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A FRAUDE

A ideia de que somos uma fraude, torna a vida muitíssimo mais interessante, e inspira hoje
como no passado, um vasto leque de pensadores da psicanálise às artes cénicas. A
representação e as falsas aparências da vida diária, compõem “La Comédie Humaine” de Balzac,
Baudelaire, Thomas Mann e Freud.

A autenticidade dos gestos e das palavras, tão aclamada como ex-líbris do bom carácter, não
existe. Sempre que alguém se auto-intitula autêntico apenas constata o vazio angustiante que
separa a persona da personagem no Teatro Mundi. Tais expressões, por vezes alheias ao
ridículo, são resquícios de consciência da individualidade decadente – apelos da Biologia que faz
sentir a singularidade preciosa no caldeirão para onde nos empurra a sociedade.

Mas quem se preocupa com a verdade? Quem quer saber quem de facto é? Será isso possível?
Será que não saltaríamos da ponte para a morte certa quando confrontados com a mesquinhez
que arduamente disfarçamos todos os dias com altruísmo, inteligência e charme?

Quem suportaria identificar-se no idiota que mente a si próprio e prefere ser mau actor ao tédio
da plateia?

Actores em todos os lados. Porteiros, lojistas, médicos, taxistas, juristas, directores, coaches e
outros, em papéis ridículos iluminados por escassos segundos de holofote. Nas ruas as roupas,
sapatos, relógios e adereços apropriaram-se de fantoches agitados, vaidosos, joguetes da
doutrina mestra na arte de criar necessidades.

Na selva social obedece-se à lei da sobrevivência para fazer face a necessidades vitais: a última
tendência da grife, o destino turístico da moda, e o i-phone que ainda não saiu.

A utopia de Marx faz-nos sorrir de admiração tal como a estátua perfeita de Apolo. Bem sabendo
que o sonho é maior que o sonhador, a criação só é perfeita porque apenas existiu na mente
brilhante do artista e pertence ao mundo da arte.

Da direita à esquerda as ideologias foram absorvidas pelo Capital e o governo do estado não
tem cor. Investe-se de paternalismo populista ao cidadão distraído que relaxa em atividades
comezinhas de entretenimento. Entretanto predadores económicos tiram partido desta entrega
dos interesses públicos e privados à protecção do Estado. Mais difícil seria manipular uma
diversidade de indivíduos críticos e atentos.

A ignorância é um lugar cómodo, tranquilo e imensamente feliz que ninguém quer, por isso a
sapiência é apregoada e vendida em workshops para todos os gostos da culinária à física
quântica. Um atentado ao conhecimento que pressupõe uma importante quota de esforço e
trabalho individual de aprendizagem e assimilação, pouco atactivo a um mundo sem tempo, que
corre apressado para lado nenhum. Na era do “compra-se tudo pronto” o conhecimento não
escapa. Opiniões, conceitos, teses e licenciaturas tudo se vende na sociedade de mercado que
esconde o facto de que não há nada que alguém ganhe que outro não perca.

O cidadão não assume papel social activo por medo, incapacidade ou preguiça, e assim se
incrementam poderes intangíveis, feitos do somatório dos seus desânimos e desistências.

O homem suscita crença e ilusão, engana e quer ser enganado, deleita-se na “farsa do homem
feliz” e no prazer de ludibriar, de sentir-se mais esperto que os demais. É um apelo que lhe chega
não sabe de onde e lhe come a dignidade, uma incrível sensação de poder, a única para lá da
posse de dinheiro… talvez porque faça esquecer o desígnio dos dias absurdamente iguais.

Ávidos de ficção, preferimos a tirania da fraude e, sem dar por isso, estamos a viver de pão e
circo como no tempo de Nero, enquanto a vida passa por nós com desdém.

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