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As novas formas de trabalho

Transformações recentes nas qualificações profissionais, na produção e no trabalho deram a falsa impressão de que
representariam uma mudança radical na lógica da exploração dos trabalhadores

28 de Março de 2017 Caroline Svitras 0 Comentário

Por Bruna Fávaro* | Fotos: Shutterstock | Adaptação web Caroline Svitras

As sociedades capitalistas do Ocidente passaram por


profundas transformações no trabalho e na produção,
principalmente a partir da década de 1970. O consenso de
Washington, o crescimento de políticas neoliberais e o
desmantelamento da União Soviética, acompanhados da quebra de
monopólios estatais, reestruturações produtivas e aumento do
setor de serviços, contribuíram para o surgimento de várias teses
que indicavam a superação da análise marxista. Para tais teses,
o marxismo seria uma teoria específica da indústria e que não daria
mais conta de explicar a sociedade atual, ao ver que a centralidade do trabalho tipicamente fabril teria sido
substituída pela produção imaterial. As últimas transformações nas qualificações profissionais, produção e trabalho
representariam uma radical mudança na lógica de produção de mercadorias, colocando a teoria social de Karl Marx
em questão. Um novo tipo de trabalho teria aparecido: aquele em que a sua produção é centrada em sistemas
tecnológicos e que apresenta como componente central o conhecimento.

As teses apontadas anteriormente estão vinculadas à crise dos três eixos fundamentais na teoria de Karl Marx:
trabalho, valor e classes . De tal maneira, o tripé conceitual que se determina reciprocamente a partir da
historicidade teve nas últimas décadas a contestação da sua validade (Amorim, H., 2014, p. 32). Os dois primeiros
pontos, do trabalho e do valor, são enfraquecidos a partir de uma concepção de vinculação do trabalho apenas
à atividade manual, tendo em vista que seria o único capaz de modificar a natureza física da matéria, e de
consequentemente produzir valor. Seguido a isso, a ineficácia da teoria marxista quanto a suateoria de classes se
daria ao passo que a mesma se ligaria apenas à classe operária. De tal maneira, para muitos autores
contemporâneos, o valor seria característico apenas da sociedade industrial, sendo produzido efetivamente pela
classe operária a partir do trabalho manual.

É em tal sentido que o trabalho atual teria se modificado extremamente, dado que a imaterialidade e as tarefas
ligadas ao cognitivo e ao conhecimento desempenhariam papel central na sociedade, modificando a lógica
de produção de valor, o tipo de trabalhador, agora heterogêneo, e as classes sociais, substituídas por atores sociais
que fundamentam a ação coletiva. Segundo essas premissas, podemos entender que há nessas teses a
fundamentação da classe trabalhadora tipicamente fabril como homogênea, do operário como único sujeito
revolucionário, do valor como expressão mensurável e vinculado apenas à produção material e de que o trabalho
teria sido central num certo momento da história do capitalismo.

Nas teorias em que o trabalhador é vinculado ao seu posto de trabalho, as qualificações técnicas informariam a
possibilidade de sua prática e consciência política. As forças produtivas seriam o elemento central de toda mudança
política estrutural. Elas teriam certa autonomia e poderiam se desvincular das reestruturações produtivas. Em outras
palavras, o modo de vida seria determinado pela estrutura da produção e suas técnicas. Isso nos suscita um
importante grande debate atual entre relações de produção e forças produtivas, o qual se faz fundamental para a
Sociologia contemporânea. Não haveria em tais análises um peso desmedido das forças produtivas? Há realmente
uma separação rígida entre modo de produção e modo de vida? Não estariam atribuindo ao aspecto tecnológico um
primado, como se não fossem oriundas de relações sociais historicamente determinadas? Há realmente uma
separação rígida entre modo de produção e modo de vida?

Questionamento

Algo para se interrogar, em meio às tantas modificações no mundo do trabalho, se apresenta no aspecto de em que
medida as transformações produtivas e tecnológicas interferiram nas condições de trabalho, e, se mesmo que tais
transformações sejam fundamentalmente consideradas intelectuais, elas não pertencem a uma lógica antiga de
reprodução do capital. Nesse sentido, todas as mudanças ocorrentes no mundo do trabalho
consideradas “inovações”, “avanços tecnológicos”, “trabalho criativo e autônomo”, continuariam reproduzindo, a
cada instante, o campo de batalha entre os detentores dos meios de produção e os vendedores da força de trabalho,
ou seja, um constante processo de expansão e acumulação do capital.

Embora as diversas mudanças ocorrentes no mundo do trabalho tenham gerado questionamentos sobre a teoria do
valor de Karl Marx, indicando um possível fim da exploração da classe trabalhadora, o que se parece reproduzir
diariamente na vida de cada trabalhador é uma mesma dinâmica de exploração e contradições pelo autor apontado.
Se as transformações ocorridas sinalizam para novas formas de valorização do capital, que trariam embutidos em si
vários mecanismos de acumulação, vemos aflorar, a todo momento, a informalização crescente do trabalho,
as terceirizações e outros mecanismos de desregulamentação e a precarização da força de trabalho, tornando visível
uma série de fatores: alta rotatividade nas empresas, desemprego crescente, baixos salários, acúmulos de tarefas
para poucos trabalhadores, aumento de competitividade no mercado de trabalho. A terceirização, por exemplo, se
soma a esse processo de reestruturações e tem ocupado cada vez mais um lugar central nas formas de gestão e
organização. Ela funcionaria como uma maneira de renovação das formas de exploração no capitalismo, tendo em
vista que permitiria a redução de remuneração e descumprimento dos direitos trabalhistas. Em outras palavras,
terceirizar poderia significar a redução dos custos e ampliação do controle sobre a produção e sobre o trabalho.

As formas de trabalho atuais em nada beneficiam os trabalhadores. A imagem do melhor dos mundos e de um
cenário sem contradições, ou seja, do trabalhador criativo e independente, reconhecido pela empresa e que não se
submete à chefia, poderia estar ofuscando o antagonismo social caracterizado
pelo desempregocrescente, eliminação de direitos e precarização do trabalho. Ofuscam, sobretudo, a intensidade
ainda maior do ritmo, tempo e o processo de trabalho, essencialmente nas formas do trabalhador polivalente e
multifuncional. Diferentemente da imagem de libertação e autonomia dos trabalhadores há mais de trinta anos
estamos vivendo um processo de desenvolvimento particular de crise estrutural do capital e sua decadência. O
capitalismo global apresenta condições específicas para o desenvolvimento do capital, permitindo a ampliação da
precarização de maneira muito exacerbada. É importante ter em vista que, no capitalismo atual, a lógica do capital
perpassa as múltiplas atividades da vida social. Sendo assim, o que antes se restringia à indústria passa a atingir
todas as esferas da vida cotidiana, como, por exemplo, as relações interpessoais, a política e a educação.

O que é trabalhismo?

Nos novos moldes de produção torna-se necessária a combinação entre os padrões produtivos avançados e a
qualificação da força de trabalho. O vínculo desses dois fatores possibilita o aumento da superexploração da força
de trabalho baseado nos princípios de flexibilização, em que há liberdade para despedir empregados e estabelecer
os horários de trabalho conforme o aumento ou diminuição da produção, além das possibilidades de subdivisão da
jornada e tipos de contratações mais flexíveis, como as temporárias ou parciais. Há um ciclo neoliberal de
especialização e fragmentação que permite que cada vez mais o trabalho se desregule, distanciando-se das leis
trabalhistas. O resultado é visível por todos: uma demanda por uma força de trabalho de baixo custo e com pouco
ou nenhum direito.

Demonstração

Para demonstrarmos na prática, basta se pensar na indústria de call centers. No nosso cenário nacional, é evidente e
tudo indica que continuará crescendo nos próximos anos. Um setor que é relativamente novo, ao ver que 96% dele
foram criados em 1990, mas que nos últimos anos a maioria dessas empresas manteve e aumentou o volume de
negócios (82%) e pretende contratar novos empregados (67%) (Nogueira, A.; Bastos, F., 2009, p. 139). É interessante
notar, assim, que mesmo em momentos de crise do capital a indústria de teleoperadores continua em ascensão,
ainda que num ritmo menor. Além disso, o crescimento, embora ainda muito concentrado na região Sudeste, está se
deslocando para o Nordeste, nutrindo-se de um vasto contingente de trabalhadores jovens, especialmente mulheres
e negros, em busca de uma primeira oportunidade no mercado formal de trabalho. De tal forma, os dados
apresentados nos demonstram explicitamente a procura do capital por regiões que possuam as condições
necessárias para a sua autovalorização.

Segundo as novas premissas, as relações se fundamentavam em uma classe trabalhadora tipicamente fabril, em que
o operário era o único sujeito revolucionário

O telemarketing, como um dos setores que mais contrataram no mercado formal de trabalho no país nas últimas
décadas, costuma possuir uma seleção de trabalhadores com certas qualidades comportamentais, como a
disponibilidade, a flexibilidade e a prontidão para o aceite de determinadas regras. De tal maneira, em geral, são
contratados trabalhadores jovens, não qualificados ou semiqualificados, e que aceitam, forçadamente, as condições
de sub-remuneração oferecidas. Essa não necessidade de qualificação especial contribui para a elevada taxa de
rotatividade da força de trabalho presente nesse setor.

Para relacionarmos ainda mais com a nossa experiência no mundo do trabalho, temos o tão temido fenômeno do
desemprego, um processo ocorrido principalmente pela extração do alto grau de sobretrabalho de um número
mínimo de trabalhadores. A precarização do trabalho se torna explícita no aumento do número de trabalhadores
desempregados, de tal forma que o patamar de desemprego é muito alto, e a tendência que se iniciou em 1990
ainda não se reverteu. E não adianta se iludir: ele está presente em todos os setores de trabalho e segmentos, não se
limitando nem mesmo aos países capitalistas mais desenvolvidos. A condição de desempregado e a constante perda
de emprego constituem uma eficiente estratégia de dominação no âmbito do trabalho. Dada a necessidade de
emprego para a sobrevivência, propicia-se cada vez mais a aceitação pelos trabalhadores de um trabalho com o
máximo de tempo de serviço e o mínimo de salário.

Falsa ideia

Outro aspecto muito importante é a demanda de treinamentos especializados, qualificações, palestras motivacionais
e participações de cursos nas empresas, cada vez mais constante. Tal ação cria a ideia de investimento, de concessão
e de benefício voluntário, comprometendo o trabalhador com os interesses da empresa a longo prazo. Entretanto, a
que tais gastos são orientados senão ao próprio interesse capitalista?

Trata-se de entender, a partir disso tudo, que não há um esgotamento dos mecanismos de dominação do capital. A
ideia de que o caráter cognitivo presente nas novas formas de trabalho que indicam um esgotamento da teoria
marxista e uma libertação do trabalhador é falsa. Ao contrário, os trabalhadores presenciam e vivem diariamente o
aumento da insegurança do trabalho em suas mais variadas dimensões: na falta de segurança do emprego,
na Previdência Social e na representação política e sindical.

Algumas empresas usam recursos para transmitir a ideia de que estão investindo em seus funcionários, com
treinamentos especializados e palestras motivacionais

Toda organização da produção é a cristalização das relações sociais. É importante ressaltar aqui que não se trata de
negar a importância das transformações tecnológicas, mas de entender que a organização industrial modela as
formas que as transformações tecnológicas assumem. Nesse sentido, tais modificações não constituíram causas
independentes, mas são mecanismos que têm como objetivo recompor as formas de exploração e controle.

Os novos métodos de produção e organizações no trabalho não precisam, necessariamente, ser tecnologicamente
superiores para serem adotados. As transformações dependem muito mais de uma série de mecanismos que
ultrapassam a esfera do que é tecnológico ou não, ligando-se às instituições econômicas e sociais, aos interesses
capitalistas de valorização do capital e aos que detêm o controle da produção. As tecnologias não consistiriam,
assim, em formas determinantes da produção, e muito menos seriam neutras, mas fazem parte de uma estrutura
que busca recompor as formas de exploração e de controle, implementando projetos e racionalidade que são
classistas. O grande esforço que se deve realizar, nesse sentido, é de encarar que os elementos das forças produtivas
não podem ser analisados no processo de trabalho em si, mas nas relações de produção.

A sociologia do trabalho

Âmbito físico

Outro aspecto já apontado anteriormente está relacionado ao âmbito físico da produção. Segundo a nossa análise, a
partir do mapeamento bibliográfico sobre o tema, acreditamos que a característica física não importa do ponto de
vista do capital e da produção. Não importa o que se produz, mas como se produz. Nesse sentido, não importa se
produzo cadeiras ou softwares, ou seja, se é um produto físico ou não, mas se nessa produção o capital atinge a
produção de mais valor.

A luta de classes que vincula qualificação técnica e profissão e escolha do sujeito político, como as teses apontadas
anteriormente, é uma forma reducionista, ao ver que a materialidade não está relacionada ao conteúdo do trabalho
ou qualificações profissionais, mas às relações sociais. Do ponto de vista do capital e da produção, a característica
física do produto não importa. Não importa o que se produz, mas como se produz. Nesse sentido, é indiferente se a
produção tem se guiado para produtos imateriais, como softwares. Produzindo-se cadeiras ou softwares, ou seja, um
produto físico ou não, o essencial para o capitalismo é que se chegue à produção de mais valor. Não há,
consequentemente, diferença entre material e imaterial referente à reprodução das formas de valorização do
capital.

As modificações nas forças produtivas podem caracterizar uma ruptura, mas, na realidade, são um caminho para a
permanência do capital como relação social. De tal maneira, a necessidade do capital é cíclica, no sentido de que a
todo o momento o mesmo requalifica a força de trabalho para que ela responda às necessidades da autovalorização.
Em outras palavras, a padronização do trabalho se desenvolve pensando em submeter ainda mais as capacidades
dos trabalhadores ao processo de valorização do capital. A transformação do trabalhador é uma necessidade do
capital. As relações de produção capitalistas só podem se reproduzir transformando-se permanentemente. Há um
velho trabalho que é travestido constantemente de novo. E, sendo assim, Karl Marx não está fadado: ele só poderá
ser superado quando as condições contraditórias que deram origem a sua obra forem superadas.

*Bruna Fávaro é graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e membro do
Grupo de Pesquisa Classes Sociais e Trabalho na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

E-mail: brunatfavaro@hotmail.com

Adaptado do texto “As novas (velhas) formas de trabalho”

Revista Sociologia Ciência & Vida Ed. 64

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