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· 1
Sociologia e Aotropologia
A Aventura
Sociolõgica
Objetividade, Paixão, lmproviso e
Método na Pesquisa Social
.)
I .
\.
ZAHAR EDITORES
RIO DB JANBJRO
1
O Ofício de Etnólogo, ou como Ter
"Anthropological Blues" *
RoosaTo o• MATA
lntroduçiio
1 tro. o ponto de partida., já que o único modo de eatudar um ritual me \'U'I'IC.S forma~. indo da anedota iofamc contada pelo falecido
: bro.s.ileiro é o de tomar tal rito como exótico. Isso significa que a Evan•Pritchard, quando disse que estudando os Nucr podo-se {a·
aprffnsio no primeiro processo é_ reali.ud~ . prir:nordi~_ent~ por eilmente adquirir &intoma.s de ... Nueroeia'"6 , até as .re8ÇÕCS mais vis-
uma via iotel«tual (a transformaçao do uohco em Camtl1ar e rea· ccrois, como aquelas de Lévi·StraUIOI, Chagnon e M aybury·Lewis"
hudft- fundamentalmente por meio de apreenaõee cognitivas)~ ao quando ae re{e..,m à solidão, à falta de privacidade e à sujeira dos
rauo que, no segundo caso, é neoeuário um desligamento erooei~ indios. .
na_l, já que a familiaridade do costume não fof obtida via intelecto, Tais relatos parecem sugerir, dentre oa muitos temas 'I"'( ela·
m~.s via coerção socializadora e, assim, veio do estômago para a boram, a fantástica surpreaa do antropólogo diante de um verda·
c·ciJ<:~o. Em ombos os casos, porém, a mediação é rea.lizada por um deiro aosalto pelas emoções. Aasim é que Cbagoon descreve sua
t--orpo de princípios guias (as ehamadu teorias antropológicas) e perplexidade diante da suje.i ra doa Yanomooo e, por isso mesmo,
condu~ido num labirinto de conflitos dramáticos que servem como do terrível sentimento de penetração num mundo caótico e sem
fitlD O de fundo para as anedotas outropolôgicas e para ncen~u~r o l!entido de que foi acometido nos seus primeiros tempos de traba·
tn<1uc romúntico dn nossa disciplina. Deste modo, se o meu 1n.nght lho de compo. E Maybury·Lewis guarda poro o último panígrafo
n·IÜ correto, é no processo de transformação mesmo que devemos do seu livro a surpresa de se 8aber de algum modo envolvido.!! ..:a-
c•uidnr de buscar a defini~o caJa vez mais precisa d()S cmlhrupolo- J1U. de envol-ver .!leU informante. Assim, é no últiino instanl_
c do
Bical blues. iieu relato que ficamos sabendo que Apawen - ao se despedir do
Seria~ tntüo, possível inicinr a demarcação d.a área básica do antropólogo - tinha lágrimas nos olhos. t como oe na escola gro·
antlaropolosiCtJI blues como aquela do elemento que se insinua na duada tivessem nos ensinado tudo: espere um sistema matrimonial
prática etnológiea, mas que não estav• tendo esper•do. Como um prHC:ritivo, um sistema político eegmenhldo, um sistema dualiFta,
blues. cuja melodia ganha forva pela repetiçio das ruas !rases de etc., e jamais nos tivessem prevenido que a situação etnográfica não
modo a cada vez mais se tornar pen:epti•el. Da mesma maneira que é realizada nu.m vazio e que tanto lá-t quanto aqui, se pode ouvir os
a tri!t..a e a saudade (também bluu) ae insinuam no processo do onlhropolosiool blue3!
trabalho de campo, causando surpresa ao etnólogo. t quando ele Mas junto a esses momeolOO> eruciaiJ (a chegada e o último
se pergunla, eomo fez Claude Lévi..Strausa, 14 que viemos fazer aqui? dia}, há - dentre as inúmeras situações destacáveis - um outro
Chm que esperança? Com que flm?"' e, o partir desse momento, inatante que ao menos para mim se configurou como critico: o mo·
põJe ouvir c.laramer.re as intromirsões do um rot-ineiro estudo de mento da descoberta etnográ{iea. Qua.ndo o etnólogo consegue des·
Chopin, ficnr por ele obsecado e se abrir à 1errível descoberta cobrir o funcionamento de uma instituição, compreende íinalmente
..: d e (I\IC 11 viagem apenas despertava sua próprio. subjetividade: uPor o operação de- uma regra antes obscura. No easo da minha pesquisa,
um singular paradoxo, diz Lévi·Straues, em lugar de me abrir a um no dia em que d escobri como operava o regra do. amizade formali·
· novo universo. minha vida aventurosa antes me restituía o antigo, r.adl'l entre os Apinoyé, escrevi no .meu diário em 18 de setembro
enquanto aquele que eu pretendera se dissolvia entre os meus dedos. I de 1970:
Quanto moi.s os homens e as paisagens o cuja conqui.!ta eu partira \
perdiam. ao possuí-los, a si~ificaçio que eu deles esperava, ~a~ • "Então ali estava o segyedo de uma relaçiio social mui·
f.~sa~ imagcn.s deee:pcionantes ajnda que pre!entes eram subshtul· to importante (a relação entre amigos formais), duda
das por outras, postas em reserva por meu pauedo e às quais eu não por acaso, enquaoto descobria outras coi!as. Ele mCJrS..
dtra nenhum valor quando ainda pertenciam à realidade que me trava de modo iniludivel a fragilidade do meu traba·
rode•••·" (Tristes Trópicos, Sio Paulo: Anh=hi, 1956, 402 ss.). lho e da minha capacidade de uereer o meu ofício cor·
S.no JlOS'Í•el diur que o elemento que oe insinua no trabalho
dt eampo é o sentimento e a emoção. Ettt-5 eeriam, para parafrasear a Cl. Eunt-Pritehard. The N~r, Ox!ord. at \hc Clarcndon Press,
1~ : 13.
Lêvi.Straui!S, õii lióspédes não convidados da situação elno~f\ca· E t Pura U\i·Strauss. "'t.ja o jA citado Tristes Trópico~; para 0\aanoo. c
tudo indica que tal intrusão da subjetividode e da carga afeuva que Maybury·l...rwis confira, rcspcctivamc:ntc1 Yanom41'to: Tlle Fi~r« P~ople.
vem com ela, dentro da rotina inteleetuallzada da pesquisa antropo- '/ Novo York: Holl, Rinehart e Winston, 1968, e Tht S••••• tsnd Tht lnno-
lógica, é um dado sistemático da &.ituaçio. Sua maoi(eetação asm- "'~"'· D01tcm : Bcacon Press. 1965.
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f. J2 A BuSCA DA REALIDADE OBJETIVA A VERSÃO QUALITATIVA 33
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I retamente. Por outro lado, ela revelava a cont.ingêocia
do ofício de etnólogo, pois os dados, por ~Mim dizer,
caem do céu como pingos de chuva. Cobe ao etnólogo
modo, i10la-se novamente. O oposto ocorre com muita freqüência:
envolvido por um chefe político que deseja seus favores e sua opi-
niio numa disputa, o etnólogo tem que calar e isolar«. Emocionado
n4o só apará-los, como conduzi-los em enxurrada para pelo pedJdo de apoio e temeroso por sua particiJ>Ição num conflito,
o oceano das teorias correntes. De modo muito nítido ele ee vê obrigado a chamar a razão para neutralizar os seus senti·
ver ifiquei que uma cultura e um informante são como meutoe e, assim, eontinuar de fora. Da minha experiência. guardo
cartol.. de mágico: tira·sc alguma coisa (uma regra) com muito cuidado a lembrança de uma destas situ11.ções e d~ oulrct.
que (az sentido num dia; no outro, &Ó conseguimos fi. muilo moia emocionante, quando um indi.oz.inho qun crn um misto
tas color idas de baixo valor ... de secretário, guia e filho adotivo, o!ereceu-me um colar. Trau ....
Do mesmo modo que estava preocupndo, pois havia crevo novamente um longo trecho do meu diário de 1970:
mondado dois artigos errados para publicação e tinha
que corrigi-los imediatamente, fiquei tnmbém eufórico. " 11 engi entrou na minha casa com um o cabacinha presa
~1o~ minba euforia teria que ser guordndn parn o meu a uma linha de tucwn. Estava nn minha. mesa remoen·
diário, pois não havia ninguém na alclcio que comigo do dados e coisas. Olhei para ele com o dc.~êm """ can. ·
pudesse compartilhar de minha de!ICoberta. Foi assim &odos e explo.rad?S, pois que diariamente. c n t01l1• o mu·
que escrevi uma carta para um amigo e visitei o encar- mento minha casa se enche de índios com colores paro
regado do Posto no auge da eu!oria. M .. ele não es· trocas pelas minhas m.issangas. Cada uma dessM trocas
tua absolutamente interessado no meu trabalho. E, é um pesadelo para mim. Socializado numa cultura
mesmo se estivesse, não o entenderia. Num dia. à noite .. onde a troca sempre implica uma tentativa de tirar
quando ele perguntou por que. a!inal, estava eu ali estu· o melhor partido do pa.rceiro, cu Kmpre tenho uma rP..
dando índios, eu mesmo duvidei da minha resposta~ beldia contra o abuso d.. troca.s propostas pelos Api·
poi.s procurava dar sentido prático a uma atividade nayé: um colar velho e mal feito por um punhado sem.
que, ao menos para mim, tem muito de artesanato. de pre cresoente de missangas. àla.s o meu ofício tem des-
confuúo e é, assim. totalmente desligada de uma rea- ses logros, pois missanga.s nndn valem para mim e. no
lidade instrumental. entanto, aqui estou zelando pcJa.s minhas )'CfJII<'nns
E foi assim que tive que guardar !ICgredo do minha bola.s colo.ridas como se fosse um guorda dr ' ' rn lm11c:o.
descoberta. E, à noite, depois do jootor nn casa do en- Tenho ciúme delas, e$lOu apegado no seu ''olor ·- <p.:e
CDI'regodo, quando retornei õ m inho CO!Ul, ltl só pude di- eu mesmo estabeleci. .. Os índios cltcgom. ofen.lm~ra ,,s
zer do meu feito a dois meninos Apiuo.yé que vjeram co lare::~, snbcm <{UC eles süo mal frilu:i, rnns sabem que
para comer comigo algumas bolochos. Foi com eles e eu vou trocar. E assim fazemos as trocas. S:io c.'•·:c-
com uma lua amarela. que subiu muito tarde naquela oos de colares por milhares de mill:inngos. Att' ·I"" dus
noite que eu compartilhei a minha aolidõo e o segredo da acabem e a noticia corro por toda n aldeia. E, então, fi.
minha minúscula ..-itória.- carei livre desse incômodo papel de comerciante. Te·
rei os colares e o trabalho cristaliudo de quase todas
Esta passa.g em me parece instrutiva porque ela revela que, no u mulhf'res Apinayé. E eles terio :nÍ't414n;r;a'j !•;;.ra fJU·
momento mesmo que o intelecto avança - na ocasião da deseober- tros colares.
ta - as emoções estão igualmente j>resentes, já que é. preciso com- Pois bem, a chegada de Penv ero sinal d• mais uma
partilhar o gosto da vitória e legitimar com os outros uma desco- troca. Mas ele estendeu a mão rapidamente: Esse é
berta. ltfas o etnólogo, nesse momento está IÓ e. dt!lte modo, terâ para o teu i.bá (filho), para ele brincar .
que guardar para si próprio o que (oi capa& de desvendar. E. ato continuo, saiu de çasa sem olhar l)Or\1 lrús. O
E aqui se coloca no'(awente o parado.xo da situação etnográ· objeto esta,•a nas minhas mãos e a saída rúpida do in·
lica: para descobrir é preciso relacionar-se c, oo momento mesmo dioünho não me dava tempo paro propor uma recom.
da dcaeoberlo, o etnólogo é reoiêtido pura o aeu mundo e, deste pensa.. Só pude pensar oo gesto cowo tunn gcntilcz.-..
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IÕ reconheço e, evidentemente, há d eacoohecidos tnmbém. Tratn·se cios, áreas e domíniO$ onde 1t evidencia a procura tlr t"Ontrstnr t"
de aituação d.ilerente de umn eoeiedade de pequena escala, com di· redefinir hierarquias e a d istribuição de poder. Ao contrário de 50-
visão social do trabalho menos complexa, com maior concentração cic.."C..ades tradicionais mnis estáveis ou integradas, está longe tlc hn·
ou menor número do papéis, etc. Jó discuti, em outra ocasião, o ver um consenso em torno dos lugares e posições ocupndos c de seu
problema do anonimato relativo na grande metrópole, chamando valor relativo. Existe o disscnso e1n vários níveis, n possibilidade do
nlenção para a existência do áreas o domínios até certo ponto autô- conflito é permanente e a rulidado está sempre sendo negocindn
nomos que permitem um jogo de papéis e de construrão de idcoti· ~ntre atores que apresentam interesses divergentes. Embora existam
dade bastante rico e comploxo•. O fato é que dentro da grande me· 01 mecanismos de acomodação ou de apaziguamento, sua eficácia é
trópol~. seja Nova York, Paris ou Rio de Janeiro, há deoeontinui· muito ' 'ariá,·el e. até certo ponto, imprevisível. Há dife~ntes ti-
dadeo vigorosas entre o ~mundo~ do pesquisador e outros mundoe, pos de desvio e contestação que põem em cheque a escala de valores
C.undo com que ele, meJj.mO tt-ndo nova-iorquino, parisiense ou dominante. A ciência aocial surge e se desenvolve nesta conjuntura.
carioca, possa ter experiência de estranheza. não reconhecimento ou tendo toda uma dimensão inconcclasta voltada para o eu me cri ti.
~té ~l~oq~e cuhur~ .~mparávei.s à de _viage~s a sociedades e regiões eo e deasacralizador da 110eiedade. Os cientistas 110eiais, ontropólo·
exoticos . Na opm1ao de Dn l\o1ouat1 1sso nao acontece com n maio.. gos, aociólogos, cienti.sta.s politicoe, etc. estão eonstontemcnte: entran-
ria dos pessoas dentro da oociednde complexo nn medida em <tue a do em áreas antes invioláveis, levantando dúvidu, revendo prcmi.s·
realidodc e ns categorias socinis ô sua volta estão hicrnrquizodns. A sos, queationando. ~ claro <[Ue islo varia em função de , po55ihili·
hicrorquin organiu, mapeia e, portanto, cada categoria eociol tem 0 dade1 - origem social, tipo de formação, orientação lcúricu. po~i·
seu lugnr ntrovés de estereóliJ)C).A como, por exemplo: o trabalhador ção ideológica entre outras. ?t-tas mesmo em se trotando de indivi·
14
nordrttino. paraíha :_, é ignorante, infantil, subnutrido; o turfista é duos e correntes mais ligados ou identificados com lendências con-
maconheiro, •}ien!do~ etc. Eu aeracentaria que a dimtn~io do ~ ttrvadora.s~ ou até ruciooáriu, o próprio trabalho d~ in,-~ligaç.óo
der e da donunaçao e fundamental para a construção dessa híerat· e refleúo oobre a aociedade e a cultura possibilitam uma dimen·
quia e d~ mapa. A etiqueta, a maneira, de dirigir-se u pessou, aio no•a da investigaçio cieotílica, de conseqüências radicais - o
as expeetatJvu de respostas, a noção de adequação etc., relacionam· questionamento e exame aist~mático
de seu próprio ombionte. As
se à distribuição aociol de pod~r que é essencialmente desigual em lloalogiu com a psicanálise, embora um tanto pe:r"igosas, úo óbvias.
umo eociedade de classes. Auim, em princípio, dispomos de um Trnta·se, afinal de contas, de uma tentativa de identirict~r rnccaois-
mnpn q-ue nos familiariza com 01 cenários e situações socini.s do nos- 0104 conscientes e ineonS<'ieotes que sustenltlm e diio continuidade
lO cotidiano, dando nome, lugar e posiçiío aos individuO!. hto, no 4 determinadas relações o situações. Assim voha·sc u um ponlo cri·
entanto, não significa que conhecemos o ponto de vi§ta e n visão de tico. Não só o grau de familiaridade varia, não é igual o conheci·
mundo dos diferentes atores em uma situação social nem u regras meuto, mas pode constitulr-se em impedimenlo se nõo for relativizn-
que estão por detrás dessas interações, dando continuidade ao sis-- do e objeto de refiCJ<ão oi.otomática. Posso estar acostumado, como
tema. Logo, sendo o pesquisador membro da sociedade. eotoca... já di.Me, com uma certa paisagem 110eial onde a disposição dos ato·
inevitavelmente, a questiio de seu lugar e de suas possibilidades d; res me é familiar, a hierarquia e a dL<tribuição de poder p<'rmitem·
ftlativiuí-Io ou transcendê-lo e podtT "por-se no lugar do outro.,. me fixar, grO»> modo, os indh•iduos em categorias mais amplas.
€ prtti..so chamar atençüo pora o fato de que mc-5mO nos AOCitdo- No entanto, isto não significa que eu ~mpreenda n lógica de suas
df'.s mais hierarquiud&.s hft momentO&, situações ou papéis aoci~is rdações. O meu conhecimento pode esta.:r scriumcnu.• comprometido
que permitem a critica, a relativizaçãQ ou até o romplmcnlo com a pele rotina, hábitos, estereótipo&. Logo. posso ter um mapa ma! não
hierorquia. Na sociedocle complexo contemporãnen rxiNcm trndêon- compreendo oecessarinmcnte O! princípios c mec.-oni.smos que o
organizam. O processo de tl~•coberto e análise do que é fami liar
pode, sem dúvida, envolver dificuldades diferente~ do c1ue em reln·
' Com L . A . Machado da Sihft "A 0r&ani7..aÇÜO Social cJo Meio Urba-
no" in~dilo. ção ao que é exótico. Em principio dispomos de mapa~ mnis com-
• Comunicação Pessoal. plexos e cristalizados para a nossa vida cotidiana do que em relação
'7 V~r o trabalho clássico de Louis Dumonl Homo 1/ttrcrrt'hicus. G31li- a grupõs ou sociedades díatant .. ou afostados. Isso oio aigniíica que,
mud, _1966. ~nde: o autor mocHa que mesmo na l ndtt. moddo de soc.tt- mesmo ao nos de&ootermM~ C!Omo indh,iduos e pesquiqdores, com
~Je lutrárqutca. há marcem para a s.akla ou estra.nhamtnto da h~l'"llrqui8.
42 A BuscA DA REALIDADE OBJEllVo\ A VERSÃO QUA(.ITATIVA
~·
grupos e situações aparentemente mais exótico~ ou distonte.s, não e~ percebida de maneira diferenciada. l\•f ais uma vez não estou proela·
lejamos sempre !:!_asst!icando e rotulando de acordo com princípios mando a falência do rigor científico no estudo da sociedade, mas a
IJásicos ab'avés dos quais fomos o somos socializados. ~ provável que necessidade de percebê·lo enquanto objetividade relativo. mais ou
existo maior número de dúvidas e hesitâções como~ as de um turis- menos ideológica c sempre interpretativa.
ta em um pnís desconhecido mns os mecanismos classificadores es· Este movimento de relativizar as noções de distância e objeti-
tão sempre operando. Dentro ou fora de nossa sociedade nós pes<JUÍ- vidade, se de tJm Indo nos tornn mais modestos quanto à construção
s.ndores ocidentais eslamos sempre, por exemplo, trabalhando e nos do nosso conhecimento em gernl, por outro ]ado permite-nos ob-
referindo à categoria indivíduo como unidade básica de mapeamen- :Servor o familiar c estudá-lo sem paranóias sobre o impossibilidade
to. No entanto, através da obra de Louis Dumont, sabemos que exi.s- de resultados imparciais, neutro.s.
tem sociedades em que essn categoria niio é dominantes. 1\fesmo
denlro da sociedade brasileira há grupos e áreas que apresenlam III - Tive oportunidode de pesquisor um universo de peque·
fortes dife-r enças e descontinuidade8 em relação à noção dominao· na classe média whitte.colcrr que me era familiar através do
le de indivíduo.' mapa hierárquico e político de minha sociedade e de meu bairro. 11
Levando mais longe o exame da.!l categorias familiar e exótico, Atrav6s de estereótipos localizava os moradores de grandes prédios
sem querer entrar em di.scu!lsóes de natureza filosófica. não há de conjugados. Ao passar por um desses edifícios, "sabia.., que era
como deixar de mencionar os impasses sugeridos pelo exJstenciali!· am "balouça", que havia desconforto, falta de higiene c que seu•
mo em relação ao conhecimento do outro. Não vejo isto como um moradores eram de condição social inferior, sujeitavam-se a condi-
impedimento ao trabalho científico mas como uma lembranç3 de ções de vida mais ou menos degradantes por estarem alienado.!, su-
humildade e controle de onipotência tão comum em nosso meio. O gestionáveis. Certamente tinha dúvidas, questionava alguns desses
conhecimento de situações ou indivíduos é construído a partir de estereótipos. Já conhecera pessoas que moravam em ''balanças" e
um sistema de interações cultural e historicamente definido. Embo.- que não !IC ajustavam a essas pré-noções. De qualquer forma, se um
ra aceite a idéia de que ~ repertórios humanos são limitados, suaa dCMes prédio5. particularmentet tornou-se mais fomHior oi.ndtt,
_combinaçÕt>-.s !lão suficientemente .variadas.. para criar surpresas e quando paro lá me mudei, o meu conhecimento de sua população
abrir abismos, por mais familiares que indivíduos e situações pos· era precário. O esforço de entender e registrar o discurso do uni-
sam pateeer. Neste sentido um certo ceticismo pode ser saudável. verso, eeu eistema de classificação e de captar sua visão de mundo
Pareee·me que Clifford G(!eru, ao enfatizar a natureza de interpre· nem sempre (oi bem sucedido. Percebia como a minha inserção no
tação do trobaiJ!o ontropológico chama atenção de que o processo sistema hierárquico da sociedade brasileira levava-me constante-
de conhecimento do vida social sempre i.mplica em um grau de mente a julgamentos apressados e preconceituosos. as vezes até por
~objetividade e que, portanlo, tem um ~arátc.r aproximativo e não querer drásticamente repelir as noções anteriores. caindo em arma·
definitivo••. O que signiCica a velha eslorinha de que antropólogos dilhns jnversas. Depois de ano e meio de ~idência no prédio, creio
sofjstjcados escol hem sociedades sofisticadas para estudar, os mais que consegui perceber algum .!leeanismos. que sustentavam a Jógica
ansiados trabalham com culturas onde a ansiedade é dominante? das relações sociais internas e externas e também ~~ar algo do es-
Isto mostra não a feliz coincidência ou a mágica do encontro tilo de vida e visão elo mundo loc.cis. Estou consciente de que se tra·
entre pesquisador e objeto com que tenha afinidade, mas sim o Cb• ta, no entanto, de uma interpretação e que por mais que tenho pro-
ráter de interpretação e a dimensão de subjetividade envolvidos nes· t curado reunir dados ~verdadeiros" e "objetivo.s'' sobre a vida da·
te lipo de trabalho. A "realidade" (familior ou exótica) sempre é , quele universo, a minha _subjetivida<!~ está presente em todo o tra·
filtrada por um determinado ponto de vista elo observador. eln ~ balho. Isso está claro para mim na 01edida em que volto constante-
mente a reexaminar a pesquisa. e mesmo a revi.sar o local da investi·
8 Op. cit. gação. PÕr outro lado, sendo um grupo qUe vive na minha cidade,
9 Retiro-me u esta quesllio em .. Rela~cs enlr~ a AntrOpOlogia e a P"si· ~ooheço outras pessoas, inclusive cientistas sociais que o encontram.
quialria" em RttPista da As.rocinção de Psiquiatria e Psicologia da lnfdn·
cia ~ da Adolcsc:t?ncla - - Rio, V. 2. 1976 - N.u I.
JO Ocenz., Clifford - 1'he /llfupr~lalion of CultureJ, Nov~ Y o tk, U.a-.ic 11 Ver A Utopia Urba11u - Um Estudo de Amropologia Social. Zahar
Books, 1973. Editores. 1973, 2.• cd ., 197.S.
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.f ........ .,.
A VERSÃO QUALITATIVA 45
44 A BuscA DA ReALIDADe OoJEnvA
dem discordar du interpretações do investigador. Vi~i essa experi-
que também têm &lgumo familiaridade ou alé fizeram pesquisas ência em minha pesquiaa tobre u.so de tóxicos em camadas médias
em contextos semelhantu. Oesta forma a minbn interpretação ~lá altas,'' quando pelo menos duas pe~ que cu t~lha entrevistado
sendo constonternente testada, revista e confrontada. O mesn1o não não concordaram com algumu das nunhu conclusocs, apresentando
se dá com muitot estudos de sociedades exóticas c distantes, pesqui· críticas que me levaram a rever pon!o! impo~tantes. Em~ra isso
sodas por opena.s um iovesligador, em que não houve oportunidade possa aconteeer no Ht~do de outr~.s ISOCI~ad~, e menos provavel por-
de maio~ di!';(:u55Óel ou po1êmjcas. Assim, o interpretação de um que, normalmente. Ít1ta a pesqua.sa, ~ ID\CSt1gador ,·olta para o seu
in,~esHgodor faca sendo a versão existe.ote sobre dclcrmina.d.a cul- país ou cidade e tem menos oportumd1tles de confrontou-~ com as
tura, não sendo exposto ~ ccrt01 questionamentos. Ao contrário, na opiniões daqueles a quem estudou. Paracc-me que, ness.; ~vcl, o es-
soci..Jode brasileira há muilas ~iniõeo e interpreloçócs sobre Copa- ludo do familiar orerec:e vantagens em ler~os de poss~biltdades ~e
cabana, carnaval, fulebol, etc., colocando os pesqui!õadores no cen· rever e enriquecer oe resuhadoe das pesqu158S. Acredito ~u~ seJa
tro de acirradas polêmicas. possível transcender, em determinados moment~, as_ lürulaçoes
Embora familiaridade não seja igual a conheeimenlo cientifico, de origem do antropólogo e chegar a ver o. familiar nao ?eeessa·
é fora de dúvida que representa também um eerlo tipo de apre- riamente como exótico mas como uma re.ahdade bcro ma.1s co~·
ensão da realidade, raundo com que os opiniões, vivências, percep-- plen do que aquela repre;oentada pe_los mapas e. códigos básicos
ções de pessoas sem (ormaçiío acadêmica ou aem pretensões cientí· nacionais e de clasae atraves dos quau fomos soc:tafuados. O pro·
ficas possam dor valiosas contribWç:ões para o conhecimento da vida cesso de eslronhar o familiar torna·se possível quando ~mos capa·
social, tle uma época, de um grupQI Além disso, há indivíduos zes de confrontar intelectualmente. e mesmo emoc10nalmeote,
ou grupos que talvez por um movimento de !5.!.-!..!!'harnen!et. _como diferentes versões e interpretações exi.stenles a respeito de fatos,
certos artistas, ca.Ptam c descreve~ significativQJ:nente aspectos de situações. O estudo de conflitos, d.isputos, acusações, otomenlos. de
uma sociedade êle maneira mo~s rica e reveladora do que trabalhos descontinuidade em geral é pnrtieulnrmen~e Ülil, pois, tto se focal~a
mais orientados (real ou pretcosamentc) de acordo com os padrões rem !ituações de dromo $C)(.Íol, pode-se rctpstrnr os contornos d~ ~tfe·
científicos. Os exemplos na literatura são óbvios como Balz.ae, Proust, rentes grupos, ideologias, interesses, subcuhuras,_ etc., perm~tJ.n~o
Thomos Mnnn e, no Brasil, Machado de Assis, Graciliano Ramos, remopeamentos dn aoeiedode. O estud~ d? ~rowpunen!o e rcJ~IoÇaO
Oswold de Andrade, etc. Tombém no teatro, cinema, música, artes do colidinno por parte do gru(lOS ou mdiVlduos desv•ant~s •Juda·
plásticos poderiam l!Cr citados exemplos. Isto l!COl falar em gêneros nos a ilumioor, como casos limites, o rotina e os mccamsmos de
menos "nobres" como o jornoli.8mo em suas várias mani(estações, a conservação e dominoçiio cxiiJtentes.
história em quodrinhos c n Uteroturn de cordel entre outros. Vale a peno insistir no enrúter re~ativo da noção d~ fa~iliar
Ou sejo, numa sociedade complexo contemporânea como a e exót.ico, especialmente no nossa soc1edode. A _comuweaçao de
brasileiro, o antropólogo nprese.nta aua interpretação, que, por mai!\ l]lA~S~- jornal, revist.n, rádio, televisão, traz fatO$, notícias de re·
que possa Ler uma certa reapeitabilidadc acadêmica, é _!!ll'Ís um~ giões e grupos espacialmenlo di!tantes mas que podem se tornar fa-
versão que concorrerá com outras - artísticas, políticas, em termos miliares pela freqüência c inlensidade eoro que aparecem. Basla
de oceiloçlio peranle um _eúblic~ relotivamcnlc helerogõneo. Há ou- pensar, por exemplo, no je~&et internacional e nos artistas de
tras pessons, profissionaiS de Ciênciu Sociais ou não, observando e Hcllywood como grupos com que um gigantesco número de ind!-
rdlelindo sobre o familiar - a nossa aooi..Jadc em f;CUS múltiplos víduos desenvolve uma certa lamilioridadc, sabendo detalhes roa•s
aspeelos, com esquemas e _preocupações diferent... Se o inle!C$SC ou menos verdadeiros a respeito de suas vidas, (amíHa.s, roupas,
por grupos tribail, por cx.emplo, é relativamente rc~t~ito, o mesmo prele.rêocias, etc. Por outro lado recebemos com maior ou menor
não se pode diur aobre umbande, escola de sambo, uso de tóxicos, freqü~ncia notícias e imagens de lugares tradicionalmente de[ini·
homossexuali~mo e outros temas que têm sido ~uisados por an- dos como exólieos - fntlia, Á(rica. ele .. Há, sem dú,•ida. cená·
1ropólogos. rios e grupos dentro do própr·io país ou até dentro da própria ci-
Assim, ao r.studor o que está próximo, a sua prc;pria sociedadt. dade de que muitas vezes nem ouvimos falar. que não s5o te!Tlas
o antropólogo expõe-se, com maior ou meuor inttn'-itloule, a. um con- 12 Vu Nobr~1 e An}o1, Um Estu4o 4~ T6xicos ~ Hi~rt:rquio. - Tese de
frontos com outros_espcc:ialittas, com leisos e até. em certos casos,
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doutorado apresentada ao Oepartamtnlo de Ciências Sociais da USP. 1975.
com repr~ntantes dos universo que foram inve!tigadores, que po-
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46 A BUSCA DA R EAIIOAOH OBJETIVA
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