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O ESPELHO

Um Conselho sobre a Presença da Consciência

Rendo Homenagem ao Mestre!

Um praticante de Dzogchen deve ter uma exata presença da consciência. Até que
não se conheça realmente a própria mente e não se consiga governá-la, dão-se
muitas explicações, mas estas ficam somente tinta sobre o papel ou argumentos
para intelectuais, sem que possa nascer a compreensão do verdadeiro sentido.

No Kun-byed rgyal-po', um tantra do Dzogchen se diz: "A mente é a criadora do


samsara e do nirvâna: porisso é preciso conhecer este rei que tudo cria".

Nós transmigramos na visão impura e ilusória do samsara, mas na realidade só a


nossa mente transmigra.

Igualmente a respeito da pura iluminação, é só a mente purificada a poder realizá-la.

A base de tudo é só a nossa mente, dela tudo surge: o samsara e o nirvana, os seres
sencientes e os iluminados.

Examinemos o modo de transmigrar na visão impura do samsara. A essência da


mente, a verdadeira natureza da nossa mente, é totalmente pura desde a origem.
Todavia, por essa ser temporariamente ofuscada pela impureza da ignorância, não se
tem reconhecimento do próprio estado. Por causa dessa inconsciência surgem os
pensamentos ilusórios e as ações criadas pelas paixões. Assim se acumulam diversos
karma negativos e sendo inevitável a maturação destes, se transmigra nos ‘seis
estados de existência2 sofrendo amargamente. Não reconhecendo o próprio estado -
esta é a causa da transmigração - nos tornamos escravos da ilusão e da distração e,
condicionados pela mente, nos habituamos fortemente as ações ilusórias.

Igualmente a respeito da pura iluminação, além da própria mente não há nenhuma


luz deslumbrante que venha do externo. Se reconhecermos o próprio estado, puro
desde a origem, mas ofuscado pelas impurezas temporárias, e se mantivermos esta
presença sem nos distrairmos, todas as impurezas se dissolvem: esta é a essência da
via.

Então manifesta-se a natureza de pureza originária do estado primordial, se


reconhecemos esta condição e a dominamos.

A experiência do real conhecimento da autêntica condição originária, ou o


conhecimento do estado, chama-se nirvana. Porisso a iluminação não é nada mais
que a própria mente purificada.

Por isto Padmasambhava3 diz: "A mente é a criadora do sansara e do nirvana. Além
desta não existe nem samsara nem nirvana..."

Tendo deste modo estabelecido que a base do samsara e do nirvana é a mente,


resulta que toda a concretude do mundo e dos seres não é mais que uma visão
ilusória da própria mente. Como um doente da ‘bile’ vê amarela uma concha, mesmo
se objetivamente não é daquela cor, do mesmo modo, como conseqüência dos
distintos karmas dos seres, se manifestam as diversas visões ilusórias.

Assim, se na margem de um rio se encontrassem os seres dos seis estados da


existência, estes não veriam aquele rio do mesmo modo, porque possuem seis
causas kármicas diferentes. Os seres dos infernos quentes veriam o fogo; aqueles
dos infernos frios, o gelo; os espíritos famintos, sangue e pus; para os animais
aquáticos, um ambiente vital; os homens, água de beber, os semideuses, armas, e as
divindades, o néctar. Isto demonstra que na realidade não existe nada de concreto e
objetivo. Porisso, compreendendo que a raiz do samsara é a própria mente, tentamos
dominá-la. Reconhecendo que esta é também, precisamente, a essência da
iluminação, se obtém a liberação. Assim sendo conscientes que a base do samsara e
do nirvana é só a mente, toma-se a decisão de praticar.

A este ponto, com consciência e determinação é necessário manter uma


presença contínua sem distrair-se. Se, por exemplo, queremos interromper um
regato, é necessário bloqueá-lo na nascente, de modo que o seu curso cesse
definitivamente; bloqueando-o em qualquer outro ponto não se obtém o mesmo
resultado. Similarmente, se quisermos cortar a raiz do sarnsara, precisamos cortar a
raiz da mente que o criou; caso contrário não há modo de liberar-se. Se quisermos
que todos os sofrimentos e os impedimentos originados pelas ações negativas se
dissolvam, devemos cortar a raiz da mente que os produziu.

Se não se faz isto, mesmo cumprindo muitas ações virtuosas com o corpo e a fala,
destas resulta somente um benefício momentâneo. Além disso, não tendo nunca
cortado a raiz das ações negativas estas poderão novamente ser acumuladas. Como
se ao invés de cortar uma árvore pela raiz, arrancássemos só as folhas e os galhos:
ao invés de secar certamente tornaria a crescer.

Se a mente, o rei que tudo cria, não é deixada na sua condição natural, mesmo
praticando os métodos tântricos de Desenvolvimento e Aperfeiçoamento4 e
recitando muitos mantras, não se está no caminho da total liberação. Querendo
conquistar um país é preciso dominar o rei ou o senhor deste; subjugando somente
parte da população ou algum funcionário não se alcança o objetivo. Se não
soubermos manter uma presença contínua e nos deixamos dominar pela
distração, não nos liberaremos nunca do trasmigrar do samsara sem fim. Ao
invés, se não nos deixamos dominar pelo descuido e pela ilusão, possuindo
autocontrole e sabendo continuar com a presença do próprio estado,
unifica-se em nós a essência de todos os ensinamentos, a raiz de todos os
caminhos.

Visto que todos os elementos da visão dualística, como o samsara e o nirvana, a


felicidade e o sofrimento, o bem e o mal etc. surgem da mente, daí deriva que esta é
a única base destes. Porisso a não distração é a raiz de todos os caminhos e o ponto
fundamental da prática.

Seguindo este supremo caminho da presença os Buddhas do passado se iluminaram;


seguindo este caminho os Buddhas que virão no futuro se iluminarão; e aqueles do
presente, seguindo este caminho justo, se iluminam. Sem seguir este caminho não é
possível obter o despertar. Daí, visto que a continuação da presença do próprio
estado é a essência de todos os caminhos, a raiz de todas as meditações, a
conclusão de todas as práticas espirituais, o suco de todos os métodos esotéricos, o
coração de todos os ensinamentos finais, é necessário procurar manter uma
presença contínua sem distrair-se.

Isto significa: não seguir o passado, não antecipar o futuro, não seguir os
pensamentos ilusórios que surgem no presente, mas, voltando-se para o
interior, observar a própria condição e mantê-la além das limitações
conceituais dos ‘três tempos’.

Devemos ficar na condição não modificada do próprio estado natural, livre das
impurezas das discriminações de ‘ser e não ser’, ‘haver e não haver’, ‘bem e mal’
etc.

A condição originária do Grande Aperfeiçoamento está realmente além das


limitações conceituais dos ‘três tempos’; todavia quem inicia prática não tem esta
consciência e acha difícil a experiência do reconhecimento, porisso é muito
importante não deixar-se distrair pelos pensamentos dos ‘três tempos’.

Se, para não nos distrairmos, procuramos eliminar todos os pensamentos, apegando-
nos na busca de um estado calmo ou de uma sensação de prazer, é necessário
perceber que isto é um erro, porque o mesmo ‘apegar-se’ não é nada mais do que
um pensamento.

É preciso relaxar a mente, mantendo somente a desperta presença do


próprio estado, sem deixar-se dominar por qualquer pensamento.

Quando se está realmente relaxado, a mente se encontra na sua condição natural.

Se surgem pensamentos, bons ou ruins, fora desta condição, em vez de


julgar se estamos no estado calmo ou na onda do pensamento, devemos
reconhecer todos os pensamentos mediante a desperta presença do próprio
estado.

Quando os pensamentos vêm reconhecidos como tais, relaxamos na própria


condição e até que dure a consciência do relaxamento, é preciso não
esquecer a presença. Se nos distraímos e não reconhecemos os
pensamentos, é necessário retomar à presença da consciência.

Se surgem pensamentos com relação a encontrar-se ou não em um estado calmo,


sem abandonar a presença, continua-se observando o estado do mesmo
pensamento.

Do mesmo modo, se não surgem pensamentos, continua-se com a presença do


reconhecimento do estado calmo. Isto significa manter a presença deste estado
natural e, sem determiná-lo conceitualmente ou esperar pela manifestação de uma
forma, de uma cor ou de uma luz, relaxar-se, numa condição não conturbada pelas
características das elaborações do pensamento.

Quem inicia a prática encontra dificuldade em continuar no estado calmo


por mais de alguns instantes; não é preciso preocupar-se com isso mas,
sem desejar que este tenha uma longa duração ou temer a sua ausência, é
necessário somente manter a presença e não distrair-se, sem cair na
consideração dualística de um estado de observar e alguém que observa.

Se a mente, embora se mantenha a presença, não perdura neste estado calmo e


segue a onda dos pensamentos, referentes ao passado ou ao futuro, ou se deixa
distrair pelos seis agregados dos sentidos, como a vista, o ouvido etc, é preciso
compreender que a onda do pensamento é insubstancial como o vento. Se tentarmos
agarrar o vento não conseguimos; do mesmo modo se procuramos bloquear a onda
de pensamento, essa não se interrompe. Por este motivo não se deve bloqueá-la nem
renegá-la considerando-a negativa.

Na realidade o estado calmo é a condição essencial da mente e a onda do


pensamento a sua natural clareza: como o sol e os seus raios, um regato e
as suas ondas, sem distinção nenhuma. Se considerarmos o estado calmo
como qualquer coisa de positivo a obter e a onda do pensamento como
qualquer coisa de negativo a abandonar, ficando assim na dualidade de
aceitar ou recusar, não há modo de superar o estado mental ordinário.
Porisso o ponto essencial é reconhecer, sem distrair-se, qualquer
pensamento, bom ou mau, importante ou não e continuar no estado próprio
da onda do pensamento.

Quando surge um pensamento e não se consegue relaxar na presença, visto que


daquele podem surgir outros, é necessário ter cuidado no reconhecê-lo sem
distração. ‘Reconhecer’ não significa ver com os olhos ou determinar com os
conceitos, mas estar atentos a qualquer pensamento dos ‘três tempos’ ou percepção
dos sentidos e estar assim conscientes deste movimento, continuando a presença
desta consciência. Não significa absolutamente modificar a mente, como aprisionar
os pensamentos ou bloquear o seu fluxo.

Para quem inicia a praticar é difícil que este reconhecimento sem distração dure
muito, porque estamos transmigrando há tanto tempo que nos habituamos
profundamente a distração. Se considerarmos somente esta vida, do nascimento até
agora não temos feito outra coisa senão distrair-nos e nunca se é apresentada a
ocasião para treinarmos a presença da consciência e a não distração. Porisso, até
que não nos tornemos capazes de reconhecer a distração, se, por falta de atenção,
nos deixamos dominar pelo descuido e pelo esquecimento, devemos procurar de
qualquer modo perceber isto, baseando-nos na presença.

Continuar na própria condição com a presença do estado calmo e da onda do


pensamento: não há ‘meditação’ senão esta. Além do reconhecimento e da
continuação do próprio estado, não há nada melhor e mais claro a procurar.

Se, além da continuação da presença do próprio estado, esperamos que se manifeste


alguma coisa vinda do exterior, nos comportamos como aquele que, segundo um
provérbio tibetano, coloca na porta ocidental a oferta ritual para afastar o mau
espírito que está na porta oriental. Neste caso, igualmente se pensa de fazer uma
ótima meditação, mas na realidade é só um modo de cansar-se. Por isto continuar no
estado em que se encontra dentro de si mesmos é realmente a coisa mais
importante.

Se dermos pouca importância ao que possuímos e procurarmos por alguma coisa que
pensamos não ter, nos tornamos como aquele mendigo que, segundo uma parábola
budista, não sabia de ter uma pedra preciosa como travesseiro e vivia de esmola.

Por isto, mantendo o estado de pura presença não dualística e observando o


movimento da mente cada vez que este se apresenta, sem julgar se esta presença é
clara ou não e sem aceitar o estado calmo ou recusar a onda do pensamento, é
preciso aplicar a essência da prática: manter o próprio estado sem distrair-se,
absolutamente não condicionados da idéia de querer modificar alguma coisa.

Algumas pessoas quando ouvem ruídos de gente que caminha, fala, etc, ficam
perturbados e se irritam; ou se deixam distrair pelo ambiente externo, fazendo surgir
muitas ilusões. Este é o caminho errado conhecido como "a perigosa passagem na
qual a percepção externa aparece como um inimigo".

Isto demonstra que mesmo sabendo continuar com o conhecimento da condição do


estado calmo e da onda do pensamento, não se consegue integrar este estado com a
visão externa.

Neste caso, mantendo sempre a presença, se vemos alguma coisa não devemos nos
distrair, mas, sem julgar se é agradável ou desagradável, relaxa-se e continua-se
nesta presença.

Se surge um pensamento agradável ou desagradável, deve-se reconhecê-lo e


continuar com esta presença sem esquecê-la.

Se nos encontramos em uma circunstância perturbada, de confusão, alvoroço etc.,


devemos reconhecê-la e continuar com a presença, sem esquecê-la. Se surge um
pensamento que julgamos desagradável, podemos aceitá-lo e, sem deixar-se
dominar pelas paixões, continuamos na presença, sem esquecê-la.

Também com respeito aos sons, aos odores etc., continua-se com a presença de
todas as sensações, sem esquecê-la.

Se não se sabe integrar a presença da consciência com todas as ações cotidianas,


como comer, dirigir, sentar etc., não é possível continuar no estado da contemplação
além do tempo limitado de urna sessão. Neste caso, não havendo ainda estabilizado
a presença, existe sempre a separação entre a prática da meditação e a vida
cotidiana. Por isto é muito importante continuar a presença sem distração,
integrando-a com todas as ações cotidianas. O Buddha no Prajnaparamita Sutra5 diz:
"Subhuti, em que modo um Bodhisattva-mahasattva, reconhecendo que possui um
corpo, aplica o perfeito comportamento? Subhuti, um Bodhisattva mahasattva se
caminha é totalmente consciente de caminhar, se está em pé é totalmente
consciente de estar em pé, se esta sentado é totalmente consciente de estar
sentado, se dorme é totalmente consciente de dormir, se o corpo está bem ou está
mal ele é totalmente consciente disso.

Para compreender como integrar a presença com todas as ações cotidianas,


tomamos o exemplo do caminhar. Apenas surge esta idéia não precisamos nos
levantar imediatamente e caminhar de modo distraído e agitado para cima e para
baixo quebrando o que encontramos pela frente; mas quando nos levantamos o
fazemos lembrando: "Agora estou me levantando e enquanto caminho não quero
distrair-me".

Deste modo, sem deixar-se distrair, passo após passo nós devemos nos governar
com a presença da consciência. Do mesmo modo, se estamos sentados não devemos
esquecer esta consciência e, se comemos ou bebemos ou falamos duas palavras,
qualquer ação que se desenrole, seja essa importante ou não, continuamos com a
presença de tudo isto sem nos distrairmos.

Desde o momento que somos assim fortemente habituados à distração é difícil fazer
nascer esta presença da consciência, especialmente para quem esta no início da
prática. Todavia, quando se tem um trabalho novo a fazer, no início é preciso
aprender, e mesmo se nos primeiros tempos não somos práticos, com a experiência,
pouco a pouco, o trabalho toma-se fácil. Do mesmo modo, no início é necessário
empenho e preocupação para não distrair-se, a seguir deve-se manter o mais
possível a presença e, ao final, se nos distraímos precisamos percebê-lo.

Se continuarmos com este empenho da presença da consciência é possível chegar a


não distrair-se mais.

Em geral no Dzogchen6 - o ensinamento do estado de autoaperfeiçoamento - se fala


da autoliberação do modo de ver, de meditar, de comportar-se e do fruto; mas esta
autoliberação deve surgir através da presença da consciência. Em particular a
autoliberação do comportamento não pode absolutamente surgir se não nos
baseamos na presença da consciência. Por isto se não se chega a precisar a
autoliberação do comportamento, não se pode superar a distinção entre a sessão de
meditação e a vida cotidiana. Quando falamos de autoliberação do comportamento
como o princípio fundamental de todos os tantra, os agama, e os upadesha do
Dzogchen7, isto agrada muito aos jovens de hoje. Todavia alguns não sabem que a
base da autoliberação é a presença da consciência e muitos, mesmo se
compreendem isto um pouco em teoria, e desta sabem falar, têm igualmente o
defeito de não aplicá-la.

Se um doente conhece perfeitamente as propriedades e a função de um remédio e


também é perito ao dar explicações a respeito, mas não o toma, não pode sarar.

Igualmente, desde sempre, a nossa grave doença é a sujeição à condição dualística e


o único remédio é o conhecimento real do estado de autoliberação, sem cair nas
limitações.

Quando se está em contemplação, na continuação da consciência do próprio estado,


não é necessário dar importância ao comportamento; para quem ao invés está no
inicio não tem modo de entrar na prática se não alternando a sessão de meditação e
a vida cotidiana. Isto porque nós temos um forte apego baseado na lógica e na
consideração dos objetos dos nossos sentidos como concretos e ainda mais do nosso
corpo material feito de sangue e carne.

Quando meditamos sobre o ‘não eu’, eliminando mentalmente a cabeça e os


membros um a um, podemos chegar a estabelecer que não existe um ‘eu’.

Todavia este ‘não eu’ é somente um conhecimento derivado de análise intelectual,


não é o conhecimento real do estado do ‘não eu’.

Assim, se enquanto estamos dizendo ‘não eu’ nos entra um espinho no pé, sem
dúvida gritamos imediatamente: ‘Ai, ai, ai’. Isto demonstra que estamos sujeitos à
condição dualística e que aquele ‘não eu’ pronunciado com a boca não tomou-se um
estado real. Por este motivo é indispensável dar importância à presença da
consciência como base da autoliberação no comportamento cotidiano.

Os diversos modos de dar importância ao comportamento deram origem a várias


formas de lei estabelecidas em base às condições exteriores, como as regras
religiosas e os ordenamentos jurídicos.

Existe, porém uma grande diferença de princípio no respeitar uma lei por obrigação
ou por consciência. Visto que, em geral, todos são condicionados pelo karma, pelas
paixões e pelo dualismo, são pouquíssimos aqueles que observam as leis apenas
pela consciência. Por este motivo, mesmo não querendo, os homens ficam
obrigatoriamente sujeitos ao poder das diversas formas de lei.

Nós já somos condicionados pelo karma, pelas paixões e pelo dualismo, se a isso se
juntam as limitações que derivam do dever seguir as leis por obrigação, o nosso
fardo toma-se ainda mais pesado e, sem dúvida, nós nos afastamos do correto ‘modo
de ver’ e do justo ‘comportamento’.

Por isso, quem já conseguiu chegar a um real conhecimento interior da prática deve
compreender de modo preciso a presença da consciência como método da
autoliberação do comportamento.

Não se deve, porém, compreender ‘a autoliberação’ no senso de poder fazer


qualquer coisa que se queira; não é absolutamente este o princípio da autoliberação.
Quem pensa desta maneira demonstra claramente de não ter entendido o significado
de consciência.

Além disso, não devemos considerar iguais os princípios da lei e da consciência; a lei
de fato vem estabelecida em-base as circunstâncias do tempo e do lugar e
condiciona o indivíduo pelo externo; a consciência ao contrário, surge do
conhecimento que o mesmo indivíduo possui. Por esta razão, às vezes, as leis
correspondem à consciência do indivíduo, às vezes não. Todavia, a quem possui a
consciência é possível superar o dever de observar as leis por obrigação. Não só, mas
o indivíduo que possue a consciência e sabe manter estável a presença, é capaz de
viver tranqüilo sob todas as leis do mundo, sem ser por estas condicionado.

Muitos Mestres dizem: "Incita-se o cavalo da consciência com o açoite da presença!"


De fato se a consciência não vem solicitada pela presença não pode funcionar.

Um exemplo para se entender a consciência: em frente a uma pessoa adulta e em


condições normais tem uma taça cheia de veneno e ela é consciente disto As
pessoas adultas e equilibradas, que reconhecem o veneno e são também conscientes
das suas conseqüências, não precisam de tantos esclarecimentos à respeito e devem
advertir aqueles que ignoram a presença do veneno dizendo: "Nesta taça tem um
veneno, se o ingerir morrerá!" Neste modo despertando também nos outros a
consciência, cada um terá a capacidade de evitar sozinho o perigo. Isto se entende
por consciência.

Mas no caso em que uma pessoa mesmo sabendo do perigo que é o veneno, não dá
importância ou tem ainda dúvidas a respeito, ou não tem mesmo consciência, não é
suficiente dizer somente: "Isto é um veneno", mas é necessário dizer: "Proibido
beber, os transgressores serão punidos pela lei". Assim mediante a ameaça da lei se
protege a vida. Este é o princípio em que se baseia a lei e mesmo se é muito diverso
daquele da consciência é, contudo indispensável para salvar a vida de quem é
inconsciente.

Um exemplo da presença: uma pessoa que tem diante de si uma taça de veneno,
mesmo que seja consciente e conheça bem o seu efeito, se não há uma contínua
atenção pode acontecer que se distraia e o beba. Por isto se a consciência não está
continuamente acompanhada pela presença é difícil que possa dar algum resultado.

No Mahayana, o princípio ao qual se dá a máxima importância, e é a essência mesma


do ensinamento, é a união de vazio e compaixão. Na realidade, se não se possui a
consciência inseparável da presença, não pode absolutamente nascer uma autêntica
compaixão. É inútil fingir ser cheio de compaixão se não se sente realmente um
sentimento de compaixão pelos outros. A este respeito há um provérbio tibetano que
diz: "Para olhar os outros temos os olhos, mas para ver-se a si mesmo é preciso um
espelho!" Para desenvolver internamente uma autêntica compaixão é necessário
observar os próprios defeitos, reconhecê-los e colocar-se no lugar dos outros para
descobrir qual é a sua verdadeira condição e o único meio para conseguir isto é
possuir a presença da consciência.

Em caso contrário, mesmo se fingimos ter uma grande compaixão, mais cedo ou
mais tarde surgirá uma ocasião que demonstrará como esta nunca nasceu
verdadeiramente em nós.

Até que não seja uma pura compaixão não existe nenhum modo de abolir os limites e
as atitudes sectárias. Todavia a muitos praticantes acontece que, progredindo na
prática, chegam a considerar a si mesmos como uma ‘divindade’ e os outros como
‘espíritos ruins’. Deste modo não se faz mais que aumentar os próprios limites
desenvolvendo o apego a si mesmos e a aversão pelos outros. Ou, mesmo se falam
muito de Mahamudra8 e de Dzogchen, na realidade tornam-se mais peritos e
refinados no comportamento dos oito dharmas mundanos9. Este é o sinal concreto
que em nós não nasceu uma verdadeira compaixão e nem mesmo a sua única raiz: a
presença da consciência.

Por isto, sem tagarelar muito ou tentar parecer uma pessoa interessante, devemos
fazer surgir em nós a presença da consciência e concretamente colocá-la em prática.
Este é o ponto mais importante da prática do Dzogchen.

Dedicado aos discípulos da Comunidade Dzogchen.

Dzogchenpa Namkhai Norbu.


Boa sorte!

Notas:

1. Kun-byedrgyal-po,que trauzidosignifica"O Rei que tudo cria"é o tantra principal do


Sems-de ou Série da Mente das escrituras do ensinarnento do Dzogchen.

2. Os seis estados de existência (rigs-drug) são as seis principais dimensões da visão


kartnica, causadas cada uma pelo prevalecer de uma determinada paixão. Estes são:
o reino dos deva ou divinidades, causado pelo apego; o reino dos asura ou
semideuses, causado pelo ciúme; o reino dos hoinens, causado pelo orgulho; o reino
dos animais, causado pelo ofliscamento mental; o reino dos preta ou espíritos
famintos, causado pela avareza; o reino infernal, causado pela ira.

3. Padrnasambhava, cerca do oitavo século, é um dos protagonistas do Tantrismo e


se acredita que tenha sido um dos primeiros a introduzir o Budismo Tantrico no Tibet.
E além disso reconhecido como um dos principais Mestres na linhagem espiritual do
Dzogchen.

4. Se trata de práticas muito elaboradas características do Anuttaratantra, o caminho


da transformação dos constituintes psicofísícos do indivíduo na energia da sabedoria
da iluminação. A ‘fase do desenvolvimento’ bskyedrim, inclui um processo muito
gradual e acurado de visualização, recitação de mantra e a utilização de gestos
simbólicos mudra. A ‘fase do aperfeiçoamento’ rdzog-rim, através da concentração
interna sobre os nadis e sobre os chakras, tem o fim de portar o praticante ao estado
da contemplação.

5. O Prajnaparamita Sutra é um dos sutras fundamentais do Budismo Mahayana ou


Grande Veículo. Neste sutra vem exposta a doutrina da "vacuidade" shunyata ou seja
a não existência intrínseca de todas os fenômenos.

6. Os primeiros três são os elementos fundamentais do ensinamento Dzogchen:


"modo de ver" (Ita-ba) significa tomar consciência da própria condição;"rneditar"
(sgom-pa) é a experiência do estado natural da própria mente; o "comportamento"
(spyod-pa) é a aplicação deste conhecimento na vida cotidiana. Além destes três tem
"o fruw' (bras-bu), ou seja, a realização total do estado fora do dualismo.

7. Esta é uma subdivisão peculiar da tradição Dzogchen. Por tantra (rgyud) se


entende um ensinamento básico revelado diretamente pela dimensão do
dharmakaya, o estado essencial de todos os iluminados. Os agama (lung) se
consideram os elementos transmitidos pela manifestação do sambhogakaya, a
dimensão da pureza da energia luminosa do indivíduo. Os upadesha (manngag) são
ensinamentos mais detalhados, derivados da experiência direta dos Mestres.

8. A Mahamudra (phyag-rgya chen-po) é o ponto de chegada das práticas do Anu


tantra; é o estado no qual, para o praticante, não existe distinção entre meditação e
vida cotidiana. Neste sentido corresponde ao estado do Dzogchen, mesmo se o
caminho é diverso. Este conhecimento, originariamente transmitido pelos siddhas da
Índia, foi a seguir difundido no Tibet, principalmente na escola Budista bka-rgyud-pa.

9. Os oito dharma mundanos (jig-rten chos-brgyad) são: ganho e perda, fama, má


fama, louvor e maledicência, felicidade e sofrimento.

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