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E-ISSN: 2179-8966
direitoepraxis@gmail.com
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro
Brasil
Acumulação primitiva, expropriação e violência
jurídica: expandindo as fronteiras da sociologia
crítica do direito
Primitive accumulation, expropriation and legal violence: expanding the
borders of critical sociology of law
Guilherme Leite Gonçalves
Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
E-mail: guilherme.leite@uerj.br
Recebido em 20/02/2017 e aceito em 22/04/2017.
Resumo
O presente artigo tem por objetivo indicar uma possibilidade de ampliação das
condições de compreensão da reprodução sócio-jurídica do capitalismo na
sociologia crítica do direito. Primeiramente, demonstro que o giro
antiprodutivista (de tipo habermasiano) renuncia a esse projeto
epistemológico, conduz a sociologia crítica do direito ao liberalismo-idealismo
e, com isso, produz um déficit analítico na compreensão da organização
jurídica das estruturas fundamentais da acumulação. Em seguida, pretendo
indicar que a crítica do direito (de tipo pachukaniana) oferece uma solução a
esse impasse, ao reconhecer que o dever ser já se encontra realizado nas
estruturas de desigualdade. Sustento, todavia, que tal crítica não consegue
esgotar as possibilidades de se conhecer a reprodução sócio-jurídica do
capitalismo, pois se limita a apreender a posição do direito apenas no
momento da troca de mercadorias. Para além desse momento, no entanto, o
desenvolvimento capitalista, pressionado por situações de sobreacumulação,
possui uma fase expansionista dirigida à tomada de espaços não-
mercantilizados, aonde se pode deixar fluir o excedente, abrindo um novo ciclo
de valorização. Essa fase será analisada por meio da noção de repetição
permanente da acumulação primitiva e da teoria da expropriação capitalista
do espaço. Minha hipótese é a de que, nessas condições, o direito aparece
como violência jurídica explícita e prescrição expressa da desigualdade. Sob
essas estruturas, afirmo que o direito opera com base em: discursos jurídicos
de othering (direitos humanos), regimes de privatização (parcerias público-
privadas) e direito penal (criminalização do protesto e da pobreza). Ao final,
argumento que o conceito de acumulação primitiva e a teoria da expropriação
capitalista do espaço têm potencial de fazer a sociologia crítica do direito
avançar no conhecimento da reprodução sócio-jurídica do capitalismo.
Palavras chaves: capitalismo; violência jurídica; acumulação primitiva; teoria
da expropriação do espaço.
Abstract
The present article aims to indicate a possibility of expanding the conditions of
understanding of the socio-legal reproduction of capitalism in the critical
sociology of law. First I demonstrate that the antiproductivist turn (following
the Habermasian form) resigns this epistemological project: It leads the critical
sociology of law to the liberalism-idealism and thereby produces an analytical
deficit in understanding the legal organization of the fundamental structures of
accumulation. Next, I suggest that the critique of law (following a
Paschukanian form) offers a solution to this deadlock by recognizing that the
“ought to be” (Sollen) is already achieved in the structures of inequality. I
argue however that such criticism can not exhaust the possibilities of
understanding the socio-legal reproduction of capitalism, since it embraces the
position of law only at the moment of the exchange of commodities.
Nevertheless, beyond this momentum the capitalist development, pressured
by situations of overaccumulation, has an expansionary phase oriented to the
taking of non-commodified spaces, where the surplus can flow, opening a new
cycle of valorization. This phase will be analyzed through the notion of
permanent repetition of primitive accumulation and the theory of Landnahme.
My hypothesis is that, under these conditions, the law appears as explicit legal
violence and prescription of inequality. Considering these structures, I state
that law operates on the basis of: legal discourses of othering (human rights),
privatization regimes (public-private partnerships) and criminal law
(criminalization of protest and poverty). Finally, I argue that the concept of
primitive accumulation and the theory of Landnahme have the potential to
make critical sociology of law to advance in the understanding of the socio-
legal reproduction of capitalism.
Keywords: capitalism; legal violence; primitive accumulation; theory of space
expropriation.
1. Introdução 1
A crítica social sempre encontrou dificuldades para conhecer o fenômeno
jurídico. Na verdade, seu principal obstáculo tem sido um desejo (que de
tempos em tempos reaparece) de esboçar um programa normativo para o
direito, que fosse capaz de induzi-lo como meio de emancipação,
transformação social ou bastião das classes oprimidas. Esse desejo tem, por
diversas oportunidades, gerado sérios déficits analíticos e descritivos nas
formulações da sociologia crítica do direito.
Tais déficits podem ser encontrados tanto em um nível macro quanto
microssociológico. Em relação ao primeiro, o desejo por um programa
normativo tem levado a sociologia crítica do direito a não conseguir perceber a
ordem jurídica enquanto uma das estruturas fundamentais do capitalismo. Em
relação ao segundo nível, ele tem desprovido a sociologia crítica do direito de
instrumentos analíticos para compreender as reestruturações regulatórias
promovidas nas diversas fases da acumulação do capital. Esse último problema
fica ainda mais claro quando os diferentes programas normativos são
confrontados com as transformações jurídicas e institucionais do
neoliberalismo. Indiferente a isso, o desejo permanece, todavia, contrafactual
e se converte em idealismo jurídico.
Tomarei esse desejo como o ponto de partida para investigar uma das
principais questões epistemológicas da sociologia crítica do direito: a
possibilidade (limites e extensão) de se conhecer a reprodução sócio-jurídica
do capitalismo. Essa investigação será conduzida a partir de um diálogo com o
debate sociológico desenvolvido em língua alemã. Outras referências teóricas
1
A primeira versão deste artigo apareceu como “Kapitalistische Landnahme: Eine Erweiterung
der kritischen Rechtssoziologie” na Série Working Paper 3/17 do DFG -
Kollegforscher_innengruppe Postwachstumsgesellschaften. Gostaria de agradecer a Benjamin
Seyd, Emma Dowling, Florian Butollo, Karina Becker, Klaus Dörre, Ligia Fabris Campos, Maria
Backhouse e Yannick Kalff pelas críticas e sugestões, que recebi durante minha estadia como
Senior Fellow no Kolleg Postwachstumsgesellschaften da Friedrich-Schiller-Universität Jena, na
Alemanha, no inverno de 2017. Gostaria de agradecer, ainda, a Carolina Vestena, Cesar Mortari
Barreira, Lena Lavinas, Manuela Boatca, Paulo Fontes, Sergio Costa e Virginia Fontes por
comentários essenciais para o desenvolvimento da presente pesquisa.
2
Essa escolha se deu simplesmente porque, como assinalado na primeira nota de rodapé, o
presente artigo foi originariamente formulado para intervir no debate alemão. Isso me levou a
privilegiar a literatura oriunda desse debate e desconsiderar trabalhos fundamentais sobre
acumulação primitiva, como, por exemplo, os de Ellen Wood, Massimo de Angelis, Virginia
Fontes e os teóricos dependentistas. Trata-se, no entanto, do primeiro passo de uma pesquisa
em desenvolvimento, cujas próximas etapas deverão incorporar as lacunas existentes.
3
A crítica ao modelo habermasiano (descrita nos parágrafos seguintes) foi anteriormente
desenvolvida em Gonçalves 2014.
4
A literatura é vastíssima. Ver, a título de exemplo, Brunkhorst 2002, Fassbender 2009, Günther
2009, Habermas 2004, Walker 2007. Para uma crítica que mostra como os mecanismos do
direito cosmopolita reforçam as desigualdades globais, ver Boatcă 2015, Gonçalves e Costa
2016.
forma jurídica (Buckel 2007 e 2010; Elbe 2004, 2008 e 2009; Harms 2000;
Naves 2000). Essa proposta é formulada a partir de um diálogo com a teoria
marxista do direito, de Eugen Pachukanis (2003[1924]). Trata-se de um debate
principalmente teórico que busca apresentar a crítica ao direito como
elemento central da crítica ao capitalismo e resgatar o materialismo histórico
como método de investigação das contradições do direito.
3.1. Crítica à forma jurídica
A crítica pachukaniana à forma jurídica oferece um conceito de direito que,
construído a partir da teoria do valor, objetiva analisar o direito na socialização
capitalista. (Elbe 2004). Seu ponto de partida é a concepção de Marx segundo
a qual, na sociedade capitalista, a sociabilidade do trabalho adquire a forma de
valor (Heinrich 1999). Isso implica que, no capitalismo, o trabalho individual
concreto realiza-se somente por meio da permutabilidade dos produtos, o
que, por sua vez, torna a forma do valor condição necessária da socialização.
Uma vez que a troca de mercadorias iguala diversos produtos uns aos outros,
ela cria uma igualdade abstrata entre diferentes trabalhos, que, a partir de
medidas – como, por exemplo, o trabalho social médio –, possibilita a
autorreprodução da desigualdade e da própria apropriação do trabalho. A
forma do valor adquire, assim, um caráter fetichista e místico.
Para a crítica da forma jurídica, a relação da forma do valor com o
direito surge da teoria da mercadoria (Paschukanis 2003[1924]: 112). Seu
ponto de referência é um trecho clássico de Marx (MEW, 23: 99), escrito no
primeiro volume de O Capital:
As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e se
trocar umas às outras. Temos, portanto, que olhar para os seus
guardiões, para os proprietários das mercadorias. As mercadorias
são coisas; são incapazes de resistir aos homens. Se elas não se
mostram solícitas, o homem pode empregar violência contra elas,
isto é, pode tomá-las. Para relacionar essas coisas umas às outras
como mercadoria, seus guardiões precisam se relacionar como
pessoas cuja vontade reside nessas coisas, de modo que alguém
só se apropria da mercadoria estranha ao vender a sua própria;
em consonância, portanto, com a vontade do outro, por meio de
um ato de vontade comum a ambos. Eles precisam, assim, se
reconhecer reciprocamente como proprietários privados.
abstrato atores iguais, que podem trocar livremente mercadorias e vender sua
força de trabalho. Ao mesmo tempo, porém, possibilitam, na instância
material, a imposição de interesses privados e desigualdades. Assim, discursos
e instituições jurídico-democráticas se configuram como uma das formas
sociais que possibilitam o desenvolvimento do capitalismo e seus mecanismos
de exploração, sem que seja necessário aplicar meios de violência direta e não-
econômica. Aqui, operam-se as relações fetichizadas e reificadas do capital.
Essa configuração possibilita conceber a forma jurídica como
mecanismo de coesão social.5 Dessa perspectiva, a sociedade capitalista é
caracterizada pelo processo de redefinição das desigualdades estratificadas
então existentes. Esse processo contem um potencial elevado de
desagregação social (soziale Auflösung), pois implica a ruptura e a
fragmentação da concepção religiosa, unitária e transcendental do mundo que
determinava o socialmente possível nas sociedades pré-modernas (De Giorgi
1980: 21ff.). De maneira oposta a estas últimas, a sociedade capitalista
decompõe e distingue o agir em diversas esferas sociais diferenciadas e
desiguais. Tem-se, assim, uma criação permanente de insegurança e
volatilidade das relações sociais (id.: 22).6
A reprodução da desagregação e das desigualdades constrange a
própria sociedade a afrontar o problema da coesão do agir. Como, no entanto,
sob condições capitalistas, as desigualdades e a desagregação não podem ser
eliminadas, a coesão torna-se possível apenas como abstração (Badaloni
1972). Para tanto, a sociedade capitalista estrutura um universo de abstrações
e formas que se descola da realidade objetiva das relações de produção (que é
a estrutura da desigualdade) e se apresenta como um sistema normativo de
coordenação das ações. Esse sistema é o direito (De Giorgi 1980: 22).
O direito torna possível a coexistência, mas apenas enquanto
abstração. Em outras palavras, o direito estabelece um plano de indiferença à
5
A literatura sobre direito como forma de coesão social é ampla. Particularmente relevante foi a
contribuição dada pela sociologia marxista do direito italiana na virada dos anos 1970-80,
bastante influenciada por Galvano Della Volpe. Ver, entre outros, Badaloni 1972; Barcellona
1978; Cerroni 1974; De Giorgi 1980. Atualmente esse tema foi desenvolvido por Buckel 2007 e
2010.
6
Lembre-se que, conforme as palavras de Marx e Engels (MEW 4: 472), “a subversão contínua
da produção, o abalo incessante de todas as condições sociais, a insegurança e a agitação
perpétuas distinguem a época burguesa de todas as anteriores”.
7
No debate alemão, esse processo expansionista do capitalismo para espaços ainda não
mercantilizados é descrito por diferentes substantivos Aneignung, Enteignung, Expropriation,
Usurpation, Landnahme, Eroberung etc. Optei pelo termo “expropriação” como a categoria
genérica que abrange todas essas práticas. Farei, no entanto, referência às outras noções
(apropriação, desapropriação, usurpação, espoliação do espaço, conquista etc.) conforme a
exigência de afirmações, teses e conteúdos específicos. Minha opção por “expropriação” como
categoria genérica se deve à reflexão fundamental que Virgínia Fontes (2010) desenvolve entre
nós. Como já ressaltado na nota de rodapé n. 2, o modelo de Fontes não será, no entanto, nesse
momento discutido em razão do escopo do presente artigo.
8
O termo alemão Landnahme significa literalmente “tomada da terra”. Sua origem teórica
encontra-se em Luxemburgo que atribuiu à expansão capitalista o conteúdo do colonialismo dos
países não-europeus. Conforme aplicado por Dörre, essa noção adquire um sentido mais amplo.
É a invasão, tomada e ocupação de um espaço ou grupo social para a exploração de toda sua
potencialidade e mercantilização. Nesse sentido, optei pela tradução “expropriação capitalista
do espaço”. Essa opção se baseia, mais uma vez, na influência da reflexão desenvolvida por
Virginia Fontes entre nós, conforme explicado na nota de rodapé n. 7. Nesse sentido, é
importante ressaltar que a presente opção de tradução se diferencia de duas escolhas
anteriores que eu havia feito. Quando fui revisor de um trabalho de Dörre (2015a) ao português,
achei melhor manter a expressão Landnahme no original em alemão. Em um texto de minha
autoria anterior (Gonçalves 2016), adotei a tradução espoliação do espaço. Tudo isso revela a
dificuldade de expressar o sentido que o termo alemão contem. Uma dificuldade compartilhada
pelos tradutores de Dörre em língua inglesa. Ver, nesse sentido, Dörre/Lessenich/Rosa 2015: 4.
É importante ressaltar, ainda, que o conceito de Landnahme não pode ser reduzido à expressão
inglesa land grabbing que, bastante difusa no debate contemporâneo, possui um sentido técnico
muito preciso: aquisição ilegal de grandes porções de terras por companhias transnacionais,
governos estrangeiros ou pessoas privadas para produzir alimentos ou biocombustíveis em alta
escala. O leque e o objetivo teórico do termo Landnahme são muito maiores. Trata-se de um
conceito macrossociológico, isto é, reflete diferentes processos de expropriação de um espaço
social lato sensu (não se resumindo a um território geográfico, mas contendo também relações
sociais) com fins de mercantilizá-lo.
9
O título oficial da respectiva lei é L 87.
10
A literatura sobre o precariado é ampla. Ver, entre outros, Dörre 2013 e 2015b; Standing
2011.
11
Esse caso foi amplamente analisado em outra oportunidade: Schacherreiter e Gonçalves 2016.
conquistas: reações do sistema aos seus estados de crise que ativam uma
repetição permanente da acumulação primitiva. Como o capitalismo se
reproduz juridicamente sob tais condições? A resposta aqui apresentada é a de
que o direito não aparece como forma, mas como violência jurídica explícita e
prescrição expressa da desigualdade. Com essa resposta, o objetivo do
presente texto foi apenas o de acenar para o fato de que a teoria da
expropriação capitalista do espaço tem um enorme potencial de fazer a
sociologia crítica do direito avançar em sua possibilidades de conhecer a a
reprodução sócio-jurídica do capitalismo.
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Sobre o autor:
Guilherme Leite Gonçalves
Professor de Sociologia do Direito na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
e bolsista produtividade do CNPq. Foi Senior Fellow do Kolleg
Postwachstumsgesellschaften da Friedrich-Schiller-Universität Jena (2017) e
Visiting Fellow na International Research Network "DesiguALdades.net" da
Freie Universität Berlin (2015-2016). Foi também Professor Visitante na Freie
Universität Berlin (2013-2014). E-mail: guilherme.leite@uerj.br
O autor é o único responsável pela redação do artigo.