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Michael Cole
Universidade da California
Resumo
Palavras-chave
Correspondência:
Lucia Willadino Braga Interação social — Aprendizagem colaborativa — Desenvolvimento
SMHS Quadra 501 conj. A - Térreo cognitivo — Paralisia cerebral — Reabilitação.
70335-901 – Brasília – DF
e-mail: luciabraga@sarah.br
Michael Cole
Universidade da California
Abstract
Keywords
134 Lucia BRAGA, Luciana ROSSI e Michael COLE. Criar uma idiocultura para promover...
Dimensão a crianças com tentada.
necessidades especiais Nós iniciamos o programa plenamente
conscientes de que, mesmo para a população
A Quinta Dimensão normalmente funci- cujo programa foi originalmente criado, a
ona em instituições comunitárias que por na- Quinta Dimensão variava amplamente em de-
tureza são inclusivas. Isso levou à participação talhes de implementação de idiocultura. Então,
de crianças com necessidades especiais com nós, de fato, estaríamos criando uma verdadei-
outras crianças. A natureza das necessidades es- ra nova idiocultura sem precedentes. Já esta-
peciais dessas crianças varia amplamente: algu- va largamente demonstrado que o modelo po-
mas estavam em uso de medicamento para me- deria ser efetivamente usado em uma ampla
lhorar os sintomas da desordem de atenção e variedade de ambientes culturais fora dos Es-
hipera-tividade, outras tinham retardo mental e tados Unidos. Já havia sido adotado com su-
uma delas, diagnóstico de Síndrome de Asperger. cesso na Rússia, na Finlândia, no México e no
Após vários anos de realização da Quinta Dimen- Brasil em ocasiões anteriores1.
são e a aplicação em inúmeros casos, evidências
informais mostraram que crianças com necessi- A quinta dimensão na Rede
dades especiais se beneficiaram tanto do progra- Sarah de Hospitais de
ma quanto crianças cuja única necessidade era a Reabilitação em Brasília, Brasil
melhora do desempenho acadêmico.
Em 2002, os autores do presente artigo A Rede Sarah de Hospitais de Reabilita-
tomaram conhecimento dos trabalhos um do ção consiste de nove unidades. Dentre estas,
outro durante uma conferência sobre dois são Centros Internacionais de Neurociência
Alexander Luria e seu trabalho na reabilitação e Neurorreabilitação dedicados primariamente
de pessoas que sofreram lesão cerebral. Lúcia ao atendimento de problemas neurológicos em
Willadino Braga, uma neurocientista brasileira crianças e adultos. Os pacientes atendidos na
cujo foco de atendimento clínico e pesquisa é Rede Sarah são provenientes dos quatro cantos
a reabilitação de crianças com paralisia cerebral do Brasil, com uma ampla variedade de nível
e lesão cerebral traumática, mostrou-se interes- econômico, social e educacional. Grande parte
sada na forma como Michael Cole, inspirado da população infantil atendida apresenta para-
em Luria (1973) e Vygotsky (1978), estava de- lisia cerebral ou lesão cerebral traumática. Essas
senvolvendo projetos para o enriquecimento crianças são atendidas em várias modalidades de
educacional de crianças. Cole, que havia sido tratamento em diferentes subespecialidades. A
aluno de pós-doutorado de Luria, começou a arquitetura da Rede Sarah foi concebida pen-
pensar no potencial da aplicação da Quinta sando no bem-estar do paciente. Áreas internas
Dimensão como uma forma de reabilitação de e externas são integradas com amplos ginásios,
crianças com necessidades especiais, baseado salas com brinquedos, parques e piscinas. A
na evidência fragmentária da eficácia de expe- Rede também dispõe de extensa infraestrutura
riências anteriores com uma grande diversida- de cirurgia, reabilitação, diagnóstico por ima-
de de crianças. Desse interesse mútuo, o pre- gem e apoio à pesquisa tais como ressonância
sente projeto nasceu. A questão central que magnética funcional e laboratórios de movi-
procuramos atender foi se o modelo básico da mento2.
Quinta Dimensão poderia ser adaptado para O projeto da Quinta Dimensão na Rede
uso em um hospital de reabilitação. A ideia de Sarah é desenvolvido no Centro Internacional
criar um programa de reabilitação para um
1. Para maiores informações sobre a generalização das atividades do
grupo grande baseado nos princípios da psico- sistema em diversas de fronteiras culturais, ver http://www.uclinks.org.
logia histórico-cultural ainda não havia sido 2. Para maiores informações, consulte http://www.sarah.org.
136 Lucia BRAGA, Luciana ROSSI e Michael COLE. Criar uma idiocultura para promover...
to. Além desses desafios, algumas crianças apre- Sarah de reabilitação infantil é fundamentado
sentavam déficit de atenção e problemas de visão no contexto e na participação familiar e o pa-
(estrabismo, problemas de acuidade visual e pel da família no projeto precisava ser pensa-
hemianopsia). O nível socioeconômico das famí- do (Braga; Campos da Paz, 2008). Diferente-
lias apresentava grande variação, assim como o mente do modelo original da Quinta Dimensão,
nível educacional dos pais era bastante heterogê- as crianças tratadas na Rede Sarah não moram
neo – de ensino fundamental incompleto a dou- nas redondezas do hospital, possuem problemas
torado. O programa de atividades das crianças de locomoção e dependem das famílias para
corria em paralelo com o calendário escolar. Em trazê-las ao centro de reabilitação, dessa forma,
média, cada criança participou de 57 horas de ati- a criança sempre está na companhia dos pais.
vidade por semestre, divididas em dois períodos Deparamo-nos então com a questão do papel
vespertinos por semana. dos pais na Quinta Dimensão. Inicialmente os
pais chegavam às salas do projeto, localizadas
Adaptações iniciais para o na área de reabilitação e especialmente adapta-
grupo de crianças com paralisia das para esse fim, ávidos em participar das ati-
cerebral vidades de seus filhos com os estudantes uni-
versitários. Essa reação dos pais é perfeitamen-
Computadores – Novos softwares com te normal, haja vista que eles se acostumaram
modalidade de controle de voz foram desen- a mediar as interações de seus filhos com ou-
volvidos e ajustados para as crianças com dé- tras pessoas. O intuito dos pais era apenas de aju-
ficit motor ou problemas cognitivos para a dar os filhos a usufruírem o máximo da experiên-
escrita. Essas adaptações facilitaram a comu- cia. No entanto, eles logo perceberam que as cri-
nicação com a figura mítica no envio de e-mail anças estavam estabelecendo relações com os es-
ou voice-mail. O tamanho da fonte foi tudantes sem a necessidade de ajuda. Algumas cri-
maximizada para atender aos problemas visu- anças chegaram a pedir aos pais que aguardassem
ais e novas interfaces foram criadas para con- fora da sala de atividades. Para acomodar essa
templar aqueles com dificuldades em usar o nova situação, foi criado, dentro do projeto, um
teclado tradicional devido a problemas moto- espaço específico para os pais: um grupo aberto,
res. de apoio, para debates, discussões e troca de ex-
Projetos individuais – O potencial, limite e periências entre famílias e equipe de reabilitação.
grau de desempenho das crianças com lesão ce- O grupo era de natureza psicoeducacional, permi-
rebral é bastante variável e está associado a fato- tindo aos pais aprender com as experiências uns
res biológicos, culturais e epistemológicos (Braga; dos outros. Durante as sessões, lideradas por psi-
Campos da Paz, 2008). Algumas crianças com le- cólogos da equipe, as famílias conversavam sobre
são cerebral não atingem níveis específicos de suas vidas em casa, seus sentimentos e pensamen-
desempenho em algumas tarefas, i.e., uma crian- tos sobre o projeto, mudanças que eles estavam
ça com déficit cognitivo pode não ser capaz de percebendo em suas crianças, sugestões ao pro-
alcançar diferentes fases de um jogo de videogame grama. Outros pontos também eram discutidos,
cuja complexidade aumenta gradativamente. Nes- tais como desenvolvimento infantil, reabilitação,
se sentido, foram necessários ajustes e elaboração aprendizagem e formas de enfrentamento.
de estratégias, tais como a graduação do grau de Curso para os estudantes universitários –
dificuldade no labirinto e o desenvolvimento de O curso foi organizado em três módulos a cada
programas individuais com base na potencialidade semestre. No módulo I, aos novos estudantes, são
de cada criança, o que estava relacionado ao pa- dadas informações sobre as atividades com as
pel de cada um na microcultura do projeto. crianças, elaboração de relatórios de atividades,
Participação das famílias – O Método debates, discussões, mudanças ocorridas no sis-
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interações com as crianças foram fatores im- cemos juntos e depois vemos o que a crian-
portantes no estabelecimento de conexões ça aprendeu. Aprendi pessoalmente... mu-
entre prática com as crianças e a teoria do de- danças que aconteceram comigo, coisas que
senvolvimento infantil. Os comentários dos levarei para minha vida futura...”.
alunos podem ser agrupados em três catego-
rias: 1) compartilhamento de interesses comuns Discussão
com as crianças; 2) várias dimensões de
interação; e 3) como aprenderam além do que No presente artigo, nós sumarizamos
esperavam, a associação entre prática e teoria nossa tentativa de adaptar um sistema de ati-
e o compar-tilhamento dos relatórios. vidade educacional chamado Quinta Dimensão,
1. Durante o processo onde vivenciaram e originalmente concebido para ser aplicado em
compartilharam interesses comuns com as crianças estadunidenses com dificuldades esco-
crianças, os alunos começaram a compreen- lares, para um ambiente hospitalar no Brasil. De
der os objetivos do projeto. “Como nós estu- uma maneira geral, os achados qualitativos in-
dantes, somos mais novos, temos muito em dicam ganhos e mudanças positivas no desen-
comum com as crianças no que diz respeito volvimento de crianças com paralisia cerebral
ao que acontece no mundo, cultura pop, jo- após o início da participação na versão brasileira
gos e formas de pensamento”. do programa. Esses ganhos foram relatados
2. Eles perceberam as várias dimensões de pelos pais e pelos estudantes universitários que
interação. “Uma das coisas que fez a Quinta trabalharam e brincaram com as crianças como
Dimensão tão importante foi o local – o parte central da atividade. Consequentemente,
hospital, o tratamento – onde, muitas vezes, podemos concluir que a abordagem da Quinta
as crianças não têm voz. Aqui ela pode dizer Dimensão para favorecer o desenvolvimento in-
do que gosta ou não gosta; podem ser elas telectual e social das crianças é aplicável em
mesmas sem terem que se enquadrar em um uma ampla variedade de populações.
modelo preestabelecido – elas podem apren- Além dessa conclusão geral, gostaríamos de
der quem são como indivíduos. Elas levam levantar outros pontos sobre como interpretar
esse novo aprendizado para a escola, para a esses resultados preliminares e o seu significado
família, para a interação com os amigos. As- potencial como parte de um regime de reabilita-
sim se sentem mais felizes, porque mais li- ção para crianças com várias formas de lesão ce-
vres”. rebral precoce. Se adotarmos o conceito
3. Os alunos perceberam o envolvimento da socioecológico chamado “contexto”, representado
criança em atividades desafiadoras, estimu- por um grupo de círculos concêntricos nos quais
lantes e, nesse contexto, aprenderam a esta- a atividade focal está no centro ou próxima do
belecer associações entre as teorias do de- centro, o contexto constitui e é constituído por
senvolvimento e a interação social, assim diferentes níveis que se distanciam do centro
como aprenderam algo que não esperavam: (Cole; The Distributed Literacy Consortium, 2006).
“Eu nunca tinha visto ninguém com paralisia Uma atividade ecologicamente integrada de rea-
cerebral antes, então a gente chega aqui bilitação, na qual estão implícitos, de forma dire-
pensando: – eu gostaria de voltar para trás... ta ou indireta, os diferentes níveis contextuais de
Então começamos o programa e encontra- vida do sujeito, poderia então produzir efeitos
mos essas crianças maravilhosas! Nós demos mais significativos sobre o desenvolvimento da
para estas crianças incríveis um pouco de criança com lesão cerebral, do que atividades
nós mesmos e eles nos deram muito mais de mecânicas, repetitivas, como historicamente já
volta. Acho que o projeto é bom para todos, foram realizadas.
para as crianças e para o aluno, porque cres- Desde os anos 1980, a Rede Sarah vem
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Referências bibliográficas
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Recebido em 07.12.09
Aprovado em 03.02.10
Lucia Willadino Braga é neurocientista, PhD em Psicologia (Universidade de Brasília), doutora Honoris Causa (Universidade
de Reims), presidente e diretora executiva da Rede Sarah de Hospitais Neurorehabilitação.
Luciana Rossi, psicóloga com mestrado em Ciências da Reabilitação, é a líder da equipe multidisciplinar de
neurorehabilitação. Pediatra e coordenadora do Programa de Neurorehabilitação Pediátrica na Rede Sarah de Hospitais de
Neurorehabilitação.
Michael Cole é notável Professor de Comunicação, Psicologia e Desenvolvimento Humano na UCSD. Cole é mais conhecido
por seu trabalho sobre a cultura e o desenvolvimento inspirado pela obra de L. S. Vygotsky e A. R. Luria.