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TRATAMENTO DE TRANSTORNOS
ALIMENTARES
Parte I
Conteudista
Prof.ª Esp. Susana Zaniolo Scotton
I. Neurociência e Psicanálise:
Variados são os olhares e compreensões acerca do ser humano, o que já
nos dá a dica de sua complexidade, suas vicissitudes e inquietações. Sendo
assim, vamos olhar através destas duas lentes: neurociência e psicanálise para
uma importante questão de nossa atualidade, que assombra o universo
feminino, principalmente, os transtornos alimentares, mais especificamente
anorexia e bulimia. O objetivo será contribuir para o conhecimento desses
quadros clínicos pelos diversos profissionais envolvidos no tratamento de tais
transtornos, pois há várias questões envolvidas nesse sofrimento e ainda risco
de morte para a paciente, exigindo, portanto, dos profissionais condutas
peculiares para que se possa obter êxito no tratamento de tais casos.
Nesta primeira parte, vamos conhecer a neurociência e a psicanálise, dois
diferentes olhares para o ser humano, com diferentes explicações para o seu
sofrimento, assim como diferentes formas de tratamento. No entanto, veremos
também que têm seu ponto de encontro e por que não dizer de auxílio no que
diz respeito ao tratamento e cuidado para com o ser humano e seu sofrimento.
Na segunda parte do artigo, veremos as especificidades dos quadros da
anorexia e bulimia e a conduta nos tratamentos.
II. A Neurociência
Para começarmos a falar em neurociência, é preciso diferenciar o cérebro
da mente. O cérebro é uma estrutura física, um órgão do nosso corpo
localizado dentro da caixa craniana; é o órgão do Sistema Nervoso Central,
responsável pela regulação e controle das atividades corporais. A mente não
tem uma estrutura física e nem localização física em nosso corpo, ela é
subjetiva, cada qual com a sua e com seus diferentes aspectos em cada um de
nós, pois ela é constituída a partir das experiências que temos ao longo da
vida, ou seja, a mente é constituída de nossos sentimentos e emoções,
registrados pelo cérebro.
Os gregos foram os grandes precursores do desenvolvimento do
pensamento ocidental, dentre eles, a filosofia e a medicina, incluindo a
neurociência e a descoberta do cérebro como o centro das funções mentais.
Castro e Landeira-Fernandez, (2011) relatam que havia dúvida e preocupação
nos gregos em localizar esse centro das funções mentais: seria o coração ou o
cérebro? E ainda a relação desses centros, coração ou cérebro, com a alma
(ou mente). Alcmeon de Crotona foi quem primeiro reconheceu o cérebro como
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sede da razão, e Herófilo e Erasístrato foram os responsáveis pela
investigação neuroanatômica, aprimorada posteriormente por Galeano.
De acordo com Hipócrates, o pai da medicina,
No Corpus hippocraticum, o cérebro é apontado como a
sede do julgamento, das emoções e de todas as atividades do
intelecto, assim como a causa dos transtornos neurológicos,
tais como espasmos, convulsões e desordem da inteligência.
No Tratado Dos Ferimentos da Cabeça, numerosas referências
a distúrbios de movimento são feitas, incluindo vários tipos de
paralisias. Ainda nesse tratado, há referências a distúrbios na
fala, além da recomendação do uso de trepanação no
tratamento de lesões cranianas (CASTRO; LANDEIRA-
FENANDEZ, 2011, p.802).
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www.cerebronosso.bio.br
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(PASTORE, 2008, p.10). Ele sempre fora interessado nas relações entre o
cérebro e o psiquismo, o incomodava a teoria localizacionista: uma parte
afetada do cérebro ocasionava determinado comportamento ou perda dele.
No entanto, no atendimento a seus pacientes, Freud foi percebendo a
forte repressão sexual a que estavam subjugados e que o material que fora
reprimido seria a fonte dos conflitos e constituiria a base do nosso inconsciente.
Ao se interessar pela compreensão dos sintomas trazidos pelos pacientes, se
afastou da neurologia e se aproximou da construção da psicanálise.
Em 1891, o fenômeno da afasia o deixou intrigado:
Freud observa, também, que muitos sintomas da afasia,
como os erros verbais, provinham de associações verbais em
que as palavras de som ou sentidos semelhantes substituíam a
palavra em questão, ou, em situações mais complexas, se
originavam de associações particulares forjadas no passado do
paciente. E ressalta ainda que as parafasias só podiam ser
compreendidas se levássemos em conta mais a natureza das
palavras e suas associações, o universo da linguagem e do
sentido que a anatomia ou a fisiologia do cérebro. (PASTORE,
2008, p.12).
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Foi em sua prática clínica que Freud foi construindo a psicanálise, antes,
porém, passou por outros dois métodos até chegar à prática que de fato
constituiria a psicanálise: a associação livre, que consiste no paciente falar
livremente sobre suas sensações, pensamentos, sentimentos, seus sintomas e
sonhos e o analista fazer a associação do que ele está dizendo. Dentro dessa
prática, uma fala leva a outra, que, como vimos no determinismo psíquico,
nada está isolado, um acontecimento está sempre ligado a outro. Desta
maneira o analista pode, então, fazer a interpretação do que percebe do que
diz o paciente e assim pode ir desvendando o que está presente no
inconsciente.
Para que tal processo da análise da associação livre em psicoterapia
possa ocorrer é necessário que a tranferência ocorra.
Cláudio Mello Wagner, (2003, p. 132-133) citando Freud, nos diz que:
[...] a transferência consiste em uma modalidade do
deslocamento de afetos entre uma representação e outra, e
num obstáculo ao trabalho de rememoração, isto é, em uma
modalidade de resistência. (...) Trata-se, portanto, de
‘reimpressões’, ou de ‘edições revistas’, de protótipos infantis
que enlaçam o analista no imaginário do paciente. Nesta nova
concepção, a transferência será entendida como uma
manifestação incontornável da neurose, que é utilizada, pelo
paciente para produzir todos os empecilhos ao trabalho de
tornar o material psíquico inconsciente acessível ao tratamento.
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comportamento do indivíduo para com esses objetos.
(BRENNER, 1975, p.112).
V. Neurociência e Psicanálise:
A neurociência estuda o sistema nervoso: sua estrutura, seu
desenvolvimento, funcionamento, evolução, relação com o comportamento e a
mente e também suas alterações localizadas no cérebro e em seu
funcionamento neuroquímico. Todas as suas explicações para os mais
variados sintomas são comprovadas cientificamente em laboratórios e por
exames de imagens. Já a psicanálise, com o estudo do inconsciente e das
questões do sofrimento humano advindo dos sentimentos e das emoções, tem
seu próprio método de investigação do que acometeria o ser humano, a
metapsicologia - o seu próprio Projeto de investigação -, em que não prova,
nos moldes científicos da neurociência, suas descobertas e conclusões.
Portanto, há algumas divergências entre a neurociência e a psicanálise.
No que diz respeito à metodologia, a psicanálise oferece
um método próprio, baseado na observação empírica dos
dados clínicos; podemos caracterizá-lo como um método
hipotético-dedutivo. Freud elabora a metapsicologia a partir da
observação dos pacientes, analisando seus discursos e
remetendo-os a um modelo abstrato da mente (isto é, o
“aparelho psíquico”); ou seja, ele formula hipóteses e deduz
estruturas do psiquismo a partir das evidências clínicas [...]. A
neurociência, na época de Freud (final do século XIX e início
do século XX), estava longe de fornecer instrumentos
fidedignos e capazes de oferecer a comprovação biológica
para as teorias elaboradas pelo psicanalista austríaco.
Atualmente, no entanto, a situação é bem diferente: a
neurociência evoluiu de maneira surpreendente nas últimas
décadas do século XX, a ponto de oferecer, na atualidade, a
possibilidade de observar o cérebro em pleno funcionamento.
Trata-se de um momento sem precedentes na história da
ciência, no qual os diversos ramos da neurociência, em
conjunto, estão aptos a desvendar o mistério da mente.
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O método neurocientífico, não obstante, diverge do
psicanalítico por ser um método indutivo, baseado em
experimentos passíveis de serem testados em laboratório. Isso
imprime uma maior confiabilidade aos resultados obtidos por
esse método; além de uma aceitação mais abrangente por
parte da comunidade científica (LYRA, 2006, p.323).
Diversas podem ser as lentes pelas quais olhamos o ser humano e o que
o acomete - o foco ou a cor da lente - é que muda, mas ainda assim o que
vemos será o mesmo ser humano e, portanto, teremos algo em comum. Ou
seja, se o objeto de estudo é o cérebro, na constatação de alterações
neuroquímicas, o tratamento será de forma medicamentosa ou até mesmo,
para casos específicos, exercícios próprios para o corpo e cérebro. Se o objeto
de estudo é o comportamneto e as emoções, o processo de análise é de
grande valia para se elaborar as questões do inconsciente que levam aos mais
variados sintomas. Neste caso, a fala, o entrar em contato com as angústias e
afetos do que se fala será o veículo de tratamento e cura.
Ao entendermos que o ser humano é um ser bio-psico-social, qualquer
interferência em qualquer uma dessas áreas é capaz de causar alterações no
todo que o constitui, assim como ao tratarmos de uma dessas áreas, o todo
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também será beneficiado. Está comprovado que uma pessoa em processo de
análise pode ter melhoras em seu sintoma e tal processo influencia também no
funcionamento neuroquímico do seu cérebro. Assim como os medicamentos
utilizados nesta mesma regulação neuroquímica possibilitam melhoras no
comportamento e sentimentos do paciente.
De acordo com o quadro clínico apresentado pelo paciente em seu
sintoma, faz-se de extrema importância e necessidade a utilização
concomitante dos medicamentos e da psicoterapia, pois um sem outro não
teria a mesma eficiência no tratamento “A junção entre neurociência e
psicanálise permite a integração mente-corpo como um todo inseparável, em
que é possível constatar a existência de um encadeamento contínuo entre
manifestações corporais e psíquicas de forma indissociável.” (SOUSSUMI,
2006, p.67). Mas isso poderia dizer que seria, então, mais fácil resolver tudo a
base de medicamentos?Poderia até ser se o ser humano não fosse dotado de
carga afetiva em suas vivências. Os afetos das experiências vividas,
especialmente as traumáticas (sejam elas por rejeições, faltas ou excessos nos
cuidados das necessidades básicas de sobrevivência, cerceamento da
liberdade e da expressão ou traições em relação às emoções mais básicas de
medo, excitação, raiva ou tristeza) buscam sua elaboração para uma
organização do psiquismo, fortalecimento do ego (o que somos) e sua saúde
de uma forma geral. Ao aplacarmos o sintoma com um medicamento, sem uma
elaboração, ele vai continuar buscando por uma vazão e fazendo novos
sintomas. Este processo de mudança de sintoma também ocorre no processo
de psicoterapia, porém em psicoterapia não tratamos de um único sintoma,
mas sim de toda a constituição emocional e vida relacional do paciente que
busca a análise.
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REFERÊNCIAS
ANDRADE, V. M. Um diálogo entre a psicanálise e a neurociência. São
Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.