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Homem

sem rumo
por Arne Lygre (2005)

DRAMATIS PERSONAE:

Peter
Irmão
Ex-Mulher
Filha
Irmã
Proprietário/Assistente

Nota do Autor: A peça é escrita usando duas perspectivas diferentes de narrativa


– as personagens utilizam estas duas formas de se exprimirem. Isto é revelado
por elas alterarem a sua linguagem e, por vezes, agirem e falarem de uma forma
distanciada, utilizando a terceira pessoa. É como se, em determinados momentos,
as personagens se relacionassem com seu próprio eu visto do exterior, em
incursões narrativas ao passado, mas sem deixarem de se comunicar umas com
as outras numa espécie de diálogo. No texto, estas réplicas estão sublinhadas em
itálico.

I ATO

1
(Peter e Irmão estão de pé num terreno desabitado, junto a um rio)

Peter- Aqui. Vai ser aqui, a cidade.


Irmão- Sim.
P- Aqui.
I- Uma cidade... Completa?
P- Já decidi. Vai ser aqui. A cidade. A primeira pedra. (Peter afasta-se um pouco,
olha em volta) Ou... Não. (Peter regressa ao primeiro lugar) Aqui. Vai ser aqui. A
primeira pedra.
I- É tão importante?
P- O que?
I- O lugar da primeira pedra?
P- É importante. O centro da cidade. A praça de onde saem todas as ruas.
I- Vai haver uma praça aqui?
P- Uma praça, sim. E um cais ao longo da marginal. Não vai ficar bonito?
I- Vai, claro.
P- Vai ficar bonito.
I- Quem vai morar aqui?
P- O que?
I- Quem vai morar nesta cidade?
P- Eu. Nós.

(Irmão olha admirado para Peter)

I- Vamos nos mudar?


P- Claro.
I- Pra cá?
P- É você que decide.

(Irmão não responde. Peter afasta-se um pouco. Ficam calados por um momento)

I- Claro.
P- O que?
I- Eu decido.
P- Claro.
I- Vai ser... Uma linda cidade.
P- Vai.
I- Aqui? Só porque nos metemos por esse rio adentro?
P- Se não fosse isso, não tinha sabido desse lugar.
I- E os teus negócios?
P- Vendo tudo. Invisto aqui. Concentro tudo.
I- Vende tudo o que tem?
P- Preciso de uma coisa nova. De alguma coisa que possa, talvez, não ter
sucesso.

(Irmão não responde. Ficam em silêncio por um momento)

2
I- E aí?
P- Aí?
I- Se não tem sucesso?
P- É essa a diferença.
I- O que?
P- Entre quem faz diferença e um tipo como você. Se. Se. Se. Existe sempre um
risco.
I- Vender tudo. Por causa disso?
P- É uma idéia que... Me enche de entusiasmo.

(Peter senta-se numa pedra. Tira uma garrafa térmica de uma bolsa, enche duas
pequenas canecas com café e estende uma delas a Irmão. Irmão senta-se ao lado
dele)

I- Entusiasmo?
P- A possibilidade.

(Irmão não responde. Bebem. Irmão desata a rir às gargalhadas. Peter observa-o.
Irmão acalma-se)

I- E quem é que vai querer morar aqui?


P- Milhares de pessoas.
I- Milhares de pessoas?
P- A cidade que mais cresce no país.
I- Quem?
P- Seja quem for. Desde que lhes possamos dar um teto pra dormir. Apartamentos
baratos, que eles próprios possam comprar. Pela montanha acima. Milhares deles.
Trabalhadores das fábricas, que vamos construir, e das lojas que vamos abrir nas
ruas do centro. (Irmão não responde. Ficam sentados em silêncio por um
momento, bebem café) Me enche de entusiasmo. A possibilidade.
I- É... Uma canseira.
P- Canseira?
I- Todos esses planos.

(Peter não responde imediatamente. Vira-se de costas)

P- Como somos diferentes. Às vezes eu penso: o que vou fazer com você? (Peter
olha para Irmão) Às vezes eu penso... (Peter interrompe-se)
I- O que?
P- Se você não me trava. Apesar de eu estar bem consciente disso. Apesar de eu
tentar não me deixar influenciar por você. Às vezes eu penso se, de certa maneira,
isso não me contagia. O teu medo. (Ficam em silêncio por um momento. Peter
olha para Irmão) O que vou fazer com você?
I- É você que decide.
P- Claro. Sou eu que decido. O que vou fazer com um irmão que não me serve
pra nada?
I- Mas eu te sirvo pra alguma coisa.

3
P- Mas. Mas. Mas.
I- O que?
P- É disso que eu não gosto em você.

(Irmão não responde. Ficam sentados em silêncio por um momento)

I- Se não fosse assim, eu não estava aqui.


P- O que?
I- Não vai a lugar nenhum, não faz nada, sem me pedir pra ir contigo. Não seria
desse jeito se eu não te servisse pra alguma coisa.

(Peter pousa as canecas e a garrafa térmica. Levanta-se)

P- Pra alguma coisa, talvez. Mas não para o máximo. Era o que se podia exigir a
quem se diz da família.

(Proprietário aparece. Aproxima-se de Peter e Irmão. A princípio não diz nada,


olha-os apenas. Faz um gesto na direção do rio)

Proprietário- Bonito barco.


P- Obrigado.
Pr- É de vocês?
P- É meu.
Pr- Vi essa noite deslizando pelo rio.
P- Estava acordado?
Pr- Acordei.
P- Eu dei ordem pra diminuírem a marcha.
Pr- Nunca se viu um barco tão grande por aqui.
P- O capitão estava preocupado com as rochas, mas eu vi nos mapas que não
tinha perigo.
Pr- Não tem. O rio é muito profundo. Nunca nenhum barco teve problemas. Era
tão bonito.
P- O que?
Pr- Ver o barco. À noite.
P- Navega bem.
Pr- Quase irreal. Foi o que eu pensei quando vi vocês deslizando pra cá. Pra cá,
na direção da minha casa. As luzes do barco, o desenho das montanhas escuras
atrás. As ondas pequenas, remexendo a água calma do rio. Quase irreal, eu
pensei. (Peter não responde. Ficam calados um momento) O que vocês querem?
P- O que?
Pr- Por que atracaram aqui?
P- É bonito.
Pr- É. (Ficam calados um momento) O que vocês querem?
P- Dar uma olhada.
Pr- É meu. Esse terreno é meu.
P- Uma paradinha não faz mal, não é? (Proprietário não responde. Peter ergue a
garrafa térmica na sua direção) Vai um café?

4
Pr- Não, obrigado.
P- É a sua casa?
Pr- O que?
P- O barco deslizava na direção da sua casa, foi o que você disse, quando falava
do rio.
Pr- Hã?
P- O rio... É seu também?
Pr- O lado leste. Do rio, até aquela planície, lá embaixo.
P- É tudo seu?
Pr- É meu, sim.
P- E o lado oeste?
Pr- É de um que se diz meu irmão.
P- Que se diz seu irmão?
Pr- Não temos nenhum contato.
P- Briga?
Pr- Era meu! Tudo! Do que nasceu primeiro, era o que eles diziam. Era o que a lei
dizia. Nunca foi dito que se tinha que dividir com um irmão.
P- E foi o que fizeram?
Pr- Ele levou a questão pro tribunal. Devia ser tudo meu, tudo!

(Peter não responde. Ergue outra vez a garrafa térmica na direção do Proprietário)

P- Vai um café?
Pr- Meia xícara. Obrigado.

(Peter serve-lhe uma xícara, e enche também a sua e a do Irmão. Todos bebem)

P- É bonito.
Pr- É.
P- É pena.
Pr- O que?
P- Perder metade de uma coisa assim.
Pr- Odeio ele.
P- Quanto custa o resto?
Pr- O que?
P- Sua parte. Quanto custaria?

(Proprietário hesita)

Pr- A minha vida.


P- O que?
Pr- Ficaria sem nada.

(Peter não responde logo)

P- Dinheiro.
Pr- O que?

5
P- Ficaria com dinheiro.
Pr- Não basta.
P- Eu compro.

(Proprietário ri. Depois, durante um momento, olha para Peter em silêncio)

Pr- Não está à venda.


P- Procure um lugar onde possa ficar tranqüilo. Talvez, a praia. Imagine um valor
que, nas suas mais loucas fantasias, pudesse pensar que a sua propriedade
valesse. Imagine o que faria com o dinheiro. As possibilidades que se abririam pra
você.
Pr- Não está à venda.
P- Multiplique esse valor por dois.
Pr- O que?
P- É o que eu pago. A sua mais louca fantasia. Multiplicada por dois.
Pr- (Grita) Não está à venda!

(Peter faz um gesto para Irmão se aproximar. Fala-lhe ao ouvido. Irmão aproxima-
se do Proprietário e ataca-o subitamente. Pressiona-o contra o chão, imobilizando-
o. Irmão fala ao ouvido do Proprietário. Proprietário acalma-se e fica deitado,
imóvel. Irmão o larga e Proprietário levanta-se. Proprietário senta-se. Fica
sentado, silencioso, olhando para a paisagem)

Pr- Vendido.
P- Comprado.
Pr- Estou rico.
P- Está.
Pr- ESTOU RICO! (Peter ri. Proprietário fala em voz baixa, consigo próprio) Rico...
P- Agora você é um dos nossos.

(Irmão aproxima-se de Peter. Proprietário olha para ele)

Pr-(Para Irmão) Você também é rico?

(Irmão não responde)

P- Ele é meu irmão.


Pr- Ele é rico?
P- Vai ser. Um dia. Se eu morrer primeiro.
Pr-(Para Irmão) E o que você vai fazer? Com o dinheiro?
I- Não sei.
P- Ainda falta muito.
Pr- Não sei.
P- O que?
Pr-Não sei o que vou fazer agora.
P- Não precisa fazer nada. Só tem que ficar aí sentado pensando em tudo que
pode comprar.

6
Pr-Tudo que se pode fazer com o dinheiro.
P- Viajar, talvez.
Pr- Viajar?
P- Pros lugares com que sonhou.
Pr- Acontecia dele sonhar.
P- Já ele nunca sonhava.
I- Peter fazia acontecer.
Pr- Acontecia dele sonhar que tinha mulheres em sua cama.
P- Mais um que não sonhava senão com o amor. Por isso é que havia tanto
espaço no mundo para os que eram como Peter. Para os que não pensavam
senão em fazer acontecer.
Pr- Uma ou duas mulheres. Acontecia dele sonhar que tinha duas em sua cama.
P- Duas mulheres?
Pr- Ajoelhadas na frente dele. Implorando. “Adoro seu pau. Dá ele pra mim. Fode
minha boca.” Duas mulheres. Loucas de desejo.
P- Um sonho engraçado.
Pr- Não havia nada em que ele pensasse tanto.
P- Agora podia conseguir.
Pr- O desejo também?
P- Todo desejo que quisesse.
Pr- Putas?
P- Ou não. Agora podia conseguir.

(O Proprietário não responde imediatamente. Fica de pé, durante um momento,


pensando)

Pr- Não seria a mesma coisa.


P- O que?
Pr- A fantasia. Não seria a mesma coisa se fosse... Comprada.
P- Agora você é um dos que tem poder.

(Proprietário não responde. Ficam de pé, em silêncio, durante um momento)

Pr- O que vai fazer com ela?


P- O que?
Pr- A terra. A propriedade. Se você é um daqueles que pode comprar seja o que
for que lhe passe pela cabeça, então o que vai fazer com a minha terra, com a
minha propriedade?
P- Minha. Agora.
Pr- O que vai fazer com ela?
P- Primeiro arrasá-la. Depois construir novamente.
Pr- Uma casa nova?
P- Uma cidade nova.

(Proprietário começa a rir. Pouco depois, pára de rir e olha para Peter)

Pr- Casas? Ruas? Lojas?

7
P- Tudo!
Pr- Aqui?
P- Sim.
Pr- Pra quem?
P- Pra todos que quiserem vir morar nas casas econômicas que vamos construir.
Pr- Seria o meu sonho.
P- O que?
Pr- Morar aqui.
P- Também é o meu.
Pr- Bem alto na encosta, talvez. Com vista sobre a cidade.
P- Talvez...
Pr- Vou comprar um terreno lá em cima.
P- Não vendo terrenos.
Pr- Não vende?
P- A cidade tem que ser planejada rigorosamente. Tem que ser desenhada. Não
ponho nenhum terreno à disposição antes de estar tudo pronto.
Pr- Eu conheço cada metro quadrado.
P- Pode ajudar.
Pr- Posso?
P- Gosto de você.
Pr- Obrigado.
P- Meu assistente, talvez.
Pr- Assistente?

(Irmão se aproxima)

I- Assistente?

(Peter olha para Irmão)

P- Não do mesmo modo que você.


I- Mas por que?
P- É o sonho dele.
I-(Para Proprietário) Pode viajar.
Pr- Posso.
I- Dar a volta ao mundo. Pode encontrar um lugar do qual nunca mais queira sair.
Pr- Ou ficar aqui.
P- Ficar aqui. Investir, talvez.
Pr- Investir?
P- A cidade precisa de investidores. Pessoas com visão. Você é uma delas?
Pr- Eu conheço cada metro quadrado.
P- Um homem de visão. Percebi logo.
Pr- Assistente. Investidor.
P- Vai investir?
Pr- Vou.
P- Vai!
Pr- A cidade dele.

8
P- Agora vamos para o barco. Quer vir?
I- Ele tem que tomar conta da propriedade.

(Peter não ouve Irmão, continua a dirigir-se ao Proprietário)

P- Quer vir?
Pr- Um dos que alinharam logo. Desde o princípio. Antes que alguém pudesse
imaginar o que viria a ser. Era do que ele teria mais orgulho. Depois.
I- Dez anos depois.

(Aqui há uma passagem de tempo: dez anos. Eles estão agora num cais, e vê-se
a cidade erguida, luminosa, ao fundo)

Pr- Dez anos depois, sentados no cais, altas horas da noite. Na noite do
aniversário da cidade. Depois da grande festa na praça.

(Proprietário/Assistente, Irmão e Peter sentam-se na beira do cais)

Assistente- As ruas estavam quase desertas, naquela hora.

(Assistente tira uma garrafa de champanhe da bolsa de Peter. Abre-a e todos


bebem)

P- Ele tinha medo. Também. Tanta coisa podia ter dado errado.
I- Durante toda a primavera tinham aumentado as expectativas para a grande
festa dos dez anos da cidade.
A- As pessoas planejaram as férias em torno daquele dia. Daquela semana.
Ninguém queria perder nada do que iria acontecer.
I- Ou do que não iria.
P- Havia tanta coisa que podia ter dado errado. (Bebem. Peter bruscamente sorri)
Mas não. Deu tudo certo. (Peter bebe outra vez, sorri e grita) DEU TUDO CERTO!
(Assistente ri. Ficam os três calados por um momento ) O discurso também? (Para
o Irmão) O meu discurso, foi bom?
I- Foi.
P- Foi. (Ficam calados por um momento) Foi?
I- Se saiu bem.
P- Nunca gostei de falar em público.
I- Se saiu bem.

(Peter volta-se para Assistente)

P- O discurso foi bom?


A- Foi.
P- Nunca gostei.
A- Melhorou bastante.

9
(Peter volta a beber. Passa a garrafa aos outros. Bebem também. A Ex-Mulher
aparece no cais. Todos olham para ela, mas não dizem nada)

P- No princípio eles não acreditaram quando ele lhes falou dela.


I- Uma mulher de que Peter nunca tinha falado?
P- Ex-mulher.
A- Uma ex-mulher de que Peter nunca tinha falado?
I- Quando?
Ex-Mulher- Tinham vivido juntos alguns anos durante o tempo em que Peter e
Irmão não tinham contato.
P- E...
I- O que?
P- Ela veio para a festa do aniversário da cidade.
I- Uma ex-mulher com quem não tinha nenhum contato. E agora, de repente: uma
visita.
P- Era muito mais importante do que tinha pensado a princípio. Ter junto de si,
num dia daqueles, os que significavam alguma coisa pra ele.
I- Ela significava alguma coisa?
P- Ela tinha vindo. Ele tinha ficado contente.
E- Ela devia ter vindo mais cedo.
P- Não falaram do passado.
E- Falaram da cidade. Bonita. Moderna. Engraçada.
I- Engraçada?
E- Os edifícios, todos da mesma cor.
P- Ela gostou? Da cor?
E- A cor preferida dela era o vermelho.

(Irmão ri. Olha para a Ex-Mulher)

I- Uma cidade vermelha?

(Ex-Mulher não responde. Peter fica pensativo)

P- Talvez. O novo quarteirão? Como uma espécie de introdução ao resto.


A- Não tinham combinado que seria tudo da mesma cor?
P- Talvez. Um quarteirão vermelho.
I- Tinham combinado!
P- Ele mudou de idéia.

(Ficam todos em silêncio por um momento)

E- Não consegui dormir.


P- Não quero dormir.
E- Eu ouvi.
P- Ouviu?
E- A janela do meu quarto no hotel estava aberta. Ouvi você gritar.
P- Estou contente.

10
I- Estamos contentes.
A- A festa não podia ter sido melhor.

(Assistente estende a garrafa para Ex-Mulher. Ela bebe e passa aos outros)

E- Ainda bem.
P- O que?
E- Que está contente.
P- Deu tudo certo.

(Ex-Mulher deita-se de costas no cais e olha para o céu)

E- Eu gostaria de morar aqui.


P- Gostaria?
E- Gosto disso aqui.

(Peter deita-se de costas também. Ficam em silêncio por um momento)

P- Em minha casa?
E- O que?
P- Gostaria de morar em minha casa?
E- Não.
P- Não.
E- Não. Já tentamos uma vez.

(Peter não responde logo)

P- Quando éramos jovens.


E- O que?
P- Éramos jovens, quando tentamos. E agora... Não.
E- Não.
P- Não. Podia ter uma casa sua. Num dos terrenos novos, no alto da colina.
E- Ou...
P- O que?
E- Um apartamento no centro?
P- Prefere?
E- Gosto disso aqui.
P-Então um apartamento no centro.

(Silêncio)

I-A garrafa está vazia.

(Irmão pousa a garrafa. Peter levanta-se e olha para Irmão e Assistente)

A- O que é?
I- Peter?

11
P- Vão embora.
A- O que?
P- A festa acabou.

(Irmão e Assistente hesitam. Ex-Mulher levanta-se e olha para eles. Eles


levantam-se e abandonam o cais. Silêncio por um longo período)

E- Estou aqui.
P- Me agrada que esteja aqui.

(Ex-Mulher não responde logo)

E- A mim também.

(Peter olha para Ex-Mulher)

P- Não queria?
E- Eu...
P- O que?
E- A oferta me pegou de surpresa.
P- Pensei nisso muitas vezes.
E- Pensou?
P- Pensei.
E- O que você pode fazer com uma ex-mulher?
P- O que eu posso fazer sem uma?

(Ex-Mulher não responde. Silêncio)

E- O que é?
P- Acabou. A festa.
E- Sim. Deu tudo certo.

II ATO
(Dez anos mais tarde. Peter está de pé, na janela de um quarto de hospital. Olha
para a cidade lá fora. A Ex-Mulher está sentada a uma certa distância.)

12
P- Foi bom ter construído o hospital aqui em cima. No melhor terreno. Com vista
para a cidade e o rio.
E- É lindo.
P- Muitos dos meus conselheiros achavam que devíamos colocar aqui um edifício
mais importante, e construir a cidade em volta dele. Mas pensei que... O hospital.
Que em momentos difíceis a beleza em volta não poderia senão fazer bem.
E- Está com medo?
P- Estou.
E- Eu estou aqui.
P- Não adianta nada.
E- Quer ficar sozinho?
P- Quero.

(Ex-Mulher levanta-se e se adianta para sair)

P- NÃO! Não. Não vá embora. (Ex-Mulher hesita. Peter está de costas para ela.
Ela aproxima-se e coloca uma mão nas costas dele. Ficam de pé, em silêncio) Às
vezes eu sinto que nós tenhamos nos divorciado.
E- Eu também.
P- Seria bem diferente se eu te tivesse aqui, agora, como mulher.
E- Seria.
P- Mas somos amigos.
E- Somos.
P- Já não sou o seu homem, mas...

(Peter incita Ex-Mulher com os olhos. Ela hesita antes de continuar)

E- Já não é o meu homem, mas eu... Não há ninguém em quem eu pense com
tanto carinho.
P- Eu te amo.
E- Também te amei.
P- (Peter sorri, triste) A culpa foi minha.
E- Foi.
P- É que eu não fui sempre seu...totalmente.
E- Não.
P- Isso foi o pior?
E- Foi doloroso.
P- De tudo que se passou entre você e eu, o que é que te irritava mais?
E- Era eu ter tão pouco em relação a você.
P- Mas tinha o meu dinheiro.
E- Sim, tinha. Mas...
P- Isso era o que eu detestava.
E- O que?
P- Mas. Mas. Mas. Eu podia trabalhar dezoito horas sem parar, passar metade
das noites em reuniões, viajar para um país num dia e no dia seguinte para outro,
mas nunca estava cansado. Não, não era isso o que me cansava.

13
(Ex-Mulher não responde. Ficam em silêncio)

E-Talvez tivesse sido diferente se tivéssemos tido uma criança.


P- Não.
E- Não acha?
P- Tínhamos planos diferentes. Naquela época.
E- É melhor não falarmos nisso agora.
P- Se é para falar, é agora ou nunca.
E- Não tem importância.

(Silêncio)

P- Eu tenho uma criança.


E- O que?
P- Uma filha. Ainda não a vi.
E- Que idade tem?
P- Foi depois de você. Não muito tempo depois... mas depois.

(Irmão entra no quarto. Peter e Ex-Mulher olham para ele, depois se voltam
novamente um para o outro)

E- Por que não me disse nada?


P- Ainda não me encontrei com ela.
E- (Levantando a voz) POR QUE NÃO ME DISSE NADA?
I- Peter precisa de sossego.
P- Deixa ela gritar um pouco. Já passa.
E- Talvez passe. Mas é só porque não tenho alternativa. Eu não vou esquecer.
I- O que houve?
E- Ele tem uma filha.
I- Sim, tem.
E- Tem?
I- Ela deve chegar hoje.

(Ex-Mulher olha para Irmão, antes de se voltar e fitar Peter demoradamente)

E- Por que eu estou aqui?


P- Preciso de você.
E- Por que eu estou aqui se você não me diz nada?
P- Eu próprio não sabia.
E- O que?
P- Só soube há pouco.
E- Foi ela que te procurou?

(Peter não responde. Irmão olha para Ex-Mulher)

14
I-Não foi pra isso que te chamamos, pra vir aqui criar um mau ambiente. Meu
irmão está cansado. Precisa de sossego. (Irmão aproxima-se de Peter) Deita um
pouco. (Peter lentamente acena com a cabeça, como que absorvido em outros
pensamentos. Irmão vai até a cama, dobra o lençol para o lado. Peter segue-o.
Senta-se na cama) Esperamos lá fora.
P- Não.
I- O que?
P- Não quero me deitar.
I- Precisa descansar.
P-Não é isso que vai me fazer melhorar. Eu...
I- Vai te dar forças.
P- Eu...não melhoro.
I- Não diga isso.

(Peter começa a arrancar a roupa de cama. Atira-a para um dos cantos do quarto)

P- Não quero me deitar. (Grita violentamente) Onde é que ela está?


E- Quando é que ela vem?
I- Agora.
P- Disse pra ser pontual. Não quero ficar esperando! (Peter acalma-se. Os outros
ficam calados) Ela já vem. (Peter vira-se para a Ex-Mulher. Observa-a por um
momento) Pode ir embora.
E- O que?
P- Já não preciso de você.
E- Não vou.
P- Vá embora!
E- Quantas vezes já me pediu a mesma coisa?
P- Não bastaram. Ainda está aqui.
E- O tempo entre me pedir pra ir embora e me implorar pra que volte é cada vez
mais curto. Das últimas vezes não deu sequer pra sair do hospital.
P- Não há mais nada pra você. Não vai receber mais nada além do que já ganhou.
E- Não estou aqui para receber nada. Estou aqui para que tenha os seus à sua
volta. Agora entendi que somos mais do que eu pensava, mas seja como for. Uma
mulher, um irmão e uma nova filha não são demais. Não pode me dispensar.
P- Ex-mulher.
E- Ainda tenho a aliança.
P- Quem é você?
E- O que?
P- Atrás dessa mulher que diz que foi minha? Sim, quem é você? Em que pensa?
Com quem fala? Vive pra que? Além do meu dinheiro, claro. Não sei quem é.
E- Desde quando você se tornou mau?
P- Mau?
E- Nunca se comportou assim antes. Não devia ser agora, logo antes do fim, que
devia começar.

(Peter começa a chorar. Irmão se aproxima dele e põe a mão em seu ombro.
Peter grita)

15
P- Me deixa! (Irmão afasta-se. Logo em seguida, Filha entra no quarto. Irmão e
Ex-Mulher olham para ela, mas não dizem nada. Peter não a nota. Filha vai até ele
e põe a mão em seu ombro. Peter grita) Me deixa! (Peter vê Filha) Quem é você?
F- A tua filha? Me pediu para vir.
P- Sim. É parecida.
F- Parecida?
P- Foi assim que te imaginei.

(Peter fica sentado olhando fixamente para Filha. Ela hesita por um momento, olha
para Ex-Mulher e para Irmão, e volta-se outra vez para Peter)

F- A cidade... É linda.
P- Obrigado.
F- Vista com os próprios olhos é diferente.
P- Nunca tinha vindo?
F- Não. Vi só umas imagens na televisão.
P- Está pronta.
F- A cidade?
P- Para a festa dos vinte anos.
F- Já é assim tão velha?
P- Não se pode dizer que seja velha. Em termos de cidade.
F- O que eu queria dizer...
P- Não vamos falar da cidade agora. Não falo de outra coisa desde que a fundei.
F- Você?
P- Eu, sim. E os que me rodeavam e que investiram seus milhões. Não sabia?
F- Sabia que tinha participado.
P- A idéia foi minha. O projeto foi meu. Uma cidade nova. A minha cidade! Desde
que conseguíssemos comprar as duas propriedades que estavam junto ao rio. E
conseguimos. Ninguém diz não a tanto dinheiro. O Estado deu autorização.
Ninguém diz não a uma oportunidade tão grande de desenvolvimento.
F- Ficou bem bonita.

(Peter não responde. Ficam de pé, em silêncio, durante um breve momento)

P- Ficou contente por...

(Peter olha para Filha, como que sugerindo alguma coisa. Primeiro ela não
entende, mas pouco depois prossegue)

F- Fiquei contente por ter me procurado.


P- Pensei em você muitas vezes.
F- Mas?
P- Não te encontrei.

(Silêncio)

16
F- Como está?
P- Eu... (Peter não consegue continuar)
F- O que? (Peter não responde. Olha para Irmão. Irmão aproxima-se da Filha,
murmura-lhe alguma coisa no ouvido. Filha olha para Peter) Meus pêsames. Quer
dizer... Pêsames não, mas... Que pena.
P- Não queria dizer nada... por telefone.
F- Então era por isso, a urgência?
P- Era.
F- Eu estou aqui agora.
P- Que pena?
F- O que?
P- Foi o que você disse, que pena.
F- Sim, quando aquele homem disse...
P- É o meu irmão. O seu tio.
F- Quando ele disse que você...
P- Pena, só?

(Filha não responde logo)

F- Eu não conheço você.


P- Não.
F- Está com medo?
P- Estou.
I- Não o atormente com isso.
P- Sim.
I- O que?
P- Me atormente!
I- Peter...
P- Fiz com que ela viesse aqui. Fiz com que vocês viessem aqui. Me atormentem!
Não agüento essa espera. Esperar. Esperar.
F- Estamos aqui.
P- Não servem pra nada. Me atormentem!

(Ex-Mulher dirige-se rapidamente a Peter e lhe bate com força na cara)

E- Chega! (Peter olha amedrontado para Ex-Mulher. Esta levanta a mão para
bater outra vez, mas pára) Vai morrer! Acontece todos os dias. Morrem pessoas,
nascem outras. Não podemos virar tudo de pernas pro ar, só porque dessa vez é
de você que se trata. Controle-se!
I- Cale a boca.
E- Alguém tem que lhe dizer!
I- Nem mais uma palavra!

(Ex-Mulher acalma-se. Filha começa a chorar. Peter olha para ela, admirado. Ela
aproxima-se dele e lhe abraça. A princípio ele hesita, mas em seguida a abraça
também)

17
P- Eu tentei.
I- O que?
P- Me controlar.
I- Não era isso o que ela queria dizer.
P- Não adianta. É como se o medo que senti da primeira vez, quando soube o que
me esperava... (Peter interrompe-se)
E- O que?
P- É como se me apertasse mais e mais, a cada dia que eu ainda tenho pra viver.

(Silêncio. Filha pára de chorar)

F-Não. Não posso estar assim. (Afasta-se dele) Não conheço você.
P- Talvez pudéssemos nos conhecer?
F- É muito tarde, não é?
P- Nem sempre o tempo é importante. As pessoas ou se conhecem depressa, ou
nunca se conhecem. É a experiência que eu tenho.
F- Talvez.
P- E se mandássemos os outros lá pra fora?
F- Não.
P- O que?
F- Podem ficar aqui. O silêncio é muito pior.

(Peter ri. Filha esboça um sorriso)

P-Mas eu pedi que... (Peter interrompe-se. Olha para Filha) Pensei que você fosse
mais falante!
F- Às vezes.

(Filha olha para Irmão e para Ex-Mulher. Filha estende a mão à Ex-Mulher.
Cumprimentam-se)

E- Mulher.
F- Filha.
E- Mora na capital?
F- Moro.
E- Com a sua mãe?
P- Parem com isso.
E- O que?
P- Parem de falar no passado.
E- Eu só queria...
P- Sei bem o que você queria.
F-O que?
P-Ela tem ciúmes.
E- Não tenho ciúmes. Eu não sabia de nada. Até hoje.
F- Vocês viviam juntos quando... eu...
P- Não... Antes.
F- Antes de mim?

18
P- Sim.
F- E agora outra vez?
P- Não.
F- Mulher, não foi o que ela disse?
P- Ex-mulher.
E- Ainda tenho a aliança.
I- Você tem a aliança. Eu tive os anos todos, antes de você aparecer. Pára de
chatear com isso.
F- E eu tenho o que?
P- O mesmo que eu. Uns dias. (Peter olha para Filha. Ela olha para ele, com
medo. Peter ri, cada vez mais histericamente. Irmão vai até ele e coloca-lhe um
braço em volta dos ombros. Peter acalma-se) Eu não sou velho. (Silêncio) Por que
eu? (Irmão tenta abraçá-lo. Peter o repele violentamente) Me deixa!
I- Agora vamos deitar.
P- Não ouviu?
I- Você está fora de si.

(Peter atira-se contra Irmão. Empurra-o contra a parede, apertando-lhe o pescoço


com toda a força)

P- Não me diga o que eu devo fazer!! Está ouvindo? (Irmão não responde. Peter
larga-o) Não me diga nada! Não há nada que você possa me dizer, que eu próprio
já não tenha pensado antes!

(Ex-Mulher se encaminha para a saída. Peter grita)

P-Não vá embora! (Peter corre e barra-lhe o caminho. Ficam de pé, se olhando


em silêncio) Odeio você.
E- O que?
P- Odeio você!
E- O que é que odeia?
P- Tudo. Tudo em você. Eu podia ter tido quem quisesse. No entanto, é a tua cara
que tenho que ver todos os dias.
E- Não é minha cara que você odeia.
P- Sim, é. Também é.
E- O que você odeia em mim é que eu posso sair por aquela porta, descer a
escada e ir pra rua. Que posso telefonar pra quem quiser. Me encontrar com quem
quiser. Posso fazer planos. É isso o que você odeia. Que eu possa ter planos.
Que a minha vida continue a ter um rumo.
P- Não vá embora.
E- Não vou.
P- (Baixo) Por que eu?
E- Não sei.
P- Sempre fiz o bem.
E- Isso não significa nada.
P- Fica.
E- Eu fico.

19
P- (Para Filha) Não vá embora.
F- Não, não vou.
P- (Se aproxima e senta-se ao lado da Filha) Tem medo?
F- O que?
P- De morrer?
F- Não penso nisso.
P- Eu pensava. Quando era da sua idade. Sempre pensei. Agora é só esperar. O
último estágio.
F- Um pouquinho, talvez.
P- O que?
F- Te ver assim. Talvez por isso tenha um pouquinho de medo.
P- Ainda bem.
F- O que?
P- Quero que tenha medo. (Peter olha fixamente para a Filha. Ela desvia o olhar.
Peter vira-se para os outros) Quero que vocês todos tenham medo. Eu quero que
todos tenham medo! É mais fácil o medo coletivo.

(Silêncio, todos de pé)

E- Não o reconhecia mais.


P-Talvez tivesse mudado...
E- Não o reconhecia.
I- Ele o reconhecia.
P- Uma transformação imperceptível. Impossível resistir.
I- Era a doença.
P- Um gesto. Outro gesto.
E- Medo.
F- Ela não devia ter vindo.
I- Peter estava fora de si.
E- Puro medo.
F- Quem era ele?
P- E ele se lembrava de outras coisas. De outros modos. De hábitos que tinha. A
generosidade, por exemplo.
I- Peter era generoso.
E- Foi assim que tudo começou.
F- Generoso como?
P- Um presente. Outro presente. Três. Quatro. Cinco. Transformou-se num hábito.
I- Uma espécie de hábito.
P- Os hábitos não são assim tão fáceis de mudar.
E- Não sem um empurrão, dizia ele.
I- Alguma coisa que lhe fizesse compreender que não podia continuar com aquilo.
F- Continuar com a generosidade?
E- Com o medo. Era do medo que eles falavam.
I- A generosidade era apenas uma comparação.
F -Comparavam a generosidade com o medo?
I- Falavam de hábitos. Daquilo que era preciso para rompê-los.
P- E o que era?

20
F- Ela talvez. A filha dele?

(Peter olha para Filha)

P- Talvez.
F- Não foi por isso que pediu para ela vir?
P- Foi por isso?
F- Ele nunca disse.
P- Ele nunca dizia nada.
I- No entanto, eles o compreendiam.
P -Ele nunca conseguiu dizer nada.
E- Peter era um homem que se podia compreender.
F- Ela não compreendeu. Na realidade, não compreendeu.

(Peter senta-se no chão. Os outros olham para ele. Durante um longo período,
ninguém diz nada)

E- Ela foi a primeira a notar.


F- Que ele tinha se deitado?
I- Deitado não. Sentado.
E- Havia alguma coisa na maneira dele...
I- O silêncio?
E- Era raro ele ficar em silêncio.
I- E não olhar pra eles.
E- Sim, isso também.
I-Como se de repente eles já não significassem nada.
F- E vinte dias depois.
E- Quando morreu.
I- Morreu?

(Irmão olha para Peter. Peter fica sentado, olhando pra frente)

E- Ele não respirava.


F-A cabeça caiu para o lado. Só um ligeiro movimento. Como se tivesse
encontrado um novo ponto onde pudesse fixar os olhos. Mais nada.
I- Peter. Morto.

(Irmão baixa a cabeça. Parece que vai começar a chorar, mas não chora. Ex-
Mulher aproxima-se e pousa-lhe a mão no ombro. Ficam de pé, calados)

F- Não era nada de que ter medo. Só um ligeiro movimento. Antes do fim.

I- (Olha fixamente para Filha) Vá embora.


F- O que?
I- Sim, vá embora.
F- Não vou.

21
(Irmão vai buscar dois envelopes. Dá um deles à Filha e o outro à Ex-Mulher. Filha
abre o dela e olha dentro)

I- Não conte com mais nada. (Filha não responde) Vá embora.


F- Ele tinha me pedido pra ficar um pouquinho. Pra não ir logo, assim que tivesse
acabado.
E- Acabou.
P- Não era nada de que ter medo.
F- Ele disse que já não era preciso representar. Mas que era pra eu ficar ainda um
pouquinho.

(Filha tira a peruca ruiva que estava usando)

E- Ele pediu pra vir ruiva?


F- Não. De cabelo comprido. Só tinha dito isso. A peruca ruiva foi a única que
consegui arranjar assim depressa.
E- Havia muita pressa?
F- Ele tinha telefonado na véspera de eu ter vindo. Tive que correr.
E- E correu.
F- Claro. Era um ótimo trabalho.
I- Não fale assim.
F- O que, trabalho?

(Irmão grita violentamente)

I- Pára!

(Ficam calados um longo tempo)

E- Eu o conheci num parque.


F-Por acaso?
E- Ele era tão querido. Tímido.
F- Peter?
E- Por é que ninguém o tinha laçado antes?
F- O que?
E- Pensei nisso durante todo o jantar.
F- Vocês jantaram juntos?
E- Sim. Eu estava sempre esperando que, de uma hora pra outra, ele se
levantasse e fosse embora. Desaparecesse. Como se fosse muito bom pra ser
verdade.
F- Mas ficou?
E- Me queria. A mim.
I- Não entendo porque.

(Ex-Mulher olha para Irmão. Parece que vai dizer alguma coisa, mas desiste)

E- Eu também não.

22
I- O que?
E- Uma ex-mulher. Não entendi o que ele queria.
F- Quanto tempo vocês estiveram casados?
M- Não me lembro. Ele me disse... Mas eu esqueci.
I- Oito anos.
M- Foi tanto tempo?
I- Primeiro, oito anos casados. Em seguida, dois anos sem nenhum contato, antes
de se encontrarem outra vez. Por acaso.
E- No parque.
I- Não se lembra, ou o que?
E- Faço confusão com os números. Oito e dois e...
F- Com o que?
E- Com o tempo que passou desde que o encontrei de novo.
I- Dez.
E- Foi há tanto tempo?
F- Anos? (Ex-Mulher não responde) Fez o papel de ex-mulher durante dez anos?
I- Parem com isso.
F- O que?
I- Não falem assim. Peter morreu agora mesmo.
F- Desculpa.
I- Não sente nada?
F- Não o conhecia bem.
I- Não consegui entender o que ele queria de você. (Vira-se para Ex-Mulher) De
vocês duas.
E- A mim também me custa agora. Peter morto. Mas não era nada que não
soubéssemos que ia acontecer. Estávamos esperando. Esperando.
I- O que seria você hoje, se não fosse ele? O que seria você?
E- Seria outra.
I- (Irmão ri) Bem outra. Sim.
E- O que quer dizer?
I- O que?
E- Bem outra, foi o que disse. Pejorativamente.
I- Não fale comigo como se eu não soubesse o que você fazia da vida na época
em que o Peter te encontrou.
E- Não fale comigo como se soubesse que decisões eu teria tomado se não o
tivesse encontrado.
F- Quando foi que ele te contratou?
I- (Irmão grita para Filha) Parem com isso! Não falem como se se tratasse de um
trabalho! Peter morreu!
E- (Ex-Mulher grita para Irmão) MORREU! ACABOU-SE! Não nos diga mais como
é que temos que fazer!

(Irmão olha para Ex-Mulher. Parece que vai responder aos berros, mas domina-
se. Pouco depois, responde à meia voz)

I- Estamos de luto.

23
(Silêncio, um longo tempo)

P-Tinha acabado tudo. Ou melhor... Ele tinha acabado. Os outros... Continuavam.

(Peter deita-se na cama. Irmão vai até ele e fecha-lhe os olhos. Ex-Mulher cobre-
lhe o corpo com o lençol. Ficam um momento em silêncio, ao lado da cama)

E- Vou buscar o médico.


I- Não. Espera.
E- O que?
I- Espera um momento.

(Silêncio)

E- (Tira a aliança e a coloca sobre o corpo de Peter) Ele insistia que eu usasse
essa aliança.
F- Era tudo que ele exigia de você?
E- (Hesita) Não.
F- E o que mais?
E- Não me lembro.
F- (Olha para o seu envelope e acena com ele para Ex-Mulher) Um assim, todos
os dias. Durante dez anos?
E- Todos os dias em que eu estive aqui. Sim.
F- Muitas vezes?
E- Variava. Durante longos períodos, ficava esperando que ele me telefonasse.
I- Durante longos períodos ele não suportava sequer pensar em você.
E- Eu sei.

(Filha vira-se para Irmão)

F- Está aqui há tanto tempo como a ex-mulher?


I- Há mais tempo ainda. Desde a nossa juventude.
F- Desde a juventude?
I- Estive sempre com ele. Sim. Não consigo entender por que é que ele precisava
de vocês.
F- (Acena com o envelope para Irmão) Um destes, todos os dias? Desde a
juventude?
I- Os envelopes eram pra vocês. Eu não precisava disso.

(Ex-Mulher olha fixamente para Irmão durante um longo período)

E- O Irmão não precisava de envelopes, não.


I- Pára com isso.
E- E sabe por que?
F- Por que?
E- Porque é o único herdeiro.
I- Pára com isso!

24
E- Ele fica com tudo.
I- (Gritando) O corpo ainda não esfriou!

(Ficam de pé, silenciosos, durante um breve momento)

F- Desculpa.
I- Vá embora.
F- Ele me pediu...
I- (Grita) Vá embora, já disse!
F- Vou sim. (Filha vai sair. Detêm-se um momento e olha para Irmão) Meus
pêsames.

(Filha sai. Irmão não olha para ela. Pega a aliança que está sobre o corpo de
Peter. Olha para o corpo, e depois larga a aliança no chão. Ex-Mulher fica
impassível. Irmão pousa a mão sobre a testa de Peter)

I- Ainda não esfriou.


E- Não é assim tão rápido.
I- Foi tão rápido.
E- Eu quero dizer...
I- Eu sei o que quer dizer. Não me interessa nada.
E- Não gosto de você.
I- Não faz mal.
E- Peter não gostava de você.

(Irmão parece que vai responder, mas hesita. Ele parece profundamente triste)

I- Nem sempre. Não.


E- Muitas vezes.
I- Você ia e vinha. Eu estava sempre aqui.
E- Às vezes perguntava a mim mesma por que razão ele te mantinha.
I- Não se escolhe a família.
E- Ele te escolheu.
I- Eu estava sempre aqui.
E- Não fale comigo como se eu não soubesse!
I- O que você sabe?
E- Que você está fazendo teatro.
I- Não estou.
E- Pára com isso.
I- Eu estava sempre aqui. Desde o início.
E- Está fazendo teatro!
I- (Gritando) Não estou!

(Ex-Mulher não responde. Olha silenciosa para Irmão, durante um momento)

E- Quem é você?
I- O que?

25
E- Atrás desse irmão. Que nunca foi mencionado.
I- Nunca foi mencionado?
E- Pelo Peter.
I- O que quer dizer?
E- Ele me mostrou antigas entrevistas que tinha dado. Nunca, em nenhuma delas,
ele mencionou qualquer irmão.
I- Ele não gostava de falar da família.
E- Ele, às vezes, me dizia que sentia falta de uma família.
I- Ele não gostava de falar de... mim.
E- Ele não gostava de você.

(Irmão não responde logo)

I-Eu gostava dele.


E- Claro.

(Ficam de pé, calados)

I- Peter... morreu.
E- Morreu. Sim.

(Ex-Mulher, subitamente, parece absorta em pensamentos. Enxuga uma lágrima.


Irmão parece estar quase chorando)

I- Agora não tenho ninguém. (Ex-Mulher aproxima-se do Irmão. Ele murmura) Vá


embora.
E- O que?
I- Vá embora.
E- Vou buscar o médico.
I- Não. Vá embora. Eu fico.
E- Até a próxima.
I- Não vai haver.

(Ex-Mulher sai do quarto. Irmão olha para o corpo de Peter)

I-Não sou ninguém. Agora.

III ATO

(Uma semana depois. Irmão está sentado no chão de um grande quarto vazio da
mansão de Peter. O Assistente tira um relógio da parede. Com o objeto nas mãos,
prepara-se para sair do quarto)

26
A- É o último objeto. Abro o portão? (Irmão está imerso em seus pensamentos.
Tem um catálogo em seu colo) Abro o portão?
I- Já?
A- Este é o último objeto. Os homens da mudança esvaziaram a casa toda. Está
tudo no jardim.
I- É muito comprida, a fila?
A- Vai até o rio.
I- O quê?
A- Dissemos aos que estão atrás que já não vai haver nenhum objeto pra eles
quando entrarem, mas é como se não acreditassem em nós. Continuam na fila.
I- É uma casa muito grande. Peter era um colecionador. Talvez dê pra mais do
que pensamos.
A- Talvez. O gramado está cheio de objetos, na frente e atrás da casa. Está
apinhado.
I- Então podemos abrir o portão.
A- Vou avisar.
I- E só um objeto por pessoa.
A- Nisso somos rigorosos. Marcamos.
I- Os objetos?
A- As pessoas na fila. Quando passarem pelo portão para escolherem alguma
coisa, marcamos elas com uma caneta que não sai facilmente. Não podem
trapacear e se enfiarem outra vez na fila.
I- E um de cada vez. Entra um de cada vez.
A- O que?
I- Vão poder escolher em paz.
A- Assim leva muito tempo.
I- Vão poder escolher em paz durante um minuto. Ou dois. Podem ser dois
minutos. E depois tem que sair pelo portão outra vez.
A- Muito bem.
I- Muito bem?
A- Se quer assim...
I- Sim, quero.
A- Vai levar muito...
I-(Interrompendo) Não os quero aqui no jardim aos bandos. Lutando pelas
melhores coisas. Quebrando e destruindo os móveis, os vasos, os quadros.
A- Um de cada vez, então. (Faz um pequeno cumprimento com a cabeça e sai do
quarto, levando o relógio. Irmão começa a folhear o catálogo. Pouco depois, entra
outra vez o Assistente, ainda com o relógio nas mãos) A sua irmã está aí. Diz que
você lhe telefonou.
I- Deixa entrar.

(Assistente sai. Pouco depois, Irmão entra no quarto. Ficam calados. Após um
longo período, Irmão começa outra vez a folhear o catálogo)

I- O que vou escolher?

27
Ia- O quê?
I- A minha primeira coisa, agora que a casa é minha. O que vai ser?
Ia- Você precisa de quase tudo, aqui.
I- Mas do que eu preciso primeiro?
Ia- Uma cama?
I- Não. Preciso de uma coisa da qual nunca me canse.
Ia- Eu, talvez.

(Irmã sorri. Irmão olha para ela)

I- Você, talvez. (Ficam calados por um momento) Há muito tempo não te via.
Ia- Sim.
I- Desculpa. (Irmã não responde. Ficam calados por um momento) Desculpa.
Ia- Vamos falar do presente.
I- Sim.
Ia- Com o passado não podemos fazer nada.
I- E a mãe?
Ia- Tinha perdido a esperança. (Irmão não responde) Não posso ficar aqui à
espera dele, dizia ela. Seja como for, nunca a vi tão contente como quando lhe
contei que tínhamos sido convidadas pra vir aqui.
I- Mas ela não veio.
Ia- Ele sabe onde eu moro, foi o que ela disse.

(Irmão não responde. Ficam calados por um momento)

I- Preciso de uma coisa.


Ia- O quê?
I- (Começa a folhear o catálogo) Uma coisa da qual eu nunca me canse. Pra
começar. A casa está vazia. (Irmã tira o catálogo do Irmão. Folheia-o) Uma coisa
da qual eu nunca me canse. (Irmão volta a pegar o catálogo. Fica sentado,
folheando) Posso fazer o que quiser, Peter dizia sempre. Não consigo escolher
uma única coisa.

(Irmão pousa o catálogo no chão)

Ia- Não vamos falar dele.


I- É estranho. Quando se começa a pensar. Ser tão importante. E, de repente, não
ter importância nenhuma.
Ia- Não vamos falar disso!
I- Só estou dizendo que é estranho.
Ia- Odeio ele.
I- Não. (Irmã não responde. Fica de costas) Esqueça. É pior.
Ia- (Indo até a janela) Obrigada.
I- O que?
Ia- Você disse para me deixarem passar na frente da fila, lá fora. Pude escolher
primeiro.
I- O que escolheu?

28
Ia- Não escolhi nada.
I- Nada?
Ia- O ódio.

(Irmão não responde logo. Ficam calados por um momento)

I- Eu também. Quero que tudo desapareça. (Irmã está olhando pela janela) Quem
é que está aqui dentro agora?
Ia- Uma velha e um menino.
I- Eu disse: um de cada vez.
Ia- O menino está ajudando. Não acho que ela consiga caminhar sem ajuda.
I- O que estão vendo?
Ia- Os quadros.
I- É o que dá mais dinheiro.
Ia- Eu sei.
I- Foi o que te deixou mais tentada?
Ia- Não quero nada dele.
I- Eu também não.
Ia- Já o esqueci.
I- Obrigada, foi o que você disse?
Ia -Por eu poder. Se quisesse. Por eu poder escolher primeiro.
I- Somos da mesma família.
Ia- Somos. Agora.
I- E a mãe. A mãe também.
Ia- Podiamos ir visitá-la. Nós dois.
I- Talvez.
Ia- Não é longe.
I- Mas... De certa maneira. É que...

(Irmã não responde. Afasta-se um pouco)

Ia- Devia ir vê-la.


I- Ela podia vir pra cá.Vocês podiam vir pra cá.
Ia- Eu estou aqui.
I- Pra sempre.
Ia- Viver aqui? Em sua casa?
I- Não! Não. Uma casa nova. Casas novas; duas grandes casas novas para cada
uma de vocês. Lá em cima, na encosta. Posso mandar construírem. (Irmão dirige-
se para a porta. Grita) Assistente!
Ia- Ela não se importa.
I- O quê?
Ia- Ter uma casa grande. Tem tudo o que precisa. Ele sabe onde eu moro, foi o
que ela disse.

(Assistente entra)

I- Desculpe. Não é nada.

29
(Assistente sai)

Ia- Mas eu me importo.


I- (Irmão volta a gritar da porta) Assistente!

(Assistente entra)

I- Uma casa para Irmã. Uma casa grande. Lá em cima, num dos melhores
terrenos. É urgente.
A- Vou tratar das formalidades. (Sai. Irmão olha para Irmã)
Ia- Obrigada.
I- O prazer é meu.
Ia- Tenho sentido a sua falta.
I- É.
Ia- Andávamos sempre juntos. Antes.
I- Podemos voltar a andar.
Ia- Sempre juntos, você e eu.
I- Não vamos falar nisso.
Ia -Nem que seja para entender melhor o que aconteceu.
I- Nós sabemos bem.
Ia- Eu não sei tudo de você. Não sei tudo de mim. Uma pessoa se esquece.
I-Talvez seja melhor.
Ia- Esquecer?
I- O que se esquece sem querer? Sim. É melhor.
Ia- Não sei.
I- Não devíamos falar nele. Foi o que você tinha dito, quando mencionei Peter.
Ia- Não era porque quisesse esquecê-lo. Era só pra que ele não ocupasse um
lugar ainda maior do que já tem na minha cabeça.
I- Ele tinha muitos lados bons.
Ia- Pára com isso.
I- Só bons, praticamente.
Ia- (Gritando) Pára com isso! (Irmã dirige-se à porta)
I- Não vá embora.
Ia- Vou.
I- Preciso de você.

(Assistente entra com uma caixa cheia de envelopes, iguais aos que Filha e Ex-
Mulher tinham recebido)

A- Tínhamos esquecido disso.

(Irmão não diz nada. Assistente pousa a caixa e volta a sair)

Ia- O que é?
I- Envelopes.
Ia- Isso eu vejo.

30
I- Pega um.

(Irmã pega um envelope e abre)

Ia- Dinheiro. (Olhando mais atentamente) Muito dinheiro.


I- O salário que ele pagava todos os dias.
Ia- Tanto?
I- Também vai estar aqui amanhã?
Ia- Vou.
I- Então pega dois envelopes. (Irmã, sem compreender, olha para Irmão. Ela
desata a rir violentamente. Em seguida, atira o envelope para dentro da caixa.
Prepara-se para sair do quarto) Não vá embora! (Irmão corre para Irmã e barra-lhe
o caminho. Ri) Era uma brincadeira.
Ia- Não, não era.
I- Desculpa.
Ia- Não reconheço você.
I- Passou tanto tempo.
Ia- É estranho.
I- O que?
Ia- Que do que agora eu vejo em você, não haja nada que eu reconheça do tempo
em que era meu irmão.
I- Eu sou teu irmão.
Ia- Uma espécie de irmão.
I- (Levanta a voz. Está quase chorando) Sou teu irmão!

(Irmã não responde. Olham um para o outro)

Ia- Eu fico.
I- Me perdoa.
Ia- Está bem.
I- Eu mudei. (Silêncio) Desculpa.
Ia- Você é que tem que me desculpar.
I- Por que?
Ia- Por eu ter contado com outra coisa. Nós mudamos. É assim... O tempo. Não
é?

(Irmão não responde logo)

I- Não me lembro.
Ia- Do que?
I- De quem eu era. (Irmã não diz nada. Irmão olha para ela, fala em voz baixa,
quase murmurando) Quem eu era?
Ia- Era o melhor irmão mais velho que eu podia querer.

(Ficam em silêncio)

I- (Suavemente, pensativo) Odeio ela.

31
Ia- Ela fazia o melhor que podia.
I- Uma espécie de ódio. De qualquer jeito.
Ia- Eu odeio eles.
I- Quem?
Ia- Todos que iam e viam, e que mamãe dizia que amava.
I- Ela era incapaz de viver sozinha. Nem por um dia.
Ia- Seja como for. Deles todos, não havia nem um que fosse uma pessoa decente.
I- Talvez estejamos confundindo uns com os outros. Agora. É possível que as
cores se misturem. Que os melhores deles sejam manchados pelos piores.
Ia- Talvez. (Ficam calados. Irmã começa a chorar) Era tão importante. E afinal não
era nada importante.
I- O quê?
Ia- Como você pôde ir embora?

(Assistente entra com a Ex-Mulher. Ela tem marcada na testa uma cruz negra, e
traz nas mãos um quadro)

I- Quem é essa?
A- (Hesitando, sem entender) A ex-mulher do Peter?
I- Não conheço nenhuma ex-mulher do Peter.
A- Ela não queria ir embora sem te ver primeiro.

(Irmão aproxima-se de Ex-Mulher. Observa-a, silencioso)

E- Quero voltar.
I- Voltar?
E- Também quero fazer parte disso aqui.
I- O que eu posso fazer com a ex-mulher de um homem que já não significa nada?
E- Que não significa nada?
I- O que ele era está lá fora, no gramado. Daqui a pouco desaparece a última
recordação.
E- (Dá uma pequena gargalhada) Não se livra dele tão fácil.
I- Ele desapareceu.
E- Nunca vai se livrar dele.

(Irmão não responde logo. Olha para Ex-Mulher)

I- Acha que não?


E- Acho. (Chora durante um momento. Depois acalma-se) Sim. Sim, acho.

(Irmão não responde. Pouco depois, vai até a janela e olha para baixo, para o
jardim)

I- Merda! Que devagar! Deixem o portão aberto! Deixem entrar todo mundo!
Façam tudo desaparecer!

32
(Irmão fecha a janela e se afasta. Assistente sai do quarto rapidamente. Irmã vai
até a janela e abre uma fresta)

Ia- Estão invadindo.

(Ex-Mulher vai também até à janela. As duas ficam olhando para fora)

I- Saiam da janela.

(Elas vêm para o interior do quarto. Ex-Mulher observa Irmã)

E- Quem é você?

(Irmã olha para Ex-Mulher)

Ia- Quem é você?

(Ex-Mulher não responde. Volta-se para Irmão)

E- Quem é ela?
I- É a minha irmã.
E- Um novo ramo.
I- O que?
E- A árvore genealógica tem que estar numa terra muito boa, para crescer assim
tão bem.
I- Ela é realmente minha irmã.
E- (Observa Irmã durante um momento) Vocês não são parecidos.
I- Somos parecidos, de certo modo.
Ia- Somos parecidos.

(Ex-Mulher olha para Irmã. Subitamente dirige-se para a caixa de envelopes, tira
um e dá à Irmã)

E- Não há mais nada pra esperar daqui.

(Irmã recusa-se a receber o envelope. Irmão dá um salto e atira-se na direção da


Ex-Mulher, arrancando-lhe o envelope das mãos. Dá-lhe um empurrão)

I- Você não me conhece.


E- Não vai pagar?
I- Ninguém me conhece!
E- (Para Irmã) Tem que se assegurar que te paguem bem.
I- Pára com isso.
E- Os honorários sempre foram bons nesta casa.

(Irmão dá uma bofetada em Ex-Mulher, que cai)

33
I- Acabou.
Ia- Põe ela na rua.
I- Vai embora.
E- Desculpa.
I- A minha irmã não quer você aqui.
E- Não tenho mais ninguém.
I- Tem muita gente assim. Não posso acolher todos.

(Ex-Mulher não responde)

Ia -Põe ela na rua.


I- (Gritando) Rua!
E- Ela chorou.
Ia- Está fingindo.
E- Ela ficou de joelhos.
I- Levanta.
Ia- Não é de verdade.
E- Por fim ela viu que ele hesitava.
I- Ele nunca a tinha visto assim antes.
Ia- Está fingindo que chora!
E- Ela podia ficar, ele disse.
I- Ele queria ter gente à sua volta. Se desfazer das coisas, mas arranjar pessoas.

(Ex-Mulher pousa o quadro)

E- Ele perguntou qual era o quadro que ela tinha escolhido.


I- Se desfazer das coisas.
E- Aquele de que sempre gostou mais, ela respondeu.
Ia- O mais caro?
I- (Levantando a voz) Arranjar pessoas. Se desfazer das coisas!

(Ficam calados por um momento)

E- (Em voz baixa) Talvez ele viesse a se arrepender mais tarde?


I- Me arrepender?
E- Talvez.
Ia- (Gritando) Põe ela na rua.

(Irmão não reage. Observa Ex-Mulher em silêncio)

I- Ela achava que sim?


E- Por ficar sem nenhuma recordação dos anos todos com Peter.
I- A vida com Peter não era vida.
Ia- (Grita, chorosa) Ela o odiava!
E- Uma pequena recordação?
I- Talvez uma coisinha.
E- Uma coisa de que ele gostasse muito.

34
I- Talvez. Uma coisa da qual ele não se cansasse?
E- Era urgente. Eles estavam esvaziando o jardim.
Ia- Não ouça o que ela diz.

(Irmão não responde. Ficam calados por um momento)

I- Parem! Ele gritou.


E- E correu para a janela e a escancarou.
I- (Grita violentamente) Parem!

(Silêncio)

E- As pessoas no jardim pararam como se tivessem ficado congeladas.


I- Viradas para a janela do segundo andar, mas agarrando ainda nas mãos os
objetos pelos quais tinham lutado.
E- Olhando o Irmão. Lá em cima.
Ia- Não se ouvia um pio.
I- Rua, ele gritou. Larguem tudo o que tem nas mãos. Fora da minha casa!
E- Ninguém largou nada. Ninguém saiu.
Ia- Não se ouvia um pio.
I- Antes da explosão.
E- Aí todos gritaram. Ninguém queria perder o que tinha apanhado. Queriam ainda
mais. Queriam arrancar o que os outros tinham nas mãos. Os mais fortes
espancavam. Os mais fracos se deixavam espancar.
I- Os guardas começaram a empurrá-los para fora do jardim.
E- Os que estavam do lado de fora do portão perceberam que iam ficar sem nada.
Começaram a tentar entrar à força. Pânico.
I- E vinte minutos depois, quando o jardim começou a esvaziar.
E- Morta por esmagamento.
I- Quem? (Ninguém responde. Irmão grita) Quem?

(Irmã chora)

Ia- Ela notou que os gritos tinham mudado. Já não eram gritos de isso-é-meu, mas
choro e gritos de a-menina-não-respira.

(Irmã sai do quarto, correndo. Irmão grita violentamente)

I- QUEM?
E- Uma menina.

(Assistente entra no quarto. Irmão volta-se para ele)

I- Uma menina?
A- Sim.
I- De que idade?
A- 14,15.

35
I- E os pais? (Assistente não responde. Irmão grita) Os pais!
A- A mãe.
I- A mãe?
A- A menina veio com ela.
I- E?
A- Ela esperou lá embaixo, no jardim, enquanto Irmã estava aqui em cima com
você.
I- Irmã?
A- A filha dela. A menina.
I- Irmã tem uma filha?
A- Deve ter sido empurrada e pisoteada quando perdemos o controle.

(Irmão não responde logo)

I- Morta?
A- Não respira.
I- Ninguém pode fazer nada?
A- Eles estão tentando.
I- Quem?
A- Havia médicos na multidão. A ambulância está vindo.

(Ficam calados por um breve momento)

I- Por que é que ela não disse nada?


A- O que?
I- Por que foi que ela não disse que tinha uma filha?
E- Você não foi claro.
I- O que?
E- Peter era sempre claro. Explicava minuciosamente o que queria. Eu nunca viria
com uma filha se ele não tivesse pedido expressamente.

(Irmão olha pela janela. Grita, horrorizado)

I- Tem uma menina inconsciente no gramado!


E- Também é teatro, isso?
I- Nós não fazemos teatro.
E- Não faz parte do jogo? Dizer que não é teatro?

(Irmão ataca Ex-Mulher. Empurra-a contra a parede)

I- Não estamos fazendo teatro! Está ouvindo? Não estamos fazendo teatro agora.
(Ex-Mulher não responde. Irmão deixa-a) Irmã é... Minha. (Irmão vai até a janela.
Olha de relance para fora, de modo que não possa ser visto do exterior) Tenho
que ir lá. (Fica calado durante um momento) Tenho que ir lá, não tenho? (Olha
para Assistente e Ex-Mulher. Não respondem. Irmão hesita) Vamos falar do que
vamos comprar. Do tempo em que éramos crianças. Não vamos falar disso. (Fica
calado por um momento) Não a conheço.

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A- (Olhando pela janela) Estão falando do que aconteceu.
I- Nós não. Disso não. Não há coisa pior. Perder um filho.

(Assistente e Ex-Mulher não respondem. Ex-Mulher vai até a janela)

E- A ambulância chegou.

(O Irmão corre para a janela. Olha de relance. Ficam calados durante um


momento)

I- Tenho que ir lá.


E- Não pode fazer nada.
I- Irmã precisa de mim.
E- Irmã está em boas mãos. A menina está em boas mãos.
I- Sim. Talvez. Eles têm os melhores equipamentos, não têm? Sim. Talvez.
E- Sim.
I- Sim. (Irmão e Ex-Mulher ficam de pé, junto à janela, durante um longo período.
Por fim, Irmão senta-se no chão) Já foram.
E- Não podíamos fazer nada.
I- Nós?
E- Eu estou aqui. Eu era ex-mulher do Peter. Quem eu sou agora?
I- O que eu vou fazer com a ex-mulher de um homem morto?
E- Preciso de você. (Irmão não responde. Ex-Mulher senta ao seu lado. Ficam
caldos) Precisa de alguém que precise de você. (Irmão olha para Ex-Mulher. Ela
acaricia-lhe o rosto. Irmão começa a chorar. Pouco depois, acalma-se) Podemos
continuar. (Irmão não responde) Posso ser quem você quiser.
I- Precisa de mim.
E- Preciso.
I- Precisa ter um... Significado. Aqui.
E- Um significado pra você.
I- Para mim.

(Irmão levanta-se. Vai buscar a caixa de envelopes. Despeja-a em cima dela)

I- Minha.
E- Sua.

(Ex-Mulher começa a juntar os envelopes)

E- Todos?
I- Não quero isso. Tenho você. (Volta-se para o Assistente) Amarra ela.
A- O que?
I- Amarra ela!

(Assistente sai, apressadamente)

E- Me amarrar?

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I- Por tantos envelopes, porra, eu tenho o direito de te amarrar.

(Ex-Mulher não responde. Sorri forçadamente. Irmão olha para ela, mas não diz
nada)

E- Tenho medo.
I- Claro. Por tantos envelopes tenho o direito de te fazer ter medo.
E- Sim.
I- Não gosta que te amarrem? Vou te amarrar.
E- Sim.
I- Sim.
E- Me amarra.
I- Porra, claro que vou te amarrar! (Grita da porta) Assistente!

(Assistente entra no quarto. Irmão arranca-lhe a corda que ele traz. Assistente
volta a sair. Irmão aproxima-se de Ex-Mulher. Ela olha para ele. Tenta sorrir, mas
desata a chorar)

E- Me amarra.
I- Quero que se deite ali.
E- Me deito aqui.
I- Os braços para trás.

(Ex-Mulher deita-se de lado, com os braços atrás das costas. Irmão lhe amarra os
braços e as pernas)

E- Me amarra!

(Irmão levanta-se. Olha para ela)

I- Está amarrada. (Afasta-se um pouco. Ex-Mulher está no chão, amarrada) Era de


mim que você gostava, de mim. (Ex-Mulher começa a chorar. Irmão aproxima-se
dela e levanta-lhe a cabeça, agarrando-a pelo cabelo) Não chora.
E- Não estou chorando.

(Ex-Mulher chora. Irmão puxa-lhe o cabelo)

I- Não chora!

(Ex-Mulher chora. Irmão diz-lhe algo no ouvido. Ex-Mulher não responde)

I- Diz! (Ex-Mulher chora. Irmão puxa-lhe o cabelo) Diz!


E- Estou excitada.
I- Faço o que você quiser. (Ex-Mulher não responde. Irmão puxa-lhe o cabelo) Diz!
E- Faço o que você quiser.

(Irmão larga-lhe o cabelo. Fica calado durante um momento)

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I- Você é minha.
E- Você é meu.

(Irmão lhe bate na cara. Levanta a voz)

I- Eu não sou teu! Sou teu, o caralho!

(Irmão pressiona a cabeça da Ex-Mulher contra o chão. Desabotoa a calça e a


deixa cair até os joelhos)

I- Abre a boca. (Ex-Mulher está deitada de boca aberta. Irmão segura-lhe a


cabeça com força) Não olha. (Ex-Mulher olha para ele. Irmão grita) Não olha!
(Irmão tira a camisa e envolve com ela a cabeça da Ex-Mulher) Você não é
ninguém, agora.
E- Tenho uma caixa cheia de envelopes...
I- (Grita) VOCÊ NÃO É NINGUÉM!

FIM

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