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Elisa Lucinda
presidente da república Edição do Dossiê Ficha Técnica Ofício das Paneleiras
Luiz Inácio Lula da Silva
edição de texto de Goiabeiras
ministro da cultura Ana Claudia Lima e Alves registro do ofício das paneleiras de
Gilberto Gil Moreira Carol Abreu goiabeiras, na cidade de vitória/es
presidente do iphan revisão de texto Processo nº 01450.000672/2002-50
Luiz Fernando de Almeida Claudia Marina Macedo Vasques proponente:
Graça Mendes Associação das Paneleiras de Goiabeiras e
chefe de gabinete
Secretaria Municipal de Cultura – Vitória/ES
Aloysio Guapindaia projeto gráfico
data de abertura do processo:
Victor Burton
procuradora-chefe federal 26/03/2001
Tereza Beatriz da Rosa Miguel diagramação Pedido de Registro aprovado na 37ª reunião
Ana Paula Brandão e Fernanda Garcia do Conselho Consultivo, em 21/11/2002
diretora de patrimônio imaterial
Inscrição no Livro de Registro dos Saberes
Marcia Sant’Anna fotografias
em 20/12/2002
Álvaro Abreu
diretor de patrimônio material Cacá Lima
e fiscalização Christiane Lopes Machado Inventário Nacional de Referências
Dalmo Vieira Filho Humberto Capai Culturais do Ofício das Paneleiras
diretor de museus e centros culturais José Alberto Junior de Goiabeiras
José do Nascimento Junior Márcio Vianna
coordenação geral
Tadeu Veiga
diretora de planejamento Carol Abreu
e administração parceria institucional
Instituto Brasileiro de Educação supervisão
Maria Emília Nascimento Santos
e Cultura – Educarte Ana Claudia Lima e Alves
coordenadora-geral de pesquisa,
agradecimentos especiais pesquisadores
documentação e referência
Alceli Maria Rodrigues Augusto Drumond de Moraes
Lia Motta
Centro de Tecnologia Mineral Carol Abreu
coordenadora-geral de promoção Prefeitura Municipal de Vitória Gerson Dalfior Vidal
do patrimônio cultural Rosemary Loureiro Amorim Luciano Santos Nascimento
Thays Pessotto Zugliani Universidade de Vitória - Univix Sheila Gomes
Suely Pereira dos Santos
superintendente regional equipe técnica da gerência de registro
do espírito santo Ana Lúcia de Abreu Gomes revisão de fichas
Carol Abreu Fabíola Nogueira Gama Cardoso Alexandre Fiorotti
Mariana Mello Brandão Ana Claudia Lima e Alves
gerente de registro
Rafaella Tamm Carol Abreu
Ana Claudia Lima e Alves
Silvia Guimarães Felipe Berocan Veiga
Marina Verne
equipe técnica da 21a sr/iphan
instituto do patrimônio histórico Suely Pereira dos Santos
Agnes Lang Scolforo
e artístico nacional
Caroline Maciel Lauar fotografias
SBN Quadra 2 Bloco F Edifício Central Brasília
Letícia von Krüger Pimentel Márcio Vianna
Cep: 70040-904 Brasília – DF
Lorenza Cosme Gomes
Telefones: (61) 3414.6176, 3414.6186, 3414.6199
Faxes: (61) 3414.6126 e 3414.6198 impressão
http://www.iphan.gov.br webmaster@iphan.gov.br Imprinta
Instrução técnica do processo de Registro Instituto Histórico e Geográfico página 4
do Ofício das Paneleiras de Goiabeiras do Espírito Santo detalhe da queima
Secretaria de Desenvolvimento da panela de barro.
equipe técnica iphan da Cidade - PMV foto: josé alberto
junior.
departamento do agradecimentos especiais
patrimônio imaterial Associação das Paneleiras de Goiabeiras página 8
Supervisão Associação Espírito-santense de Folclore aspecto do
Ana Cláudia Lima e Alves Berenícia Corrêa Nascimento manguezal junto
Carla da Costa Dias ao galpão da
apoio
Célia Maria Corsino associação das
Alessandra D’Aqui Velloso
Celso Perota paneleiras.
Cícero Ramos foto: josé alberto
Edinaldo Araújo Elizabeth Salgado
junior.
Linda Macedo Federação das Bandas de Congo
Marina Verne do Espírito Santo
Mônica Souza Guacira Waldeck
Rodrigo Castanheira Luiz Guilherme Santos Neves
Sheila Lemos Renato Pacheco in memoriam
Secretaria de Cultura de Vitória
21 a superintendência regional Secretaria de Estado da Cultura
Coordenação-geral
Carol Abreu apoio
Centro Nacional de Folclore
apoio e Cultura Popular
Elienne de Oliveira Machado 6ª Superintendência Regional - RJ
Gerson Dalfior Vidal EMA Vídeo
elaboração do texto STV Rede SescSenac de Televisão
Carol Abreu
fotografias
Márcio Vianna
fontes de pesquisa
Iphan:
Arquivo e Biblioteca
Aloísio Magalhães - Brasília
Arquivo Noronha Santos - RJ
Arquivo 21ª SR - Vitória
Centro Nacional de Folclore e
Cultura Popular - Biblioteca
Amadeo Amaral - RJ
Vitória - ES:
Arquivo Público Estadual
Biblioteca Central UFES
Biblioteca Estadual
SUMÁRIO
10 APRESENTAÇÃO SEM TORNO NEM FORNO 59 ANEXO 1 Referências
31 As matérias-primas documentais anexadas ao
INTRODUÇÃO 32 Os instrumentos de trabalho processo de registro
13 Ofício de paneleira 33 Os trabalhadores do ofício
35 As etapas de produção 60 ANEXO 2 Artesãos
HISTÓRIA E PRÉ-HISTÓRIA 37 As panelas cadastrados na Associação das
15 A herança das paneleiras Paneleiras de Goiabeiras
NA PANELA
O TERRITÓRIO DO OFÍCIO 39 Moquecas e torta capixaba 62 ANEXO 3 Processo de registro
19 A ocupação urbana da área de Patrimônio Imaterial
21 Goiabeiras, o lugar 42 O OFÍCIO COMO OBJETO
das paneleiras DE REGISTRO
23 O manguezal
24 O barreiro 46 O PLANO DE SALVAGUARDA
25 O galpão, vitrine do ofício
52 NOTAS
26 PANELEIRAS DE
GOIABEIRAS 54 BIBLIOGRAFIA
apresentação
{ Ofício das Paneleiras de Goiabeiras } 11
página ao lado
“puxando” a panela.
foto: josé alberto
júnior.
abaixo
caldeirão, panela
e frigideira.
foto: márcio vianna.
página ao lado
colocando a
“orelha” na panela.
foto: márcio vianna.
abaixo
eonetes fernandes
ofício de dos santos
paneleira modelando a borda
da panela. foto:
márcio vianna.
página ao lado
amassando o barro.
foto: josé alberto
júnior.
abaixo
cecília de jesus
a herança das santos açoitando
paneleiras a panela. foto:
márcio vianna.
modelando a panela
com a cuia. foto:
josé alberto júnior.
{ Ofício das Paneleiras de Goiabeiras } 17
material de sítio
arqueológico na
área do aeroporto.
foto: christiane
lopes machado.
vista do manguezal
com bairros de
vitória ao fundo.
foto tomada do
alto de goiabeiras
velha. foto:
márcio vianna.
a ocupação
urbana da área
à direita
sinalização do
acesso ao galpão
das paneleiras de
goiabeiras. foto:
márcio vianna.
goiabeiras,
abaixo, à direita
folia de reis de
o lugar
goiabeiras velha. das paneleiras
foto: álvaro abreu.
A ssentadas em Goiabeiras
Velha, nas relações familiares
e de vizinhança, as paneleiras
executam seu ofício nos quintais
e no galpão da associação.
Os espaços/tempos de morar e
trabalhar se confundem: cada
casa é uma oficina, onde o fazer
panelas de barro convive com
os afazeres domésticos cotidianos
e com a criação dos filhos e
netos, nos momentos de festa,
de perdas, de fé. Em casa como
no Galpão, é usual a presença
de crianças participando das
atividades, tanto modelando
a argila em pequenos formatos,
como trabalhando no
alisamento das panelas.
Assim, de brincadeira, vai-se
partilhando a vida e
aprendendo o ofício, atividade
primeira de muitos dos que
moram ali.
{ Ofício das Paneleiras de Goiabeiras } 22
ao lado e abaixo
fotos: márcio vianna.
o manguezal
ronaldo corrêa
extraindo o
barro no vale do
mulembá. foto:
márcio vianna.
página ao lado
vista interna
do galpão da
associação das
paneleiras de
goiabeiras. foto:
márcio vianna.
o galpão,
vitrine do
ofício
grupo de paneleiras
que trabalham
no galpão da
associação. foto:
josé alberto júnior.
H abilidosas, trabalhadeiras,
orgulhosas de seu saber,
vaidosas de seu fazer, essas são as
básica para a continuidade da
sua produção artesanal e
sobrevivência econômica das suas
a categoria na defesa de seus
interesses e das condições objetivas
de permanência do ofício. À época
Paneleiras de Goiabeiras. Mulheres famílias. Progressivamente as foram priorizadas a preservação do
entre 15 e 88 anos de idade, muitas paneleiras têm se apropriado do barreiro e a construção do galpão,
delas pertencem às famílias mais significado cultural, econômico e destinado a abrigar as atividades de
antigas envolvidas com o ofício, político do seu produto para a produção e venda das paneleiras
seja por laços de parentesco, seja cidade, para o estado e para o país, que já não dispunham de espaço
pelo casamento. Seus sobrenomes buscando sua organização e em seus quintais.
são: Lucidato, Corrêa, da Victória, atraindo a atuação de entidades A Associação tem sido o
Alves, Ribeiro, Gomes, Fernandes, públicas e privadas em favor principal canal de negociação
Barbosa e Rodrigues. A estas se de sua atividade. das paneleiras junto ao poder
juntam as de sobrenome Salles, dos Para enfrentar a ameaça público e à iniciativa privada, na
Santos, de Moura, da Silva, implícita no projeto de construção busca de apoio para a fabricação e
Ferreira, Siqueira, Alvarenga, de uma estação de tratamento de promoção de seus produtos.
Nascimento, Dias, Rosa, entre esgoto na área do barreiro, as Por meio de sua Associação,
outras. São filhas, netas, bisnetas, paneleiras criaram uma associação. as paneleiras têm conseguido
mães, avós, sobrinhas, cunhadas ou Em 25 de março de 1987, por conquistar patrocinadores,
vizinhas de paneleiras. iniciativa de liderança política local material promocional e novos
Como grupo de ofício, uma e com o apoio da Prefeitura espaços de apresentação e venda
das principais bandeiras de luta Municipal, cinco paneleiras para seus produtos, como as
das Paneleiras de Goiabeiras fundaram a Associação das feiras de artesanato no Espírito
tem sido o direito de acesso à Paneleiras de Goiabeiras – APG, Santo, em outros estados
fonte de matéria-prima, condição entidade constituída para proteger brasileiros e no exterior.
{ Ofício das Paneleiras de Goiabeiras } 28
abaixo
foto: josé
alberto júnior.
rejane corrêa
loureiro “puxando”
a panela e tirando
as impurezas
com a cuia
e a faca. foto:
márcio vianna.
ao lado
secagem das cascas
de mangue-vermelho.
foto: josé alberto
júnior.
abaixo
bolas de barro no as matérias-
barreiro. foto: josé
alberto júnior.
primas
página ao lado
foto: josé alberto
júnior.
A s matérias-primas
tradicionalmente empregadas
no processo de produção das
panelas estourem na fogueira.
De fato, a composição do barro
condiciona não só o modo de
panelas são provenientes do meio fazer e o aspecto das panelas,
natural. A argila é tirada de como também a propriedade de
barreiro situado no Vale do conservar o calor dos alimentos
Mulembá, na Ilha de Vitória, mesmo depois do seu cozimento.
e a casca de mangue-vermelho8, As moquecas são servidas
da qual é feita a tintura de borbulhando e assim se mantêm
tanino, é coletada diretamente por vários minutos depois de
do manguezal, à beira do qual a retiradas do fogo.
localidade de Goiabeiras Para obter o tanino que tinge
se desenvolveu. Da mesma 13% de areia fina, 13% de areia as panelas, o casqueiro, sempre
forma, dois dos principais média e 8% de areia grossa. na maré baixa, entra no manguezal
instrumentos do ofício – a cuia e É essa composição que condiciona com sua canoa, escolhe uma
a vassourinha de muxinga – são o modo de fazer9 – sem torno, árvore e bate na casca até soltá-la
feitos a partir de espécies vegetais nem forno – e dota o produto de do tronco. Depois de socadas,
encontradas na região. uma série de atributos, como a as cascas do mangue-vermelho
Comparativamente a outras, menor ocorrência de rachaduras são maceradas e postas
a argila do Vale do Mulembá é e a maior rapidez no processo de molho na água por alguns
bastante arenosa. Análises da de secagem, o aquecimento em dias, transformando-se na
granulometria do barro indicaram tempo relativamente mais curto tintura de tanino que é
a seguinte composição média: e a boa resistência ao fogo de aplicada nas panelas após a
40% de argila, 26% de silte, 600°C, o que não deixa que as sua queima.
{ Ofício das Paneleiras de Goiabeiras } 32
ao lado
tirando a panela da
fogueira com a pinça.
foto: josé alberto
júnior.
os abaixo
instrumentos modelando a panela
com a cuia. foto:
de trabalho márcio vianna.
embaixo
muxinga para vassourinha
de açoitar. foto:
márcio vianna.
abaixo
extração do
barro no vale do
mulembá. foto:
márcio vianna.
os
trabalhadores
do ofício
palmira rosa de
siqueira alisando
a panela. foto:
márcio vianna.
abaixo
carlos barbosa dos
santos tirando a
panela da fogueira.
foto: márcio
vianna.
“puxando” a panela.
foto: josé alberto
júnior.
as etapas
de produção
A modelagem manual, o
alisamento, a secagem,
a queima e a aplicação de tintura
são retiradas as impurezas e com o
arco, os excessos de argila.
As alças das tampas e as orelhas
de tanino marcam as etapas de das panelas - pequenas pegas presas
produção das panelas de barro à borda - são feitas com roletes de
de Goiabeiras, explicitadas barro e fixadas com os dedos. As
adiante, no processo do fazer. paneleiras utilizam água para colar
as orelhas e dar acabamento às
Processando o barro panelas. Isto feito, as panelas são
O preparo do barro para a postas novamente para secar até o
fabricação das panelas é feito dia seguinte, quando será
em duas etapas principais: a da trabalhado o fundo. Na modelagem
extração e a da escolha. A primeira em massa com boa plasticidade do fundo, a panela é retirada da
implica, além dos trâmites de para a modelagem. tábua e virada; o fundo chato é
licenciamento para a lavra da arredondado pela remoção dos
argila, o reconhecimento do barro A modelagem excessos com o arco; a superfície
bom a ser extraído, sua retirada O barro escolhido é colocado sobre externa é alisada com a faca, utilizada
com a enxada e a confecção das uma tábua. As paneleiras executam na limpeza e acabamento da peça.
bolas, formato em que o material a puxada do barro com as mãos e
é transportado e vendido às depois com a cuia. A forma é dada O alisamento
paneleiras. A escolha do barro com as mãos, puxando e levantando As panelas e as tampas, depois de
implica uma primeira limpeza, o bojo, definindo a concavidade e secas e antes da queima, são polidas
sua mistura com água e pisoteio, a espessura com a cuia e modelando pelo atrito de seixos rolados (pedra
de modo a transformá-lo a borda com as mãos. Com a faca de rio) interna e externamente.
{ Ofício das Paneleiras de Goiabeiras } 36
“cama” de lenha
para a queima. foto:
josé alberto júnior.
abaixo
açoitando a panela
com a vassourinha
embebida na tintura
de tanino. foto:
josé alberto júnior.
O açoite
Esta é a fase da impermeabilização
e pigmentação da panela
Esta etapa pode ser realizada por A queima com tintura de tanino, tirada
auxiliares especializadas, As panelas secas são dispostas da casca do mangue-vermelho,
geralmente mulheres, a céu aberto, emborcadas e aplicada com a vassourinha
remuneradas ou não, parentas apoiadas umas nas outras, de muxinga sobre as peças em
ou vizinhas. São as alisadoras. embaixo as maiores, em uma brasa, assim que retiradas
“cama” de ripas e tábuas de do fogo. Confere às panelas
A secagem madeira (sobras de construção) de Goiabeiras sua característica
Etapa em que as tampas e as panelas e cobertas com lenha seca. coloração preta e age
já polidas são dispostas para secar A fogueira atinge em torno como selante.
no interior do Galpão, ou de 600ºC, sendo mantida por
eventualmente ao sol, enquanto aproximadamente 30 minutos,
aguardam para serem queimadas. variando conforme o tamanho
{ Ofício das Paneleiras de Goiabeiras } 37
abaixo
panelas tradicionais.
foto: josé alberto júnior.
embaixo
outros formatos.
foto: márcio vianna.
as panelas
A s panelas de barro de
Goiabeiras tornaram-se
conhecidas no país como as panelas
chegou-se a uma média de 30
panelas por paneleira, indo a 600
o número de panelas produzidas
encomenda. As paneleiras gostam
de vender a panela casada, isto é,
duas panelas conjugadas, sendo
de barro do Espírito Santo, por dia no Galpão. a menor dentro da maior – mãe
constituindo um souvenir dos mais O formato frigideira é o mais e filha. Constata-se o emprego da
procurados. O principal produto vendido para os restaurantes, nos técnica em crescente variedade de
é a tradicional frigideira circular tamanhos para duas e quatro panelas com outras formas –
com tampa de alça, onde são pessoas, com diâmetros entre 22 e miniaturas, ovais, com elementos
preparadas e servidas a moqueca e 28 cm respectivamente. A panela decorativos – além de outros
a torta capixaba, pratos típicos da mais alta é o caldeirão, utilizado objetos utilitários e ornamentais
culinária regional. Todas são feitas para sopa ou feijão. A de altura como jarros, fruteiras, formas
com o mesmo material e a mesma média é usada para o pirão, o arroz de pizza, cinzeiros e cofres.
na panela
{ Ofício das Paneleiras de Goiabeiras } 39
árvore de urucum.
foto: tadeu veiga.
página ao lado
moqueca, arroz e pirão.
foto: humberto capai /
www.usinadeimagem.com.br
moquecas e
torta capixaba
frigideira com
tampa. foto: josé
alberto júnior.
segurar a panela pelas bordas, côa o caldo e leva-se ao fogo para tradicionalmente usado na receita
levantá-la do fogo e dar uma engrossar, com farinha de era o da palmeira jussara, planta em
mexidinha, para soltar do fundo. mandioca, mexendo sempre que extinção, nativa da Mata Atlântica,
Esse modo de fazer aplica-se é para não embolar. cujo corte está proibido pelos
a qualquer moqueca de frutos do A torta capixaba ou torta da órgãos de proteção ambiental. Vem
mar – mexilhão (que para os Semana Santa é prato de forno, sendo gradativamente substituído
capixabas é sururu), carne de siri, feito a partir de várias moquecas pelo das espécies cultivadas açaí,
camarão, lagosta, ostra e por aí vai. reunidas ou do refogado de mariscos coco, pupunha e pelo palmito
Sem esquecer a moqueca de banana variados, geralmente sururu, indaiá, também nativo e de corte
da terra – que no Espírito Santo é camarão, polvo, lula, siri, controlado. Nessa época do ano
um produto de altíssima qualidade, caranguejo, mais peixe fresco e é trazido em enorme quantidade
sempre muito doce. É invenção das bacalhau cozidos e desfiados, para a cidade, transformando as
últimas décadas, que funciona palmito e azeitonas. Essa torta não áreas livres em grandes feiras do
muito bem como acompanhamento tem massa, é puro recheio. Na produto. Em virtude do apelo
das outras moquecas. verdade, é uma grande fritada: os turístico, a torta capixaba tem sido
Para o capixaba, moqueca de ovos batidos são jogados por cima oferecida em cardápio diário de
peixe tem que ser acompanhada da mistura de moquecas, enfeitados restaurantes de todos os tipos
por pirão de farinha de mandioca. com rodelas de cebola e azeitonas e faixas de preço.
Prefere-se fazer pirão de cabeça de no meio. E assim vai ao forno, para
peixe com todos os temperos da assar. Receita apropriada pela
moqueca, antes mencionados, cozinha doméstica, é preparada
porém um pouco reforçados, especialmente na Semana Santa,
porque o pirão leva água. A cabeça quando é servida em reuniões de
cozinha até desmanchar. Depois se família e da vizinhança. O palmito
o ofício
como objeto
de registro
{ Ofício das Paneleiras de Goiabeiras } 43
panelas à venda.
foto: márcio
vianna.
página ao lado
raspando e
arredondando o
fundo da panela
com a faca. foto:
márcio vianna.
ateando fogo
à lenha sobre
a “cama”.
foto: márcio
vianna.
página ao lado
panelas esperando
a queima. foto:
josé alberto júnior.
“cama” de panelas
a ser coberta
com lenha para
a queima. foto:
márcio vianna.
panelas à venda
no galpão da
associação. foto:
márcio vianna.
carlos alberto da
vitória trabalhando
no galpão. foto:
josé alberto júnior.
preços em ™ºº¡.
foto: márcio
vianna.
do diagnóstico das condições atuais Ainda com relação à jazida de Como estamos diante de um
de produção. Nessa mesma linha, barro no Vale do Mulembá, está em processo social dinâmico, o saber e
o Centro Nacional de Folclore processo uma parceria com o o fazer das paneleiras de Goiabeiras
e Cultura Popular – CNFCP, Centro de Tecnologia Mineral – necessariamente continuará a sofrer
do Iphan, que desenvolve um Cetem, órgão direcionado ao re-interpretações e re-significações
trabalho permanente pela desenvolvimento, adaptação e ao longo de sua permanência.
valorização dos artesãos e de seus difusão de tecnologias minero- A política de preservação dos
produtos, vem contemplando metalúrgicas, de materiais e de bens culturais de natureza imaterial
oportunidades de promoção meio-ambiente, ligado ao vai além, portanto, do Registro
das paneleiras e de comercialização Ministério da Ciência e dos bens e do seu reconhecimento
das panelas de barro. Tecnologia. Por meio dessa como Patrimônio Cultural
Em favor da proteção das fontes parceria, o Iphan pretende Brasileiro. Trata, igualmente,
de matérias-primas, foi efetivado aprofundar e difundir junto às do compromisso do poder público
pelo Iphan, a partir de 2004, paneleiras, aos trabalhadores da em apoiar a produção e a
o apoio à obtenção das licenças atividade e aos demais interessados, continuidade dos bens registrados;
para extração da argila junto ao o conhecimento sobre a matéria- o que está sendo feito por meio
órgão ambiental estadual. Nesse prima e suas condições de da construção e implementação
mesmo sentido, em 2005, exploração e estocagem, na de Planos de Salvaguarda,
a Secretaria Municipal de Meio perspectiva da continuidade de seu estabelecidos de forma conjunta
Ambiente implementou programa fornecimento, ou mesmo, da e articulada com os produtores
de educação ambiental para a identificação de material desses bens e demais parceiros
preservação da margem do alternativo com características empenhados na preservação
manguezal, área onde é depositada similares, de maneira a assegurar a cultural e na valorização social
a lenha e feita a queima das panelas. salvaguarda do ofício. de todos os envolvidos.
{ Ofício das Paneleiras de Goiabeiras } 52
notas
panelas e tampas
secando ao sol,
antes da queima.
foto: márcio
vianna.
Espírito Santo, a companhia doria, Helio. Panela de barro. Associação das Paneleiras de
Espírito Santense de A Gazeta. Vitória, 15 fev. 2002. Goiabeiras, Vitória,
Saneamento – Cesan e o Cad. Dois, p. 5. ufes/Centro de Ciências
Movimento Comunitário do _______. E do barro se fez a panela... Jurídicas e Econômicas.
Bairro Joana D’Arc. A Tribuna. Vitória, 11 abr. 1996 Departamento de
chaves, Guta. Sabores. A Gula, espírito Santo: mais bonito Comunicação Social, 2000.
n° 80, jun. 1999. do que você imagina. 6 p. Monografia.
cristina, Gloria. 0 consciente Vitória, encatur, [s.d.] governo do estado do
ofício de quem mantém viva a (Cozinha capixaba, 1). espírito santo. Decreto
arte regional. A Tribuna. estatuto da associação das n° 3690-E, de 25 de janeiro
Vitória, 21 set. 1980. paneleiras de goiabeiras. de 1988. Declara de utilidade
_______. Panela de barro: Cartório de Registro Civil, pública para fins de
reminiscência de um passado Pessoas Físicas e Jurídicas. desapropriação área de terra
que a indústria ainda não Comarca da Capital – Vitória – destinada à implantação de
apagou. A Tribuna. Vitória, es, 07 de julho de 1987. Estação de Tratamento
28 ago. 1983. feira Nacional do Artesanato de de Esgoto Sanitário.
daher, Marlusse Pestana. Barro: febarro. Vitória, Diário Oficial do Estado do
Paneleiras. A Gazeta. Vitória, seic. Secretaria de Estado da Espírito Santo, Vitória,
25 jun. 2001. 1. cad.,p. 5. Indústria e do Comercio, 1985. 26 jan. 1988. p.3. Cópia.
decreto nº 3.551 de 4 de agosto festa com forró e 2 mil panelas governo ignora prefeitura e
de 2000 Art. 1° ao Art. 9° – de barro. A Tribuna. Vitória, manda iniciar obras do
Institui o Registro de Bens 8 ago. 2002. Cidades, p. 10. Prodesan em Vitória.
Culturais de Natureza Imaterial frank Aguiar na festa das A Tribuna. Vitória, 3 out.
que constituem patrimônio paneleiras. A Tribuna. Vitória, 2001. Cidades, p. 8.
cultural brasileiro. Cria o 7 ago. 2002. Cidades, p. 7. joana d’Arc ganha estação de
Programa Nacional do frias, Lena. Paneleiras, a arte esgoto. A Gazeta. Vitória,
Patrimônio Imaterial e dá que nasce da lama. Jornal do Brasil. 6 mar. 1994.
outras providências. Rio de Janeiro, 3 dez. 1976. lambert, Letícia, baitella,
dias, Carla Costa. A tradição frizzera, Rose. Panela de barro Luciano, gomes, Sheila
nossa é essa, é fazer panela preta: vira patrimônio histórico: Machado. Comunicação comunitária:
produção material, identidade A Tribuna. Vitória, 10 jan. 2002. análise da Associação das Paneleiras
e transformações sociais entre as galveas, Kleber. Panelas de Goiabeiras. Vitória, ufes/
artesãs de Goiabeiras, Vitória do capixabas. A Tribuna. Vitória, Centro de Ciências Jurídicas
Espírito Santo. Rio de Janeiro, 19 jul. 2000. e Econômicas. Departamento
1999. 223 p., Dissertação gomes, Sheila Machado. de Comunicação Social, 2000.
de Mestrado. Análise individual da 8p. Monografia.
{ Ofício das Paneleiras de Goiabeiras } 57
levi-strauss, Claude. A Oleira moradores saem em defesa panela de barro: uma tradição
ciumenta. Lisboa: Edições 70, das paneleiras. A Tribuna. a ser mantida. Vitória,
1987. (Coleção: Perspectiva Vitória, 13 mar. 2001. ufes/ibama.
do Homem – As Culturas Cad. Cidades. panela de barro, uma tradição a
das Sociedades). neves, Guilherme dos Santos & ser mantida: estratégias para
malta, Luiz Alberto. Artesanato pacheco, Renato José da coleta sustentável da casca do
das paneleiras vai estar Costa. Índice do folclore capixaba. mangue vermelho. Vitória,
em exposição. A Tribuna. [s.1.], [s.ed.], 1994. ufes/ibama, 2000.
Vitória, 29 jul. 1993. _______. Dos comes e bebes do Espírito panelas com rock na noite de
maranca, Silvia. (1977) Santo a culinária capixaba no Hotel Goiabeiras. A Tribuna. Vitória,
Considerações gerais sobre da Ilha do Boi. Rio de Janeiro, 30 jun. 1998. Cad. Cidades.
a distribuição da indústria senac, c. 1997. panelas de barro: iv séculos
lítica e cerâmica do sítio neves, Luis Guilherme Santos. de tradição. Vitória,
da Aldeia da Queimada Folclore brasileiro: Espírito Santo. [s.1], Associação das Paneleiras de
Nova, Estado do Piauí. mec; funarte, 1978. Goiabeiras; Minc; Fundação
Revista do Museu Paulista, v. xxiv. _______. Folclore capixaba. [s.n.t.]. Cultural Palmares.
São Paulo, p. 119-211. neves, Luis Guilherme Santos panelas de barro são atração em
mauro, Max. Salvamos o & pacheco, Renato. Brasília. A Gazeta. Vitória,
Mulembá. A Gazeta. Torta Capixaba. Vitória: Eldorado 2 jul. 1992. Cad. 1, p. 16.
Vitória, 17 mar. 2001. Comunicacties, 2002. panelas de Goiabeiras. Rio de
Cad. Opinião. P. 4. ordem dos advogados do Janeiro, Minc/Funarte, 1998.
meggers, Betty J. & maranca, brasil, es. [Carta] 26 fev. paneleiras: a difícil arte
Silvia (1980). Uma 1994. Vitória [para] do barro capixaba. Vitória,
Reconstituição Experimental Associação das Paneleiras de dec, [s.d.]. Painel de
de Organização Social, Goiabeiras, Vitória. 2p. Promoção Cultural.
Baseada na Distribuição de Resposta à solicitação das paneleiras: está morrendo
Tipos de Cerâmica num Sitio Paneleiras feita a oab para o maior artesanato capixaba.
Habitação da Tradição Tupi participar e opinar sobre A Gazeta. Vitória, 12 out., 1980.
Guarani. Pesquisas. Série a assinatura do Termo de paneleiras de Goiabeiras:
Antropologia, n. 31. São Acordo com a Cesan. estudos ambientais, origem da
Leopoldo, p. 186-227. pacheco, Renato José. Cerâmica argila, prospecção técnica,
mendes filho, Alvarito. popular em Vitória. Folclore. pesquisa de campo,
Um símbolo da cultura popular: Vitória, set-out 1953. comercialização e importância
a panela de barro é suporte para panela de barro: o prato típico sócio-cultural. Vitória, apr –
o preparo da moqueca. A Gazeta. capixaba. Associação das Assessoria, Projetos e
Vitória, 31 jul. 1997. Cad. Dois. Paneleiras de Goiabeiras. [s.d.]. Representações Ltda., [1993].
{ Ofício das Paneleiras de Goiabeiras } 58
Monografias Folhetos
abreu, Manaira Frota de. Isto acarte— Associação Capixaba de
não é uma panela. Vitória, Artesãos. sebrae, [s.d.].
referências abr 2001. Monografia panela de Barro: o prato típico
documentais de conclusão de curso, capixaba. Associação das
anexadas apresentada ao Departamento Paneleiras de Goiabeiras. [s.d.].
de Comunicação da panela de barro: uma tradição a
ao processo Universidade Federal do ser mantida. Vitória,
de registro Espírito Santo do Curso de ufes/ibama, [s.d.].
Comunicação Social. panelas de Barro, capixaba há
dias, Carla Costa. A tradição séculos. Associação das
nossa é essa, é fazer panela Paneleiras de Goiabeiras. [s.d].
preta: Produção material, panelas de Barro: iv séculos de
identidade e transformações tradição. Associação das
sociais entre as artesãs Paneleiras de Goiabeiras. [s.d.].
de Goiabeiras – Vitória do panelas de Barro: iv séculos de
Espírito Santo, Vitória tradição. Vitória, Associação das
do Espírito Santo. Rio de Paneleiras de Goiabeiras;
Janeiro, 1999. 223 p., MinC; Fundação Cultural
Dissertação de Mestrado. Palmares, [s.d].
paneleiras de Goiabeiras:
Relatório Técnico “Panela de barro, raiz da
panela de barro, uma tradição a cultura capixaba”.
ser mantida: estratégias para
coleta sustentável da casca do
mangue vermelho. Vitória,
ufes/ibama, 2000.
Artesãos
cadastrados
na Associação
das paneleiras
de goiabeiras –
2006
71 Luci Barbosa Salles* 92 Marinete Corrêa Loureiro* 115 Valdinéia da Victória Lucidato
72 Lúcia Nascimento Corrêa* 93 Marlene Corrêa Alves 116 Valéria Teodoro Barbosa
73 Luciete Lucidato da Vitória* 94 Marly Barbosa* 117 Waldemar Assiole da Silva
74 Lucila Nascimento Corrêa 95 Melquíades Alves Corrêa da 118 Wanessa Alves Lucidato
75 Lucilina Lucidato de Carvalho* Vitória Rodrigues*
76 Lúcio Alves Rodrigues 96 Nilceia Alvarenga Ambrózio* * Todos os nomes assinalados
77 Magnólia da Penha 97 Palmira Rosa de Siqueira são de ceramistas (paneleiras)
78 Márcia Ferreira de Jesus 98 Pedro Assioli Pereira entrevistados pelo Inventário
79 Marcos Roberto Florentino 99 Poliana Paula da Silva de Referências Culturais do
de Meneses 100 Priscila Barbosa Salles* Ofício das Paneleiras, em 2001.
80 Margarida José de Souza 101 Rejane Corrêa Loureiro* Além desses, foram entrevistados
81 Margarida Lucidato Ribeiro* 102 Rogério Gomes os tiradores de barro Jose Carlos
82 Maria Conceição Gomes 103 Ronildo Alves Corrêa* Ambrosio (também ceramista
Barbosa* 104 Rosemary Loureiro Amorim* paneleiro) e Genivaldo Alves
83 Maria da Glória Ferreira 105 Samarone Ribeiro* Correa; as alisadoras Lidiane
84 Maria da Penha da Silva Pereira 106 Sandra Ribeiro Silva Santos, Dulcineia Jesus da
85 Maria da Penha Santana Rosa 107 Sheila Dias Corrêa* Silva, Priscila Barbosa Sales e
86 Maria Dalva Carlos Salles 108 Silvana Rosa* Simone Theodoro; o comerciante
87 Maria de Jesus de Moura 109 Sônia dos Santos Conceição* e ceramista ocasional Arnaldo
88 Maria do Nascimento Jesus 110 Sônia Ribeiro Gomes Ribeiro Filho; o escolhedor
de Moura 111 Tânia Maria Lucidato Medina de barro Douglas Correa Campos;
89 Maria Honório de Meneses 112 Valda da Victória Lucidato* o casqueiro Eraldo Correa
90 Maria Romeu 113 Valdelicia Salles de Souza* Fernandes e o tirador de panela
91 Maria Serino dos Santos* 114 Valdete Maria Mahen* Wagner Gomes Ricardo.
{ Ofício das Paneleiras de Goiabeiras } 62
Conselho Consultivo
do Patrimônio
processo de Cultural / IPHAN
registro Processo
de patrimônio 01450.000672/2002-50
imaterial
“ofício das
paneleiras de
goiabeiras”
da Comissão Nacional do Folclore oriundas da Unesco, tais como a Unesco e os domínios de ação prioritários, em
em 1947, de onde se originaria, nos Convenção sobre Salvaguarda do que teve particular preeminência a
anos 1960, o Centro Nacional de Patrimônio Mundial, Cultural e discussão da experiência brasileira a
Folclore e Cultura Popular, hoje na Natural, de 1972; a Recomendação respeito (cf. Matsuura, 2002).
Funarte; a própria Constituição sobre a Salvaguarda da Cultura Diversos desafios se apresentaram
Federal de 1988 (que trata da Tradicional e Popular, de 1989; no processo de institucionalização da
matéria em seus artigos 215 e 216); a Proclamação das 19 Obras-Primas matéria. Vários deles foram de
o Seminário promovido pelo do Patrimônio Oral e Imaterial natureza conceitual. O primeiro se
Instituto do Patrimônio Artístico e da Humanidade, 2001; e a expressava na própria hesitação
Cultural da Bahia em 1989 sobre Declaração Universal sobre a terminológica envolvida: patrimônio
um registro especial de patrimônio; o Diversidade Cultural, de 2001. intangível, tradicional, popular,
Seminário Internacional sobre o Também a Carta de Veneza, de oral, imaterial etc. Tratava-se
Patrimônio Imaterial realizado por 1964, pode ser inserida nesse propriamente da dificuldade de uma
convocação do Iphan em 1997, e – contexto internacional favorecedor definição mais precisa para as
finalmente – a constituição de uma de uma maior atenção formal fronteiras e características distintivas
Comissão no âmbito do Iphan para aos componentes vivos, do novo instituto, mesmo quando se
apresentar proposta de processuais, da identidade e do tinha uma quase absoluta
regulamentação da matéria, em patrimônio culturais. concordância quanto à necessidade
1998, acompanhada da criação de Não se pode deixar de evocar que de incluir no conceito de patrimônio
um Grupo de Trabalho de apoio as duas séries se encontraram, algo mais além do tradicional
técnico ao trabalho de inclusive, ritualmente, no Rio de monumento de pedra e cal.
regulamentação (o GTPI/ Iphan). Janeiro, em janeiro deste ano, com a O segundo embaraço se
Na série internacional, trata-se realização da Reunião Internacional sobre o apresentava quanto à forma de
de evocar, sobretudo, as iniciativas patrimônio cultural imaterial: o papel da salvaguarda a instituir no caso de
{ Ofício das Paneleiras de Goiabeiras } 64
processos sócio-culturais vivos, jurídico e administrativo adotado certamente por boas razões, a
ativos, dinamicamente distintos pelo Estado brasileiro para a expressão imaterial e cometer à
dos monumentos nacionais. regulação da matéria. Decidiu-se, experiência mesma de sua aplicação
O terceiro embaraço era em primeiro lugar, adotar uma ao fluxo da vida social a melhor e
constituído pela definição da linha de salvaguarda de cunho paulatina definição das fronteiras
autoridade legítima para a diverso do que se aplica ao conceituais. Isso não se fez sem
proposição do processo de registro. patrimônio material, enfatizando-se considerável esforço de aproximação
Discutiu-se amplamente a o registro (no lugar do tradicional de definições sistemáticas, refletido,
conveniência de acolher propostas tombamento), com concomitantes sobretudo, na categorização de
provenientes de pessoas físicas, tanto dimensões de inventário, documentação, quatro Livros para esses registros:
quanto de pessoas jurídicas. apoio financeiro, difusão do conhecimento e Saberes, Celebrações, Formas de
O quarto embaraço se proteção à propriedade intelectual Expressão e Lugares. Como o
configurava no tocante às formas (MinC, 2000:13). Decreto instituinte prevê, porém, a
de articulação de uma eventual Em segundo lugar, decidiu-se possibilidade de abertura de outros
salvaguarda de práticas sociais ou reservar a iniciativa de apresentação livros, percebe-se o quanto a matéria
monumentos vivos com a lógica do de propostas às pessoas jurídicas dependerá do contínuo engenho e
mercado capitalista hegemônico (governamentais ou civis), no arte dos técnicos do Iphan e dos
nas sociedades modernas, intuito de sublinhar a dimensão integrantes do Conselho Consultivo
particularmente sob a forma de imediatamente coletiva dos ao tomarem suas decisões.
direitos de propriedade intelectual interesses sociais investidos nas O terceiro embaraço também
dotados de valor de troca. práticas a registrar. teve sua definição – declaradamente
Dos quatro, apenas o segundo e No tocante ao primeiro – adiada para o período e as
o terceiro puderam ser até agora embaraço, decidiu-se privilegiar na condições de atualização do instituto
definidos plenamente no formato legislação, sobre todas as demais, na vida real, dadas as dificuldades
{ Ofício das Paneleiras de Goiabeiras } 65
existentes nas proximidades. colonos e escravos que se fixaram na enraizamento nas práticas das
A produção das panelas de localidade, recentemente assumida populações locais (é interessante
Goiabeiras é parte de uma realidade como um ofício e meio de vida por citar, entre tantos outros sinais, a
eco-sócio-cultural construída famílias de Goiabeiras e finalmente referência de Saint-Hilaire, em
historicamente pelos sucessivos reconhecida pela população capixaba 1815), dependência e interação com
grupos sociais que vêm ocupando como traço da identidade de sua os ecossistemas locais, forma de
aquela localidade, em suas relações cultura, a produção das panelas de reprodução não-letrada ou não-
de troca com o meio natural e com a barro guarda suas características erudita, reconhecimento coletivo
sociedade envolvente. A panela de originais praticamente inalteradas como tradição. Por outro, os traços
barro de Goiabeiras é modelada ao longo desse processo de sucessivas da representatividade cultural
manualmente, queimada a baixa apropriações: o emprego de nacional: emblema explícito de uma
temperatura em fogueira a céu matérias primas sempre das mesmas comunidade cultural componente
aberto e tingida com tintura de procedências, a adoção dos mesmos da formação nacional, como é a
tanino. Em sua confecção é procedimentos de trabalho e o uso identidade capixaba, ou do Estado
utilizado o barro de uma única de instrumentos rudimentares, do Espírito Santo; símbolo – pelas
jazida existente no Vale do obtidos ou confeccionados pelas suas características técnicas – da
Mulembá, localizado no noroeste da próprias artesãs.” inter-relação entre as culturas
Ilha de Vitória. A tintura é extraída Temos aí, como se vê, as nativas do atual território brasileiro
da casca da Rhysophora mangle, espécie principais características que se e as culturas do Estado nacional
nativa do manguezal que margeia a poderia esperar de um sistema de criado pela colonização portuguesa
localidade. Originalmente saberes práticos tradicionais com com os aportes de migrantes
compondo o cotidiano de aldeia qualidades de um patrimônio africanos, asiáticos e de outros
indígena, posteriormente nacional. Por um lado, os traços países europeus. Acresce-se à
apropriada por descendentes dos básicos da tradição: longo conveniência do registro desse ofício o
{ Ofício das Paneleiras de Goiabeiras } 67
fato de estar no cerne de uma série tipicamente digno do registro como vinculá-lo com uma cada vez mais
bastante complexa de fenômenos patrimônio cultural imaterial é o fato de vasta clientela consumidora.
culturais e identitários importantes estar animado de um espírito oposto Ele retira, no entanto, de sua
para o segmento capixaba da ao das formas hegemônicas do marginalidade em relação a esses
formação nacional: culinária, poder, político, econômico ou sistemas dominantes ou oficiais
ecologia, música, dança, e – ideológico. Como bons herdeiros justamente o atrativo para neles
por quê não incluir aqui?– do Romantismo, atribuímos uma encontrar o seu nicho. É legítimo
movimento social. particular força de vida aos e interessante por ser privado; é
Prática social viva, ativa, fenômenos sociais que parecem se legítimo e interessante por ser
produtiva; integrada e reproduzir independentemente das artesanal; é legítimo e interessante
representativa, sim, como tantas necessidades canônicas da por ser popular. E é bom que seja
outras. Mas também enraizada no reprodução do Estado, da produção assim. Esse é o nosso melhor
mundo popular e na memória do mercantil-industrial-fabril e da mecanismo de avivamento dos
passado coletivo e – como tal – produção intelectual erudita. valores: o que contempla e
instrumental para o permanente e O ofício das paneleiras de eventualmente premia contrapesos
complexo trabalho da identidade Goiabeiras pode suscitar o dinâmicos às forças centrais,
nacional. Muito consciente como patrocínio dos poderes locais massificadoras e desvitalizantes,
sou – por dever de ofício – das (o que já ocorreu) ou pode suscitar de nosso processo civilizatório.
condições em que se formulam as a produção de uma notável massa Não será bom se este Conselho não
ideologias identitárias em nossa de textos acadêmicos (inclusive teses estiver, porém, sempre muito
cultura ocidental moderna, não universitárias, constantes do consciente – ao julgar tais processos
posso deixar de observar que – para processo). Ele também não se – de que estará ao serviço de uma
além de todas essas características – desenvolve fora do mercado: todo ideologia como qualquer outra –
o que torna esse bem tão um sistema de circulação já está a essa, hoje oportuna, do valor das
{ Ofício das Paneleiras de Goiabeiras } 68
Conselho, em função dessa coletiva ou individual eventualmente dos eventuais maus resultados
necessidade de uma “definição envolvida nas práticas cobertas daquela ação. No que toca as
gradativa dos critérios” – como se pelo Registro deveriam merecer condições profissionais, deve-se
referiu, no trato do assunto, Célia uma particular atenção, dada pensar certamente no apoio e
Corsino – ou dessa “jurisprudência a imprecisão que ainda cerca a reforço dos quadros próprios do
consensual” a que se referiu no matéria – crítica por excelência. Instituto, mas não se pode descartar
plenário do Conselho o Professor É claro que deveriam fazer parte a conveniência de uma parceria
Joaquim Falcão. Para atingir tal fim, da pauta também as informações mais sistemática com as instituições
não se poderia esperar por sobre o funcionamento do próprio profissionais e acadêmicas
avaliações decenais. Proponho que Programa Nacional do competentes para esses assuntos.
o Iphan se habilite a apresentar ao Patrimônio Imaterial, em tudo o Emergem do processo em pauta
Conselho Consultivo relatórios que ele promete de referenciamento e referências a trabalho conjunto
bienais que permitam ao Conselho valorização dos entes beneficiados. feito com o Centro e a
avaliar os rumos de seu trabalho. Os efeitos benéficos desse Coordenação de Folclore e Cultura
Deveriam fazer parte da pauta Programa jamais poderão se fazer Popular da Funarte, o que é muito
dessas avaliações bienais de caráter sentir evidentemente se o Iphan bem-vindo. Lembro
meramente informativo, por um não estiver aparelhado financeira e particularmente a minha área de
lado, a atenção aos possíveis e profissionalmente para colocá-lo trabalho, a antropologia, dada a
eventuais efeitos negativos do em funcionamento. O Conselho contigüidade de seus interesses com
Registro, do ponto de vista de Consultivo deveria estar os do Programa (o que é certamente
apropriações mercantis descabidas permanentemente ao corrente provado pelo grande número de
da conotação de autenticidade, por dessas condições para poder julgar contribuições de profissionais dessa
exemplo. As implicações do uso com pleno conhecimento de causa disciplina ouvidos no processo de
(ou não) da propriedade intelectual do caráter estrutural ou conjuntural estabelecimento da política do
{ Ofício das Paneleiras de Goiabeiras } 70
isbn 8 5 - 7 3 3 4 - 0 3 1- 2
Bibliografia: p. 54-58.