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OS TRAFICANTES DE ALAZE
Autor
WILLIAN VOLTZ
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
Um toque errado — e uma lua-de-mel
desagradável...
Mark Denniston soltou um suspiro e deixou-se cair na poltrona muito macia que se
encontrava à frente da mesa de Princer. Denniston era um homem de aspecto robusto, de
pouco mais de quarenta anos, que tinha um rosto enérgico e mãos que pareciam patas de
urso. Mas naquele instante não dava mostras de sua energia.
— O senhor não pode exigir uma coisa dessas de mim, chefe! — exclamou com um
gemido. — O senhor sabe que eu seria capaz de ir buscar uma caixa de limões no inferno.
Mas isso não!
Princer contemplou-o com uma expressão de benevolência. A idéia de que, se
necessário, poderia contar com limões vindos do inferno, parecia dar-lhe uma disposição
pacata. Piscou para Denniston, movimentando suas sobrancelhas hirsutas.
— Sabe por que gosto tanto do senhor, Mark? — perguntou.
Ao que parecia, Denniston não fazia questão de agradar e manteve-se num silêncio
obstinado. Princer prosseguiu:
— O senhor tem um jeito muito agradável de se opor às minhas ordens e... depois...
cumpri-las.
Denniston comprimiu as mãos gigantescas uma contra a outra, como se quisesse
esmagar alguma coisa.
— Escute, chefe — disse, fazendo mais uma tentativa. — Sou comandante de uma
de suas naves cargueiras. Levo verduras e frutas para Vega ou para qualquer lugar que o
senhor queira. Há anos trabalho para a Intercosmic Fruit Company. E agora o senhor quer
que eu faça o papel de baby sitter.
O rosto de Princer assumiu a expressão de quem havia mastigado alguns grãos de
pimenta.
— Ora, Mark, o senhor está falando de meu filho John Edgar Princer. Afinal, o bebê
já é vice-presidente de nossa companhia.
Denniston não deu nenhuma resposta, mas pela expressão de seu rosto notava-se
que não gostava de vice-presidentes, especialmente desse que acabava de ser
mencionado. Lançou um olhar sombrio para Princer.
— O bom menino — Denniston estremeceu ao ouvir estas palavras — acaba de
casar. Dei uma pequena nave de presente a ele e a sua esposa. Quer usá-la na viagem de
núpcias. Uma vez que nossa família costuma combinar o útil com o agradável, levará
uma carga de gigante-supermacio, que deve ser entregue em Ferrol, no sistema de Vega.
O astronauta começou a demonstrar um pouco de interesse.
— Gigante-supermacio? O que é isso? — perguntou.
Archibald Princer, presidente do Conselho Fiscal da IFC, lançou um olhar para seu
interlocutor, revelando não ter uma boa impressão das pessoas que não sabiam o que
vinha a ser o gigante-supermacio.
— É nossa nova semente de espinafre — explicou em tom compenetrado.
Denniston enrubesceu.
— Espinafre...? — repetiu em tom incrédulo. — O senhor quer que eu voe para
Vega com essa supersemente e os recém-casados?
— Modere sua linguagem, Mark — pediu o velho Princer, com severidade. — Em
nossa firma não se costuma fazer tal tipo de piadas.
Denniston ficou um tanto perplexo.
— Não tenho escolha — disse em tom desanimado. — Comunique a seu filho que
decolaremos dentro de alguns dias.
Princer parecia ter mais uma novidade para o comandante. E realmente tinha.
— Mark, como sabe, meu filho não foi aceito na Frota Solar. Pelo que dizem tem
um defeito na estrutura óssea e é daltônico. Estas... bem, estas ninharias bastaram, e meu
filho John Edgar foi rejeitado. Dei-lhe oportunidade para obter numa academia particular
o breve de piloto espacial de segunda classe. Quer dizer que tem o direito de pilotar a
nave-disco que lhe ofereci como presente de casamento.
Nos olhos de Denniston surgiu uma expressão que parecia ser de esperança.
— Quer dizer que seu filho pode dispensar minha companhia — disse.
O presidente da IFC balançou a cabeça.
— Não, Mark. John Edgar não tem experiência no espaço. Além disso, sua finada
mãe lhe deu uma educação muito branda. O rapaz precisa de um apoio. Quero que o
senhor o acompanhe e cuide para que eu o reveja são e salvo.
— Quer dizer que é um novato — respondeu o astronauta.
Princer levantou as mãos, num gesto negativo.
— Não pense em tutelar o rapaz. Deixe que cuide das coisas sozinho. Ele não sabe
que o senhor é uma velha raposa-do-espaço. Pensa que é uma espécie de... bem, uma
espécie de mordomo.
— Mordomo! — disse Denniston, fortemente abalado. — Era só o que faltava!
— Não lhe diga o que deve fazer. Quero que o rapaz se torne independente. Mark,
prometa-me que só intervirá, quando houver uma necessidade absoluta.
Denniston respondeu em tom rígido:
— Serei um perfeito mordomo.
— A quarentena já foi suspensa — disse Princer. — Toda a população da Terra foi
vacinada. Terrânia é o único lugar do qual ainda não pode decolar nenhuma espaçonave.
Acho que essa medida de Rhodan é muito inteligente. Não quer arriscar nada. Se, dentro
de uma ou duas semanas, não surgirem outros casos de doença, também em Terrânia as
coisas voltarão ao normal. De qualquer maneira, poderemos decolar. Ou melhor, Cora,
John Edgar e o senhor poderão decolar.
— Não se esqueça da gigantesca semente supermacia — disse Denniston em tom
aborrecido.
***
O rádio emitiu um estalo. John Edgar Princer seguira as regras para a decolagem de
uma nave não pertencente à frota.
— Nave-controle Netuno para nave-disco — disse a voz do oficial de plantão. —
Favor fornecer código e identificação.
Princer tropeçou sobre as próprias pernas e dessa forma “chegou” ao rádio mais
rapidamente do que esperava. Mexeu nervosamente no aparelho.
— Nave particular Error — anunciou. — Decolamos do espaçoporto da IFC em
Denver. Licença de decolagem III/b-41, passe amarelo.
E com um sorriso para a esposa, concluiu:
— A nave está sendo pilotada por John Edgar Princer.
O oficial que se encontrava a bordo da nave-controle Netuno nunca ouvira falar em
Princer, ou então estava de mau humor.
— Está levando alguma carga? — perguntou em tom frio.
Princer acenou com a cabeça.
— Sim senhor. Cento e cinqüenta quilos de gigante-supermacio.
Uma bomba parecia ter explodido na cabina de rádio da Netuno, a julgar pelos
ruídos que o casal ouviu. Perplexo, Princer fitou o alto-falante.
— Faça o favor de repetir — disse o operador de rádio que se encontrava na outra
nave.
Princer fez-lhe este favor.
— Trata-se de semente de espinafre de um tipo especial. Foi selecionada em nossos
laboratórios. Pelo que diz o chefe da nossa equipe de biólogos, trata-se de uma mutação
da variedade trapajera, do sistema de Vega, e...
— Isso basta — interrompeu o oficial apressadamente. — Apenas preciso saber
ainda a finalidade da viagem.
— É minha viagem de núpcias — disse Princer, quase sussurrando.
Evidentemente, o oficial da equipe de rádio tinha uma antipatia toda especial pelos
casais em viagem de núpcias, pois disse alguma coisa nada amável. Após isso forneceu a
Princer as coordenadas do setor espacial onde o vice-presidente da IFC poderia entrar em
transição.
— O local fica bem afastado da órbita de Plutão — explicou Princer a sua esposa,
depois que o rádio silenciou. — Enquanto não chegarmos lá, poderei mostrar-lhe a nave e
sua carga.
Caminhou meio desajeitado pela cabina e mostrou os aparelhos de localização e de
rádio, as instalações de comando e o sistema de propulsão, o sistema de renovação de ar e
os mapas estelares.
— Você já deve ter compreendido — disse com a voz chorosa — que cometeram
uma injustiça, quando não fui aceito na Academia Espacial da Frota Solar. Entendo tanto
de astronáutica como qualquer membro da Frota. E o daltonismo... Ora, isso é uma coisa
ridícula. Quanto ao defeito na estrutura óssea... Bem, uma pequena fratura na perna,
proveniente do jogo de rugby na universidade, não representa um defeito que possa
exercer maior influência num grande talento.
Seu rosto ficou vermelho como um pimentão ao concluir:
— Naturalmente não vou afirmar que sou um talento.
Sua esposa lançou-lhe um olhar que deixaria qualquer homem esfogueado. Mas
Princer dirigiu-lhe apenas um sorriso abobalhado.
— Vou mostrar-lhe a semente de espinafre — disse.
Desenvolvendo a atividade de um trabalhador pago por tarefa, atravessou a carga até
encontrar um volume que correspondia aos seus desejos. Abriu a tampa.
— É isto — disse em tom orgulhoso. — A última novidade da IFC, o gigante-
supermacio.
Cora Princer olhou para dentro da caixa. Parecia um tanto decepcionada. As
minúsculas bolinhas azuladas não faziam jus ao nome, pois não pareciam gigantes nem
supermacias.
— Assemelham-se a sementes de papoula — disse.
Princer suspirou de satisfação; até parecia que era responsável pela descoberta.
— É verdade — disse. — Só mesmo por meio de uma análise pode-se distinguir
esta semente da de papoula.
Fechou o volume e voltou a colocá-lo no lugar. Pôs a mão no ombro da esposa, num
gesto paternal.
— Agora serão realizados os cálculos da transição, Cora. O pequeno computador
positrônico de bordo cuidará disso para nós. Basta que eu programe os dados, fornecidos
pelo oficial da Netuno.
Sua esposa parecia um tanto assustada.
— Ouvi falar que a transição provoca uma dor bastante desagradável — disse.
Princer fez um gesto de desprezo.
— É a chamada dor da desmaterialização. A distância, que nos separa do setor de
Vega, é de vinte e sete anos-luz. Percorreremos essa distância num único hipersalto, mas
você não sentirá quase nada.
Quanto menor a distância entre os pontos extremos da transição, menos intensa é a
dor.
Colocou um cartão perfurado no computador de bordo e esperou.
— Falta pouco para atingirmos a velocidade da luz — explicou.
Observou o cintilar pulsante do setor de armazenamento de dados e, logo depois,
chegou-lhe o resultado. Levantou-se e foi até o assento do piloto.
— Será preferível deitar-se — disse, dirigindo-se a Cora. — Logo passará.
Seus dedos passaram sobre os indicadores coloridos do dispositivo automático que
realizava a transição. Face ao seu daltonismo, guardara na memória não a cor, mas a
posição das teclas. Mexeu nervosamente nos respectivos controles. Finalmente
comprimiu o botão verde.
A dor da desmaterialização foi tão intensa que, antes de perder a consciência, John
Edgar Princer compreendeu que acabara de cometer um imperdoável engano.
***
Princer teve a impressão de que alguém martelava com precisão mortífera uma
chapa de ferro presa à sua testa. Abriu os olhos e notou uma profusão de figuras
coloridas. Finalmente o quadro tornou-se mais nítido; viu o teclado automático do
aparelho de transição.
— Já pensava que você nunca mais recuperaria os sentidos — disse Cora,
inclinando-se sobre ele. — O que houve com você?
Princer lançou-lhe um olhar triste.
— Será que você recuperou os sentidos antes de mim? — perguntou em tom
queixoso.
Sua esposa fez que sim. Ajudou-o a levantar-se. O jovem arrastou-se com um
gemido. Ligou as telas e os aparelhos de localização.
— Eu sabia que você conseguiria — observou Cora, em tom orgulhoso. — A
transição foi realizada na primeira tentativa.
— Acho que sim — disse Princer, esfregando a testa. Apontou para o botão que
acionara antes do salto.
— Qual é a cor deste botão? — perguntou em voz baixa.
— Verde — respondeu Cora, um tanto perplexa. — Por que faz essa pergunta?
Princer soltou um gemido e caiu no assento de piloto. Sua figura nunca parecera
muito esportiva, mas agora achava-se dobrado sobre si mesmo. Cora começou a
desconfiar de que algo de grave acontecera. Era inteligente e corajosa, e acreditava que
seu marido também o fosse, embora até então não tivesse dado provas disso.
— O botão verde — lamentou-se Princer — destina-se a saltos a grande distância.
Provoca um dispêndio energético mais elevado. Troquei-o com o botão vermelho. Você
compreende... sou daltônico. É claro que decorei a posição das teclas, mas estava muito
nervoso...
— O que significa isso? — perguntou Cora, em tom tranqüilo.
Princer segurou suas mãos.
— Isso significa que viemos parar em qualquer lugar da Galáxia, menos nas
proximidades do sistema de Vega.
— Nesse caso vamos voltar — disse sua esposa.
Princer balançou a cabeça.
— Acho que isso não será possível. Se não descobrirmos onde estamos, não
conseguiremos voltar. Qualquer transição será um salto no desconhecido e poderá afastar-
nos ainda mais da Terra.
Na realidade, sua situação era ainda mais desesperadora. Se não houvesse por perto
nenhuma estrela pela qual Princer pudesse orientar-se, qualquer tentativa seria inútil. O
salto do jato espacial fora dado praticamente ao acaso e podia tê-los levado a qualquer
ponto, situado no interior de uma esfera, cujo ponto central era a Terra. Evidentemente
um hipersalto tinha seus limites espaciais, mas esse fato representava um insignificante
consolo.
— E agora? O que vamos fazer? — perguntou Cora e, esforçando-se para dar um
tom firme à voz, prosseguiu: — Não podemos ficar sentados por aqui e esperar até... até...
Princer sabia perfeitamente o que sua esposa queria dizer. Seu orgulho másculo foi
despertado. Ergueu-se por meio de movimentos que pareciam descontrolados. Oferecia
um quadro que não poderia ser menos elegante.
— Faça o favor de trazer os catálogos estelares, Cora. Estudarei a estrela mais
próxima. Talvez esteja registrada e, nesse caso, poderemos orientar-nos por ela.
John Edgar Princer trabalhou durante três horas. Realizou localizações
goniométricas, medições e cálculos. Comparou os resultados com os dados constantes do
catálogo. A estrela mais próxima ficava a dois anos-luz. Era um anão. Constava do
catálogo sob o nome bem-sonante de Alaze. Princer leu que essa estrela tinha três
planetas. O planeta número dois era habitado e possuía oxigênio.
Esse mundo era conhecido como o planeta Alaze. Tinha, portanto, o mesmo nome
do seu sol. Para John Edgar Princer, o nome não parecia ter tanta importância. Muito
mais importante era a frase grifada:
É uma grande base dos saltadores.
Princer fechou abruptamente o catálogo, e sua esposa estremeceu com o estalo.
Fitou-o.
— Descobriu onde estamos?
— Descobri — disse Princer com a voz fina. — Viemos parar num ninho de
marimbondos.
Ele sabia dos ataques traiçoeiros dos mercadores galácticos. Sabia que investiam
impiedosamente contra qualquer nave terrana, que se atrevesse a penetrar nas áreas a que
se julgavam com direito. Os saltadores não estariam interessados em saber se a presença
da Error fora causada por um engano. Abririam fogo antes de fazer perguntas.
— Temos que dar o fora, Cora — disse Princer.
Realizou o mais depressa possível outra programação do computador de bordo. A
jovem mulher fitava-o em silêncio.
Mas a pressa foi em vão.
Os marimbondos já estavam esvoaçando em torno dele!
***
A primeira onda de choque atingiu a Error com uma tremenda fúria. A pequena
nave-disco sofreu um forte abalo. Princer sentiu-se arrancado da poltrona e arremessado
pela cabina. Ouviu o grito apavorado de Cora. O jato espacial tremia. Rastejando, Princer
conseguiu chegar ao assento de piloto. Ligou as telas. Fazendo um grande esforço, voltou
a acomodar-se na poltrona. Ligou os campos de absorção. Os aparelhos de localização
emitiram o sinal de alarma. Havia uma nave desconhecida nas proximidades. Com a mão
trêmula, Princer orientou as telas para o local indicado pelos instrumentos.
E o que viu lhe fez o sangue gelar nas veias.
Uma gigantesca nave cilíndrica destacava-se contra o negrume do espaço. Parecia
que sua iluminação vinha de dentro. Princer pensou que fossem os campos defensivos.
Soltou uma risadinha. O que é que poderia fazer contra um gigante como este? Percebeu
que suas medidas defensivas seriam inúteis. No entanto, os campos de absorção
neutralizaram razoavelmente a segunda onda de choque. Princer ficou sentado, sem saber
o que fazer. Não se atreveu a olhar para Cora.
— Ligue o videofone, seu imbecil — disse ela, com uma voz cavernosa.
Apavorado, Princer fitou o aparelho de rádio. Ao que tudo indicava, os ocupantes da
nave dos saltadores queriam falar com ele, antes de transformá-lo numa nuvem atômica.
— O que será que vão fazer conosco, Johnny? — perguntou Cora, em tom
apavorado.
A garganta de Princer estava tão ressequida que o jovem não conseguiu pronunciar
uma única palavra. Sabia que já podiam vê-lo na nave dos saltadores. A tela da Error
também começou a iluminar-se. Um rosto grosseiro e largo, com uma barba imponente,
apareceu na lâmina. A visão quase fez o terrano desmaiar. Já ouvira falar muitas vezes
nos patriarcas dos saltadores, mas o aspecto desse mercador ultrapassava tudo que já
imaginara.
O patriarca fitou-o com uma expressão de curiosidade.
— Onde está Shaugnessy? — perguntou em tom contrariado.
Princer fez um ligeiro esforço para sorrir, mas só conseguiu tremer os lábios. Nunca
ouvira tal nome, e não tinha a menor idéia sobre os motivos por que o salta-dor queria
que justamente ele lhe desse informações a respeito de Shaugnessy.
— Não lhe avisaram que deveria expedir a mensagem codificada assim que
chegasse aqui? — perguntou o mercador, em tom indignado. — Se resolveu aceitar o
trabalho de Shaugnessy, aja como um homem sensato. Para que esse jogo de cabra-cega?
Todo encabulado, Princer fitou a tela. Não conseguia descobrir o sentido das
palavras do saltador. Era evidente que a Error estava sendo confundida com outra nave.
Princer resolveu acompanhar o jogo. Era a única possibilidade de sobreviver por mais
algum tempo.
— Sinto muito — disse em tom cauteloso. — Shaugnessy está doente. Pediram que
eu viesse. Fiquei um pouco nervoso e esqueci o código.
O saltador lançou-lhe um olhar de desprezo.
— Ao menos trouxe a coisa?
— Trouxe — disse Princer, mentindo valentemente. — Está a bordo.
Que coisa seria essa a que o saltador acabara de aludir? Seria inútil refletir sobre
isso.
Naquele momento o patriarca descobriu Cora, que se colocara ao lado de Princer e
pusera a mão sobre o ombro do esposo.
— Quem é essa mulher? — perguntou em tom violento.
O jovem encolheu-se na poltrona. A palestra estava sendo travada em intergaláctico.
O filho do presidente da IFC sabia que sua esposa dominava esta língua.
— É uma nova colaboradora — disse Princer. — Vai ser treinada...
Rezou para que não tivesse dito nada de errado.
— Mulheres! — exclamou o saltador em tom de desprezo. — É preferível que
Aplied não as use. Só pode dar aborrecimentos.
— Deixe isso por nossa conta — disse Cora, com a voz atrevida.
Princer lançou-lhe um olhar de súplica. O saltador soltou uma estrondosa
gargalhada. Seu rosto barbudo movimentou-se.
— Parece que a senhora tem um pouco mais de tutano que essa coisa desengonçada
que está no assento do piloto — dizendo isto com um gesto aprovador, voltou a dirigir-se
a Princer. — Como é seu nome?
— John Edgar Princer — disse corajosamente. — Como é seu nome?
— Valmonze — respondeu o saltador.
Princer soltou um suspiro de alívio. Seu nome não provocara qualquer desconfiança
no patriarca. Era imprescindível que descobrisse o mais cedo possível com quem estava
sendo confundido. Assim que cometesse o menor engano, Valmonze ordenaria aos seus
artilheiros que destruíssem a Error.
— Basta de conversa — disse Valmonze. — Vamos recolhê-lo.
— Está bem — concordou Princer, embora não soubesse o que o saltador queria
dizer com recolher.
Parecia que Valmonze queria saltar da tela, quando retrucou:
— Está bem o quê? Desligue logo esse ridículo campo de absorção, para que
possamos introduzi-lo a bordo com o raio de tração.
A tela escureceu e Princer cumpriu a ordem. Não havia a menor possibilidade de
resistir.
— Daqui a poucos minutos estaremos a bordo da nave dos saltadores — disse,
dirigindo-se à esposa. — Examinarão nossa carga e verificarão que não trouxemos nada,
além do gigante-supermacio e de alguns pacotes de cigarros.
— Isso não os deixará muito felizes — conjeturou Cora. — O que farão conosco,
Johnny?
Ele colocou o dedo sobre seus lábios. Por que assustar sua esposa? Depois da
descoberta do gigante-supermacio, seriam inapelavelmente atirados pela comporta da
nave dos saltadores.
Naturalmente, sem traje espacial.
Princer pensou que finalmente conseguira aquilo pelo que sempre ansiara: uma
aventura no cosmos. Por isso lutara para ser admitido na Frota Solar, mas fora sempre
rejeitado.
Quando a Error foi introduzida a bordo da nave saltadora Vai I, ele ainda continuaria
a ser considerado como: John Edgar Princer, um novato.
3
O planeta Alaze era um mundo de oxigênio, mas à primeira vista Princer teve uma
decepção.
A atmosfera densa permitia que se respirasse sem traje protetor. Porém o terrano
teve a impressão de que, em comparação com o da Terra, o ar do planeta era irrespirável.
Tinha um cheiro de terra úmida, semelhante ao das folhas apodrecidas.
A Val I pousara sem problemas no espaçoporto. Mais duas naves cilíndricas, a Val
IV e VII, repousavam sobre as colunas de apoio. Valmonze informou que precisavam de
reparos.
Princer encontrava-se na comporta de tripulantes da Val I, juntamente com a esposa
e com o patriarca. Embaixo deles já rolavam os veículos de carga, todos eles tripulados
por saltadores. O jovem não descobriu nenhum nativo. Provavelmente o espaçoporto era
cuidadosamente isolado pelos saltadores.
Valmonze, um espírito empreendedor, berrava suas ordens. Vez por outra virava-se
para Princer, com um sorriso no rosto.
— Retiraremos sua navezinha; a papoula será descarregada imediatamente —
anunciou. — Há tempo esperamos uma oportunidade de cultivarmos nossa própria
papoula.
Entrou no elevador que levava da comporta para o campo de pouso. O vento
brincava em sua barba e fazia esvoaçar a capa. Princer conseguiu lançar um olhar para o
braço, que era mais grosso que a coxa do jovem.
— Venha — pediu Valmonze. — Vamos descer.
O terrano parecia inseguro no elevador. Apoiava-se com as duas mãos. Valmonze
ajudou Cora. Lançou um olhar de desprezo para Princer. Este sentiu o olhar e começou a
ficar nervoso.
— O que houve com o senhor? — perguntou Valmonze.
— Sempre me sinto mal nos elevadores — respondeu em tom desolado.
Valmonze fitou-o perplexo; até parecia que o via pela primeira vez.
— O senhor não é um astronauta?
O elevador começou a movimentar-se. O rosto de Princer mudava do pálido para o
vermelho. Segurava-se desesperadamente na balaustrada. Valmonze cocou a barba,
pensativo. Cora viu-o balançar a cabeça. Finalmente a plataforma chegou ao solo.
Valmonze saltou. O terrano seguiu-o com os joelhos trêmulos. Alguns saltadores, que se
encontravam nas proximidades, não fizeram o menor esforço para disfarçar o quanto os
divertia a triste figura de Princer.
— Se estiver em condições, dirija o olhar para a comporta de carga — disse
Valmonze, em tom mordaz.
Princer parou. O quadro que se lhe ofereceu não contribuiu para que se sentisse
melhor. A Error estava saindo do ventre da Vai I. A comporta do jato espacial estava
aberta. Carros aproximaram-se. Alguns saltadores tiraram o gigante-supermacio do
interior da Error e o colocaram nos carros.
— Gostaria de apanhar alguns dos meus pertences — disse Princer. — Vou dar um
pulo até a nave.
Valmonze limitou-se a acenar com a cabeça. O terrano piscou para Cora e saiu.
Quando chegou à Error, os saltadores já haviam concluído seu trabalho. O coração
do jovem disparou. Teria ainda chance de expedir uma mensagem pelo rádio! Andou
mais depressa. Um dos carros passou por ele. Na plataforma de carga estavam
empilhados os volumes de semente de espinafre destinados a Ferrol.
Princer entrou na comporta da nave e olhou apressadamente em torno. Não havia
ninguém em seu interior. Os pacotes de cigarros continuavam no mesmo lugar.
Com dois passos, o jovem colocou-se junto ao aparelho de telecomunicação. Num
instante acionou os controles. O aparelho emitiu um estalido e começou a zumbir. Princer
inclinou-se sobre o microfone.
Mas não chegou a proferir uma única palavra.
— Por que está mexendo nisso? — disse a voz de barítono de Valmonze.
Princer estremeceu. Virou-se apressadamente. Deparou-se com Valmonze, em cujo
rosto havia uma expressão obstinada. Cora encontrava-se no interior da comporta. Seus
olhos denotavam temor.
— Eu me esqueci de desligar o aparelho — gaguejou Princer. — O senhor me
assustou.
Depois de sorrir para Valmonze e desligar o telecomunicador, completou:
— Também queria levar estes cigarros. Pegou os pacotes.
— Deixe-se de brincadeiras com o rádio. A área está sendo vigiada
ininterruptamente. Quer pôr nossos controles em pânico?
— É claro que não — asseverou Princer. — Afinal, não aconteceu nada.
— Está na hora de irmos à sede — disse Valmonze. — Estou curioso para saber o
que dirão meus amigos, quando virem a semente.
O terrano não se sentia capaz de compartilhar da curiosidade de Valmonze. Sabia
perfeitamente que a primeira tentativa de obter papoula da semente de gigante-
supermacio representaria um fracasso total.
O filho do presidente da IFC parou em atitude indecisa, segurando os pacotes de
cigarros como se fossem uma arma.
— O que está esperando? — perguntou Valmonze, em tom impaciente.
O sorriso simplório de Princer deixou o patriarca nervoso.
— Não quero ser indelicado — disse o jovem. — É a primeira vez que minha
companheira e eu estamos neste planeta. O senhor há de compreender que nos
interessamos pelos nativos. A fabricação de entorpecente não nos pode oferecer qualquer
novidade, pois lidamos muitas vezes com isso. Gostaríamos de andar um pouco por aí.
Percebia-se perfeitamente o que Valmonze achava de passeios desse tipo. Apesar
disso dirigiu-se a Cora.
— O que acha?
— As conversas sobre negócios me causam tédio — disse Cora.
— Bem que eu gostaria de conhecer os princípios que Aplied usa na seleção do seu
pessoal — resmungou Valmonze. — Shaugnessy sempre teve suas idéias malucas, mas
nunca deixou de participar das reuniões. Bem, se quiserem, andem um pouco por aí. Há
uma aldeia dos nativos próxima ao campo de pouso. Essas criaturas falam sofrivelmente
o intergaláctico. Talvez consiga fazer com que alguns deles desçam das árvores.
Por pouco Princer não pergunta o que os nativos faziam em cima das árvores. O
patriarca deveria supor que Shaugnessy ou Aplied informaram os novos contrabandistas
sobre as condições reinantes no planeta Alaze. Qualquer pergunta suspeita poderia
provocar a desconfiança do saltador.
O terrano movimentou as pernas longas e magras, e saiu da Error. Cora e o patriarca
seguiram-no. Valmonze apontou para um edifício situado na periferia do espaçoporto.
— Siga nessa direção. Mas não faça nenhuma marcha forçada. Deverá permanecer
ao nosso alcance, para quando precisarmos do senhor.
Princer fez que sim. Cora apoiou-se em seu braço, e caminharam em direção ao
edifício que lhes fora indicado. Por um instante Valmonze seguiu-os com os olhos,
balançando a cabeça. Depois saiu em direção... à maior surpresa que já tivera em sua
vida!
***
Face às dimensões das naves dos salta-dores, o espaçoporto do planeta Alaze era
enorme. Ficava no fundo de um vale e estendia-se por uma área de três quilômetros. Para
os mercadores galácticos, a instalação de um entreposto comercial era apenas uma
questão de rentabilidade. Um espaçoporto dessa extensão era bastante dispendioso, e,
evidentemente, não era construído em todos os seus entrepostos. Só os mundos que
apresentassem condições especiais possuíam instalações desse tipo.
Os saltadores encaravam qualquer questão sob o ângulo econômico e comercial.
Praticamente viviam como nômades e geralmente ficavam mais tempo no interior de suas
naves. Por isso precisavam de espaçoportos em que pudessem pousar a intervalos
regulares, a fim de cuidarem do reparo de suas naves ou de outros assuntos importantes.
A riqueza de cada clã dos saltadores dependia da capacidade do patriarca.
Há várias gerações os saltadores detinham o monopólio do comércio em todos os
planetas habitados que podiam ser alcançados com suas naves cilíndricas. Mas, nos
últimos anos, surgira um forte concorrente:
O Império Solar.
Os comerciantes e economistas terranos lutavam obstinadamente contra o poder
financeiro dos mercadores galácticos. Por enquanto os saltadores se haviam guiado por
um princípio muito simples. Agarravam tudo que pudessem conseguir por suas
mercadorias. Objetos adquiridos a preços vis eram “trocados” por mercadorias valiosas.
Mas essas condições chegaram ao fim. As naves cargueiras terranas apareceram
pelos planetas e pela primeira vez eram oferecidos às outras inteligências da Galáxia
preços honestos por suas mercadorias. Antes que os saltadores compreendessem o que
estava acontecendo, a Terra já tinha firmado contratos comerciais com inúmeros planetas.
Daí em diante, os mercadores das naves, galácticas passaram a recorrer a qualquer
meio, fosse ele qual fosse, para enfraquecer a posição da Terra.
John Edgar Princer sabia sobre os saltadores tanto quanto qualquer cidadão da Terra,
interessado no destino de seu povo. Ao que tudo indicava, isso estava para mudar.
Acompanhado pela esposa atingira a extremidade do campo de pouso. Cora agarrou
sua mão.
— Johnny, não demorarão a perceber o que realmente temos a bordo da Error —
disse Cora. — Quando isso acontecer, eles nos levarão de volta.
Princer olhou para as montanhas, onde se estendiam florestas sombrias.
— Temos de fugir — disse. — É nossa única possibilidade de sobrevivência. Talvez
os saltadores tenham outros estabelecimentos neste planeta, e muita coisa a fazer. Depois
de algum tempo, talvez reduzam a vigilância. Quando isso acontecer, teremos uma
chance de expedir nossa mensagem.
Cora olhou para trás. Teve a impressão de que Johnny não conseguiria enganar os
saltadores.
— Fugir! — repetiu Cora. — Dê uma olhada, Johnny! Não conhecemos este
planeta. Nem sequer sabemos para onde dirigir nossos passos. Antes que tenhamos tempo
de achar um esconderijo, eles nos encontrarão.
Continuaram andando. Princer não tinha nenhuma idéia clara sobre a maneira pela
qual poderiam salvar-se. Mas uma coisa era certa: se parassem, dentro em breve estariam
em poder de Valmonze.
Passaram do pavimento liso do espaço-porto para uma área coberta de pedregulho
cinzento, na qual se viam algumas moitas de capim. Princer olhou para trás. Ninguém os
seguia. A uns cem metros do lugar em que se encontravam, ficavam as primeiras árvores.
Os gigantescos troncos eram marrom-escuros. A folhagem era tão densa que tinha o
aspecto de uma massa compacta. O terrano esperava que por ali houvesse um local onde
pudessem esconder-se.
— Você está andando muito depressa — queixou-se Cora.
Dando-se conta do seu erro, Princer andou mais devagar. Se cansasse Cora demais,
teria de pagar por isso mais tarde. Precisavam controlar suas forças.
— Pensei que minha viagem de núpcias fosse mais confortável — disse Cora, em
tom sarcástico.
— A culpa é exclusivamente minha — disse ele, muito abatido. — Fiquei em cima
do papai, pedindo que me desse o jato espacial. Agora, papai deve estar preocupado, pois
eu lhe prometi que, chegando em Ferrol, entraria logo em contato com ele. A esta hora já
deve esperar meu chamado.
— Talvez mande procurar-nos — disse Cora esperançosa.
— Sim; em Ferrol — confirmou Princer.
— E se não nos encontrarem lá, onde poderão nos procurar? Não existe a menor
possibilidade de localizar uma pessoa perdida no espaço.
Princer era um homem estranho. Preocupava-se com os outros, embora ele mesmo
se encontrasse em situação muito mais grave. O fato de que o pai o procuraria em vão
deixava-o muito mais triste que o perigo de ser capturado pelos saltadores.
Atingiram as primeiras árvores. O terrano suspirou aliviado. Avançavam com mais
dificuldade, já que a vegetação rasteira e os montes de folhas secas lhes barravam o
caminho. Quando viram aparecer os dois seres humanos, as aves nos galhos fizeram um
pandemônio.
— Será que por aqui faz muito frio de noite? — perguntou Cora.
À noite! Princer estremeceu. Nem se lembrara disso. Não sabia quanto tempo
duraria a escuridão nesse mundo. O planeta Alaze possuía um tipo de rotação estranha.
Princer lembrava-se de ter lido alguma coisa a este respeito no catálogo estelar.
— Não creio — respondeu. Abaixou-se para afastar alguns galhos.
Naquele momento, Cora, que se encontrava atrás dele, soltou um grito de pavor.
Princer virou-se abruptamente. Cora estava pendurada pela cintura, num laço que
saía da folhagem impenetrável. Princer precipitou-se sobre ela, mas o corpo de sua
esposa foi puxado para cima aos solavancos. O terrano agarrou-se desesperada-mente às
suas pernas, mas as forças invisíveis eram mais fortes.
Apavorado, o jovem viu Cora desaparecer em meio à folhagem.
— Cora! — gritou.
— Vá embora, Johnny — ouviu sua voz. Mas o terrano nem pensava em fugir.
Entretanto, quando tentou galgar o tronco, sentiu-se também agarrado e erguido do
chão. Virou-se rapidamente, porém um segundo laço selou seu destino. Travou uma luta
silenciosa e inútil contra as cordas que o amarravam. Os seres invisíveis puxavam-no
lentamente para cima.
***
Amat-Palong era um ara, um médico galáctico. Era alto e em sua cabeça não havia
um único fio de cabelo.
Amat-Palong despejou uma substância cinzenta, que se encontrava num tubo de
ensaio, para dentro de um funil. O pó deslizou para o interior de uma caixa. Amat-Palong
colocou o resto do pó sobre uma laminazinha transparente. A lâmina foi colocada
embaixo de um microscópio. Por alguns instantes, o ara olhou para dentro do
microscópio, sem dizer uma palavra. Retirou a lâmina. Colocou-a na palma da mão e
levou-a à boca. Umedeceu lentamente os lábios e soprou o pó cinzento que se encontrava
sobre a laminazinha.
Amat-Palong balançou a cabeça. Dirigiu-se à escrivaninha e ligou o aparelho de
intercomunicação.
— Valmonze está por aí? — perguntou. Sua voz era monótona. Não tinha altos nem
baixos; parecia inumana.
— Está na cantina — responderam pelo pequeno alto-falante. — Seus filhos estão
com ele.
— Quero falar apenas com o patriarca — disse Amat-Palong, com suavidade. —
Faça o favor de pedir-lhe que venha imediatamente ao meu laboratório.
Não aguardou a confirmação. Desligou. Lançou um olhar pensativo para suas mãos.
Puxou uma cadeira para perto do lugar em que se encontrava. Ouviu o zumbido do
elevador, e dali a pouco Valmonze entrou no laboratório. Segurava uma garrafa bojuda.
Seus olhos achavam-se avermelhados.
— Estava comendo — resmungou. — Talvez o senhor não compreenda... Mas, para
mim, isso é uma atividade muito importante, durante a qual não gosto de ser incomodado.
Sem impressionar-se com a ira do saltador, Amat-Palong levantou-se. Valmonze
tomou um grande gole da garrafa e arrotou. O médico lançou-lhe um olhar indiferente.
— Então — disse Valmonze, em tom áspero. — Qual é o assunto tão importante que
o senhor tem a me dizer?
Amat-Palong cruzou tranqüilamente os braços diante do peito.
— Guarde a garrafa, mercador — disse com a voz fria. — Daqui a pouco, quando
começar a dar ordens, o senhor precisará ter os pensamentos em ordem.
Valmonze fitou-o com uma expressão de incredulidade. Seus olhos estreitaram-se.
Aproximou-se lentamente do ara.
— Que modos são estes? — esbravejou. — Não se esqueça de que o senhor está
falando com um patriarca.
Amat-Palong confirmou com um gesto.
— Sei disso — respondeu. — Mas por quanto tempo o senhor ainda será patriarca?
Valmonze deu um passo para trás. Atirou a garrafa ruidosamente sobre a
escrivaninha. Estava furioso. Mas, ao mesmo tempo, a segurança do ara o desconcertava.
— Fale, antes que eu lhe quebre o pescoço pelas ofensas que acaba de proferir —
berrou para Amat-Palong.
O ara não se abalou. Abaixou-se e abriu um armário. Suas mãos hábeis retiraram
alguns sacos de plástico cheios de um pó branco. Ergueu-os até o rosto de Valmonze.
— O que é isto, patriarca?
— Heroína — fungou Valmonze. Amat-Palong pegou outros sacos, cujo conteúdo
era marrom-escuro.
— Isto é ópio — disse. — Foi extraído de sementes de papoulas não amadurecidas.
Contém cerca de quinze por cento de morfina e quantidades menores de outros
alcalóides. Até agora, sempre adquirimos os entorpecentes já preparados na Terra.
O patriarca fechou violentamente o armário. Segurou o médico pelo ombro.
— O senhor sabe perfeitamente que a longo prazo isso se torna muito perigoso.
Fizemos um acordo com Aplied, para ele nos mandar uma remessa de sementes de
papoula, a fim de que possamos ter nossas próprias plantações. A semente já chegou. O
que é que o senhor ainda deseja?
— Quero semente de papoula... — disse Amat-Palong, em tom de desprezo. — O
senhor pode ser um bom mercador, mas não entende nada destas coisas...
Valmonze lançou-lhe um olhar desconfiado.
— O que quer dizer com isso?
Com a maior tranqüilidade, Amat-Palong pegou a caixa com o pó cinzento.
— Aqui está, patriarca. E isto que o senhor acredita ser semente de papoula. Dê-se
por satisfeito por não a ter redespachado. Dei-me ao trabalho de moer e examinar alguns
grãos.
Valmonze apoiou pesadamente os dois braços sobre a mesa. Seu hálito chegava até
o rosto do médico.
— Há algo de errado com a semente? — perguntou.
— Com a semente em si, não há nada de errado — respondeu Amat-Palong. —
Apenas, se o senhor a semear, colherá legumes.
O patriarca arrancou a caixa da mão de Amat-Palong. A veia do seu pescoço
estufou. Contemplou a semente moída.
— Quer dizer que isto não é semente de papoula?
— Tem o aspecto da semente de papoula — disse o ara. — Na verdade, porém, é
coisa bem diferente.
Valmonze atirou longe a caixa e soltou uma forte praga. Levantou o punho, num
gesto de ameaça.
— Aplied enganou-me; que patife... Não teve a menor dúvida em brindar seu
parceiro de negócios com certas expressões, que se aplicariam perfeitamente a ele
mesmo.
— Sem dúvida acreditava que eu venderia a semente, sem examiná-la! — berrava o
patriarca.
Amat-Palong manteve-se tranqüilo diante da irrupção do mercador. Quando
Valmonze se acalmou, disse:
— Não posso imaginar que Aplied use truques tão primários. O senhor deveria
interessar-se por seu elemento de ligação, o tal do Shaugnessy. Quem sabe se ele não
pensou que nos podia enganar?
— Shaugnessy? — os olhos de Valmonze chamejavam. — Shaugnessy não veio.
Aplied mandou outra pessoa. Seu nome é Princer.
— Será que isso faz alguma diferença? Pouco importa que o senhor seja enganado
por uma pessoa que se chama Shaugnessy ou Princer.
— O senhor deveria ver esse terrano — gritou Valmonze, em tom indignado. — É o
maior imbecil que já apareceu neste sistema. Tem medo de elevadores e não tem a menor
idéia do nosso negócio.
Bateu fortemente no peito do ara.
— Mandarei buscá-lo. Veremos se mentiu para nós.
Amat-Palong riu.
— Não há nada mais fácil que isso. Prepararei uma injeção que fará o tal do Princer
contar qualquer coisa que o senhor queira.
Valmonze dirigiu-se ao sistema de intercomunicação do ara e ligou-o. Resmungou
seu nome e começou a dar ordens.
— Procurem o terrano e a mulher que vieram conosco na Val I. Têm de ser trazidos
imediatamente. Aguardo no laboratório.
Satisfeito, deixou-se cair numa cadeira.
— Pronto — disse. — Vamos cuidar do Princer.
***
Folhas e galhos roçaram em seu rosto. Subitamente sentiu chão firme sob os pés.
Os laços foram afrouxados. O terrano olhou em torno. Encontrava-se sobre uma
plataforma construída entre os galhos. Era feita de tábuas toscas. Cora, que se encontrava
a um metro de distância, desvencilhava-se da corda.
Princer olhou para o alto. Acima de sua cabeça havia uma cabana de folhas, presa
aos galhos mais grossos. Quatro estranhas criaturas estavam sentadas na entrada da
mesma. Seu tamanho era o de um homem normal. Mas este era o único ponto de
semelhança com os terranos. Em suas cabeças de pássaros brilhava um par de olhos
negros e inteligentes, rodeados por um círculo de penas. Um bico largo e curto dominava
o rosto. Princer notou que seus braços, quando abertos, formavam asas. Imaginava que
naquela atmosfera densa deviam ser perfeitamente capazes de voar. Os corpos estavam
cobertos por penas.
Princer compreendeu o que Valmonze quis dizer quando lhe sugeriu que tirasse os
nativos de cima das árvores.
— São nativos — disse a Cora, em tom tranqüilizador. — Não devem ser perigosos,
pois do contrário o saltador nos teria prevenido.
Um dos pássaros desceu para a plataforma em que se encontravam. A folhagem
densa não permitia que voasse, motivo por que desceu pelas cordas.
— Nós fazer brincadeira gostosa — disse, cumprimentando Princer num péssimo
intergaláctico. — Puxar gente sem asas do chão.
Enquanto falava, seu bico batia. A voz parecia rouca e estridente. Princer tinha
idéias bem definidas sobre o senso de humor. E essas idéias não incluíam o uso de
armadilhas. Piscou para Cora.
— Deixe-nos descer — pediu. — Estamos com pressa.
O ser-pássaro contemplou-o com uma expressão astuciosa. Sua mão em garra
apontou para os pacotes de cigarros que Princer trazia sob o braço.
— Isso ser presente para Schnitz? — perguntou em tom curioso.
O terrano caminhou em sua direção. A plataforma começou a balançar. Schnitz
parecia não se importar com isso, mas Princer empalideceu. Seu corpo balançava no
ritmo das tábuas. Cora segurou-se num galho.
— Presente? — repetiu Schnitz, impaciente.
Princer não se sentia muito disposto a fazer presentes. Enquanto estavam perdendo
tempo, os saltadores talvez já tivessem iniciado a perseguição.
— Nada feito, amigo — disse ao nativo. — Não temos presentes. Queremos seguir
nosso caminho.
Schnitz fitou-o prolongadamente. Grasnou em sua língua incompreensível para os
três companheiros que continuavam sentados na frente da cabana. Princer assustou-se ao
notar que estes também desceram para a plataforma, que estremeceu sob o peso. O jovem
usou a mão livre para segurar-se numa das cordas.
— Gente sem asas agora querer dar presente para Schnitz? — perguntou o nativo,
numa ameaça evidente.
— Dê-lhe um maço — disse Cora. — Talvez com isso ele se torne mais amistoso. E
eu também gostaria de fumar.
Princer cedeu contra a vontade ao desejo da mulher. Entregou um maço a Schnitz e
abriu um outro para Cora.
Schnitz, muito nervoso, começou a examinar seu presente. Os companheiros
acompanharam-no com uma tagarelice insuportável.
— Isto me acalma — disse Cora, com um suspiro de alívio e soltando uma baforada.
Schnitz fitou-a com uma expressão de curiosidade. Aspirou a fumaça.
— Não quer fumar, Johnny? — perguntou Cora.
Princer lançou um olhar acanhado para a copa da árvore.
— Você sabe perfeitamente que não fumo — respondeu. — Meu estômago não
suporta.
Schnitz, que chegara mais perto de Cora, aspirou fortemente a fumaça. O terrano
contemplou a cena com uma expressão de repugnância. Não compreendia como um ser
inteligente podia agir dessa forma.
— Parece que está gostando — observou Cora.
De repente Schnitz começou a girar em torno do próprio eixo. Estendeu os braços, e
as asas entesaram-se. Cambaleava de uma extremidade da plataforma para outra, como se
estivesse bêbado. As tábuas rangiam e estalavam.
— Este sujeito ainda acabará nos atirando lá embaixo! — exclamou Princer.
Cambaleante, Schnitz voltou a aproximar-se de Cora. O terrano preferiu não barrar
seus passos. Para isso teria de soltar a corda. E se o fizesse, poderia perder o equilíbrio e
cair da plataforma. Os outros três seres-pássaro também tiveram seu interesse despertado
para a fumaça. Seguiram Schnitz e aspiraram gulosamente as emanações do tabaco.
— Jogue fora o cigarro! — gritou Princer para a esposa. — Você não vê que a
fumaça os embriaga?
Schnitz e seus companheiros deixaram de lado toda a cautela e todas as
considerações. Executaram uma dança sobre as tábuas, fazendo com que o suor porejasse
na testa de Princer.
— Pare! — gritou o terrano. — Pare com isso!
Schnitz cambaleou em sua direção; parecia feliz.
— Gente sem asas trazer bom presente — gritou com a voz rouca. — Também ter
desejo?
— Tenho — disse Princer, falando com dificuldade. — Estamos fugindo dos
saltadores. É importante que encontremos um esconderijo e saiamos logo daqui. Pode
ajudar-nos?
— Ajudamos — disse prontamente o nativo. — Schnitz mandar amigo ao campo de
pouso. Amigo observar saltadores. Enquanto isso Schnitz fazer assentos de carregar.
O nativo conversou com um dos companheiros, que subiu à copa da árvore. Princer
imaginou que o ser-pássaro voaria para o espaçoporto.
— O que vêm a ser os tais dos assentos de carregar? — perguntou Cora, em inglês.
— Será que os nativos pretendem carregar-nos pela selva?
Princer imaginava que a intenção de Schnitz não seria muito diferente da suposição
levantada por Cora. E devido a tal idéia, uma sensação de insegurança invadiu-o.
Perguntou a si mesmo se, depois que cessasse o efeito do cigarro, a disposição amistosa
dos seres-pássaro continuaria.
— Que tal se, vez por outra, você fumasse um cigarro? — sugeriu a Cora. — Com
isso nossos amigos continuarão bem-humorados...
Mas antes que concluísse, sua consciência começou a acusá-lo.
— Não, não é justo que nós os exploremos em nosso benefício — censurou-se em
tom violento. — Nós os envolvemos em algo com que não têm nada a ver.
— Se você não quer fazer nada por si mesmo, comece a pensar em mim —
respondeu Cora. — Ou então procure lembrar-se do plano de informar Perry Rhodan
sobre as pessoas envolvidas no contrabando. Mas se, a cada passo, você ficar refletindo
sobre o que é certo ou não é, nada conseguiremos. Não acha?
Enquanto Cora falava, Princer enrubesceu. Fitou-a com uma expressão desolada.
Seus dedos começaram a puxar a corda, como se aquilo fosse um trabalho inadiável. Cora
aproximou-se pela plataforma balouçante.
— Sinto muito, Johnny — disse. — Acho que fiz mal em recriminá-lo. Concordo
com tudo que você fizer — acariciou seu rosto.
— Você está com a razão — contrapôs Princer em tom áspero. Inclinou-se para
beijá-la, mas o balanço da plataforma fez com que desistisse imediatamente do seu
intento. — Você não precisa fumar todos os cigarros, pois também fumarei alguns.
Entesou o corpo e voltou a dirigir-se a Schnitz, que se balançava tranqüilamente
numa corda.
— O que pretende fazer com os assentos? — perguntou.
— Voar com gente sem asas — anunciou Schnitz laconicamente. — Faremos vôo
longo, até chegar bom esconderijo.
A simples idéia de um vôo fez com que o estômago de Princer se revoltasse.
— Somos muito pesados — objetou. — Nenhum de vocês conseguirá carregar-nos.
— Em quatro — disse Schnitz, em tom alegre. — Dois de nós carregarão um sem
asas.
— O que você acha do plano? — perguntou Princer, dirigindo-se à esposa.
— Os nativos conhecem esta terra — ponderou Cora. — Sabem perfeitamente para
onde ir. Penso que essa forma é a única segura. Tenho a impressão de que uma marcha
pela floresta torna-se perigosa.
— Está bem — disse Princer. — Schnitz, vamos voar nos assentos de carregar.
Schnitz deu uma ordem a um dos companheiros, e o nativo subiu até ao “palanque”.
O terrano gostaria de obter outras informações sobre esses seres-pássaro, mas não queria
perder tempo com perguntas.
Tinha a impressão de que o lugar, onde no momento se encontravam, era um posto
de observação que lhes permitia vigiar os saltadores. A plataforma não parecia ser a
residência dos seres-pássaro.
Cora acendeu outro cigarro. Schnitz contemplou-a com uma expressão feliz e
farejou gostosamente. Princer sentia uma simpatia inexplicável pelos nativos. Justamente
por isso não estava gostando de recorrer a este método, isto é, embriagá-los com fumaça.
A volta do amigo de Schnitz fez com que o terrano esquecesse suas preocupações
por alguns minutos.
— Kankantz buscar material para assentos — disse Schnitz aos terranos. — Fazer
muito depressa.
Kankantz parecia alegre; soltou um som borbulhante. Piscou amavelmente e as
penas em torno de seus olhos balançavam-se para cima e para baixo. Mas Princer só viu
duas tábuas finas e algumas cordas desfiadas, que Kankantz trouxera.
— Será que estes são os assentos? — perguntou bastante abalado.
Schnitz pegou uma das tábuas e agitou-a energicamente diante do rosto de Princer.
Parecia querer demonstrar a resistência da madeira.
— Você acredita que este meio de transporte é seguro? — perguntou o terrano,
dirigindo-se à esposa. — Não acredito que com isso consigamos chegar muito longe.
— Será que temos outra alternativa, Johnny?
Schnitz, Kankantz e o outro nativo já haviam começado a fazer entalhes nas tábuas.
Para isso utilizavam facas que, sem a menor dúvida, eram mercadorias do comércio dos
mercadores. Fizeram duas reentrâncias em cada um dos lados das tábuas. Depois
amarraram as cordas, fazendo-as passar pelos entalhes. Uma vez prontos, os assentos
tinham o aspecto de antigos balanços.
Schnitz dobrou a faca e a fez desaparecer no montão de penas que cobria seu corpo.
Contemplou sua obra com uma expressão de orgulho. Princer fitou-o um tanto
constrangido.
— Fazer bom trabalho — disse Schnitz e coçou-se.
Com isso, o assunto parecia estar liquidado para ele. Sentou calmamente na frente
de Cora e inalou a fumaça do cigarro. Revirava os olhos e batia com o bico, a fim de
demonstrar sua satisfação. Kankantz sentou-se a seu lado e o outro nativo ajeitou-se num
galho, balançando a cabeça na frente de Cora.
— O que vamos fazer agora? — perguntou Princer. — Schnitz, não podemos ficar
para sempre nesta plataforma.
Schnitz ficou visivelmente aborrecido com a perturbação.
— Esperar Lupatz — limitou-se a dizer.
O terrano teve sua atenção despertada pelos ruídos vindos da mata. A folhagem era
tão densa que mal conseguia enxergar o que havia lá embaixo. Mas o pouco que viu
bastou para acelerar seu pulso.
A cem metros da árvore onde se encontravam, três saltadores abriam caminho pela
mata.
Vinham na direção do esconderijo!
5
O embaixador dos morgs possuía uma cauda mais grossa que um braço humano. Por
isso não se podia esperar que ele se acomodasse numa poltrona comum. Foi, então,
construído um encosto que se adaptasse ao feitio do corpo do morg, a fim de
proporcionar-lhe o máximo de conforto.
Mas, naquele instante, Stanour, o embaixador dos morgs, nem parecia pensar em
fazer uso desse encosto. Muito nervoso, aproximou-se do lugar em que estava Perry
Rhodan. Seus olhos salientes emitiam um brilho azulado. Possuía seis olhos, distribuídos
de maneira uniforme pelo crânio oval. Geralmente os morgs eram um povo pacato, não se
envolvendo nas lutas cósmicas. Mas, no caso de Stanour, notava-se muito pouco desse
espírito pacato.
— A cada dia que passa, encontramos um número maior de pessoas viciadas,
administrador — latiu na sua língua estranha. — Pastonar, uma cidadezinha situada no
oeste do país de Troatara, é habitada exclusivamente por pessoas loucas. O entorpecente
vem se transformando num perigo para nosso povo.
Eduard Deegan, encarregado de negócios da Terra em Morg, traduziu as palavras da
criatura extraterrena para os presentes. Além de Rhodan, Deegan e do morg,
encontravam-se também no recinto Allan D. Mercant, chefe da Segurança Solar, e
Reginald Bell. Perry deixara propositadamente de convocar outras pessoas. Queria evitar
que a presença de muitos subordinados desse ao morg a impressão de que ele, o
administrador, não levava a sério as preocupações que o atormentavam. Stanour conhecia
pessoalmente Rhodan e Bell. Além disso, lhe haviam explicado quem era Mercant. O fato
de poder encontrar-se a sós com esses personagens importantes já o acalmara um pouco.
— Não é só do planeta Morg que recebemos estas informações — disse Rhodan.
Via-se que, nos últimos meses, Perry trabalhara demais. As experiências com o
mecanismo de propulsão linear e o encontro com os acônidas deixara seus vestígios. E a
carga causada pelas atividades criminosas dos traficantes de tóxicos afetou ainda mais
seu estado psicológico.
— Ao que parece, o negócio dos entorpecentes assume proporções cada vez mais
amplas — prosseguiu Rhodan. — Parece que os fornecedores estão na Terra, enquanto os
mercadores galácticos exercem as funções de distribuidores.
Deegan traduziu as suspeitas de Rhodan para o morg. Mas aquela criatura, cujos
antepassados viveram nos pântanos, não se mostrou disposta a assumir uma atitude mais
gentil.
— Os saltadores afirmam que os terranos são os únicos culpados da propagação do
tóxico! — exclamou o morg. — Administrador, o senhor não deve esquecer-se de que a
substância que apareceu em toda parte é ópio terrano. Pelo que dizem os saltadores, os
políticos terranos querem contaminar várias raças da Galáxia com o veneno, a fim de
incorporá-las ao Império Solar.
Deegan hesitou em traduzir a acusação. Enquanto este falava, Rhodan começou a
morder os lábios. Mas de resto continuou tranqüilo. Bell, porém, não conseguiu dominar-
se.
— Que demônios — disse, levantando-se de um salto. — Realizam um trabalho
sistemático para incompatibilizar-nos com os outros povos. Quem me dera que eu
soubesse quem são os canalhas de nossa raça que colaboram nisso. Teria o maior prazer
em despachá-los pessoalmente para Plutão.
— Meus agentes trabalham dia e noite — disse Mercant. — Interrogamos todos os
suspeitos. Deve ser um grupo inteiramente novo. As velhas raposas não têm nada a ver
com a negociata. Provavelmente o chefe vive entre nós sob a máscara do bom burguês.
Como poderemos encontrá-lo? Será que devemos submeter todos os homens a um teste
mental, realizado por telepatas? Tal proceder entraria em choque com nossos princípios
éticos e, além disso, seria praticamente inútil. Quando concluíssemos o trabalho, os
saltadores já teriam alcançado seu objetivo, ou seja, a maior parte das raças, que têm
negócios com o Império Solar, proibiria nossa entrada em sua área de influência.
— Já expliquei isso inúmeras vezes a Stanour, sir — disse Eduard Deegan, em tom
de desânimo. — O senhor nem imagina a miséria que o ópio causa neste povo. Em
comparação com as vítimas morgs, um terrano viciado parece um raio de sol...
Rhodan interrompeu-o com um gesto.
— Diga-lhe que faremos tudo que estiver ao nosso alcance para descobrir os
criminosos. Estamos dispostos a enviar médicos para Morg, que mitigarão os males. Não
podemos fazer mais que isso.
— Fomos honestos com os terranos! — exclamou Stanour em tom amargurado,
depois que Deegan traduzira com voz sombria as palavras de Rhodan. — Estes tempos
passaram. Não estamos mais interessados na presença dos cargueiros terranos em Morg.
Mr. Deegan tem sido um excelente amigo; não tem culpa de nada. Apesar disso vemo-nos
obrigados a fechar o entreposto comercial. Façam o favor de retirar seus homens num
prazo razoável. Nosso governo ainda lhes indicará com exatidão o tempo para tal
retirada. Desde logo posso adiantar que Quatrox-Zuat, Imperador de Saastal, seguirá
nosso exemplo. Também falo como representante de Sua Majestade. Afinal, Saastal é
nosso planeta gêmeo, e mantemos excelentes relações com essa raça.
Deegan concluiu fielmente seu trabalho de tradução. Bell fez menção de investir
furiosamente contra o morg, mas o olhar de Rhodan o deteve.
— Cuide de nosso amigo, até que ele deixe a Terra. Diga-lhe que respeitamos os
desejos de seu governo e romperemos as relações comerciais.
Deegan esteve a ponto de levantar-se, mas Rhodan ainda não chegara ao fim.
— Um momento, Deegan. Diga-lhe, também, que um belo dia as naves cargueiras
terranas voltarão a ser bem vistas em Morg e Saastal... ou então não me chamo Perry
Rhodan.
Bell, o grande amigo do administrador, foi o único que notou a exaltação que se
apoderou de Rhodan.
— Passe bem, administrador — disse Stanour, e saiu da sala, acompanhado por
Eduard Deegan.
Os três grandes permaneceram em silêncio por algum tempo. Cada um estava
entregue às suas próprias reflexões. Mercant foi o primeiro que voltou a falar.
— Estamos mal — disse em tom de desânimo. — Realmente acreditam que nós é
que espalhamos os entorpecentes.
Rhodan confirmou com a cabeça. Estava sentado na poltrona. Alto, quase chegava a
ser uma figura lendária no seu uniforme simples e limpo. Os olhos pareciam ser a única
coisa viva naquele rosto anguloso. Só mesmo um homem, que carregava uma enorme
responsabilidade em todos os minutos de sua vida, poderia ter um rosto como este. A
ducha celular do planeta artificial Peregrino mantivera jovem o corpo de Rhodan, mas as
experiências pelas quais havia passado se acumularam em seu espírito.
— Isso foi apenas o começo — disse em tom tranqüilo. — Outros planetas seguirão
o exemplo de Morg e Saastal. É exatamente o que os saltadores querem. Se conseguirem
nosso isolamento econômico, não teremos a menor chance de manter o Império Solar.
Nem os propulsores lineares e nem os mutantes deverão iludir-nos quanto a isso.
Bell cerrou os punhos.
— Esse morg idiota! Não demorará a perceber que seus amigos saltadores são uns
carrascos e...
Sempre que Bell soltava uma frase mais longa, podia-se ter certeza de que esta
continha algumas pesadas expressões. Mas, naquele momento, sua indignação era
genuína, e ninguém pensou em criticá-lo por isso. O vice-administrador conhecia
perfeitamente as conseqüências que o tráfico de entorpecentes poderia produzir.
— Quando isso acontecer, será tarde, tanto para nós como para os morgs e para as
outras raças interessadas — objetou Mercant. — Penso constantemente no que poderá
acontecer se os saltadores conseguirem pôr as mãos em sementes que lhes permitam
plantar suas próprias papoulas... Seria o fim.
— Este raciocínio tem um ponto falho — interferiu Bell. — O senhor realmente
acredita que os contrabandistas terranos estariam dispostos a proporcionar essa
possibilidade aos mercadores? Caso eles agissem assim, perderiam o negócio.
Rhodan ouvira as palavras dos dois amigos. Parecia pensativo.
— Acho que não devemos deixar de lado as suspeitas de Allan — disse. — Não
sabemos se, além dos motivos econômicos, o grupo de bandidos terranos não é movido
por motivos políticos.
— Motivos políticos? — repetiu Bell, em tom exaltado. — Não compreendo.
Um sorriso frio surgiu no rosto de Rhodan. Saiu de trás da mesa e foi à janela.
Abaixo dele estendia-se Terrânia, a cidade dos superlativos. Para Rhodan, que era norte-
americano, a metrópole terrana tinha um encanto todo especial. Transformara-se em sua
segunda pátria.
— É possível que na Terra exista algum grupo interessado em derrubar o atual
governo — disse Rhodan. — Como deveria agir um grupo desses? Se forem
inescrupulosos, usarão de todos os meios para incompatibilizar-nos com os outros.
— Infelizmente você tem razão — admitiu Bell. — Acho que teremos de nos ocupar
ainda mais intensamente com a organização de contrabandistas.
Rhodan afastou-se da janela. Fitou Bell e o chefe do Serviço de Segurança.
— É o que faremos, meus caros. Dentro de quatro horas convocarei uma
conferência. Allan trará seus oficiais. E os elementos de ligação com nossos entrepostos
comerciais estelares também estarão presentes. Estou pensando em recorrer a alguns
mutantes.
A conferência foi realizada na hora prevista. Eram 18 horas, quando o administrador
abriu os trabalhos.
Os vespertinos daquele dia publicaram uma entrevista de Archibald Princer,
Presidente da Intercosmic Fruit Company. Princer exigia que a Frota Solar saísse
imediatamente à procura de seu filho John Edgar que, segundo tudo indicava, se perdera
durante a viagem de núpcias para Vega. Os leitores, que não sorriam ao lerem a
entrevista, tiveram um acesso de riso, quando viram o retrato, também publicado nos
jornais. A foto mostrava um jovem de olhos sonhadores e orelhas de abano. Era John
Edgar.
O jovem Princer tinha o aspecto de um homem capaz de se perder em sua própria
casa. Ninguém pensaria que era um piloto espacial arrojado que saía para o cosmos, em
viagem de núpcias.
Perry Rhodan encerrou a conferência pouco depois das 20 horas. Decidira,
juntamente com os presentes, a adoção de várias medidas destinadas a pôr fim ao
contrabando. Naquela mesma noite, Stanour, embaixador de Morg, decolou do espaço-
porto de Terrânia.
A população da Terra nem desconfiava das dificuldades pelas quais iria passar. Se
alguém perguntasse a qualquer um sobre o acontecimento mais importante do dia, este
talvez responderia com um sorriso:
— Bem, um homem jovem desapareceu durante a viagem de núpcias.
Mas não era só isso.
Naquele momento, a única chance de o Império Solar impedir o início do boicote
econômico repousava sobre os ombros de John Edgar Princer, o novato.
6
***
Toraman era o filho mais velho de Valmonze. Muitas vezes vira o pai nervoso e
zangado. Mas a disposição de ânimo, em que o patriarca agora se encontrava, era bem
superior às irrupções anteriores. O velho mercador segurava com ambas as mãos a
armação, sobre a qual se encontrava o videofone. Na tela surgiu o rosto de um terrano,
que também não parecia muito bem-humorado.
— Shaugnessy! — esbravejou Valmonze. — Exijo explicações imediatas.
— O senhor só pode estar brincando — afirmou o contrabandista. — É o senhor que
tem de explicar o que está acontecendo por aqui. Não compareceu ao lugar combinado
para introduzir-me na Val I. Quando finalmente consegui estabelecer contato pelo rádio, o
senhor me contou uma história maluca, a respeito de uma semente de papoula que não é
semente de papoula. Já não compreendo mais nada. E, além de tudo, o senhor exige
explicações!?
Valmonze reconheceu que desse jeito não conseguiria nada. Shaugnessy sabia
representar muito bem, ou então realmente não sabia o que o patriarca estava dizendo.
— Pouse — disse o chefe de clã. — Depois conversaremos.
— Isso já são falas melhores — disse o homem que aparecia na tela. — Apenas
espero que, quando eu pousar, seu bom humor tenha voltado.
Valmonze resmungou alguma coisa e desligou. Esbarrou em Toraman, que se
encontrava atrás dele. Seu filho retirou-se imediatamente, em atitude respeitosa. Os
saltadores, que se encontravam presentes, fitaram tensos o chefe. Somente Amat-Palong,
que se mantinha num ponto mais afastado, exibiu um sorriso irônico.
Mas, para Valmonze, os acontecimentos chocantes ainda não haviam chegado ao
fim. Os três saltadores, que foram enviados à floresta para trazer Princer, entraram na
sala. Não tiveram necessidade de fornecer explicações. O patriarca logo notou que não
haviam encontrado o terrano.
— Não conseguimos alcançá-los patriarca — disse um deles. — Tinham uma
dianteira muito grande.
— Ainda bem que temos entre nós um sujeito “inteligente” como você — gritou
Valmonze. — Descobrirei os dois terranos, nem que tenha que incendiar toda a floresta.
Por um instante, uma expressão de revolta surgiu nos olhos do mais jovem dos dois
saltadores. Mas a tradição acabou levando a melhor. Era impossível contraditar um
patriarca.
O saltador deu mais uma informação:
— Encontramos alguns nativos, patriarca. Eles nos disseram que os fugitivos estão a
caminho da grande depressão. Se pegarmos um planador, poderemos chegar lá antes
deles.
Um brilho colérico surgiu sob as sobrancelhas hirsutas de Valmonze. Como chefe do
clã queria dar todas as ordens, mas ao mesmo tempo esperava que os membros do clã
desenvolvessem uma atuação independente. A contradição entre essas idéias nem lhe
acudiu à mente. Seu poder era de natureza totalitária, e jamais tal tipo de comando fizera
bem a qualquer criatura pensante.
— O que estão esperando? — berrou o patriarca fora de si. — Razmon pilotará o
planador. Dirijam-se imediatamente à grande depressão.
— Será que o senhor realmente é tão criança? — disse uma voz, vinda dos fundos
da saía.
Valmonze ficou rígido. O silêncio era tamanho que se poderia ouvir o tiquetaquear
de um relógio de pulso. Finalmente os saltadores fitaram o homem que se atrevera a
ofender o patriarca em público.
Depararam-se com o rosto frio de Amat-Palong, o ara. Era um homem grande mas,
ao contrário dos saltadores, era magro. Estava encostado a uma prateleira cheia de pastas.
Quando Valmonze olhou em sua direção, um sorriso ligeiro aflorou-lhe nos lábios.
Sem dúvida alguns dos saltadores sentiram-se alegres com as palavras do médico.
Mas estes esperavam que Valmonze desabasse sobre Amat-Palong com a força de uma
tormenta, sentiram-se decepcionados. O patriarca provou que sabia dominar seus
sentimentos, quando a situação assim exigisse.
— Sua crítica só se justifica se o senhor tiver uma idéia melhor, ara — disse
Valmonze, em tom indiferente. — Estamos curiosos para ouvi-la.
Amat-Palong empurrou-se com o ombro e afastou-se da prateleira. Lançou um olhar
de tédio para o saltador.
— Coloque um planador à minha disposição — pediu a Valmonze. — Eu lhe trarei o
tal do Princer.
Se o saltador já exibiu um sorriso matreiro, foi nesse instante. Se não cumprisse, a
promessa que acabara de fazer, Amat-Palong cairia no descrédito.
— Também pretende ir à grande depressão? — perguntou.
— Não — respondeu Amat-Palong, laconicamente.
Era evidente que preferia não revelar seu destino.
— Está bem; dar-lhe-ei um planador — disse Valmonze. — Mas, de qualquer
maneira, Razmon irá também à depressão.
O ara acenou tranqüilamente com a cabeça e saiu, sem demonstrar a menor pressa.
Com um gesto, Valmonze mandou que os três saltadores, que reiniciariam as buscas ao
lado de Razmon, também se retirassem.
— Shaugnessy acaba de pousar — disse uma voz saída do intercomunicador. —
Quais são suas ordens, patriarca?
— Estou no escritório central — disse Valmonze. — Tragam o terrano para cá.
Dali a menos de quinze minutos, Clifton Shaugnessy entrou na sala. Era um homem
baixo, de ombros largos. O nariz adunco formava um contraste desagradável com o rosto.
O contrabandista usava uma jaqueta curta, enfeitada com bordados. Falava quase sem
movimentar os lábios, o que dava um tom cavernoso à sua voz. Uma arma térmica de
fabricação antiga estava pendurada no cinto.
— Perry Rhodan colocou a Terra sob quarentena — disse a título de cumprimento.
— Por isso não pude chegar na hora marcada. Não trouxe semente de papoula, nem a
mercadoria de sempre. Aplied achou que seria muito perigoso reiniciar os negócios agora.
As naves-controle estão realizando inspeções extremamente rigorosas. Nenhuma nave
cargueira pode decolar sem permissão. Em Terrânia ainda prevalece a proibição de
pousar e decolar. O motivo é a doença que grassou por lá. Segundo os boatos, até mesmo
Rhodan foi atacado. Dizem que se contagiou durante uma experiência. Aliás, essa
experiência originou estranhas suposições, que estão dando o que pensar. Conta-se que
Rhodan experimentou com pleno êxito um novo sistema de propulsão e, na oportunidade,
encontrou uma raça que, segundo se diz, é muito mais poderosa que Árcon, a Terra e os
saltadores reunidos.
— O senhor me traz boatos — disse Valmonze, em tom zangado. — Esperamos
mercadorias e Aplied o manda para cá com boatos, que não têm o menor valor para nós.
Shaugnessy não parecia nervoso. Tinha o aspecto de um homem que não se
preocupa com nada, muito menos com os problemas de um mercador galáctico.
— O senhor conhece um certo Princer, que trabalha para Aplied? — perguntou
Valmonze.
— Princer? — repetiu Shaugnessy, puxando o zíper da jaqueta, como se isso
servisse para reavivar-lhe a memória. — Não. Nunca ouvi esse nome.
— Pois ele apareceu por aqui e diz ser seu representante. Trouxe uma remessa de
sementes de papoula, mas quando as examinamos, verificamos que eram falsas —
informou Valmonze.
Shaugnessy fez um gesto de aprovação.
— Que sujeito formidável — disse numa objetividade que, para Valmonze, só
poderia parecer incompreensível. — Onde está?
— Fugiu. Mas nós o pegaremos. Tem uma idéia de quem pode ser esse homem?
Veio acompanhado por uma mulher.
— Talvez seja uma agente de Rhodan — disse Shaugnessy, que não parecia nem um
pouco nervoso com sua suspeita. — Um belo dia terão que descobrir nossa pista...
Valmonze preferiu não explicar ao contrabandista por que, em hipótese alguma, se
poderia permitir que, naquela altura, Rhodan descobrisse os elementos de ligação do
bando de traficantes. Seria inútil falar em política galáctica a esse bandidozinho.
Shaugnessy transportava ópio, a mando de Aplied, para Valmonze. Aplied levava a
mercadoria a mais seis patriarcas. Além de Shaugnessy, havia mais oito elementos que
faziam a ligação com Aplied, e atendiam a outros clãs dos saltadores. Isso representava
um total de 63 traficantes que, com o intuito de provocar uma modificação fundamental
na situação econômica da Terra, recebiam os entorpecentes.
Até era possível que Shaugnessy nem soubesse que os mercadores se interessavam
pelos tóxicos porque esperavam que, com isso, conseguiriam enfraquecer a posição da
Terra. Sob o ponto de vista comercial, seus lucros com os alcalóides não eram maiores
que os que lhes eram proporcionados por outras mercadorias. Quem fazia o grande
negócio era Vincent Aplied, da Cidade do Cabo.
— Seja quem for esse Princer — disse Valmonze — precisamos encontrá-lo. Não
poderá sair deste planeta. Mais dia menos dia, nós o prenderemos.
— Se realmente for um agente da Segurança Solar, o senhor terá problemas com ele
— ponderou Shaugnessy. — Se for um simples impostor, não podemos deixar de admirar
sua coragem.
Valmonze fez um gesto de recusa.
O único sentimento que o terrano Princer provocava em Valmonze era o ódio, pois o
grande patriarca sentiu-se ludibriado.
E quando se encontrava nesse estado, o patriarca era um homem perigoso. Sua ira
atingiria o jovem de forma implacável.
***
***
O planeta Alaze não possuía lua, e a luz das estrelas era quase totalmente absorvida
pela densa atmosfera. A noite que Princer e sua esposa atravessaram não poderia ser
comparada a uma noite terrana. A escuridão era impenetrável. Parecia que uma camada
de tinta preta cobrira o solo.
Os nativos haviam-se recolhido às cabanas. Princer conversara durante muito tempo
com a esposa. Depois de algumas horas mergulharam num sono agitado.
O terrano não saberia dizer por quanto tempo dormira, sempre atormentado pelos
pesadelos.
Despertou com a sensação de que havia alguém por perto. Preferiu não acordar
Cora. Amarrados como estavam, não tinham meio de defender-se.
O que poderia fazer se algum animal se aproximasse, à procura de uma presa? Por
mais que esforçasse a vista, não conseguiu distinguir nem mesmo as sombras das árvores
mais próximas.
Um galho seco estalou sob o peso de um corpo. Princer estremeceu com o ruído.
Conteve a respiração e aguçou o ouvido. O silêncio voltou a reinar. Das árvores descia o
zumbido dos insetos noturnos.
Lembrou-se da infância. Muitas vezes despertara no meio da noite, acreditando que
as criaturas mais estranhas do seu mundo de fantasia se encontravam no quarto. Enfiava-
se embaixo da coberta e voltava a adormecer, amedrontado. Na manhã seguinte via que
nada de mais acontecera.
A criatura que vagava pela escuridão aproximou-se lentamente. Desesperado, John
Edgar Princer começou a debater-se nas cordas. Mas os nativos eram verdadeiros mestres
na arte de fazer nós. Quanto mais lutava contra as cordas que o prendiam, mais
profundamente estas o apertavam. Cansado, desistiu.
Uma lufada de ar passou pelo seu rosto. No mesmo instante sentiu a lâmina fria de
uma faca encostada ao seu pescoço.
***
***
Uma mão quente e áspera tapou a boca de Princer e evitou que o terrano soltasse um
grito.
— Sem asas ficar quieto — cochichou uma voz familiar ao ouvido do vice-
presidente. — Qualquer ruído, e todos os inimigos virão para cá.
Uma onda de alivio percorreu Princer.
— Schnitz! — balbuciou. — Schnitz, seu patife!
As mãos treinadas no nativo cortaram as cordas. Imediatamente Princer começou a
massagear as juntas, para que o sangue voltasse a circular. Enquanto isso, Schnitz
ocupou-se com Cora, libertando-a tão depressa como fizera com Princer.
— Schnitz observar quando sem asas foi preso — contou o ser-pássaro. — Esperar
noite. Agora aqui.
Princer apertou a mão do nativo, num gesto de gratidão. Schnitz ajudara,
independentemente da influência da fumaça do cigarro. O jovem sabia que Schnitz
arriscara a vida. A tribo inimiga não hesitaria em matá-lo, se conseguisse pôr as mãos
nele.
Os olhos de Princer procuraram romper o negrume da noite. Como poderiam
deslocar-se nessa escuridão compacta? Perguntou a si mesmo como Schnitz conseguira
encontrá-los. Talvez os olhos dos nativos estivessem adaptados à escuridão e possuíssem
um centro adicional de percepção.
— Dar mão para mim — pediu Schnitz, em voz baixa. — Schnitz caminhar na
frente.
Princer empurrou a esposa para a frente, e esta segurou a mão-garra do nativo. O
terrano caminhou no fim. Moveram-se com uma rapidez espantosa. Os dois seres
humanos não tiveram outra alternativa senão confiar exclusivamente em Schnitz. Não
reconheciam nenhum obstáculo. Depois de terem cruzado a área livre, passaram a
caminhar com maior dificuldade.
Naquele instante ouviu-se uma tremenda barulheira na extremidade oposta da aldeia
construída nas árvores. Princer parou, apavorado. Um verdadeiro exército parecia
executar uma música infernal.
Schnitz deu uma risadinha.
— Isso ser Kankantz, Lupatz e Tonitutz — disse. — Fazer grande truque. Tribo
inimiga correr direção errada. Assim sem asas ter tempo para fugir.
As cabanas construídas nas árvores adquiriram vida. Ouviram-se grasnados e vozes
estridentes. A aldeia estava revolta. Schnitz passou a andar mais depressa. Já não
precisavam preocupar-se com o ruído, pois o barulho que havia na aldeia sobrepujava
tudo. Bem ao longe, os amigos de Schnitz ficaram com os pescoços doloridos de tanto
gritar.
Schnitz abriu caminho pela floresta com a segurança de um sonâmbulo. Os uivos
dos habitantes da aldeia propagaram-se em outra direção, e, depois de algum tempo,
tornaram-se praticamente inaudíveis.
— Por favor, Johnny — fungou Cora. — Vamos fazer uma pequena pausa.
— Fazer boa fumaça? — perguntou Schnitz, em tom esperançoso.
Ninguém respondeu. Por algum tempo houve um silêncio total. Finalmente o ser-
pássaro voltou a perguntar, desta vez em tom de desânimo:
— Sem asas fazer boa fumaça para Schnitz?
— Diga a ele, Johnny — pediu Cora. “Ele nos abandonará”, pensou Princer. “Sairá
voando.”
Apesar disso resolveu falar:
— Não podemos fazer fumaça. Tiraram-nos os cigarros.
Na escuridão Princer não pôde ver a reação do nativo. Schnitz manteve-se calado.
Mas não saiu voando. Cora encostou-se ao marido e ele acariciou seu cabelo. No íntimo,
o jovem admirava a conduta exemplar da esposa.
— Vamos andando — disse Schnitz depois de alguns minutos. O terrano percebeu
que o nativo se sentia decepcionado.
Um sentimento de culpa começou a manifestar-se em sua mente. Cora começara a
usar os cigarros, quando ainda não sabia do seu poder sobre os nativos. Mas, depois
disso, passaram a aproveitar-se da fraqueza dos alazes para alcançar seus objetivos.
— Se quiser pode voltar para junto de seus amigos — disse Princer.
— Sem asas ser amigos — disse Schnitz em tom categórico.
Ao amanhecer chegaram à estação de rádio dos saltadores. Era um edifício
quadrado, construído numa das extremidades de uma clareira. Ao lado deste havia um
pequeno campo de pouso, que poderia receber um planador. Mas não se via nenhum
veículo dos saltadores. Tudo parecia quieto e abandonado.
Schnitz parou. Encontravam-se na extremidade oposta da clareira. Cora estava
totalmente exausta.
— Parece que não há ninguém — disse Princer, com a voz abafada.
— Três nativos dentro da estação — disse Schnitz. — Sem armas. Homem sem asas
pode dominá-los.
Princer não tinha tanta certeza. Indeciso, contemplou o edifício. Se por ali houvesse
um transmissor de longo alcance, poderia se comunicar com a Terra ou com uma nave do
Império Solar. Ficou indeciso entre a confiança e o medo. Durante todo o tempo quisera
chegar a este lugar, e agora, que o atingira, não conseguia tomar a resolução de empenhar
todas as energias na execução de seu plano.
Não poderiam ficar sempre contando com a sorte. Não tinha a menor dúvida quanto
a isso. Mais dia menos dia, ele e Cora seriam apanhados pelos saltadores. Se expedisse
uma mensagem, os mercadores poriam as mãos neles, algumas horas depois.
— Vou me aproximar do edifício — disse depois de algum tempo. — Schnitz, eu
gostaria que você ficasse com minha esposa. Se surgir algum perigo, fuja com ela. Não
tome nenhuma consideração por mim.
— Schnitz cuidar de mulher sem asas — prometeu o ser-pássaro.
Cora passou por Schnitz.
— Acho que também tenho que dizer uma palavra — disse. — Irei com você.
Princer fitou-a com uma expressão desolada. Não gostava de contradizer ninguém,
ainda menos a uma bela mulher, que além do mais era sua esposa. Levantou os braços
num gesto de súplica.
— Não adianta explicar — disse Cora apressadamente. — Eu o acompanhei até aqui
e continuarei a acompanhá-lo.
Schnitz soltou a risadinha que lhe era peculiar.
— Acreditar ser inútil falar muito, sem asas — disse.
— Também acredito — disse Princer. — Vamos andando. Obrigado pelo auxílio,
Schnitz.
Por um instante, o ser-pássaro fitou-o em silêncio.
— Schnitz também ir — anunciou. — Talvez poder fazer grande truque.
Ao que parecia o nativo tinha uma autoconfiança e uma fé nos seus truques,
considerando-os verdadeiramente admiráveis. Schnitz demonstrava sempre uma estranha
e profunda alegria. Ao que parecia, tinha uma filosofia de vida que fazia com que
compreendesse e suportasse todas as coisas, com um sorriso matreiro.
Princer sentiu-se ligado a este ser. Era uma ligação que nunca sentira para com seus
amigos terranos.
Confirmou com um gesto e foi caminhando em direção ao edifício. Schnitz e Cora
seguiram-no. Ninguém parecia interessar-se pela presença do trio. A estação não possuía
janelas. Havia apenas uma fresta de luz e uma porta, que estava fechada. Aproximaram-
se. Princer parou.
— Está tudo quieto — disse bem baixo. — Será que não há ninguém por aqui?
Talvez tenham evacuado a estação e levado todos os aparelhos.
— Nós olhar — sugeriu Schnitz.
Princer aproximou-se da porta. Seu coração bateu mais depressa. Era possível que
houvesse apenas uma fina parede de plástico que o separava da morte. Apesar disso, sua
mão não tremeu nem um pouco, quando pegou a maçaneta.
Girou o botão e abriu rapidamente a porta, que girou para dentro. Ouviu-se um
ruído. Não aconteceu nada. O edifício estava dividido em duas salas. O terrano viu
imediatamente uma delas. Não havia ninguém por lá. A luz que penetrava pela fresta
permitia que Princer reconhecesse todos os objetos. A sala estava repleta de instrumentos
de controle e de localização. Provavelmente os aparelhos de rádio se encontravam na sala
contígua.
Princer entrou resolutamente. Cora e Schnitz mantiveram-se silenciosamente atrás
dele.
— Parece que não há ninguém, nem mesmo os nativos — disse o vice-presidente,
em tom de alívio.
Deu um passo para a frente. Naquele instante, um homem saiu da sala contígua. Era
alto e magro. Em sua cabeça não havia um único cabelo. Seu rosto estava marcado por
uma expressão fria.
Sem dizer uma palavra, fitou os intrusos. Princer não conseguiu fazer qualquer
movimento.
O desconhecido tirou lentamente uma arma, que se encontrava sob a jaqueta, e com
um sorriso frio apontou-a para o peito de Princer.
— Um dia, até mesmo o homem mais esperto tem de reconhecer que existe alguém
mais esperto que ele — disse.
Nesse momento, o homem mais esperto era Amat-Palong, o ara.
7
Em todos os tempos, uma arma de fogo representou um argumento que não podia
ser desprezado em qualquer discussão. No momento em que o desconhecido apontou o
radiador térmico em sua direção, John Edgar Princer compreendeu que todos os trunfos
estavam nas mãos do inimigo. O homem armado interpunha-se entre ele e os aparelhos
de rádio que ficavam na sala contígua.
— O senhor fará tudo que eu lhe ordenar — disse Amat-Palong, em tom penetrante.
— Depende exclusivamente do senhor, se eu mato ou não o senhor e sua companheira.
Princer “acordou”.
— O que deseja de mim? — perguntou.
— Perto daqui existe um lugar livre entre as árvores. Preferi pousar meu planador
nesse lugar, para que não fosse visto pelo senhor. Não estou interessado no nativo; pode
dar o fora. Valmonze ficará surpreso ao ver-me aparecer com os fugitivos, mas sua
autoconfiança receberá um pequeno golpe.
Falava no tom monótono de quem lê um relatório. O jovem vice-presidente nunca
encontrara um homem tão insensível e... tão perigoso.
— Temos de fazer o que ele mandar — disse Princer.
O terrano estava totalmente abatido. Temia por Cora. E este medo avolumou-se até
transformar-se numa sensação insuportável.
Amat-Palong fez um sinal com a arma.
— Vamos andando — disse com a voz suave.
Uma sombra passou por Princer, em direção ao ara. Foi tudo tão rápido que o
terrano não teve tempo de esboçar qualquer reação. O ser-pássaro precipitou-se sobre o
inimigo como se fosse uma flecha.
— Schnitz! — gritou Princer.
Amat-Palong saltou para o lado e disparou. Schnitz foi atirado para trás. Cambaleou
e caiu. Imediatamente o ara voltou a dirigir a arma para o terrano, que só estava
interessado pelo nativo.
Aproximou-se do ser-pássaro juntamente com Cora. Schnitz ainda estava vivo. O
anel de penas azuis que cercava seus olhos tremia. Princer passou a mão pela cabeça de
Schnitz.
— Schnitz tentar grande truque — balbuciou o nativo, fazendo um grande esforço.
— Sim — disse Princer com a voz áspera. — Foi um truque formidável, amigo.
Um sorriso parecia esboçar-se em torno do bico largo. Ou seria apenas uma
contorção produzida pela dor? Uma mão em garra segurou a jaqueta de Princer.
— Sem asas... fazer... fumaça? — perguntou a voz débil de Schnitz.
— Sim — respondeu. — Está sentindo o cheiro?
O nativo não teve forças para responder. O terrano viu que começava a farejar.
Finalmente acenou com a cabeça. Satisfeito, deixou-se cair para trás.
— Schnitz! — gritou o terrano em tom de desespero.
O ser-pássaro não respondeu.
Estava morto.
Neste instante houve uma modificação em John Edgar Princer. Já não era o jovem
desajeitado, que provocava risos. Quem se ergueu foi um terrano sério e controlado.
Ficou ereto ao lado do cadáver do nativo. Fitou Amat-Palong.
— O senhor o assassinou — disse com a voz ressentida.
Instintivamente, o médico galáctico recuou um passo. Alguma coisa em Princer
parecia servir-lhe de advertência.
— Não faça tolices — gritou em tom estridente.
O terrano sacudiu a cabeça.
— Não o assassinei — disse Amat-Palong. — Ele me atacou. Além disso, é apenas
um nativo.
De repente deu-se conta de que se defendia perante um prisioneiro. Aborrecido, fez
um sinal com a arma e ordenou:
— Vamos andando, Princer.
Sem dizer uma palavra, o terrano segurou a mão de Cora, e foram andando. Amat-
Palong seguiu-os numa distância segura. Quando saíram do edifício, disse:
— Vá na direção daquela árvore grande que fica junto ao campo de pouso.
Princer obedeceu sem a menor objeção.
— Mais rápido! — ordenou o ara.
O vice-presidente apressou o passo e arrastou Cora.
— Oh, Johnny, o que vamos fazer agora? — perguntou em inglês.
— Nada de conversa — advertiu o inimigo. — Silêncio.
— Fique quieta, querida — disse Princer, em tom suave.
Chegaram e penetraram na floresta. Vez por outra o homem, que caminhava atrás
deles, dava uma ordem sobre a direção que deviam tomar.
Dez minutos depois, Princer viu o espaço livre entre as árvores. O planador ao qual
o desconhecido se referira estava pronto para decolar.
O terrano resolveu agir no momento em que penetrassem na comporta da pequena
nave. Sabia que, durante essa ação, provavelmente seria morto. Mas, perante si mesmo,
perante a Humanidade, perante Schnitz e principalmente perante Cora, tinha a obrigação
de não se conformar com o destino sem resistência.
Porém não chegou a fazer aquilo que pretendia, pois não chegaram ao planador.
Ao atingirem a clareira, Princer ouviu, de repente, um farfalhar de galhos. Seguiu-se
um grito abafado, e o feixe de fogo de um radiador perdeu-se nas folhagens.
Princer virou-se abruptamente. Três nativos haviam saltado de uma árvore! Amat-
Palong estava agora deitado no chão. Kankantz, Lupatz e Tonitutz inclinaram-se sobre
ele. Achavam-se prestes a matar o homem. Sem dúvida já haviam encontrado o corpo de
Schnitz.
— Para trás — gritou Princer. — Não o matem.
Procurou fazer com que os nativos furiosos recuassem. Quando conseguiu acalmá-
los, já era tarde. Bastou um ligeiro olhar ao assassino de Schnitz, para convencê-lo de que
tivera o mesmo destino do nativo. Princer afastou Cora do local.
Kankantz seguiu-os. Seu aspecto deixou o terrano abalado. Seus olhos escuros
exprimiam uma inconfundível tristeza.
— Agora caminhos de sem asas e amigos de Schnitz se separar — disse Kankantz,
em tom amargo. — Sem asas só trazer tristeza.
Seria inútil discutir com o nativo. Devido ao assassinato, o ser-pássaro estava
coberto de razão.
— Está bem, Kankantz — disse Princer. — Vá em paz.
O alaze virou-se e foi para junto de Tonitutz e Lupatz, que o esperavam. Os três
seres-pássaro galgaram os galhos e desapareceram.
Cora lançou um olhar para o cadáver.
— O que será feito dele? — perguntou.
— Os saltadores o encontrarão — disse Princer, embora não tivesse muita certeza.
Colocou o braço em torno do ombro de Cora.
— Precisamos voltar à estação de rádio. Agora não há ninguém por lá. Isso nos
oferece uma oportunidade de expedir uma mensagem.
Quando voltaram a entrar no edifício, o cadáver de Schnitz já havia desaparecido.
— Vieram buscar o amigo — conjeturou Princer. — Bem que eu gostaria de
sepultá-lo. Seria o mínimo que poderíamos fazer por ele.
Dirigiram-se à outra sala. Procuraram localizar um telecomunicador, ou ao menos
aquilo que representasse a versão saltadora de um aparelho desse tipo.
— Temos de contar com a possibilidade de que os saltadores localizem o ponto de
partida de nossa mensagem — disse o terrano, dirigindo-se à esposa. — Dentro de uma
hora estarão aqui. Acho que apesar disso devemos tentar.
Cora acenou com a cabeça, sem dizer uma palavra. Princer puxou uma cadeira e
sentou-se à frente do aparelho. Contemplou as mãos, como se o êxito de sua ação
dependesse das mesmas. Passou os olhos pelos controles. Antes de tocá-los, teria de
compreender suas finalidades. Cada minuto de experiências representaria um tempo
perdido.
— Acho que já estou em condições de manipular o telecomunicador — disse
Princer, dirigindo-se à esposa. — Esta chave serve para ligar a tela. Vejo pela posição.
Passou os dedos lentamente pelas diversas teclas.
— Está bem — disse em tom resoluto. — Vou tentar.
Num gesto rápido girou vários botões.
O aparelho emitiu um leve zumbido. Luzes de controle acenderam-se. O
telecomunicador começou a irradiar energia. E a energia poderia ser localizada.
Tudo dependia de que o vice-presidente da IFC conseguisse entrar em contato com
os terranos, antes que os saltadores aparecessem.
***
O Major James Woodsworth era de opinião que um destino cruel o condenara a ficar
estacionado constantemente longe de todos os centros dos acontecimentos cósmicos.
Sempre que havia alguma coisa, Woodsworth se encontrava longe. Sentia inveja de seus
colegas, pois ele, Woodsworth, tinha de conquistar seus louros em teoria, já que na
prática dificilmente surgia-lhe oportunidade para isso. Era um homem temperamental,
que não gostava de um sossego prolongado.
Naquele momento, o major encontrava-se na sala de comando do cruzador pesado
Cape Canaveral. Woodsworth era um homem de estatura média, cabelos curtos, rosto
inexpressivo e uma cova no queixo.
— O que acha de nossa tarefa? — perguntou, dirigindo-se a Jens Poulson, que
exercia as funções de piloto.
Na verdade, Poulson não fazia quase nada. Limitava-se a verificar vez ou outra os
controles, pois a nave deslocava-se em queda livre, e o dispositivo automático era
perfeitamente capaz de mantê-la numa trajetória constante.
Poulson bocejou. Isso bastava para exprimir sua opinião. Mas Woodsworth era seu
superior, e por isso respondeu:
— Para dizer a verdade, não acho nada, sir.
Woodsworth olhou para o relógio e confirmou com um aceno de cabeça.
— A próxima transição está programada para daqui a duas horas. Depois disso
“rastejaremos” pelo espaço a uma distância de seis anos-luz, à procura de fantasmas.
— O General Deringhouse recebe ordens do chefe, sir — disse Poulson. — Se os
dois acham que é importante realizar vôos de patrulhamento, devem ter seus motivos para
isso.
— A única coisa que o senhor tem de fazer é prestar atenção para localizar eventuais
naves desconhecidas — disse Woodsworth, fazendo uma tentativa de imitar a voz do
General Deringhouse. — Jens, o senhor acha que nossa tarefa tem algo a ver com aquela
raça misteriosa a respeito da qual correm tantos boatos?
— Não sei, sir.
Os outros homens da sala de comando levantaram instintivamente a cabeça, ao ouvir
falar numa raça desconhecida. Mas o major não aludiu mais à mesma. Passou ao seu
assunto predileto.
— Jens — disse — já chegamos a um ponto em que os homens da frota não querem
trabalhar mais sob minhas ordens. Acham que represento uma garantia segura de que
comigo passarão uma espécie de férias prolongadas. E qual homem, que tem sangue nas
veias, gostaria de uma coisa dessas?
Como ninguém respondesse, Woodsworth interpretou o silêncio como sendo uma
manifestação de concordância. Atravessou a sala de comando com passos rápidos e
curtos.
— Sir! — gritou Oliver Durban, chefe da equipe de rádio.
Woodsworth virou-se abruptamente. Durban reclinara-se em sua poltrona e fitava os
instrumentos com uma expressão de incredulidade. Mas, no momento em que o major se
precipitou para seu lado, o operador de rádio pareceu adquirir vida. Moveu vários
controles. A tela do aparelho de telecomunicação iluminou-se. Jens Poulson saiu de seu
lugar e dirigiu-se apressadamente para junto de Durban.
— O que é isso? — perguntou Woodsworth, apontando para a luz vermelha.
Naturalmente sabia o significado, mas gostava que seus tripulantes lhe explicassem
qualquer tipo de variação, para deleitar-se por mais tempo com isso, conforme dizia.
— É uma mensagem vinda pelo telecomunicador, sir — explicou Durban.
— Vem da Terra? — perguntou o major.
— Não, não creio.
Percebeu-se que Woodsworth teve vontade de abraçar seu operador de rádio. Por ser
tal atitude impossível, contentou-se em dar um tapinha no ombro de Durban.
O chefe da equipe de rádio fez a regulagem da tela. Um rosto confuso adquiriu
contornos nítidos. No mesmo instante, o dispositivo sonoro do hiper-rádio emitiu um
estalo. Ouviu-se uma voz.
— ...Avisem imediatamente Perry Rhodan. Atenção. Repito a mensagem. Qualquer
pessoa que me ouça, deverá avisar imediatamente Perry Rhodan...
— Se continuar assim, metade da Galáxia acabará por ouvi-lo — disse Durban, em
tom contrariado.
Woodsworth fez um gesto para que se calasse.
— Aqui fala John Edgar Princer da Intercosmic Fruit Company. Eu e minha esposa
encontramo-nos no planeta Alaze, uma base dos saltadores. O centro do tráfico de
entorpecentes fica neste planeta.
Quem dirige o negócio na Terra é Vincent Aplied, residente na Cidade do Cabo. Se
alguma estação terrana me ouvir, peço à mesma que avise imediatamente Perry Rhodan.
Atenção. Repito...
— Isso está me deixando doido — gritou Woodsworth, em tom entusiasmado. —
Durban, entre imediatamente em contato com Terrânia e faça com que Rhodan
compareça junto ao aparelho.
— O chefe? — perguntou o operador de rádio.
— Será que terei de matá-lo para que o senhor cumpra minhas ordens? — perguntou
Woodsworth num berro nada lógico. — Será que, por não acontecer nada de anormal em
nosso setor, o operador de rádio continua dormindo?
— Sir, peço licença para ponderar que o planeta Alaze fica a mais de mil anos-luz
daqui. Não pertence ao nosso setor.
Enquanto falava manipulara alguns controles, o que o salvou da cólera de
Woodsworth.
— Procure descobrir onde está o tal do Princer. Iremos buscá-lo — anunciou o
major.
Durban, que nada tinha a objetar a essa manifestação de entusiasmo, com exceção
de alguns detalhes relativos à técnica de rádio, teve sua voz abafada pelos gritos de
alegria que ressoaram na sala de comando.
O cruzador pesado Cape Canaveral parecia estremecer sob os brados dos tripulantes.
— A lenda das viagens monótonas de James Woodsworth chegou ao fim —
exclamou o major. — Uma nova época está começando para meus homens e para mim.
Durban, que pretendia ponderar delicadamente que acontecera apenas o recebimento
de uma mensagem de telecomunicação, e que talvez nada mais ocorreria, limitou-se a
balançar a cabeça.
Estabeleceu-se contato com a central de rádio da Frota Solar em Terrânia. O rosto de
um jovem oficial apareceu na tela. Via-se perfeitamente que não estava muito satisfeito
com a perturbação inesperada.
— Aqui fala o Major Woodsworth — disse o comandante, inclinando-se sobre o
ombro de Durban. — Ligue-me imediatamente com o administrador.
— Para isso, o senhor terá de fornecer um motivo muito importante — respondeu o
operador de rádio de Terrânia. — Se estiver sentindo algumas pontadas no apêndice, faça
o favor de dirigir-se...
— Não estou sentindo pontada nenhuma — gritou Woodsworth, em tom indignado.
— Mas se não me ligar imediatamente com o administrador, o senhor não demorará a
sentir alguma coisa...
O oficial de rádio era tão frio quanto melancólico. Não se abalou. Repetiu:
— Faça o favor de indicar um motivo, major.
Woodsworth percebeu que teria de modificar sua tática.
— Encontramos o bando de traficantes de entorpecentes — disse.
Naturalmente isso era um exagero mas, na exaltação que sentia, Woodsworth não
formulava suas idéias com muita precisão.
— Por que não disse logo? — observou o oficial de rádio. — Tentarei
imediatamente. Só não posso prometer que conseguirei entrar em contato com o chefe em
pessoa. O senhor também se daria por satisfeito com Bell... bem, com seu representante,
Mr. Bell, ou com o Marechal Solar Freyt?
Woodsworth perdeu a paciência.
— Eu lhe imploro, meu jovem. Coloque em contato com alguém que tenha poderes
para decidir alguma coisa, pois do contrário acabarei enlouquecendo.
Mais depressa do que esperava, o rosto marcante de Rhodan fitou-o da tela.
— Encontrou os contrabandistas, major? Se não estou enganado, o senhor comanda
o cruzador pesado Cape Canaveral, uma das naves de patrulhamento que devem registrar
a aproximação de naves desconhecidas.
— Sim senhor — confirmou Woodsworth.
Sentiu-se espantado ao notar que Rhodan se lembrara imediatamente da tarefa que
fora confiada ao cruzador pesado por ele comandado. Relatou ao administrador, em
palavras lacônicas, a mensagem que haviam captado.
Rhodan tomou imediatamente uma decisão.
— Seria um absurdo se aparecêssemos com um enorme comando da frota junto ao
planeta Alaze — disse. — Com isso poderíamos provocar um conflito de grandes
proporções com os mercadores galácticos, e, no momento, isto seria uma das coisas que
menos nos convém. Quero que o senhor salve o tal do Princer. Sem dúvida, ele ainda
poderá ajudar-nos.
— Sir! — exclamou Woodsworth em tom entusiasmado. — O senhor pode confiar
na minha tripulação e em mim. Tiraremos Princer de lá!
Um sorriso surgiu no rosto de Rhodan.
— Devagar, major. Uma ação precipitada não seria nada recomendável. Aproxime-
se com a Cape Canaveral o mais que puder do planeta e faça sair do hangar um destróier
com três tripulantes. Só mesmo uma ação-relâmpago dessa nave versátil poderá salvar
Princer. Enquanto isso vamos nos ocupar detidamente com Mr. Vincent Aplied. Se as
informações forem corretas e não nos encontrarmos diante de uma brincadeira de mau
gosto, dentro em breve superaremos algumas preocupações.
— Faremos tudo que estiver ao nosso alcance, sir — prometeu Woodsworth.
Rhodan fez um gesto amável.
— Há mais um detalhe — disse. — Se a tentativa falhar, não inicie outra. Em
hipótese alguma deverá pousar com a Cape Canaveral. Isso faria os saltadores ferverem
de raiva. Não quero nenhuma demonstração de força militar. Limite-se a uma ação com
um destróier.
— Sim senhor — disse Woodsworth. — Obrigado, sir.
Rhodan fitou-o com uma expressão de espanto.
— Obrigado por quê, major?
— Pela tarefa que me confiou, sir. Tenho que apagar minha má fama.
— Nenhum comandante da Frota Solar tem má fama — respondeu Rhodan, em tom
sério.
A imagem do administrador desfez-se.
O oficial de rádio voltou a aparecer e pôs fim à palestra.
— Poulson! — gritou Woodsworth. — Por que está parado por aqui? Acelere
imediatamente até à velocidade da luz. Felton, veja as coordenadas da transição. Daremos
um salto que nos aproxime a dois anos-luz do planeta Alaze.
— Sir, os tripulantes não estão acostumados a que se exija tanto deles — disse
Durban, com um sorriso irônico.
Woodsworth fitou-o por um instante. A cova do seu queixo avivou-se.
— Pois eu lhes ensinarei — gritou.
Trinta minutos depois, a Cape Canaveral entrou em transição. O hiperespaço
engoliu-a, para libertá-la mais adiante. Encontravam-se a menos de dois anos-luz do
planeta Alaze.
9
***
John Edgar Princer efetuou uma última regulagem.
— Não acredito que adiante alguma coisa — disse, dirigindo-se à esposa. — Mas
liguei um raio vetor automático, pelo qual nossos amigos poderão orientar-se, se
aparecerem por aqui.
Um brilho de esperança surgiu nos olhos de Cora.
— Você acredita que seremos salvos?
— Eles tentarão — respondeu, e ainda acrescentou: — Tenho certeza de que
captaram nossa mensagem. A Frota fará tudo para tirar-nos daqui.
Um sorriso aflorou aos lábios de Cora. Notara a modificação que se processara com
seu marido. Ele perdera a insegurança. Seus atos eram seguros e bem planejados. Não
duvidava mais da sua capacidade.
— Bem — disse Princer. — Vamos sair e esperar nossos amigos.
— Ou os saltadores — objetou Cora.
Dali a alguns minutos viram que ela tinha razão. As sombras de vários planadores
apareceram sobre o pequeno campo de pouso.
— São os saltadores — constatou Princer, em tom de desânimo. — Foram mais
rápidos.
As navezinhas começaram a circular sobre o campo de pouso, como se os
tripulantes estivessem indecisos sobre os passos que deveriam seguir. Princer sabia que
qualquer tentativa de fuga seria inútil. Provavelmente já o haviam descoberto.
***
***
Para qualquer homem que sempre esteve acostumado a seguir ordens, quer seja ele
um terrano, quer seja um saltador, torna-se difícil agir por iniciativa própria.
No momento em que o piloto Razmon ouviu pelo alto-falante o choque dos dois
corpos, sua perplexidade atingiu o auge. Sabia que a vida do patriarca estava em perigo.
Uma luta entre Valmonze e Shaugnessy parecia ter irrompido no interior do edifício
principal do espaçoporto. Como o terrano possuísse uma arma e Valmonze estivesse
desarmado, Razmon podia imaginar perfeitamente o resultado da luta.
O patriarca dera ordem para que Princer fosse preso, acontecesse o que acontecesse.
Razmon sentiu-se atormentado por sentimentos conflitantes. Cinco planadores
sobrevoavam o pequeno campo de pouso, situado no meio da mata. Na extremidade da
pista viam-se dois pequenos pontos. Eram Princer e sua esposa.
Razmon chegou à conclusão de que só havia um meio de harmonizar os desejos
conflitantes que lhe enchiam a mente: teria de tomar duas providências ao mesmo tempo.
Tornava-se necessário salvar o patriarca; além disso, o terrano e sua companheira teriam
de ser presos. Isso significava que o grupo de planadores seria obrigado a dividir-se.
Razmon entrou em contato com os outros planadores. Mandou que três pilotos
voltassem imediatamente ao espaçoporto para ajudar Valmonze. Ele e a tripulação de
outro planador pousariam e pegariam Princer, a fim de aplicar-lhe o castigo merecido.
Os dois planadores desceram vertiginosamente para o campo de pouso.
— Razmon — gritou alguém, em tom exaltado. — Uma nave estranha.
O piloto olhou para os instrumentos. A tela só mostrava um pontinho.
Razmon praguejou.
“Agora, que nós nos dividimos” pensou, “os terranos aparecem para salvar o
companheiro.”
Tentou desesperadamente entrar em contato com Valmonze, mas nada conseguiu.
O ponto que aparecia na tela cresceu. Com a voz nervosa ordenou aos tripulantes
dos planadores que preparassem os canhões de radiações. Os campos defensivos foram
ativados.
Certa vez um velho saltador dissera a Razmon:
— Os terranos sempre vêm, quando menos os esperamos. Só fazem aquilo que nos
parece impossível. É este o segredo do seu êxito.
Razmon não sabia se a teoria era correta, mas não demoraria em descobrir.
***
***
Buster Felton era por natureza um homem inofensivo, sem a menor ambição
guerreira. Mas quando viu que as duas naves dos saltadores se preparavam para o
combate, suas feições tornaram-se rudes. Preparou os canhões de proa do destróier.
— É o comitê de recepção, sir — gritou Spahn, dirigindo-se a Woodsworth. — Eles
se dividiram. Tomara que os outros três não estejam à espreita em algum lugar, para
atacar-nos de surpresa.
— Logo descobriremos, desde que o senhor fique de olho nos instrumentos —
lembrou o major. — Atenção, vou pousar.
— Sir! — gritou Felton. Woodsworth imaginava o motivo das preocupações do
homem. No ar poderiam ter condições de enfrentar os saltadores, mas no solo estariam
perdidos.
— Não se preocupe — disse. — Nós lhes prepararemos um belo espetáculo.
James Woodsworth, que era um oficial com pouca experiência de combate e
dependia exclusivamente de seus conhecimentos teóricos, provou ser um ótimo
combatente.
Fez baixar a nave.
Os saltadores farejaram uma imensa vantagem e aproximaram-se rapidamente. Os
campos defensivos do destróier oscilaram sob a carga do bombardeio violento. Os
saltadores pairaram que nem abutres furiosos sobre a pequena nave terrana. Subitamente
Woodsworth puxou o comando. O destróier subiu com uma velocidade incrível.
Felton, que quase fora arrancado do assento, abriu fogo contra as naves dos
saltadores, que subitamente surgiram à sua frente. Gritou ininterruptamente para Spahn.
Berrava palavras insensatas, mas ao que parecia estas não incomodavam nem a Spahn,
nem ao major. Os campos energéticos dos saltadores não estavam em condições de
resistir ao bombardeio cerrado. A nave terrana, aparentemente tão insignificante,
transformara-se numa fortaleza que cuspia fogo.
Bastante danificados, os planadores foram descendo e desapareceram em meio às
copas das árvores.
— Agora só a rapidez poderá salvar-nos — disse Woodsworth e fez a nave descer
sobre o campo de pouso.
Felton abriu a comporta. O major abandonou o lugar à frente dos comandos.
Ao chegar à comporta, viu um homem e uma mulher que atravessavam o campo de
pouso. O homem era alto, magro e desajeitado. A mulher parecia muito cansada, mas
ainda era bastante atraente para deixar nervoso um homem do temperamento de
Woodsworth.
O par desigual chegou à comporta. Naquele instante, o homem disse algumas
palavras de que Woodsworth jamais se esqueceria.
— Meu nome é John Edgar Prince. Esta é minha esposa — sorriu. — Não o
esperávamos tão cedo, major.
Felton soltou um gemido e, juntamente com Woodsworth, puxou os dois fugitivos
para dentro da nave.
— Rápido! — gritou Spahn. — Daqui a pouco receberemos visita.
Woodsworth deixou que Felton cuidasse das duas pessoas, que acabavam de ser
salvas, e correu para o assento do piloto. Não estava disposto a aguardar a chegada de
outras naves dos saltadores. Realizou uma decolagem de emergência. E John Edgar
Prince desequilibrou-se, caiu e quebrou o nariz.
10
***
A velocidade com que o destróier saiu do sistema impediu Valmonze de desferir seu
golpe. Muito contrariado, não teve outra alternativa senão deixar que os fugitivos se
fossem.
A Cape Canaveral voltou a recolher a pequena nave em seu hangar. Depois de duas
transições chegou ao Sistema Solar.
Princer sentia dor no nariz quebrado e, mais do que isso, a perda do jato espacial
deixava-o muito triste. A Error representava um patrimônio valioso, e a idéia de que se
encontrava nas mãos dos saltadores não era nada agradável. Mas, como o vice-presidente
não sentisse vontade de realizar outras viagens espaciais, conformou-se com a perda. O
que importava era que sua vida estava salva.
Depois da segunda transição o Major Woodsworth compareceu ao camarote de
Princer. Disse que lamentava o acidente.
— Como vai o senhor? — perguntou.
— Muito bem — mentiu o jovem.
Sabia que Woodsworth percebera a verdade, mas não se importou com isso.
— Daqui a pouco o senhor se sentirá ainda melhor, se eu lhe disser que lhe
prepararam uma recepção formidável — disse Woodsworth, com um sorriso.
Princer olhou para a esposa, que se acomodara numa confortável poltrona. Ela
levantou os olhos com uma expressão indagadora.
— O senhor poderia fazer o favor de explicar melhor, major?
— Pois não. Nas proximidades do espaçoporto o senhor será recebido por uma
grande multidão, por Perry Rhodan, por várias personalidades e pelo pessoal da televisão.
Princer apalpou cuidadosamente o nariz. Woodsworth não conseguia ocultar o
quanto se divertia com aquilo que esperava o jovem.
— Como poderei escapar disso? — perguntou.
— Não pode — observou Woodsworth, em tom indiferente. — Saberei impedir que
isso aconteça. O senhor é a melhor propaganda para meu cruzador. Os cadetes terão
vontade de ser enviados à nave de James Woodsworth.
— Não compreendo — disse Princer. Um sorriso matreiro surgiu no rosto de
Woodsworth.
— Prepare-se, meu jovem — disse. — Embeleze seu exterior, para conquistar a
massa.
O vice-presidente da IFC olhou para seu corpo. As roupas haviam sofrido bastante
com as aventuras no planeta Alaze. E com Cora, as coisas não eram diferentes.
Woodsworth seguira aqueles olhares com uma expressão compassiva.
— Mandarei trazer roupas para o senhor e sua esposa — prometeu.
Fez meia-volta, mas Princer segurou-o pela manga do casaco.
— Fico-lhe muito grato, major. O senhor arriscou sua vida para salvar-nos.
— Quer saber de uma coisa, Princer? — disse Woodsworth. — Em comparação com
aquilo que o valente casal fez pela Terra, a ação Cape Canaveral representa um
empreendimento bem modesto.
Assim que acabou de proferir estas palavras, saiu do camarote.
— Gostaria de esconder-me num canto — confessou Princer. — Tomara que a
recepção não demore muito.
Esticou o corpo.
— Estou ansioso para tomar um banho e dormir numa cama de verdade.
Nem desconfiava de que um velho conhecido lhe estragaria o prazer...
***
Quando John Edgar Princer e sua esposa saíram da comporta da Cape Canaveral e
desceram pelo elevador, o Hino do Império Solar fez-se ouvir. Os expectadores que se
encontravam na tribuna levantaram-se e descobriram a cabeça.
Princer estremeceu e parou. Os acordes da música cessaram. Alguém pigarreou às
suas costas.
— Vá andando, Princer — cochichou a voz do Major Woodsworth. — Vá
diretamente para a tribuna.
Bell voltara a sentar-se e cutucou Rhodan.
— Sempre imaginei que esse Princer fosse diferente.
Estavam sentados sobre uma plataforma, à frente da tribuna. No momento em que o
jovem, sua esposa e o Major Woodsworth subiram pela escada, Perry Rhodan, Bell e o
Marechal Solar Freyt levantaram-se.
A primeira coisa que viram foi o rosto de Princer. Um esparadrapo muito largo
cobria seu nariz. Acima deste, havia um par de olhos azuis muito claros, que fitaram
Rhodan com uma expressão de infinita tristeza. Princer subiu os últimos degraus,
tropeçou e enrubesceu até as enormes orelhas. Rhodan saiu do lugar e foi ao encontro de
Princer. Falando muito baixo, para que nenhum microfone pudesse transmitir sua voz,
disse:
— Quero agradecer-lhe em caráter não-oficial e dizer-lhe que o senhor é um sujeito
formidável.
Da resposta de Princer concluía-se que ele não estava tão confuso como poderia dar
a perceber:
— Quero retribuir o elogio em caráter não-oficial — cochichou ao administrador.
Apertaram-se as mãos e sorriram um para o outro. A televisão transmitiu a imagem
ampliada. Na cidade de Denver, Archibald Princer quase chegou a entrar no aparelho!
Com um gesto suave, Rhodan colocou o jovem diante dos microfones. Aplausos
estrondosos soaram na tribuna. Princer engoliu em seco, apalpou a ferida e procurou
descobrir uma pose adequada à ocasião.
O discurso do administrador foi breve.
— Cumprimentamos este jovem, e também cumprimentamos sua bela esposa.
Ambos prestaram um serviço relevante à Terra. Ficamos-lhes muito gratos por isso.
Venha. Todo o Império quer ouvi-lo.
Princer lançou um olhar tão apavorado para os microfones que até parecia que
Valmonze se encontrava à sua frente. Rhodan sorriu com uma expressão animadora, e o
jovem deu um passo à frente.
— No planeta Alaze — principiou — encontrei um nativo. Seu nome era Schnitz.
Está morto. Ele merece nosso respeito e nossos agradecimentos. Se não fosse a sua ajuda
e a de seus amigos, não conseguiria enviar a mensagem. Ainda quero mencionar o Major
James Woodsworth, que os senhores vêem aqui a meu lado. Ele e seus subordinados
arriscaram a vida para libertar-nos.
Princer acenou com a cabeça, e um sorriso espalhou-se por seu rosto sonhador.
— Ainda devemos agradecer por tudo isso a esta mulher brava e bela, que se chama
Cora Princer.
Virou-se e voltou a apertar a mão de Perry Rhodan. Bell e Freyt cumprimentaram-
no em silêncio.
Princer segurou o braço da esposa e desceu a escada.
— Os médicos da Frota Solar sempre o rejeitaram — disse Rhodan, em tom de
espanto. — Deveríamos esforçar-nos para arranjar um lugar para ele.
— Não acredito que ele agora aceite a oferta — respondeu Bell, em tom pensativo.
Quanto mais refletia, mais Rhodan acreditava no que Bell acabara de dizer.
***
Com um suspiro, John Edgar Princer deixou-se cair na cama senhorial.
— Finalmente temos paz — disse em tom agradecido.
— Contemplou a esposa, que estava separando as roupas enviadas pela direção do
hotel.
— Você já pensou sobre o lugar de nossa viagem de núpcias? — perguntou.
— O que não quero é ir para o espaço — disse Cora, em tom resoluto.
— Não — disse Princer. — Escolheremos um lugar tranqüilo.
Alguém bateu à porta. Aborrecido, levantou-se do leito conjugal.
— Entre! — gritou.
Era o boy do hotel, que contemplou Princer como se fosse um animal estranho.
— Enviaram algo para os senhores — balbuciou o rapaz.
— Flores — conjeturou Cora. — Devem ser flores.
O rapaz negou com a cabeça. Princer fez um sinal para que fosse buscar o objeto
que lhe fora entregue. Dali a pouco voltaram a bater à porta.
Uma fresta estreita abriu-se e uma criatura cor de barro entrou no quarto, latindo
alucinadamente.
— Isto veio com recomendações de um certo Mr. Denniston, de Denver — disse o
boy, já no corredor.
— Príncipe! — gritou Cora, em tom alegre.
O cachorro saltou para cima dela. Abanava a cauda que nem um louco. Finalmente
afastou-se da dona e começou a farejar. Avistou Princer e parou de abanar o rabo.
— Parece que Príncipe não o conhece mais — disse Cora, com a voz insegura.
Princer lançou um olhar amoroso para a esposa. Achava que já estava na hora de
abraçá-la. Aproximou-se.
Príncipe pôs-se a rosnar furiosamente. Estava entre o casal. Princer parou, indeciso.
— Escute aí, meu velho — disse o jovem, em tom amável. — Esta é minha esposa,
compreende? Você não me poderá impedir de beijá-la.
O animal rosnou furiosamente. Seus olhos verdes chamejaram ameaçadores para
John Edgar.
Depois disso, Princer foi recuando devagar...
***
**
*