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A escola repensada: diálogos entre Bourdieu e Illich

Cícera Romana Cardoso


Maria Stella Galvão Santos

Resumo
O presente artigo reúne um extrato das ideias de dois teóricos cuja
contribuição é inegável para o campo da educação, tendo a escola e
suas práticas como elementos centrais de análise. De um lado, Pierre
Bourdieu apontando a escola como instância de reprodução, por
excelência, de uma divisão entre dominantes e dominados, e, do outro,
Ivan Illich com a tese de desescolarização da sociedade. Ambos
entendem a instituição escolar como espaço de disseminação de
desigualdades, reforçadas por estruturas curriculares colocadas a
serviço da afirmação do status quo, como também da legitimação das
divisões sociais tradicionais. Esses autores repensam a ação educativa
propondo estratégias baseadas na integração, ao espaço escolar, dos
saberes constitutivos dos atores sociais que a integram.

Palavras-chave: Escola; Bourdieu; Illich; Educação.


Abstract
This article gathers an extract of the ideas of two thinkers of undeniable
contribution for Education, with the school and its practices as central
elements of analysis. First, we have Pierre Bordieu pointing to the school
as a reproduction instance par excellence of the division between
dominants and dominated. Second, we have Ivan Illich and his thesis of
society unschooling. Both understand the school institutions as a space
for inequality dissemination, reinforced by curricular structures that
reaffirm the status quo and legitimate traditional social divisions. These
authors rethink the education and propose strategies based upon the
integration at the school of the constitutive knowledge of the social
actors that integrate it.

Keyworlds: School; Bourdieu; Illich; Education.

A década de 1970 foi fértil em críticas à escola e em propostas


para repensar o modelo de educação baseada na institucionalização
do processo de aprendizado. Ivan Illich alinhou-se entre os críticos mais
ferrenhos ao propor algo mais radical: por que não “desescolarizar” a
sociedade? Para ele, a solução da crise não estaria em promover
reformas de métodos ou currículos, nem simplesmente em denunciar o
elitismo, mas em questionar a tese que vincula de modo indissociável
escola e educação, sugerindo espaços não institucionalizados para a
sua realização.
Uma década antes, Pierre Bourdieu já havia proposto uma ruptura
do paradigma funcionalista, oferecendo um novo modo de
interpretação da escola e da educação. Os dados de pesquisa que
apontavam uma forte relação entre desempenho escolar e origem
social transformaram-se nos elementos de sustentação da nova teoria.
A frustração dos jovens das camadas médias e populares diante das
falsas promessas do sistema de ensino converte-se em uma evidência a
reforçar as teses de Bourdieu. Onde se via igualdade de oportunidades,
meritocracia e justiça social, o sociólogo francês passa a ver
reprodução e legitimação das desigualdades sociais. A educação,
nessa perspectiva, perde o papel de instância transformadora das
sociedades e passa a ser vista como uma das principais instituições por
meio da qual se mantêm e se legitimam os privilégios sociais. Logo, uma
inversão total das expectativas tradicionalmente relacionadas à
instituição escolar.
Até meados do século XX, predominava uma visão otimista, de
inspiração funcionalista, que atribuía à escolarização um papel central
na superação do atraso econômico, do autoritarismo e dos privilégios
associados às sociedades tradicionais, e de construção de uma nova
sociedade. Supunha-se que, por meio da escola pública e gratuita,
seria resolvido o problema do acesso amplo e irrestrito à educação. Os
indivíduos competiriam dentro do sistema de ensino, em condições
iguais, e aqueles que se destacassem por seus dons individuais seriam
levados, por uma questão de justiça, a avançar em suas carreiras
escolares e, posteriormente, a ocupar as posições superiores na
hierarquia social. A escola seria, então, uma instituição neutra, que
difundiria um conhecimento racional e que selecionaria seus alunos por

critérios racionais.
Na perspectiva de Illich (1985) a institucionalização de valores
canaliza três dimensões denominadas por ele de poluição física,
polarização social e impotência psíquica, as quais desencadeiam um
processo de degradação global e miséria modernizada. A educação,
estaria vinculada nesse processo de degradação, uma vez que se inclui
em um serviço essencial ao homem moderno ofertado através da
escola, a qual coloca pobres e ricos no mesmo ambiente para serem
escolarizados pautados pelos currículos secretos.
Nessa configuração, as pessoas pobres e ricas dependem
igualmente de escolas que dirigem e formam suas visões de mundo,
definindo inclusive, o que é legítimo e o que não é para os que a
buscam. Contudo, alerta Illich, os pobres ficam em desvantagem
considerando que sempre foram socialmente impotentes. A escola,
conforme sua compreensão, tornou-se a religião universal do
proletariado modernizado, fazendo promessas férteis de salvação aos
pobres numa era tecnológica, sendo ao mesmo tempo, adotada pelo
Estado, como a moldadora de todos os cidadãos através de currículos
hierarquizados, essencialmente, tendo o atrativo ritualístico dos
diplomas.
Em estudo realizado durante o curso de mestrado, (CARDOSO,
2007) bem como nas experiências como educadora, encontramos
muitos homens e mulheres (jovens e adultos tentando aprender a ler e
escrever em escolas públicas) relatando suas tentativas de
aprendizagem em escolas formais quando eram crianças e seus
insucessos constantes. “Oh, quando era menino, eu ia para o colégio,
mas aí não queria saber de estudar, queria só brincar, bagunçar, aí hoje
estou aqui, arrependido (aluno desistente da Educação de Jovens e
Adultos/EJA, 44 anos). A sensação que têm esses indivíduos é a de que
são improdutivos e incapazes, já que não apreendem nem intervêm no
mundo a partir da escrita. Freire (2002), ao falar sobre os não
alfabetizados, enfatiza que eles:

sabem que são seres concretos. Sabem que fazem


coisas. Mas que às vezes não sabem, na altura do
silêncio, em que se tornam ambíguos e duais, é que sua
ação transformadora, como tal, os caracteriza como
criadores e recriadores. Submetidos aos mitos da cultura
dominante, entre eles o de sua “natural inferioridade”,
não percebem, quase sempre, a significação real de sua
ação transformadora sobre o mundo. Dificultados em
reconhecer a razão de ser dos fatos que o envolvem, é
natural que muitos entre eles, não estabeleçam a
relação entre “não ter voz”, não “dizer a palavra” e o
sistema de exploração em que vivem (FREIRE, 2002, pp.
59-60).

As práticas desenvolvidas no cotidiano escolar, efetivadas a partir


de currículos oficiais e o pouco preparo por parte de alguns profissionais
expulsa os estudantes, ao invés de causar-lhes curiosidade, interesse e
sentido no que lhes ensinam. Diante dessa realidade, e que não ocorre
somente no âmbito da EJA, concordamos com Bourdieu e Illich ao
fazerem críticas no que diz respeito a práticas arraigadas na escola, que
partem do arbitrário de um certo capital cultural ou currículo
hierarquizado, na visão do segundo, o qual prepondera e delineia de
maneira contundente os conteúdos ensinados. Ainda conforme Illich, a
institucionalização tornou a própria realidade social, escolarizada,
deixando quaisquer atividades independentes sob suspeita.
Para Carvalho, J. (1997), as práticas escolares inadequadas às
necessidades daqueles a quem ensinamos têm contribuído para os
estudantes desistirem assim como para a reprovação. Contudo, em seu
entender, não devemos atribuir a desistência e a repetência apenas a
um fator, mas a uma combinação destes, envolvendo o que, como e a
quem se ensina. O autor compreende que as instituições escolares têm
sido incapazes de lidar com os diversos segmentos da sociedade que as
buscam e enfatiza que o fracasso escolar não é exatamente do
estudante, mas de todos nós.
Dentre tantos desafios, jovens e adultos que incorporam a
necessidade de aprenderem a ler e escrever se deparam com uma
realidade na escola que, muitas vezes, não está adequada a recebê-
los nem qualificada para isso. O espaço escolar lhes impõe barreiras,
negando-lhes sua função de oferecer e socializar conhecimentos de
forma coerente com suas realidades. Um exemplo disso é a falta de
infraestrutura, muito comum nas escolas, para que proporcione ao
professor condições de trabalho mais favorável ao desenvolvimento de
uma prática pedagógica que dê sentido à aprendizagem dos
estudantes.
Conforme o ponto de vista de Illich, a dupla responsabilidade de
aprendizagem atribuída à escola se desvanece à medida em que se
detecta a inviabilidade desse modelo. Em sua visão, “a escola é
ineficiente no ensino de habilidades, principalmente, porque é curricular
[...]. Um programa que vise fomentar uma habilidade está sempre
vinculado a outra tarefa que é irrelevante” (ILLICH, 1985, p. 44). O autor
exemplifica o problema da inconsistência curricular ao reportar a
prática frequente de se dissociar o ensino da história e da matemática,
ocorrendo dessa maneira a fragmentação dos conteúdos.
A idealização no campo da educação foi confrontada por Pierre
Bourdieu e Jean-Claude Passeron, em Os herdeiros (1964) e A
reprodução (1970). Nessas obras, os autores desenvolveram críticas
virulentas à instituição escolar, apontando-a como elemento chave
para a constituição de condicionantes sociais. Os referidos autores
tiveram o mérito de desfazer a ilusão da autonomia absoluta do sistema
escolar. Para eles, a escola não é uma ilha separada de um contexto
social; ao contrário, o sistema social marca os indivíduos submetidos à
educação de maneira inevitável e irreversível. Ao abordar essa
influência, os autores criticam aqueles que veem a ação pedagógica
como não violenta, mostrando que sob a aparência de neutralidade, a
escola dissimula uma verdadeira violência simbólica.
Illich faz fortes críticas ao sistema escolar ao dizer que este
monopoliza a distribuição de oportunidades quando deveria torná-las
iguais. Para o autor o sistema passa a ilusão de que a maioria do que se
aprende é resultado do ensino, quando na verdade, o maior
aprendizado é justamente fora da escola. Nesse contexto, o certificado
ou diploma constitui-se em uma forma de manipulação mercadológica,
fazendo crer que este é plausível apenas para as mentes escolarizadas
e acrescenta que o homem é totalmente monopolizado pelas
imposições desse sistema. Contrapondo-se a essa realidade, o autor
sugere que os ambientes de aprendizagens deveriam ser escolhidos
espontaneamente por quem os interessasse, e da mesma forma
deveriam ser escolhidos os temas a serem estudados.
Bourdieu e Passeron discutem a “violência simbólica” e explicitam
como a reprodução social acontece nas instituições que se utilizam da
ação pedagógica para inculcar um arbitrário cultural dominante de
maneira natural e legítima. O arbitrário não é percebido pelos agentes
da sociedade e, no âmbito da escola, pelos pais, alunos e até mesmo
pelos professores que, ao desconhecê-lo, terminam por reproduzi-lo de
forma a estabelecer sua legitimação.
Na ação pedagógica os indivíduos ou agentes escolares
ratificam esse arbitrário; porém, nesse processo de legitimação da
cultura dominante, a dissimulação de sua ação se faz fundamental, pois
seu reconhecimento como tal poderia anular seu poder de
reprodução. Para Bourdieu, numa formação social determinada, a
cultura legítima, isto é, a cultura dotada da legitimidade dominante,
não é outra coisa que o arbitrário cultural dominante, na medida em
que ele é desconhecido em sua verdade objetiva de arbitrário cultural
e de arbitrário cultural dominante (BOURDIEU; PASSERON, 1992, p. 36).
Os autores atribuem a função ideológica do sistema escolar à sua
aparente autonomia em relação às estruturas objetivas. Essa autonomia
lhe confere uma certa neutralidade e outorga-lhe a função de inculcar
nos seus agentes o arbitrário cultural de maneira inquestionável, o que o
torna de fundamental importância e eficácia na manutenção e
reprodução social. A dissimulação contida nas práticas escolares não
permite aos agentes a visão da sua dependência e instrumentalização
em relação à estrutura objetiva.

É preciso, pois, construir o sistema das relações entre o


sistema de ensino e os outros subsistemas, sem deixar de
especificar essas relações por referência à estrutura das
relações de classe, a fim de perceber que a autonomia
relativa do sistema de ensino é sempre a contrapartida
de uma dependência mais ou menos completamente
oculta pela especificidade das práticas e da ideologia
permitidas por essa autonomia (BOURDIEU; PASSERON,
1992, pp. 206-7).

Ao referir-se ao processo de reprodução social, os autores


ressaltam que este não ocorre apenas sob a forma de coerção, mas é
instaurado e vivenciado com o consentimento dos agentes nele
envolvidos. Tanto dominados como dominantes envolvem-se de forma
a firmarem um consentimento tácito em torno da dominação exercida
a partir do plano simbólico, mas de forma a contaminar as instâncias de
ação. Trata-se de uma dominação que é permeada por uma não
consciência em que se oculta a violência simbólica teorizada por
Bourdieu. No processo de reprodução, os agentes da ação
pedagógica são incumbidos de transmitirem a cultura dominante,
independentemente do seu consentimento, considerando o processo
de naturalização envolvido em tais práticas.
Nessa perspectiva, Illich salienta o papel da escola como uma
instância que se autolegitima como propagadora dos saberes,
enfatizando que

o trabalho, o lazer, a política, a vida na cidade e mesmo


a vida familiar dependem da escola, por causa dos
hábitos e conhecimentos que pressupõem, em vez de
converterem-se nos meios de comunicação. E ainda,
tantas as escolas como as outras instituições que dela
dependem atingem custos vultosos (ILLICH, 1985, p. 31).

Com efeito, o sentido de legitimação provocado pela


dissimulação das bases sociais do sucesso escolar é duplo, tanto em
relação aos filhos das camadas dominantes quanto aos das
dominadas. Os primeiros, pelo fato de terem recebido sua herança
cultural desde muito cedo e de modo difuso, teriam dificuldade de se
reconhecer como “herdeiros”. Suas disposições e aptidões culturais e
linguísticas pareceriam ser naturais. Os segundos, sendo incapazes de
perceber o caráter arbitrário e impositivo da cultura escolar, tenderiam
a atribuir suas dificuldades escolares a uma inferioridade que lhes seria
inerente tanto em termos intelectuais (falta de inteligência) ou morais
(fraqueza de vontade).
A escola, portanto, limita-se a confirmar e reforçar um habitus de
classe. Habitus significa, para Bourdieu e Passeron, “uma formação
durável e transportável, isto é, [um conjunto de] esquemas comuns de
pensamento, de percepção, de apreciação e de ação” (BOURDIEU;
PASSERON, 1992, p. 211). O habitus é inculcado desde a infância por um
trabalho pedagógico realizado primeiro pela família e, posteriormente,
pela escola, de modo que as normas de conduta que a sociedade
espera de cada indivíduo sejam interiorizadas por ele.
Bourdieu e Passeron (1992) seguem analisando o papel
desempenhado pela escola, ao afirmarem que

Quando a cultura, que a Escola tem objetivamente por


função conservar, inculcar e consagrar, tende a reduzir-
se à relação com a cultura que se encontra investida de
uma função social de distinção, pelo único fato de que
as condições de aquisição são monopolizadas pelas
classes dominantes, o conservantismo pedagógico que,
na sua forma-limite, não destina outro fim ao sistema de
ensino que não seja conservar-se idêntico a si mesmo, é o
melhor aliado do conservantismo social e político, pois,
sob a aparência de defender os interesses de um corpo
particular e de automatizar os fins duma instituição
particular, contribui pelos seus efeitos diretos e indiretos
para a manutenção da “ordem social” (idem, pp. 261-2).

Segundo os autores, a “objetividade” do sistema exige fórmulas


aparentemente neutras de avaliação, tais como as provas e os exames,
por meio dos quais se excluem “os menos dotados”. Aqueles que são
excluídos reconhecem a si mesmos como “incompetentes”. O exame
aparentemente democrático, oculta os laços entre o sistema escolar e
a estrutura das relações de classe. A “violência simbólica” resulta, por
exemplo, no desprezo da cultura popular e na interiorização da
expressão cultural de um grupo mais poderoso econômica ou
politicamente, resulta em perdas identitárias e sujeição a instâncias
conduzidas pelo poder dominante. Bourdieu analisa que o processo
educacional apresenta dois mecanismos destinados à consolidação da
sociedade capitalista: a reprodução da cultura e a reprodução das
estruturas de classes.

[...] o sistema escolar cumpre uma função de legitimação


cada vez mais necessária à perpetuação da “ordem
social” uma vez que a evolução das relações de força
entre as classes tende a excluir de modo mais completo
a imposição de uma hierarquia fundada na afirmação
bruta e brutal das relações de força (BOURDIEU, 2001,
p.311).

A consolidação da violência simbólica permite que a escola não


exerça necessariamente a violência física, mas sim a violência
mediante formas simbólicas, ou seja, pela doutrinação e dominação,
que força as pessoas a pensarem e a agirem de tal forma que não
percebem que legitimam com isso a ordem vigente. Desse modo, o
sistema educacional consegue reproduzir por meio de uma violência
simbólica as relações de dominação, ou seja, a estrutura de classes,
reproduzindo de maneira diferenciada a ideologia da classe
dominante.
Bourdieu (2001) afirma que o habitus consiste em um sistema de
disposições duradouras e transferíveis, estruturadas e predispostas a
funcionar como estruturantes, ou seja, como princípios geradores e
organizadores de práticas e de representações que podem estar
objetivamente adaptadas ao seu fim, sem supor a busca consciente de
fins e o domínio expresso das operações necessárias para alcançá-los
objetivamente ‘reguladas’ e ‘regulares’, sem ser produto da obediência
a regras coletivamente orquestradas sem ser produto da ação
organizada de um diretor de orquestra.
Dessa maneira, segundo a ótica bourdieusiana, o sistema
educacional não reproduz estritamente a configuração de classes,
como fazia o anterior, mas consegue, impondo o habitus da classe
dominante, cooptar membros isolados das classes. Esses membros,
tendo familiarizado os esquemas e rituais da classe dominante,
defendem e impõem de maneira mais radical à classe dominada os
sistemas de pensamentos que a fazem aceitar sua sujeição à
dominação. Assim, na obra: A Economia das trocas simbólicas a
questão do habitus cultivado aponta:

Enquanto força formadora de hábitos, a escola propicia


aos que se encontram direta ou indiretamente
submetidos à sua influência, não tanto esquemas de
pensamento particulares e particularizados, mas uma
disposição geral geradora de esquemas particulares
capazes de serem aplicados em campos diferentes do
pensamento e da ação aos quais pode-se dar o nome
de habitus cultivado (BOURDIEU, 2001, p. 211).

Bourdieu assinala ainda que, além de promover aqueles que


segundo seus padrões e mecanismos de seleção demonstram-se aptos
a participarem dos privilégios e do uso do poder, o sistema educacional
cria, sob uma aparência de neutralidade, os sistemas de pensamento
que legitimam a exclusão dos não privilegiados, convencendo-os a se
submeterem à dominação, sem que percebam o que fazem. De modo
geral a exclusão é imputada à falta de habilidades e capacidades, ao
mau desempenho e outros. Dessa forma, a escola cumpre,
simultaneamente, sua função de reprodução cultural e social, qual seja,
a de reproduzir as relações sociais de produção da sociedade
capitalista.
A Sociologia da Educação de Bourdieu se notabiliza pela
diminuição que promove do peso do fator econômico
comparativamente ao cultural na explicação das desigualdades
escolares. Ressalta que o sistema escolar não reproduz diretamente a
economia familiar. Na análise do sociólogo, a educação reproduz as
relações entre a reprodução social e a cultural, deste modo
contribuindo para o reforço das relações de poder e das relações
simbólicas entre as classes que participam da distribuição do capital
cultural.
No centro dessa concepção teórica da Educação não está nem
o indivíduo isolado, consciente, reflexivo, nem o sujeito determinado,
submetido às condições objetivas em que ele age. Em primeiro lugar,
contrapondo-se ao subjetivismo, o autor nega o caráter autônomo do
sujeito individual. Cada indivíduo passa a ser caracterizado por uma
bagagem socialmente herdada. Essa bagagem inclui, por um lado,
certos componentes objetivos, externos ao indivíduo, e que podem ser
postos a serviço do sucesso escolar. Fazem parte dessa primeira
categoria o capital econômico, tomado em termos dos bens e serviços
a que ele dá acesso, o capital social, definido como o conjunto de
relacionamentos sociais influentes mantidos pela família, além do
capital cultural institucionalizado, formado basicamente por títulos
escolares. A bagagem transmitida pela família inclui, por outro lado,
certos componentes que passam a fazer parte da própria subjetividade
do indivíduo, sobretudo, o capital cultural na sua forma “incorporada”.
A educação escolar, no caso das crianças oriundas de meios
culturalmente favorecidos, seria uma espécie de continuação da
educação familiar, enquanto para as outras crianças significaria algo
estranho, distante, ou mesmo ameaçador. A posse de capital cultural
favoreceria o êxito escolar, em segundo lugar, porque propiciaria um
melhor desempenho nos processos formais e informais de avaliação.
Bourdieu observa que a avaliação escolar vai muito além de uma
simples verificação de aprendizagem, incluindo um verdadeiro
julgamento cultural e até mesmo moral dos alunos. Cobra-se que os
alunos tenham um estilo elegante de falar, de escrever e até mesmo de
se comportar; que sejam intelectualmente curiosos, interessados e
disciplinados; que saibam cumprir adequadamente as regras da “boa
educação”. Essas exigências só podem ser plenamente atendidas por

quem foi previamente (na família) socializado nesses mesmos valores.


Nesse sentido, a escola pública, por atender primordialmente à
população trabalhadora, exerce de forma mais concreta a violência
simbólica. Bourdieu (1998) relata sua experiência com alunos dos liceus
com uma classificação de excluídos do interior do processo
educacional, referindo-se a um “mal-estar dos subúrbios“, resultado do
aflorar das contradições sociais:

[...] no funcionamento de uma instituição escolar que,


sem dúvida, nunca exerceu um papel tão importante e
para uma parcela tão importante da sociedade como
hoje, essa contradição tem a ver com uma ordem social
que tende cada vez mais a dar tudo a todo mundo,
especialmente em matéria de consumo de bens
materiais ou simbólicas, ou mesmo políticas, mas sob as
espécies fictícias da aparência do simulacro ou da
imitação, como se fosse esse o único meio de reservar
para uns a posse real e legítima desses bens exclusivos
(BOURDIEU, 1998, p. 225).

A grande contribuição desse autor para a compreensão


sociológica da escola foi a de ter ressaltado que essa instituição não é
neutra. Formalmente, a escola trataria a todos de modo igual, todos
assistiriam às mesmas aulas, seriam submetidos às mesmas formas de
avaliação, obedeceriam às mesmas regras e, portanto, supostamente,
teriam as mesmas chances, quando na verdade elas são desiguais.
Alguns estariam numa condição mais favorável do que outros para
atenderem às exigências, muitas vezes implícitas, da escola. Ao
sublinhar que a cultura escolar é a cultura dominante dissimulada,
Bourdieu abre caminho para uma análise mais crítica do currículo, dos
métodos pedagógicos e da avaliação escolar. Os conteúdos
curriculares seriam selecionados em função dos conhecimentos, dos
valores, e dos interesses das classes dominantes. O próprio prestígio de
cada disciplina acadêmica estaria associado a sua maior ou menor
afinidade com as habilidades valorizadas pela elite cultural.
A transmissão dos conhecimentos corresponderia, segundo a
teoria bourdieusiana, à pedagogia do implícito. O pleno
aproveitamento da mensagem pedagógica suporia, implicitamente, a
posse de um capital cultural anterior que apenas os alunos provenientes
das classes dominantes detêm. Finalmente, a avaliação dos professores
iria muito além da simples verificação do aprendizado, constituindo, na
prática, um verdadeiro julgamento social, baseado na maior ou menor
adequação do aluno quanto às atitudes e comportamentos valorizados
pelas classes dominantes.
Illich faz coro à crítica à escola como âmbito de reforço do status
quo dominante, apontando-a como aparelho da sociedade civil a
serviço do Estado. Desse modo, a escola prepararia o homem para se
sujeitar à ordem estabelecida, pois é nela que o estudante se submete
aos “ritos de iniciação à ordem os quais o conduzem ao batismo com a
água da obediência dócil” (ILLICH apud MESQUIDA, 2007, p. 558). O
autor, finalmente, compreende que a desescolarização depende de
lideranças gestadas no interior da própria instituição, e da negação de
práticas curriculares como álibi para a perpetuação e legitimação do
capital cultural, como também destacado teoria social bourdieusiana.

Considerações finais
De acordo com Carvalho, R. (1997), a imagem da escola é uma
síntese de construções sociais, históricas e afetivas que estão além da
racionalidade. No entender da autora, isso tem uma força
determinante, “porque não é mero retrato da realidade: é uma
reconstrução baseada no mecanismo de objetivação, através do qual
o indivíduo integra, afetivamente, todas as suas experiências”
(CARVALHO, R., 1997, p. 179). Segundo outros estudos dessa autora, a
sociedade delegou à escola a função social precípua de ensinar a
todos os conteúdos selecionados por alguns como relevantes. E, no
microcosmo da sala de aula, os aprendizes convivem com histórias de
vida, valores e motivações.
Nessa construção e diante da dificuldade que encontram para
aprender, relacionam-se com a escola como o espaço de um saber
que lhes é inacessível, mitificando tanto o conhecimento quanto o
lugar. É preciso, então, construir com eles essa desmitificação e desse
modo torná-la mais real, percebendo a escola constituída por pessoas -
educadores, alunos e funcionários.
Nesse sentido a contribuição de Illich faz referência aos males que
pairam sobre a instituição escolar, inicialmente, pela ideia desta deter a
exclusividade dos saberes. Em seu entender, os fracassos e o caráter
anti-educacional da escola são considerados a prova de que “a
educação é tarefa muito dispendiosa, complexa, sempre misteriosa e
muitas vezes quase impossível” (ILLICH, 1985, p. 31).
Os estudos de Bourdieu (2004) afirmam que os professores são
muito apegados às ordens e que estas envolvem a realidade em névoa
de certezas que os impede de analisá-las ou de refletir mais
detidamente sobre o dia-a-dia escolar, impossibilitando-os, assim, de
colocar no centro das questões o aprendiz e as práticas curriculares. Ao
desenvolver suas práticas desconectadas da vida e dos interesses dos
alunos, os professores alinham-se a um modelo tradicional de escola
que deveria, ao contrário, ser percebida por todos os seus integrantes
como comunidade integrada ao bairro, à cidade, ao mundo.
Corroborando essa visão de Bourdieu, Illich observa que

(...) nas Metrópoles, a escola tem sido a instituição


integradora; nas colônias, ela inculca nas classes
dominantes os valores do poder imperial e confirma nas
massas o sentimento de inferioridade diante da elite
escolarizada (ILLICH apud MESQUIDA, 2007, p. 557).

Por conseguinte, compreendemos que as contradições


disseminadas no espaço escolar também apontam para os esforços
destinados a convertê-lo numa causa democrática a serviço da
educação, reconhecendo seu potencial para o surgimento de novos
olhares frente à realidade social. Consequentemente, há possibilidades
de desconstrução de um cenário paradoxal no qual a escola atua,
ainda, como instância legitimadora de desigualdades.

Referências

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_______________. Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998.

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CARDOSO, Cícera Romana. Tramas do impedimento: os sentidos da


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CARVALHO, J. S. F. de. As noções de erro e fracasso no contexto


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set/dez 2007.

Cícera Romana Cardoso


Pedagoga do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio
Grande do Norte (IFRN), doutoranda do PPGED-UFRN.
E-mail: ciromana2000@gmail.com

Maria Stella Galvão Santos


Jornalista, doutoranda do PPGED-UFRN.
E-mail: stellag@uol.com.br

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