na caneca, como se aparasse nela a
mochila das costas desenrolando a cena descabida. Quem torrente de lágrimas.
estava ali era a namorada do filho, Maria. Cabisbaixo e tí- Choro de mulher: gesto acessório, precisamente por
mido, mostrou o peito. Levantou a cabeça sem porquê e isso – uma arte! Expressão da passividade indefesa, mas
deu pela desaparição de Maria, ausência que esterilizava a atua como uma esponja nos sugando o sangue e o pen-

170 171
samento. Todo choro, em geral, é detestável, mas o choro diga logo o que você quer, e pra que diabos me chamou
de mulher… esse fingir-se de morto que entorpece nossas aqui! Esbravejar coisas assim seria mais útil do que ficar a
defesas, é um golpe baixo e penetrante. Nas mulheres, a remoer esse remorso de Édipo por não enxergar o que de-
inteligência coabitou com o instinto de maneira a evoluir veria ter enxergado. Os sangues não se cruzaram, as raças
o choro e elevá-lo a genialidade e a feitiçaria. Mulheres são não se mesclaram… Foi tudo delírio. Passe bem ou mor-
mestras na arte de vencer a guerra sem desembainhar a es- ra bem, que vou embora já dessa tumba! Deveria trovejar

PROVA
pada, em atuar sem atuar; e o choro é sua arma mais letal. assim agora mesmo. As genealogias não se misturaram,
A cabeça de Antão esvaziou-se de chofre como a cabaça de afinal… Ah, mas que belo espécime seria! A linhagem de
um berimbau que ecoasse as turbulências do coração, dos tenentistas oriunda dos Açores imbricada com a dos cabo-
nervos e dos músculos feito uma corda batida. Ei-lo em clos, dos pretos… Acorda! Acorda, Antão, que esse ventre,
pé, entre a cozinha e o quarto, emoldurado por estreitas ponto de convergência de duas linhagens de guerreiros,
paredes, hipnotizado pela telegrafia dos soluços de Maria. está vazio! Só tem chocolate e merda nessa barriga aí, sobre
— Não se preocupe, cuidaremos de tudo, conversarei esses largos quadris. Agora é regressar imediatamente…
com seu pai, conheço Coronel Cláudio, ele entenderá… Mas os soluços de Maria são pedras de tropeço. São
Veloz, Maria desgruda a mão do rosto e o encara. Su- tambores conduzindo ao transe. Quem não conhece esses
cesso! Na mosca! Falou a coisa certa e na hora certa. Estan- sortilégios? Há belezas femininas que, quando engelhadas
cou o choro. É preciso ser um Jesus ou um Laozi para rea- de pranto, inseminam alterações como o olhar da Medusa.
lizar proezas assim, ao menos para que o chorão vá abrir o Como se a contorção do rosto se identificasse a desmo-
berreiro lá na baixa da égua! ronamentos de terra. Expostos a essa avalanche sublime,
— Que tem meu pai com isso? nossos afetos são arrastados a restaurar o equilíbrio da
— Tudo! Não se deve esconder nada do pai… Não se paisagem. Nossas mãos farão de tudo para recolar a terra
preocupe, ele aceitará… no seu lugar. Regressar imediatamente, imediatamente! Já
— Aceitará o quê? desperdiçou tempo e simpatia o suficiente aqui… Mas os
— O filho… soluços de Maria são pedras de tropeço…
— Anselmo? Ah, meu pai não liga para isso… Deu três passos e sentou na beira da cama, perpendicu-
Antão perdeu o equilíbrio e quase escorregou na poça lar às costas de Maria. A calça jeans ensopada manchou a
escura sob seus pés. O bater daquelas pálpebras enchar- colcha. Mudo, desnorteado, sem ideia do que fazer, Antão
cadas cortou o sustentáculo das imaginações que se con- assistiu aos sacolejos do dorso de Maria. Mudo, ataran-
densavam desde o insólito telefonema. O fardo rolou das tado, sem a mínima ideia do que fazer. De repente Maria
costas como numa ilustração do Peregrino de Bunyan, mas distorce a cintura e atira a cabeça como uma flecha em seu
não exatamente, pois Antão queria reaver o fardo e recu- peito. Mudo, aturdido, baratinado, sem saber o que fazer
perar o equilíbrio. com as mãos, Antão responde com braços frouxos triscan-
— Você não está grávida? do de leve esse dorso trêmulo. A voz rouca se esgarça nas
— Grávida?! De onde saiu essa ideia?… incessantes contrações do pescoço.
Correra em vão. Socos no ar. Agora é regressar imedia- — Faz um mês que não saio de casa, que não vejo nin-
tamente. “Não está grávida… Não está grávida…”, moía a guém…
sentença para extrair dela a seiva que afirmasse o inverso. Antão dá tapinhas nas costas de Maria… Chove. Os
O bendito fruto caía por terra. Casa sobre a areia. trovões gargalham. Os lábios da noite procriam bestas-fe-
— Anselmo morre de cuidado com isso… ras que circulam loucas pelas bordas do céu; são diabos
Maria, estou sem saco, tenho mais o que fazer, então cintilantes escorrendo por tobogãs com olhos em chamas,

172 173
meteoros caindo na mata fechada. As rajadas do ventilador
dão bem na sua vista, tem pavor ao vento de ventilador na
vista, que o deixa com os olhos secos e avermelhados.
— Amo seu filho mais do que tudo…
Antão continua com os tapinhas nas costas de Maria.
— Nunca tive intimidade com outro homem como eu

PROVA
tive com ele…
Inflados pelos sussurros e as lágrimas de Maria, os bra-
ços flácidos vão se enrijecendo, determinados pela exigên-
cia de restaurar o equilíbrio da paisagem. As bestas nas
bordas do céu trevoso metem os focinhos ardentes entre
as folhagens. A palavra “intimidade” riscou feito navalha Mundo
nas mucosas do espírito, como palito de fósforo na escu-
ridão polvorosa. Os dedos de Antão, até então inertes, se “A proximidade do mamar é escatológica; projeta-se no
mexeram dentro dos cachos negros de Maria acendendo futuro como no passado ancestral; chama como o fim e a
uma lembrança: “as borboletas têm o paladar nas patas…” origem. Contudo, é somente o começo pessoal, singular, de
Sua mão ogra ergue o instável queixo de Maria. Tambores cada um”. Enrique D. Dussel.
pulmonares pipocam. Os alucinógenos aromas do escuro
jardim se mesclaram ao bafo lisérgico das bestas da noi-
te. Os relâmpagos são túneis unindo céu, terra e inferno, A palidez, a barba por fazer, a cabeleira grande despen-
dentes dos deuses quando gargalham. Feições de jacaré se teada e a blusa desabotoada furavam os olhos. Inevitável
estufam em Antão, que num último suspiro de timidez, uma arrepiadura de ojeriza diante do filho estufando esse
talvez por efeito do clima, saltou fora das ciliadas poças peito cadavérico, com as omoplatas sanfonadas para trás e
de mel adiante, que por um segundo pararam de sangrar o queixo elevado numa postura de galo-de-briga. Sintoni-
para olhá-lo frontalmente. Pulou fora desses dois abismos zou os sentidos peneirando os átomos da situação, inspe-
à procura do chão. Sem destreza, torceu o pé e derrapou cionou bem as duras linhas de expressão na cara do filho.
em lábios túmidos entreabertos. E foi nesse confuso ins- Que dizem as vísceras desse ouriço? Maria deu com a lín-
tante que o oráculo do I Ching raiou. gua nos dentes? Foi. Deu… No lugar de limpar a lama do
corredor, como decretou toda simpática, atirou a lama no
Haverá livre escolha e progresso… ventilador. Agora está aí, o vento do ventilador na vista!
Não encontra ninguém para estorvá-lo em suas saídas e Seu Benício veio deixar a cerveja e infestar o ar com
entradas… seu peculiar perfume de alfazema impotente para adocicar
Repetirá a própria conduta… os ânimos ali. Sapiente, tateou logo a atmosfera pesada, a
Haverá vantagem em qualquer direção que se faça o mo- solene conversa entre pai e filho, e se retirou reverente sem
vimento. puxar assunto nem levantar a cabeça. Virtude indispensá-
Então a matilha das bestas se precipitou como uma nu- vel num dono de bar, saber a hora de ser apenas braços ser-
vem de gafanhotos foliões, cegando a vista… vis pendentes de um fantasma invisível, como um tradutor,
Antão pegou um pacote de preservativos, a única coisa mesmo a clientes com quem anseia pôr a conversa em dia.
que tinha na mochila, e rasgou com os dentes. No terreno sagrado da conversa de pai e filho ninguém
— Não! pisa. E no bar também se lava roupa suja, o álcool na saliva

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vira um alvejante potente! boteco, às costas de Anselmo. Ali a penumbra cortinava
Anselmo agarrou o pescoço da garrafa e derrubou-a, as vicissitudes da existência, a inquietação e os murmú-
verteu na boca o copo cheio sem aguardar o pai servi-lo, rios dos bêbados. A luz branda no balcão foi dica de um
como de costume. De sobrecenho pregueado numa calma- rapaz punk metido a poeta. Seu Benício acatou com uma
ria de protesto, Antão manteve o copo cheio na mão esten- gambiarra, encasulou as lâmpadas com quebra-luzes que
dida. A transgressão desse pequeno ritual é um prenúncio, ele mesmo fez com a palha que orna certas garrafas de ca-

PROVA
constatou. chaça. Ali as silhuetas gargalhavam, sombras dentro da ca-
— Como se diz: beber sem brindar – sete anos sem tre- verna salvas da claridade mortífera da lua e dos postes. Oh,
par. mundinho fechado e seguro, radicalmente diferente desse
Tilintaram os copos. vertiginoso ar livre aqui de fora, essa rua infinita sob a bo-
— À verdade! carra do céu aberto!
O riso sarcástico do filho acrescentou àquela arrepia- “À verdade?”. É ironia! Ele já sabe de tudo. Maria en-
dura inicial tonalidades de pavor. Se as primeiras palavras golfou. Ele brinca. Atreve-se. Brinca com o pai!… Pois é
navalhavam assim… O I Ching não oferecia consolo. preciso acabar a brincadeira logo, adiantar-se. Tiremos a
coisa a limpo. Conclusão. O que tem de fazer, faze-o depres-
Amigos o procuram, e nenhum erro é cometido. sa! Disse o Nazareno ao traidor na última ceia, numa rara
demonstração de pressa. Jogo lerdo e morno é que não.
O erro já foi cometido inaugurando a expectação do Antão cerrava os olhos por detrás do copo fazendo dele
castigo. um prisma, uma lente para examinar miudamente os mo-
Anselmo bebeu vários copos seguidos numa voracida- veres do filho, que perdurava inerte com a vista no céu e as
de inédita. Depois intervalou sua sofreguidão esparraman- mãos na nuca. Correm as horas e o inimigo não se move,
do as costas na cadeira e espichando as pernas. Levantou como acertá-lo? Atuar sem atuar, a coisa do Tao… Orien-
os olhos para o breu do céu e pôs as mãos na nuca. Ria do tais e sua sabedoria complicada! A espada deve se ocultar
quê? A lua ecoava sua libido circular na bocarra celeste, na bainha. Não existe primeiro ataque no Karatê, princípio
reverberava nas mesas esparsas na calçada e na beira do do Mestre Funakoshi. Mas se o inimigo se mete num bu-
asfalto sua calidez glacial. Ria do quê?… raco de rato é preciso constrangê-lo a se mover arriscando
Não, não estava ali quem se debruçava na mesa para um primeiro golpe…
oferecer os ouvidos em oblação ao pai! Seria efeito do — Como vai Maria?
transbordo da lua cheia? Será que Maria deu com a língua Perguntou com voz contida fingindo naturalidade, os
nos dentes?… Da rua emanava um tremido abafado que se olhos baixos nas borbulhas da cerveja. Anselmo respondeu
enrolava nas pernas. Buracos barbados de outeiros confei- fulminante sem alterar o rosto, as pernas esticadas como
tados com cacos de asfalto denunciavam a demorada re- grossos espinhos, os braços cruzados fechando a camisa.
forma no saneamento do bairro. As britadeiras labutavam Continuava olhando para o diabo lá em cima.
até aquela hora nas mãos de uniformizados sem rosto. Ria — Não estamos mais juntos – para a vossa felicidade!
do quê?… — Ora… mas por quê?…
Inaturável esse silêncio! O filho o torturava com feições — Pai, deixa isso pra lá…
nédias, com uma mudez que era bem diferente do silêncio Agora vem os calafrios de uma sensação ambígua: o es-
dócil de sempre. Era uma mudez impudente, arrogante, boço de uma conversa interrompe a mudez, e um monstro
desrespeitosa. Uma mudez espinhosa de mandacaru. Des- sombreia nesse esboço…
viou-se dela repousando a vista no balcão, pela entrada do Mas alguns esporos de alívio se expelem na voz do fi-

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lho, talvez a tonalidade da palavra “pai” ou o modo como nho de volta. Pedir ao pai que o acompanhasse? “Olha aí,
a detestável máxima – deixa isso pra lá! – funcionava ge- olha aí que bicho bom!”.
rando um efeito diverso. Pela primeira vez na vida Antão O papel higiênico se esfregando nas manchas dos ócu-
queria atendê-la. Deixar esse drama pra lá, atirar tudo no los firmava os pés de Antão, tornava-os resolutos para o
mar do esquecimento, e fazer daquele encontro o de sem- próximo passo, limpava o corredor. Afinal, endemoninha-
pre. Reposicionou a cadeira como se ajustasse outra vez os do, descabelado, abilolado que estivesse, o filho ainda se

PROVA
cálculos de artilharia. O que há por trás da aparência trans- sujeitava à palavra do pai. A limpeza das lentes é um exor-
tornada do filho?… Começou a enfileirar causas e efeitos e cismo – o espírito imundo será afugentado. Agora o filho
proliferar ensaios. Que óculos imundos são esses? Deu-se se debruçará na mesa, dócil como um cordeiro, todo ouvi-
conta agora de mais essa aberração… Prendia o mijo para dos à palavra do pai, como sempre. Que bobagem, Antão!
não interromper os raciocínios, a intensificação da neces- Os dedos úmidos de cerveja manchavam as lentes ain-
sidade o forçou a tomar consciência do tanto de introspec- da mais. A teima em polir as lentes parecia uma cena cô-
ção que o aferrolhava à cadeira. E não dava para atribuir mica de cinema mudo. Antão observava prendendo o riso,
seus devaneios aos efeitos de um céu nublado. Levantou-se quase restabelecido ao seu posto, os artelhos subindo os
e foi ao banheiro. degraus até o lugar na mesa que era seu de direito. Nessa
Anselmo retirou a garrafa do suporte de isopor e ma- altura já podia enxergar o filho a certa distância, com o
mou no gargalo até esvaziá-la. Seu Benício, notando o su- sangue-frio de atirador na trincheira. Destacava o filho das
porte vazio, veio imediatamente trazer outra. Ao retornar adjacências que entulhavam a visão e a mesa, podava as
ao balcão cruzou com Antão que regressava à mesa com arestas e os espinhos, abstraía-o dos elementos secundá-
um tufo de papel higiênico na mão; não levantou a cabeça. rios, dos acidentes – a quinta-feira da traição, o corredor
— Limpe esses óculos! sujo… Ajustava o foco da observação aos fatos palpáveis,
Anselmo recebeu o bolo de papel e retirou os óculos da circunscreveu o momento depurando-o dos dias passados
cara… enuviados de fantasmagorias, ilusões retrospectivas, proje-
A primeira vez que Antão o levou à praia, o garoto ficou ções… Aprumou o pescoço e a cadeira. Quase não conteve
a polir as lentes esfumaçadas pela maresia sem dar a míni- o frenesi promovido pela nova perspectiva. O filho cha-
ma para as três beldades adiante. Duas lapas de negras e mou o pai porque precisa de socorro – resolvido! É como
uma loira, de biquíni, jogando frescobol! As belezuras se deve ser. Tudo em ordem. Tudo está no seu lugar, graças a
umedeciam e se temperavam de areia, os fios do biquíni Deus.
se afrouxavam na movimentação e apareciam nacos deli-
ciosos aqui e ali. Sentados à mesa, sob a sombra de um Nenhum erro é cometido!
guarda-sol a uns poucos metros, Antão acotovelava o filho
de 14 anos e apontava com a cabeça. A Praia do Futuro Deve ter outra origem a aparência transtornada do fi-
não estava lotada como de costume, e aquelas gostosuras lho. Debilidade mental? É provável. O horror que o sacu-
viravam o centro do universo. O balanço dos seios, as gar- dia era a antevisão da fúria do filho ciente de tudo, Ira do
galhadas finas, os quadris movediços açucarados de areia e Cordeiro. Horror que inchou ao colidir com sua aparência
as pernas brilhantes de bronzeador. “Olha que bicho bom! demoníaca. Horror descabido: o filho nada sabia, estava
Olha!”. O garoto fixava as espumas das ondas e o azulado claro como o dia! As raízes de seu desvario devem ser fra-
no horizonte infinito, e tornava a polir as lentes com guar- gilidade mental, talvez saudade mesclada ao ódio, veneno
danapos. Ah, banhar-se naquelas vagas sem ter que retirar no mel, mágoa e desejo, gama fútil de sentimentalismos ju-
os óculos! Temia ir ao encontro delas e não acertar o cami- venis. Chamou o pai para acompanhá-lo no afogar as má-

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goas, sim, isso mesmo – resolvido! Tudo está no seu lugar, os olhos fixos e inquiridores. É esse novo horror que o faz
graças a Deus… Antão convenceu-se e saboreou um gole virar o rosto para não ver a ruína do filho, como quem se
mais doce. Todavia, do cadáver do horror sepultado aflo- assombra com a contemplação do abismo. Sua autodefesa
rava lento um outro horror, mais difícil de se dissolver… mecânica prefere tapar com pisadas a chaga do filho, como
Antão ingressara na paternidade com doze anos de quem pisa uma barata, e enfiar a lança de centurião roma-
atraso, luxo masculino. O homem delega a cria recém-nas- no no flanco do crucificado. “E toda essa cena por causa de

PROVA
cida aos cuidados da mãe, e tem até teorias psicológicas uma putinha daquela… Hum… Bem, eu tentei abrir essa
que justificam sua deserção, e fixam a data de seu regresso cabeça dura…”
por volta do sétimo aniversário da cria. Antão nunca teve Beber! Beber! Beber! Num atentado contra si mesmo!
as mãos ogras beliscadas por dedinhos minúsculos. Nunca Bater a cabeça na parede até rachá-la. Beber! Beber! Beber!
o rosto lapidado pela atenção de olhinhos virgens absortos. Fender esse mundo exato, estreito e geométrico. A vida
Nunca a educação que só um bebê é capaz de proporcionar secou. Os poros se entupiram. O brutamonte aí no outro
ao adulto. Rejeitou a pedra filosofal encarnada, síntese da lado da mesa é tão somente o pai, ente familiar, boneco de
matéria e do espírito, o bebê. Toda sua preocupação ago- palha. A mesa do bar é quadrada. A lua é um satélite. A
ra, a de escalar até o cume da mesa, o lugar do pai, não é noite é o céu desolado. O mundo é um conjunto de fenô-
mais que um virar de costas ao pântano das fragilidades menos bem encaixados, sem vácuos, lacunas ou aberturas
e precaver-se contra os insalubres contágios dos afetos. entre eles. As leis mecânicas regendo os fatos, a extensão
Essa subida é um prolongamento daquele virar de costas desprovida de divindade como um tabuleiro ressecado
ao bebê, a originária recusa de visitar o berçário. A surdez despido da relva do pensamento. O movimento da Terra é
para o choro da cria recém-nascida instituiu o progressivo óbvio e redundante. As coisas, os objetos, os fenômenos to-
embotamento do tato para as fragilidades alheias, e fundou dos muito bem patrulhados pelo princípio de identidade,
a masculinidade do caçador de mamutes. Nisso Antão é o aristotelicamente imóveis ou móveis, dá no mesmo… Há
representante de todos os homens, é o Adão cuja deserção quanto tempo não escreve uma linha? Há quanto tempo
original explica a estupidez estrutural dos homens. Veja o não tem uma visão?… Essa febre que não vale de nada.
macho primordial errando pela savana no encalço de ma- Essa seca medonha e interminável. O corpo é um conjunto
mutes. A fêmea amamenta a cria e se banha nos raios desse de órgãos hierarquizados encimados pelo osso vestigial de
pequeno Sol dando início à primeira revolução humana. Deus, cúpula aprisionando o cérebro. O que tinha mais a
Ensolarada, em seu quintal, a fêmea inventa a agricultura, fazer senão atear fogo nos bonecos de palha? O que tinha
de um só golpe inventa o fogo e a culinária. De seu caldei- mais a fazer senão bater a testa no muro até que algo es-
rão ela extrai a magia, a linguagem, os primeiros poemas, capasse, algo passasse pela fenda no muro? Beber! Beber!
as primeiras palavras de feitiçaria… Enquanto isso o ma- Beber!
cho primordial erra pelas savanas no encalço de mamutes Por que chamar o pai? Ora, iria implodir-se agarrado
e hipertrofia o repertório motorístico da macheza. à mesa de bar! Que o pai juntasse os cacos e os carregas-
O novo horror de Antão é o lado sombrio da deserção se para casa, que servisse! Carecia de auxílio nessa revolta
originária, e por isso mais difícil de ser dissolvido. É o contra a seca, que já durava um mês! Beber! Beber! Be-
medo de tocar a fragilidade alheia. É o pavor aos perturba- ber! Mas a salvo do opróbrio de dormir na calçada, livre da
dores processos da empatia, essa peste. É terror ao contá- vergonha dos gestos espalhafatosos e da baba raivosa sal-
gio com a debilidade alheia, com a loucura e o sofrimento picando… Que o pai recolhesse o cadáver do filho, servis-
de outrem, essa lepra. É a especificidade desse horror que o se… Quem sabe o ajudaria a vomitar colocando sua nuca
impede de enxergar diretamente o filho, mesmo tendo nele debaixo do chuveiro e massageando seu pescoço? Eia!

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Abrir buracos no crânio! Vômitos! Tosse! Espirro! Não se lavrador, semeava e esperava colher. Mas quando chega a
espere mais o alinhamento dos planetas, a era de Aquá- seca para cauterizar os sulcos da terra, e os entes da na-
rio, o ano novo, o Verão! O logos emudeceu. Seus ouvidos tureza se vestem com a monótona planura infinita… “É
estão moucos para ele. Eia, encher o ventre de cerveja até preciso escutar a seca!”, ouvira de um engenhoso lavrador
estourar a caixa torácica e libertar o coração! Desentupir que no Assentamento da Barra do Leme, em Pentecoste,
os poros! Homem bomba! Espírito trágico! Hybris! Nunca abria vergões no chão duro e os entupia com os galhos

PROVA
na vida havia tomado um porre de verdade – é chegada a da caatinga delirando com a ressurreição de olhos d’água.
hora! Suicídio a tempestades em copos… Amanhã, quem Aguardar a convalescença da terra, iniciar-se na gagueira
sabe, o chumbo se converterá em ouro e a carne volte a das rochas e exercitar a língua enchendo com elas a boca
ser porosa. Eia, despregar dos poros a pele de Maria, essa sedenta. Aprender dos mandacarus e dos xiquexiques o tal
placenta espessa e grudenta, bolha plástica que o asfixiava do fatalismo russo, muito mais fatalismo dos filhos do Ser-
encolhendo-o, gestando-o… Eia, despregar seu sexo, mis- tão para quem a terra, extensão da carne crestada, expira e
to de teia de aranha e crucifixo, vagina dentada faminta… inspira longamente seca e chuva. Aprender a unidade espi-
Eia, desgrudar esse plástico com cera quente e arrancar os ritual entre o tempo de lavrar e o tempo de esperar, numa
pelos e limpar os poros de uma vez por todas! ativa longanimidade, e decifrar o tempo, e ler o deserto, e
Os poros fechados o condenavam à mornidão, ao pe- aguardar a convalescença junto com a terra. Nesse quesito,
sadume geométrico, ao crânio fechado, ao confinamento Anselmo é tolo, surdo e cego, sangue do pai. Antes estourar
das regras relojoeiras da razão… e a Terra há de vomitar do que fenecer devagar até o esgotamento, até a ressurrei-
os mornos! ção. É também um impaciente por demais submisso aos
— Mais uma, Seu Benício! imperativos à proatividade de sua época.
Os analfabetismos do pai e do filho se aproximam… Nessa hora de trevas, as duas impotências se tocam
Antão é débil em temperança, pouco disposto a trans- como nuvens grávidas de raios e esporões de galos em bri-
mutar compulsões em introspecções – pisar em ovos não ga.
é com ele. Um filho do Sertão tem regimes excessivos no — Maria é um mulherão…
sangue, os picos bruscos, as oscilações violentas entre a se- Cospe Antão exausto de amansar a língua e do chororô
cura absoluta e as bátegas. Uma espécie de princípio sado- do filho. Virou o copo na garganta, contagiado.
masoquista organiza sua alma e se impõe como bússola. — Mas pai, Maria tem orelhas que…
Uma furiosa disposição para padecer e fazer padecer: tal é Amolecido na cadeira, Anselmo comprime os olhos e
a essência do ser sargento, elo entre oficiais e praças. Esse balança a cabeça com as mãos agarradas na cabeleira cres-
princípio inchava, brotava feições metafísicas de estrutura pa.
do mundo, lei da natureza, lei de Deus, justiça cósmica… — Como é? Uma beldade daquelas!… Aqueles seios,
Fascinar-se com as autoridades como um cultuador do Sol, aqueles quadris, aquela cinturinha, aquela pele branqui-
e odiar as autoridades como quem padece insolação. En- nha… Hum… E você vem reclamar das olheiras?
solarado, insolado. Delirar com motins coletivos em in- Anselmo resmungava obscuridades revirando os olhos
surreição contra o despotismo do Sol, e desejar refletir sua com a cabeça pendente para o lado esquerdo, um fio de
glória sobre os demais. saliva pelo canto da boca. Murcho. Entusiasmado, An-
Anselmo é débil em desesperança, pouco disposto em tão apoiou o cotovelo direito na mesa, sustentou na mão
lidar com dias mornos quando as febres negam seus dons, a mandíbula sorridente e alargou os ouvidos à lógica do
e as visões e as ideias escasseiam, a alma enganchada em bêbado, que é como o grito de um louco ou o último sus-
regiões medianas. Tinha a rusticidade e a disciplina de um piro do moribundo, revelações! In vino veritas… Que baita

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espetáculo o filho lhe saía! Realçava o aspecto divertido da nesse molambo! Quase derrubou a garrafa e os copos da
cena para se indenizar pela agonia inicial, e de quebra pre- mesa com o gesto brusco dos braços. Antão segurou o gar-
caver-se contra sorrateiros surtos de compaixão, tentação galo da garrafa ainda cheia impedindo-a de cair no chão.
sempre iminente. Nada mais eficaz contra o contágio com Os que estavam nas outras mesas torceram os pescoços à
a debilidade alheia do que uma gargalhada que a escorra- algazarra. Seu Benício fez ouvido de mercador pressentin-
ce ao seu devido lugar, a milhas espirituais do observador. do alguma ondulação cósmica. Depois de ejacular seu últi-

PROVA
Que os fortes se salvaguardem da halitose dos fracos com mo suspiro, Anselmo murchou de novo na cadeira. Voltou
uma couraça de risos! a pender a cabeça sobre o ombro, títere inanimado.
— Encaixotar… hum, seria isso tão ruim? Não me
Caiam mil ao teu lado diga que… não… ah, espera… Não me diga que… você
e dez mil à tua direita, não gosta de xoxota? Seria essa razão do fim do namoro?
a ti nada atingirá Mas… logo agora que você deixou essa barba crescer!
basta que olhes com teus olhos...13 Antão falava sozinho. Anselmo desmaiara. Não tives-
se ocupado demais lavrando especulações se dedicaria ao
Nessa altura folgava, ébrio e restabelecido ao seu lugar cultivo de sua aversão aos trapos, esses frangalhos de gente
na mesa, o lugar do pai. que não suportam o peso da própria cabeça cheia de álcool
— Reclama de barriga cheia como sempre, Maria é um – pois que não bebam! O que nutre os fortes envenena os
mulherão! E ainda por cima tem uma boa cabeça, coisa fracos.
rara — Pontuou com um gole — Claro, e o que a gente faz
mesmo com essa “boa cabeça”, hem? Ah, ah! O que eu como a prato pleno
Antão incrementava o deboche com gestos largos como Bem pode ser o seu veneno…14
um rei bêbado no trono.
— Conheci o pai dela, o melhor oficial que já encontrei Dava asco esse farrapo à mesa babando e murmurando
na vida; combatente de Caatinga, excelente paraquedista, doidices. Seu Benício veio deixar mais uma cerveja e ins-
instrutor de Guerra na Selva… Vem de uma boa linhagem pecionar o que se passava. Tudo em ordem, conversa de
a menina. Hum, e pelo tamanho de seus quadris, é uma pai e filho, porre, estamos aqui pra isso, o Sargento sabe
excelente parideira! Ah, ah! resolver.
Essa última frase encheu a boca de silêncios. Pediu mais — Mas pai… Ela tem orelhas…
uma cerveja e juntou a garrafa vazia ao amontoado no pé — Como é? Olheiras? E você já viu o tamanho das
da mesa. “Uma boa cabeça… excelente parideira… Afi- suas?… Maria é como você, um liquidificador de livros,
nal, por que ela rejeitou o preservativo?”… Até então esse sua alma gêmea! Olheiras de muito ler; ler e apenas ler,
fato era insignificante; não foi a primeira vez que o calor tudo o que vocês universitários sabem fazer é ler e ler…
do momento derreteu a prudência. Doença ela não tem, é Sim, vocês são duas belas almas universitárias, meros lei-
moça bem cuidada. “Boa cabeça… excelente parideira…” tores incapazes de grandes maquinações… Isso mesmo…
Bebeu mais um gole para deglutir o bolo de ignorância en- incapazes… Só sabem ler e apenas ler…
ganchado. “Terá sido tudo calculado, tramoia?… O que ela Macerava as próprias palavras, “Sim, incapazes de gran-
pretende com isso?…” des maquinações…”. Um trovão desbaratou seus raciocí-
— Ela pretende me encaixotar, pai! Encaixotar!… nios, raio que reanimou o boneco assentado e quase derru-
Anselmo bradou surpreendendo, ainda tinha energia bou Antão da cadeira de um susto. Num instante Anselmo
13 - Salmo 91. 7, 8. 14 - Raul Seixas, Eu sou egoísta.

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cresceu na mesa e levantou o queixo e a voz… nefilins! Palmas, gente! Ave César!
— O que o senhor sabe das coisas que eu leio, pai?… O Berrava e chamava a atenção dos que estavam nas me-
senhor não entende NADA! sas balançando as mãos. Crise, perturbação mental, só po-
— Como é? Não entendo nada?… Entendo que você é dia ser. O garoto sempre teve miolo mole. Surtava, com
o cara que reclama das olheiras de uma gostosa como Ma- toda certeza…
ria… Entendo que você é um marica… Entendo… Estar ciente das “peculiaridades do filho”, como diz sua

PROVA
Anselmo inchou e se remexeu na cadeira. Endureceu o irmã, não impedia a combustão no sangue, os golfos ver-
cangote, desenrolou os ombros e fez deles o suporte de um melhos cegando os olhos e a contração das falanges. Miolo
dedo rígido apontado para o pai. mole, vá com calma aí, baixe a voz… Acalme-se aí, sente-
— Excelente genitora? Boa cabeça? Pois fique o senhor se, pediremos a conta agora mesmo, a noite acabou… Seu
com ela, vá lá!… Faça dela a bem-aventurada que con- Benício, a conta!… Miolo mole, vá com calma que é um fio
ceberá a linhagem messiânica de milicos imbecis! Eu, eu de cabelo que me ata…
mesmo, é que não serei crucificado nessa teia de aranha!… — O senhor não entende nada; não entende é porra ne-
Eu me despedaço todo, mas escapo! Despedaço-me, mas nhuma de orelhas!
viro as costas…! Espatifo-me contra o muro! Ah, mas eu Anselmo bateu o copo na mesa marcando o ponto fi-
escapo! Passo pelo fundo da agulha! Esburaco o crânio! Eu nal do espetáculo, a cabeça apontada para o pai como um
vou me depenar e me raspar todo, mas escapo! Ah, se não aríete. Os cabrestos em pedaços, as línguas endemoninha-
escapo!… Eu não sucumbirei como você, jagunço, capitão das, pai e filho se entreolhavam despojados dos invólucros
do mato, subgente! Vá você e ela e a linhagem de milicos que os conservavam em seus devidos lugares à mesa. O
imbecis à puta que pariu e me deixem em paz! filho rasga a pele de cordeiro: não suportaria sequer um
Esbravejou gutural e animalesco, bufava expelindo sali- lenço de seda sobre a carne! Agiganta-se expropriando o
va e mostrando os dentes. Que diabo o possui? Antão trin- barro excedente do pai e sinalizando a justa, discórdia que
cou a mandíbula, mordiscou o lábio inferior e semicerrou blasfema o lugar da eucaristia, a mesa de bar. O combate
os olhos. O ímpeto era de esmagar esse pirralho ali mesmo puxou as pontas da toalha de mesa e sacudiu a harmonia
e ensiná-lo a respeitar o pai. Fale baixo! Cale a boca! Não preestabelecida, os invólucros, as membranas que media-
pondera, bisonho! Mas o rugido do filho foi um golpe nos vam as carnes. Estouradas as bolsas, pela primeira vez o
testículos, um aluvião nas ideias, um abalo nos nervos. pai vê a face do filho sem máscaras. Também o filho vê o
Desbaratou-se de tal modo que por um instante não soube pai desnudo pela primeira vez, fora do crisol abstrato com
mais onde estava. Só conseguiu sair do impasse agarrando- o qual transmutava o chumbo de sua palavra em ouro, o
se às gargalhadas. Premeu as pálpebras mordendo o lado maquinário de morder e sugar montado na mesa de bar;
direito do beiço inferior como para temperar de amargo fábrica implantada nos dois corpos como uma unidade ci-
o riso. bernética que salvava pai e filho.
— Acho lindas as olheiras de Maria, lindas! O pai tem quase o dobro do tamanho do filho e os su-
— Ah! Ah! Ah! O que o senhor entende de orelhas, percílios volumosos de um boxeador calejado, o cabelo
Sub Antão?… Senhoras e senhores, respeitável público, curto grisalho, manchas amarronzadas nas faces carim-
vejam! Vejam aqui o Napoleão brasileiro, a reencarnação badas pelo sol, e uma pequena cicatriz do lado direito do
do Brigadeiro Sampaio assassino de índios e camponeses queixo, resultado de um soco. Briga no ônibus, Grande
e, pasmem, também é leitor de orelhas! Vejam aqui o des- Circular II. Uma garota branca de vinte cinco anos, artis-
cendente do Tenente Benedito que nas horas vagas decifra ta plástica, deitada sobre uma toalha vermelha com um
algumas orelhas! Palmas! Ecce Homo! É a sabedoria dos biquíni verde, esperava-o na Praia do Futuro. Entrou um

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pedinte que arrastava o toco sem pernas, os chinelos nas gosta de mulher, gosta de mulher afinal… Aí você me vem
mãos feitas de alavancas; “uma esmola pelo amor de Deus, com essa conversa de olheiras… Seja um boi mas não seja
uma esmola…”. Surdo, Antão fixa a imaginação na beldade um veado, rapaz! Caia do cavalo, mas não caia de quatro!
branca que o aguarda. “Desgastou as pernas de tanto se ar- Anselmo se pôs de pé dum salto, parrudo e cabeçudo;
rastar no chão!”, alguém grita lá detrás. Antão girou o pes- seus olhos escureceram. Apoiou uma mão na mesa e en-
coço e mirou o piadista, que revidou na esgrima. Levantou curvou a cabeça tateando o reequilíbrio. As sobrancelhas

PROVA
do banco rente à janela, passou por entre os joelhos de uma e a testa suadas gotejaram suor nas lentes embaçando-as
senhora vestida de funcionária de escritório, e foi ter com ainda mais… Retirou os óculos e os pôs na mesa. Arran-
o piadista. “Ele pode não ter perna, mas o verme aqui é cou do bolso aquele tufo de papel higiênico e esfregou no
você!” Antão cutucou com o indicador o peito do granda- rosto. Os joelhos tremiam, a mesa bambeava como uma
lhão tatuado e brancoso. O ônibus fez uma curva e Antão bengala prestes a quebrar. Antão apurava o ouvido aos
se desequilibrou. Foi a deixa: um soco no queixo o atirou murmúrios; os gestos do filho chegavam a ser hipnóticos
na catraca. O trocador observa tudo atônito ansioso pelo de tão insólitos.
desfecho, tempero na monotonia insossa do dia de traba- — O senhor nunca vai entender que eu leio os hexagra-
lho. Não se sabe como, num segundo Antão estava caído mas do I Ching nas orelhas… nunca vai entender… não
junto da catraca, no seguinte amassava a cabeça do gran- pode entender…
dalhão brancoso com uma sucessão de murros, bote que As surpresas não cessavam. De repente o boneco cam-
ninguém acompanhou. Mãos o seguraram pelas axilas; o baleante se estagnou, como que petrificado por uma fre-
homem já estava desmaiado, sem dentes e com o nariz es- quência estranha. Empalideceu como a Lua, os olhos em
folado. Para aí, motorista! Antão desceu com as mãos tre- crateras.
mendo de gozo e ensalivadas de sangue, uma dormência — Preciso mijar!
magoando o queixo. Meu Deus, o que aconteceu?… Gar- Antão se inclinou para ouvir os bodejados desse doido
çom, traga um saco com gelo e mais um copo, por favor. que de repente retesou a coluna e projetou os quadris para
Meu Deus, o que aconteceu?… O homem é um corisco! frente, abriu o fecho da calça e empunhou o pênis entu-
Vem pelo caminho arrumando confusão!… Antão senta mescido. O pai boquiaberto não acreditava no que via…
ao lado garota sob o guarda-sol. É uma barraca de praia — Preciso mijar!
que não costuma frequentar, feita para gringo se regalar, Intentou acertar no meio das dobras cartilaginosas,
e que destrata gente preta. Já deu muita confusão tentar centro da espiral, mas a terra soluçava e os joelhos se des-
ser atendido aqui, mas hoje ele está bem acompanhado ao faziam em água. O jato de mijo golpeou o céu da boca do
lado dessa belezura branca… Com uma mão pressiona o pai, que no momento iniciava uma gargalhada. O esguicho
saco de gelo no queixo, com a outra empunha o copo de raspou nos dentes superiores e respingou para dentro das
cerveja. O Sol é brando, as ondas e o vento compõem uma narinas ateando fogo nas faringes. Antão fez uma careta,
sinfonia insuperável, as mãos pararam de tremer. Que dia espremeu os olhos, tossiu…
lindo! O ar gelatinoso desliza devagar sobre a carne que sa-
— O que mesmo eu não entendo?… Oh, não diga que boreia os instantes sucessivos da queda como se sugasse
depois de homem-feito você decidiu virar a casaca? Se isso mel dos favos. O queixo estilhaçado em três pedaços tinia,
é uma confissão… resolveu mesmo dar o cu, realmente eu suas fraturas se ramificavam pela rua. A cabeça bateu no
não vou entender… Se bem que você sempre deu indícios, meio-fio, faiscou um clarão que rivalizou com a Lua. Na
sempre foi fresquinho, chorão, doentinho… Não, agora ar- boca negra do céu ecoou um estalido de louça espatifando.
ranjou uma namorada – antes tarde do que nunca! Não, ele Imediatamente os poros se desentupiram, frutos caídos de

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uma árvore sacolejada, abelhas esvoaçantes. Da rachadu- Mas o filho nem por um reino regressará. Seu sangue
ra na louça, na altura da têmpora, aflorou uma avarenta inquieto escorre livre pela artéria negra do bairro mesclan-
mancha vermelha, e abriu-se um funil para os espíritos da do-se ao pó da Terra e das estrelas, penetrando nos capi-
noite entrarem na cabeça. A queda, efeito do gancho do pai lares e nas nervuras de Deus. As britadeiras da reforma do
em seu maxilar, combinada ao paralelepípedo do meio-fio, saneamento lhe fazem cócegas e a fumaça das chaminés do
serviu de ato cirúrgico para reabrir a moleira. As articula- Distrito Industrial expande sua respiração. Percorre vários

PROVA
ções do crânio se prolongaram nas guias das calçadas irre- quilômetros extras, numa velocidade inatingível. Torna-se
gulares, o cérebro excêntrico se expandiu… infinitamente mais gigantesco que o pai… Os devotos ao
A multidão de curiosos toca com a ponta do pé a man- redor testemunhariam o milagroso e ordinário aconteci-
cha de sangue que consagra o anfiteatro, onde o pai tem mento se pudessem vê-lo por dentro. Eles se benzem co-
finalmente o filho imolado nos braços. O pai aperta o fi- mungando a superficialidade religiosa do que enxergam.
lho, o sacode, clama seu nome, chora. Mas o filho escapa “o pai matou o filho!” “Resultado do álcool!” “Esmurra-
volátil pelas raias da matéria; a substância, o peso e o vo- ram-se, foi briga feia!” “Esse não é aquele da polícia?”… Os
lume desdobram latitudes inusitadas, a unidade originária jornais dirão, “Subtenente do Exército se desentende com
da multiplicidade das coisas desliza na superfície abrindo o filho e…”. Os pregadores das igrejas pentecostais em cada
largos horizontes por onde deambular. E lá se vai o filho esquina bradarão sobre o fim dos tempos e falarão línguas
em éter, lá se vai numa velocidade absoluta… Via-se cego, estranhas. “É chegado o Reino de Deus, descarreguem to-
bebê, recém-saído de um útero, sem pele, frágil… O ím- dos os pesos para entrar pela porta estreita: renunciem ao
peto de sua leveza o desprende das cascas e carapaças, das eu e esvaziem os bolsos!”.
conchas concretas e abstratas, com suas mil camadas de
cebola entre as extremidades. Via claudicante que fluía e
refluía, ia e retornava, recordava e nascia. Via-se com sua
grande cabeça chorosa recostada ao seio da mãe, que guar-
dava um coração solar agonizante. O ritmo e o calor desse
coração gigantesco gestaram seu espírito, e agora, depois
de alçar tons azucrinantes, o coração começa a esmorecer
e silenciar. Sua irradiação composta de pensamento e calor
vai se dissipando deixando o recém-nascido em perdição.
Tensões e contrações extraordinárias vibram sua pequeni-
na carne, que se esforça para rasgar a pele sobre os olhos
contra os calcanhares da luz. A carne moribunda é o lar
onde seus músculos minúsculos esperneiam. Sua cabeça
enorme, sulcada de moleira, toca as gélidas dobras cartila-
ginosas que ondulam as origens de Deus, a orelha da mãe
já morta.
O Golias berra, baba e reencontra seu sotaque impera-
tivo. Dá golpes no peito magro do corpo estirado no chão
e grita:
— Ressuscite, ressuscite agora! Ressuscite agora e já,
mais uma vez!

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Epílogo lada no núcleo de um instante de comunhão, esperando para
ser rompida por dentes afiados de paixão.
Não o olho demais que isso cega. Ele é lindo! A pele do
Maria é cuspida de um pesadelo. Sobre a cama empes- rosto é lisa e rosada, tem uma barba quase ruiva, os cabelos
teia o abstrato fedor de enxofre, que grudando à pele atra- lisos e curtos. Alto, forte. Não o olho demais; passo sorra-
vessou o umbral até o quarto. Uma radiação pálida advém teiramente ao seu inconsciente, como uma mensagem subli-

PROVA
da janelinha na cozinha; a lâmpada fluorescente do outro minar, uma telegrafia espiritual. Ele não me olha, não olha
lado assomada à luz dos postes. O rádio relógio emudeceu o abismo, mas o abismo o vigia. Quando ele se der conta,
sem motivo, mas o visor está funcionando, exibe nos dígi- estará cheio de mim!
tos vermelhos 23:45. Uma calmaria tenebrosa esmaga seus A barba lisa desliza na face suada. De repente a dor
pulmões. Dava para ouvir o conta-gotas na torneira da pia, na barriga dá coices e manifesta a obra que progredia nas
os rebuliços do coração, as pinicadas de dor na barriga… trevas. Maria salta da cama despregando-se da compressa
Improvisa uma compressa feita com o corpo ao lado, enco- de carne para cair no banheiro. Líquidos esverdeados jor-
lhe uma das coxas roçando-a por cima do quadril quente e ram de sua garganta. Enroscada no oco do vaso sanitário,
aperta-o com tremura. a cabeça chupada pelos beiços de louça, ela esguicha gru-
— Está tudo bem? nhidos e fluidos. Depois senta e abraça o próprio dorso,
Lágrimas afogam-lhe as amêndoas dos olhos. lacrimando, suando, excretando do corpo todos os líqui-
— Sim, tudo bem, sonho ruim… dos possíveis, balançando-se para frente e para trás como
Na estante, o caderno de capa preta abocanha uma ca- se isso aliviasse a lancinante dor. Formou-se uma pintura
neta metálica na seguinte página: abstrata de fezes e vômito no chão do banheiro.
Segunda-feira, — Maria? Tudo bem?
Ele senta no mesmo lugar, penúltimo vagão. Está lendo O rapaz queima as narinas na fedentina e abre os olhos
uma história em quadrinhos que reconheço: o segundo livro para dar com uma ilha de carne se contorcendo na privada,
da Saga do Monstro do Pântano, de Alan Moore, o meu margeada pela salada esverdeada. No bolo de carne brota
predileto. É nele que o Monstro faz amor com Abby pela pri- uma quelícera veloz que fecha a cortina do espetáculo.
meira vez. Como resolver o problema da cópula entre um ve- — Volte a dormir, querido! Está tudo bem!… Está tudo
getal humanoide desprovido de falo e uma mulher? Abby diz bem!…
que pode abrir mão do sexo. O Monstro tem outra solução… Rouqueja a voz líquida abafada detrás da porta. Acos-
“Deve haver alguma forma de comunhão…”. Ele tem uma sado pela visão dantesca, como voltar a dormir? E ainda é
ideia: produz em si pencas de um estranho tubérculo, arran- meia-noite! O som dos esguichos importuna o rapaz e ele
ca-o e o oferece à amada. Ela o morde e os amantes submer- se levanta. Inspeciona a bermuda pendurada na cabeceira,
gem numa viagem lisérgica correlata ao orgasmo. Eucaris- frustra-se com os bolsos vazios. Sai apalpando feito louco a
tia. Ela participa do sangue e do corpo do amado. Ingere cama e procurando pelo chão até encontrar o pacote perdi-
o esperma monstruoso e absorve as percepções e sensações do, estava debaixo da cama. Enfiou-o no bolso aliviado, pe-
do amado, e ele as dela – conhecimento supremo de Deus. gou a chave e esvoaçou pelo corredor. Ar livre! Caminhou
Eles são como deuses! O Monstro faz as vezes da Árvore do rumo à Av. 13 de Maio pela ruazinha escura. Sonolento,
conhecimento do bem e do mal, variação do mito da Queda não atentou para o motoqueiro que cruzou seu caminho
que põe o amor como a fome primordial do corpo alheio; diminuindo a velocidade. Pela terceira vez o motoqueiro
busca de Deus no fundo da carne alheia. A eternidade enro- saiu para roubar celulares no mesmo perímetro, ao redor
do Pitombeira Bar, armado apenas com a impostação da

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voz e a mão dentro da calça. “Bora vagabundo, só o celular! Imediatamente Maria entrou em trabalho de parto. Seu
Só o celular!”. Terceira vez, mas estava tenso, não era bom ventre começou a inchar e a se arredondar. Algo volumo-
nisso; não fosse a última cafungada no pó barato não con- so feito uma melancia forcejava por entre suas pernas. A
seguiria. Não foi difícil que o passo vagaroso e indiferente garganta esfarrapava-se em gritos de dor. Céus! A barriga
do rapaz alourado e parrudo, talvez lutador de jiu-jitsu, de esticar se abriu feito uma boca, e uma cabeça negra e
metesse medo. No trajeto, o barbudo polvilhou num pa- ensanguentada irrompeu – céus, é a cabeça de Anselmo!

PROVA
pelzinho estreito o conteúdo gramíneo do pacote, enrolou, Esse sonho despontou em Maria na hora em que Ansel-
lambeu e acendeu com perícia. Na esquina, avistou a Pra- mo agonizava no meio-fio. Como se a sexta-feira da paixão
ça da Gentilândia fervilhando, oscilou entre gargalhadas fosse um alfinete transpassando dois insetos, uma paulada
e tragos e entalou-se com a fumaça imaginando a reação para dois coelhos que, ao que parece, eram mesmo uma só
dos amigos quando narrasse sua visão do inferno. Tossin- carne. Comunhão do sangue dos crucificados.
do e rindo, a movimentação fez uma faísca cair na altura Fim.
do peito abrindo um rombo na camiseta rósea. Merda! O
mau humor azedou a viagem; são o olho da cara as cami-
sas dessa marca! Encontrou os amigos no bar que tinha
o nome pomposo de Barba Ruiva Pub, recém-aberto em
frente à Praça da Gentilândia. Estavam à mesa, cada um
com uma caneca de cerveja Dubbel, muito sérios. Dois de-
les jogavam xadrez e os outros observavam. Levantaram a
mão pedindo silêncio ao vê-lo chegar. Ansioso para relatar
a visão, torcia para que fulano desse logo o xeque-mate em
sicrano como sempre.
O feixe de Sol entrou vagaroso pela janelinha da co-
zinha e tocou Maria. Ela progredia no chão feito lesma
deixando um rastro viscoso atrás de si. Como se a luz lhe
injetasse uma dose cavalar, ergueu o braço e apanhou o ce-
lular sobre a cômoda. Chamou a ambulância… O médico
constatou a apendicite. Nessa mesma janelinha, um Anjo
aparecera a Maria dizendo:
— Alegra-te, agraciada!
Nada se via além da luz cegante. O Anjo acrescentou:
— Não tenha medo, Maria, foste agraciada, e concebe-
rás e darás à luz um filho, e ele será grande.
Maria, deitada na cama, estupefata, respondeu:
— Como isso é possível se sou estéril e uma terra sem
forma e vazia?
O Anjo respondeu.
— Um fôlego de vida soprará sobre ti; o impulso vital te
cobrirá com sua sombra, e por isso, o que nascer de ti será
sombrio.

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