You are on page 1of 3

Classe, gênero e raça: minhas impressões sobre as leituras realizadas.

É tarefa difícil negar a importância dos escritos de Karl Marx (1818 – 1883) para que se
possa pensar as relações de classe, a ideia de mercadoria – e de monetarização da vida – e as
opressões vividas por aqueles que não fazem parte da classe dominante e não estão a serviço
dela. Os feminismos1, enquanto luta pela igualdade entre os gêneros2, não prescindiram da
teoria marxiana para estabelecer algumas de suas bases tais como a desnaturalização das
identidades de gênero, bem como o reconhecimento da existência e a consequente
problematização das hierarquias de gênero, ambas devedoras do materialismo histórico
dialético, conforme Federici (2017).
Não se deve deixar de observar, no entanto, que embora tenha realizado uma análise
teórica que, dentre outras coisas, condenou as condições do trabalho fabril das mulheres na
sociedade industrial, Marx realizou seu trabalho através de uma perspectiva masculina que
lamentavelmente não problematizou a subordinação das mulheres dentro da família burguesa,
naturalizava o trabalho doméstico – maioritariamente realizado por mulheres – e postulava o
trabalho industrial como elemento com a potencialidade de nivelar as desigualdades sociais,
dentre elas as de gênero, que sequer mereceram mais do que cerca de uma centena de páginas,
nas milhares de páginas da sua obra magna, O Capital (FEDERICI, 2017).
É dessa “limitação do quadro teórico marxiano” no que diz respeito ao gênero que
Federici (2017) percebe como derivação o fato de marxistas encararem as opressões de gênero
e de raça como “questões culturais” que estariam dissociadas – e certamente hierarquicamente
inferiores – às questões de classe. Sentimento que parece ser partilhado por Falquet (2008)
quando ela afirma que acha “indispensável integrar plenamente em nossas análises os efeitos
conjugados de várias relações sociais de poder: de sexo (incluso a sexualidade), de classe e de

1
O feminismo não é um bloco monolítico, dado que a mulher enquanto construção identitária universal inexiste,
sendo plenamente possível que se possa falar em feminismos, há hodiernamente grupos feministas que se
identificam como radicais, liberais, classistas, interseccionais, negros, lésbicos, transfeministas, queers, dentre
outros, usando como que etiquetas que destaquem qual é o ponto central da sua luta, muito embora nenhum deles
deixe de reconhecer a existência de uma estrutura social erigida sobre a opressão feminina e a necessidade de
desmontá-la.
2
A efetiva entrada e grande aceitação do termo gênero nos estudos feministas costuma ser localizada a partir da
publicação do ensaio O Tráfico de Mulheres: notas sobre a Economia Política do sexo, da antropóloga Gayle Rubin
na década de setenta. Nele, a autora apresenta a expressão “sistema de sexo/gênero”, indicando a complexa
interdependência entre a esfera do sexo, que é produto do natural/biológico e a esfera do gênero, que é produto do
cultural/social. A partir desse momento é possível identificar várias obras de teóricas feministas – como Joan Scott,
Donna Haraway e, no caso brasileiro, Heleieth Saffioti – que reafirmaram o gênero como um conceito que se
refere à construção social do sexo, isto é, o modo como as diferenças anatômicas e fisiológicas percebidas são
utilizadas pela cultura para determinar processos de socialização diferentes para indivíduos designados macho ou
fêmea quando do seu nascimento.
“raça” (p. 122), o que parece indicar que tal integração não estaria sendo suficientemente
realizada na leitura da referida autora.
Falquet (2008) ainda avança mais em sua tese postulando que, diferentemente da
teleologia marxiana, a inescapável proletariazação (exploração da força de trabalho via
assalariamento) da mão de obra não só não aconteceu como deu lugar à exploração do “trabalho
gratuito” e à exploração do “trabalho desvalorizado”, que, segundo a sua tipologia, não se
confundem com o trabalho proletário, mas formam uma espécie de continuum (trabalho
assalariado-trabalho desvalorizado-trabalho gratuito) que sustenta e é sustentado pelo modelo
de globalização neoliberal.
Não acidentalmente a mão de obra designada para a realização dos trabalhos
desvalorizados e/ou gratuitos é racializada e do gênero feminino, não seria diferente visto que
a maior parte das atividades laborais que podem ser classificadas desta forma envolve o trabalho
de manutenção dos membros do grupo familiar (trabalho doméstico), o trabalho sexual
(reprodutivo ou não) e o trabalho de criação das crianças e cuidados com os idosos (trabalhos
de cuidado), trabalhos considerados femininos, mas que “dizem respeito a todo mundo”
(FALQUET, 2008, p.137).
Federici (2017) aponta ainda que a “cegueira de gênero” da qual sofre os trabalhos de
Marx é ladeada por uma “cegueira de raça”, pois embora tenha apontado a impossibilidade de
emancipação do trabalhador branco enquanto perdurasse a escravidão negra, não houve maior
preocupação marxiana em relação aos negros escravizados. Além disso, o homem universal do
socialismo europeu era indubitavelmente o trabalhador branco, cuja luta e emancipação
“libertaria todos os homens”.
Nesse ponto é necessário lembrar dos escritos de Davis (2016), quando lembra que
“proporcionalmente, as mulheres negras sempre trabalharam mais fora de casa do que suas
irmãs brancas” (p. 10), pois, quando o trabalho fabril feminino foi reduzido e as “as mulheres
proletárias [confinadas] no lar para produzir não mercadorias físicas, mas trabalhadores”
(FEDERICI, 2017, p. 101), as negras escravizadas permaneciam sendo trabalhadoras em tempo
integral e apenas ocasionalmente mãe, esposa ou dona de casa. Situação que se manteve mesmo
com a popularização midiática da “ideologia da feminilidade”, que removeu a mulher branca
da esfera considerada produtiva e alardeou a suposta inferioridade do trabalho doméstico3.

3
A inferioridade do trabalho doméstico está presente ainda no fato de que são as mulheres racializadas das classes
populares trabalhando como domésticas, diaristas ou babás que dão suporte ao avanço de outras mulheres no
mercado de trabalho e na vida acadêmica, por exemplo.
As discussões sobre a divisão sexual do trabalho estão longe de serem pacificadas e no
bojo delas há outras temáticas caras ao feminismo como a necessidade de remuneração do
trabalho doméstico intrafamiliar realizado normalmente pelas mulheres; a necessidade de
divisão igualitária entre homens e mulheres dos trabalhos de higiene e de cuidado; a racialização
e a baixa remuneração do emprego doméstico; e a regulamentação do trabalho sexual, questões
que não chegam a ser consensuais nem mesmo dentro do feminismo mas que precisam
continuamente serem levantadas se o que realmente se busca é a equidade entre os gêneros e o
desmonte de todo o tipo de opressão.

REFERÊNCIAS
DAVIS, Ângela. O legado da escravidão: parâmetros para uma nova condição da
mulher. In: _______. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Editora Boitempo, 2016. p. 15-42.
FALQUET, Jules. Repensar as relações sociais de sexo, classe e raça na globalização
neoliberal. Mediações, v. 13. N. 1-2, Jan/Jul e Jul/Dez 2008. p. 121-142.
FEDERICI, Silvia. Notas sobre gênero em O Capital. Cadernos Cemarx, nº 10 – 2017.
p. 83- 111.

You might also like