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Um praticante de Dzogchen deve ter uma exata presença da consciência. Até que
não se conheça realmente a própria mente e não se consiga governá-la, dão-se
muitas explicações, mas estas ficam somente tinta sobre o papel ou argumentos
para intelectuais, sem que possa nascer a compreensão do verdadeiro sentido.
A base de tudo é só a nossa mente, dela tudo surge: o samsara e o nirvana, os seres
sencientes e os iluminados.
Por isto Padmasambhava3 diz: "A mente é a criadora do sansara e do nirvana. Além
desta não existe nem samsara nem nirvana..."
Se não se faz isto, mesmo cumprindo muitas ações virtuosas com o corpo e a fala,
destas resulta somente um benefício momentâneo. Além disso, não tendo nunca
cortado a raiz das ações negativas estas poderão novamente ser acumuladas. Como
se ao invés de cortar uma árvore pela raiz, arrancássemos só as folhas e os galhos:
ao invés de secar certamente tornaria a crescer.
Se a mente, o rei que tudo cria, não é deixada na sua condição natural, mesmo
praticando os métodos tântricos de Desenvolvimento e Aperfeiçoamento4 e
recitando muitos mantras, não se está no caminho da total liberação. Querendo
conquistar um país é preciso dominar o rei ou o senhor deste; subjugando somente
parte da população ou algum funcionário não se alcança o objetivo. Se não
soubermos manter uma presença contínua e nos deixamos dominar pela
distração, não nos liberaremos nunca do trasmigrar do samsara sem fim. Ao
invés, se não nos deixamos dominar pelo descuido e pela ilusão, possuindo
autocontrole e sabendo continuar com a presença do próprio estado,
unifica-se em nós a essência de todos os ensinamentos, a raiz de todos os
caminhos.
Isto significa: não seguir o passado, não antecipar o futuro, não seguir os
pensamentos ilusórios que surgem no presente, mas, voltando-se para o
interior, observar a própria condição e mantê-la além das limitações
conceituais dos ‘três tempos’.
Devemos ficar na condição não modificada do próprio estado natural, livre das
impurezas das discriminações de ‘ser e não ser’, ‘haver e não haver’, ‘bem e mal’
etc.
Se, para não nos distrairmos, procuramos eliminar todos os pensamentos, apegando-
nos na busca de um estado calmo ou de uma sensação de prazer, é necessário
perceber que isto é um erro, porque o mesmo ‘apegar-se’ não é nada mais do que
um pensamento.
Para quem inicia a praticar é difícil que este reconhecimento sem distração dure
muito, porque estamos transmigrando há tanto tempo que nos habituamos
profundamente a distração. Se considerarmos somente esta vida, do nascimento até
agora não temos feito outra coisa senão distrair-nos e nunca se é apresentada a
ocasião para treinarmos a presença da consciência e a não distração. Porisso, até
que não nos tornemos capazes de reconhecer a distração, se, por falta de atenção,
nos deixamos dominar pelo descuido e pelo esquecimento, devemos procurar de
qualquer modo perceber isto, baseando-nos na presença.
Se dermos pouca importância ao que possuímos e procurarmos por alguma coisa que
pensamos não ter, nos tornamos como aquele mendigo que, segundo uma parábola
budista, não sabia de ter uma pedra preciosa como travesseiro e vivia de esmola.
Algumas pessoas quando ouvem ruídos de gente que caminha, fala, etc, ficam
perturbados e se irritam; ou se deixam distrair pelo ambiente externo, fazendo surgir
muitas ilusões. Este é o caminho errado conhecido como "a perigosa passagem na
qual a percepção externa aparece como um inimigo".
Neste caso, mantendo sempre a presença, se vemos alguma coisa não devemos nos
distrair, mas, sem julgar se é agradável ou desagradável, relaxa-se e continua-se
nesta presença.
Também com respeito aos sons, aos odores etc., continua-se com a presença de
todas as sensações, sem esquecê-la.
Deste modo, sem deixar-se distrair, passo após passo nós devemos nos governar
com a presença da consciência. Do mesmo modo, se estamos sentados não devemos
esquecer esta consciência e, se comemos ou bebemos ou falamos duas palavras,
qualquer ação que se desenrole, seja essa importante ou não, continuamos com a
presença de tudo isto sem nos distrairmos.
Desde o momento que somos assim fortemente habituados à distração é difícil fazer
nascer esta presença da consciência, especialmente para quem esta no início da
prática. Todavia, quando se tem um trabalho novo a fazer, no início é preciso
aprender, e mesmo se nos primeiros tempos não somos práticos, com a experiência,
pouco a pouco, o trabalho toma-se fácil. Do mesmo modo, no início é necessário
empenho e preocupação para não distrair-se, a seguir deve-se manter o mais
possível a presença e, ao final, se nos distraímos precisamos percebê-lo.
Assim, se enquanto estamos dizendo ‘não eu’ nos entra um espinho no pé, sem
dúvida gritamos imediatamente: ‘Ai, ai, ai’. Isto demonstra que estamos sujeitos à
condição dualística e que aquele ‘não eu’ pronunciado com a boca não tomou-se um
estado real. Por este motivo é indispensável dar importância à presença da
consciência como base da autoliberação no comportamento cotidiano.
Existe, porém uma grande diferença de princípio no respeitar uma lei por obrigação
ou por consciência. Visto que, em geral, todos são condicionados pelo karma, pelas
paixões e pelo dualismo, são pouquíssimos aqueles que observam as leis apenas
pela consciência. Por este motivo, mesmo não querendo, os homens ficam
obrigatoriamente sujeitos ao poder das diversas formas de lei.
Nós já somos condicionados pelo karma, pelas paixões e pelo dualismo, se a isso se
juntam as limitações que derivam do dever seguir as leis por obrigação, o nosso
fardo toma-se ainda mais pesado e, sem dúvida, nós nos afastamos do correto ‘modo
de ver’ e do justo ‘comportamento’.
Por isso, quem já conseguiu chegar a um real conhecimento interior da prática deve
compreender de modo preciso a presença da consciência como método da
autoliberação do comportamento.
Além disso, não devemos considerar iguais os princípios da lei e da consciência; a lei
de fato vem estabelecida em-base as circunstâncias do tempo e do lugar e
condiciona o indivíduo pelo externo; a consciência ao contrário, surge do
conhecimento que o mesmo indivíduo possui. Por esta razão, às vezes, as leis
correspondem à consciência do indivíduo, às vezes não. Todavia, a quem possui a
consciência é possível superar o dever de observar as leis por obrigação. Não só, mas
o indivíduo que possue a consciência e sabe manter estável a presença, é capaz de
viver tranqüilo sob todas as leis do mundo, sem ser por estas condicionado.
Mas no caso em que uma pessoa mesmo sabendo do perigo que é o veneno, não dá
importância ou tem ainda dúvidas a respeito, ou não tem mesmo consciência, não é
suficiente dizer somente: "Isto é um veneno", mas é necessário dizer: "Proibido
beber, os transgressores serão punidos pela lei". Assim mediante a ameaça da lei se
protege a vida. Este é o princípio em que se baseia a lei e mesmo se é muito diverso
daquele da consciência é, contudo indispensável para salvar a vida de quem é
inconsciente.
Um exemplo da presença: uma pessoa que tem diante de si uma taça de veneno,
mesmo que seja consciente e conheça bem o seu efeito, se não há uma contínua
atenção pode acontecer que se distraia e o beba. Por isto se a consciência não está
continuamente acompanhada pela presença é difícil que possa dar algum resultado.
Em caso contrário, mesmo se fingimos ter uma grande compaixão, mais cedo ou
mais tarde surgirá uma ocasião que demonstrará como esta nunca nasceu
verdadeiramente em nós.
Até que não seja uma pura compaixão não existe nenhum modo de abolir os limites e
as atitudes sectárias. Todavia a muitos praticantes acontece que, progredindo na
prática, chegam a considerar a si mesmos como uma ‘divindade’ e os outros como
‘espíritos ruins’. Deste modo não se faz mais que aumentar os próprios limites
desenvolvendo o apego a si mesmos e a aversão pelos outros. Ou, mesmo se falam
muito de Mahamudra8 e de Dzogchen, na realidade tornam-se mais peritos e
refinados no comportamento dos oito dharmas mundanos9. Este é o sinal concreto
que em nós não nasceu uma verdadeira compaixão e nem mesmo a sua única raiz: a
presença da consciência.
Por isto, sem tagarelar muito ou tentar parecer uma pessoa interessante, devemos
fazer surgir em nós a presença da consciência e concretamente colocá-la em prática.
Este é o ponto mais importante da prática do Dzogchen.
Notas: