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R. Ra’e Ga DOI: 10.

5380/raega
Curitiba, v.42, p. 288 -294 , Dez/2017 eISSN: 2177-2738

RESENHA
AS DEZESSETE CONTRADIÇÕES E O FIM DO CAPITALISMO

Flávio Ribeiro de Lima1

Recebido em: 06/03/2016


Aceito em: 29/11/2017

Grande esforço e brilhantismo teórico e motor desse sistema, levando-nos a adaptarmo-


reflexivo demarcam a obra do geógrafo David nos aos novos estágios de acumulação de capital
Harvey² 12cujos argumentos analíticos repousam, e a vivermos como se estivéssemos amarrados ao
sobretudo, na teoria marxista. A obra 17 sistema.
Contradições e o fim do capitalismo3 invoca os A grandeza da discussão recupera, de
efeitos econômicos, políticos e sociais mediante modo sucinto, discussões iniciadas por uma gama
as diversas crises que o sistema capitalista tem de autores ilustres (dentre os quais, destacamos
sofrido ao longo do tempo, buscando Karl Marx, Henri Lefebvre, Karl Polanyi, Guy
compreender suas limitações e ajudando-nos a Debord, André Gorz e inúmeros outros), de modo
pensar como superá-las. a recupera-las aos dias atuais.
A compreensão da lógica de superação Emerge então o argumento de que as
das crises é o caminho percorrido por Harvey crises são manifestações internas do capital; por
para empreender uma crítica ao modo como o isso mesmo o autor objetiva analisar as 17
sistema capitalista conforma a vida cotidiana, contradições que serão aqui apresentadas, de
tendo em vista que, à medida que o sistema se modo a formular respostas – contraditórias em
revitaliza, aumentam-se os níveis de exploração: certos momentos – aos problemas que temos
tanto a humana quanto a de recursos naturais. enfrentado, demonstrando, sobretudo, qual
Da mesma forma, aumentam os níveis de poderia ser sua eventual realocação (HARVEY,
subordinação que, por sua vez, funcionam como 2014: p. 25).
Nota-se um delicioso movimento, que vai
1 da totalidade do urbano ao plano do cotidiano da
Universidade Federal do Paraná, UFPR, Curitiba/PR, e-mail:
flavior_lima@hotmail.com população, que elucida os caminhos teóricos e
2
David Harvey é professor catedrático do Departamento de
Antropologia da City University of New York Graduate School
metodológicos percorridos nessa construção.
3
Para a execução deste texto, debruçamo-nos sobre a obra Para tanto, observa-se que foi necessário
original (em inglês) lançada no ano de 2014. Para melhor desmistificar as contradições existentes no
situar as reflexões do autor e indicar de modo coerente os âmago da sociedade, por meio de tensões entre a
termos aqui demonstrados, recorremos à versão da obra em
realidade e a aparência, desvendando o que
espanhol, lançada em 2015 na Espanha e no Equador. Sendo
assim, as traduções dos respectivos excertos aqui sucede verdadeiramente por trás das múltiplas
mencionados, bem como as indicações, foram realizadas pelo capas de aparências superficiais muitas vezes
autor e poderão ser encontradas na versão original. Vale enganosas em nossas vidas. Esse percurso implica
lembrar que, no momento em que estávamos a finalizar este
a compreensão do conceito marxista de
texto, a editora brasileira Boitempo lançou a versão da obra
em português. fetichismo que, em larga medida, representa as
diversas máscaras, disfarces e distorções do que

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sucede realmente no mundo que nos rodeia Harvey demonstra como o dinheiro oferece ao
(p.20). sistema capitalista a possibilidade de medir o
A obra está dividida em três momentos de valor de diferentes mercadorias, do qual a força
discussão, propostos como: contradições de trabalho, que é por ele obscurecida, serve-nos
fundamentais (os primeiros sete capítulos); a de expressivo exemplo. Isso em razão de o
segunda parte, nomeada como as contradições dinheiro representar o valor social de todas as
dinâmicas (do oitavo ao 14º capítulo); e a terceira atividades, de todos os trabalhos, sendo o
parte, em que se discorre sobre as contradições intermédio pelo qual os proprietários dos meios
perigosas (do capítulo 15º ao 17º). Vale lembrar de produção podem reivindicar o trabalho social
que os três momentos não se separam, mas sim que será aplicado pelo operário.
se entrelaçam, prendendo a atenção do leitor O dinheiro permite, em primeira ordem, a
desde o início até o fim. passagem da relação simbólica que possui para
Uma das características admiráveis em uma relação de poder. No entendimento do
Harvey é a dimensão do horizonte geográfico autor, o dinheiro falsifica as formas de
mundial apresentado por meio dos ricos e representação do trabalho social; mais que isso,
oportunos exemplos das diversas cotidianidades cria um conjunto de máscaras (fetiche) que
expostas. oculta a socialização do trabalho (p. 46). É
Ao apresentar as primeiras contradições, exatamente essa disparidade que representa a
as fundamentais, Harvey lembra que essas são segunda contradição.
constantes e que possuem papel dominante no A propriedade privada e o Estado
sistema capitalista: sem elas, o capital sequer capitalista (terceira contradição) são trazidos ao
poderia sustentar-se. debate de forma sucinta nas simulações
O autor apresenta a primeira contradição, desenvolvidas pelo autor. Isso porque o direito à
valor de uso e valor de troca, com magnificência, propriedade privada confere a possibilidade de
lembrando, inicialmente, que os valores de uso vender (trocar) o que é de posse. Porém, a
são infinitamente variados e que os de troca são imposição desses direitos depende da existência
qualitativamente idênticos. Para exemplificar a dos poderes estatais, de um sistema jurídico e de
primeira contradição, ele traz o exemplo do valor um sistema legal que codifique e defina as
de uso e de troca de uma moradia. Nesse caso, o obrigações contratuais que correspondem ao
valor de uso aplica-se quando se realiza um direito de propriedade privada e ao direito dos
financiamento a fim de adquirir uma moradia indivíduos jurídicos individuais. Embora sejam
com o intuito de habitar. Já o valor de troca traz antagônicos, Estado e capital andam juntos,
consigo uma série de signos (interesses, realizam-se por meio de acordos comercias e
ganância, especulação) e condicionantes alianças (p. 58). No entendimento de Harvey, é
(localização, materiais utilizados em sua exatamente o uso desse poder que se legitima
construção, tamanho do terreno e outros) que o por meio de imposição da violência contra os
determinam (p. 58). Essas diferenças convertem grupos desfavorecidos na grande maioria dos
a moradia (e não apenas nesse exemplo, mas na casos, visando à proteção e centralização de
educação, na saúde etc.) num artigo riquezas, que torna a propriedade privada, um
ressignificado, num objeto de especulação. Isso regime de direitos repleto de contradições.
porque ela agrega não apenas o preço do habitar Na apresentação da quarta contradição,
e sim uma série de outros elementos (acima Apropriação privada e riqueza comum, Harvey se
especificados) necessários à reprodução do debruça na compreensão dos modos de
capital que, por sua vez, desencadeia bolhas mercantilização e monetarização de tudo que
especulativas no mercado imobiliário. existe sobre a terra nos dias de hoje. Isso porque
Na segunda contradição, o valor social do trabalho (atividade essencial), terra (natureza
trabalho e sua representação em dinheiro, convertida em propriedade privada) e dinheiro

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(representação mascarada) – fundamentais para exemplo), a fim de dar continuidade em sua


a reprodução de capital – nunca desapareceram acumulação. Ao se produzir uma mercadoria, por
e sim criaram formas legais e ilegais que exemplo, temos capital empregado e, neste
legitimam a despossessão. O paradoxo é, na momento da produção (que têm-se apresentado
verdade, o fato de essas formas de despossessão cada vez mais acelerada em razão das inovações
serem administradas sob o disfarce virtuoso da tecnológicas e da intensificação da exploração da
política de austeridade supostamente requerida força de trabalho), o capital se apresenta como
para devolver ao capitalismo doente uma uma coisa (objeto). No momento da venda,
situação aparentemente saudável (p. 69). Todas quando a mercadoria estará de fato realizada, o
essas práticas formam um nó coletivo em que a capital reassume a forma dinheiro. E todo esse
política de acumulação por despossessão se movimento faz com que o capital persista na
converte em meio primordial para a extração de dualidade entre coisa e, ao mesmo tempo,
renda e de riqueza das populações vulneráveis, processo. Definitivamente, o capital é um
incluindo a classe trabalhadora (p.78). processo social, mas é igualmente capaz de
Reunindo informações significativas, materializar-se em coisas.
Harvey apresenta a quinta contradição entre Em A unidade contraditória entre
capital e trabalho. Ela se deve ao fato de a produção e realização (sétima contradição), o
mercantilização da força de trabalho ser a única autor busca apresentar de modo conciso essas
forma de salvar uma contradição aparentemente duas unidades. A contínua circulação de capital
insolúvel da circulação de capital. Isso porque a depende de êxito em dois momentos: o primeiro
força de trabalho é uma mercadoria que tem é o momento em que se empreende produção de
capacidade mutável e através dela, os mercadorias (através da exploração da força de
trabalhadores, em resumo, criam mais valor do trabalho) e o segundo é o momento que a
que recebem. mercadoria é consumida (através do consumo
O trabalhador dispõe dessa força de advindo do dinheiro que foi trocado por sua força
trabalho e a vende a quem lhe convém, de modo de trabalho), isto é, realizada.
supostamente “livre” (p. 73), e isso é o que A contradição situa-se entre a produção e
significa para ele a liberdade frente ao domínio a realização que pode, sem dúvidas, mitigar-se de
do capital. Aos olhos de Harvey, ao realizar essa diversas formas. Para começar, pode incrementar
venda, o trabalhador está diretamente atrelado a demanda frente à caída dos salários mediante a
às formas contemporâneas de dominação que, expansão da magnitude total da mão de obra. A
por sua vez, ocorrem para além da esfera fabril, unidade contraditória entre produção e
estendendo-se para a vida cotidiana. Assim se realização aplica-se, então, tanto ao destino vital
processa porque o trabalhador vende sua força dos trabalhadores como ao capital (p. 94). Logo,
de trabalho como forma de sobrevivência e, para na proposta de Harvey, o capital não apresenta-
os detentores dos meios de produção, a compra se estável, nem permanente, senão em contínua
significa a continuidade na geração de riqueza. mudança de suas características (p. 110).
Sendo assim, os trabalhadores se veem em De um parágrafo a outro, Harvey dá a nós,
condições de dominação, e a liberdade, em seu seus leitores, a sensação de estarmos presos num
sentido mais amplo, atrela-se à escravidão (p. sufocante sonho em que, mesmo estando-se a
261). um passo de acordar, avançamos à inerte
Na sexta contradição capítulo, O capital é covardia que nos destrói sem precedentes. Sua
uma coisa ou um processo? David Harvey ocupa- pesquisa continua a reafirmar a contribuição
se na construção dos argumentos que sustentem através da densidade de dados e das
sua afirmação diante dessa dualidade. Assim contextualizações que são apresentadas na seção
procede porque em determinado momento o contradições dinâmicas.
capital assume outras formas (a do dinheiro, por

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A oitava contradição, Tecnologia, trabalho propriedade privada mediante as leis comerciais


e disponibilidade humana, enfoca o espetacular internacionais que regulam todo o comércio
aumento de produtividade alcançado pelo capital global (proteção de patentes e acordos sobre
que, por sua vez, constitui um paradoxo que licenças). No terceiro e último ponto, o
pode explodir em forma de crise. Tomando as argumento opera mediante as marcas comerciais
inovações tecnológicas como ponto de partida, que permitem aplicar um preço de monopólio a
Harvey demonstra como o uso dos recursos uns sapatos com um emblema determinado ou a
naturais, que satisfazem as necessidades do um vinho com o nome de certo Château na
sistema capitalista por meio da exploração e do etiqueta. A partir desses argumentos, tem-se que
controle da força de trabalho, serve para elevar o o capital se move em vários níveis centralizando
aumento da produção e assim a rentabilidade de poder e inovações e descentralizando o que não
capital (p. 103). Esse movimento de é útil para sua reprodução.
automatização faz com que haja menos postos de Na 11ª contradição, Desenvolvimentos
trabalho, tocando na aparente estrutura de geográficos desiguais e produção do espaço, o
empregos no âmago da sociedade e, no geógrafo se detém em compreender o papel do
entendimento de Harvey, culmina em crescentes capital e do Estado na paisagem geográfica. No
taxas de exploração tanto do trabalho quanto dos entendimento de Harvey, o capital se esforça em
recursos naturais. produzir espaços favoráveis à sua reprodução e,
As Divisões do trabalho (nona contradição) consequentemente, à sua evolução, afetando
é outro tema para o qual o autor chama atenção. diretamente o espaço de diversas regiões do
Segundo ele, refere-se à capacidade humana de globo terrestre (p. 149 e 150). Para tanto, a
decompor atividades – produtivas e reprodutivas inovação tecnológica, que contribui na
– complexas em tarefas especificamente simples, diminuição do tempo de produção e na invenção
que podem ser realizadas por distintos indivíduos de meios de transportes viáveis para o
(p.119). deslocamento das mercadorias, e os benefícios
O capital se apoia em mudanças cedidos pelo Estado (diminuição nos custos de
organizacionais e tecnológicas para reduzir os instalação e de impostos) possuem fundamental
salários, alentando a capacitação massiva em importância.
habilidades especializadas, objetivando a Desse modo, o capital cria uma paisagem
especialização, o aumento da produtividade, a geográfica que satisfaz suas necessidades em
competição entre os trabalhadores, a lugares e em momentos determinados, só para
segmentação dos postos de trabalho, apoiados ter que destruí-la em um momento posterior a
pela arquitetura e pela disciplina. Isso é “pensar fim de facilitar sua nova expansão e
os trabalhadores como ‘mãos’, preferindo transformação ‘qualitativa’. Assim o capital
esquecer que os mesmos também possuem desencadeia os poderes da destruição criativa
estômago e cérebro” (p. 131); torná-los meros sobre a terra, moldando o espaço e o tempo
operadores de máquinas e assim mantê-los segundo suas necessidades (p. 157). Em Harvey
alienados. “sem o desenvolvimento geográfico desigual e
A décima contradição, Monopólio e suas contradições, há muito tempo o capital já
concorrência: centralização e descentralização, estaria ossificado e se tornado caótico” (149).
traz o tema da concorrência. O autor estrutura A visão das disparidades de renda e
seus argumentos em três pontos. O primeiro riqueza, 12ª contradição, reúne várias exposições
ponto “consiste em centralizar o capital em que levam Harvey a questionar a absurda
megacorporações e assim estabelecer alianças desigualdade que apresenta o sistema capitalista.
mais flexíveis, que dominem os mercados” (p. Ao capital interessa, de imediato, manter
142). No segundo ponto, asseguram-se ainda tão baixo quanto seja possível os níveis salariais
mais firmemente os direitos de monopólio da para que haja maiores taxas de lucro. Como já foi

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visto, essa tática define uma contradição decidir onde e como gastá-los (consumo), e isso
intrínseca entre realização e produção. Mais que interessa diretamente ao capital. Esse
isso, permite aos ricos gestar os meios de movimento, exploratório e mercantil, penetra e
comunicação, isto é, continuar a alienar a classe altera o ritmo da vida cotidiana para além da
trabalhadora via aparato do Estado (impostos e esfera fabril e demonstra que reprodução social
políticas monetárias). não se pode entender fora dessas circunstâncias
Obedecendo aos padrões de acumulações geograficamente diferenciadas.
distintos, o sistema leva a classe dos ricos Na 14ª contradição, Liberdade e
(detentores dos meios de produção) a tornarem- dominação, pode-se presenciar um conjunto de
se cada vez mais ricos; e as classes argumentos relacionados ao que se entende em
desfavorecidas (trabalhadores) a se tornarem âmbito geral por liberdade. A maioria de nós,
cada vez mais pobres e a assumirem os custos da socializados no sistema capitalista, acreditamos
reprodução social, já que o capital socializa as estar dotado de uma capacidade de liberdade de
perdas e privatiza o lucro. Em suma, a pensamento, independente dos muros e das
disparidade na distribuição de renda é barreiras que nos rodeiam (p. 197). O autor
fundamental à sustentação do sistema capitalista desconstrói essa narrativa de senso comum
uma vez que igualdade de distribuição e argumentando que os teóricos que consideram
reprodução de capital, nesse sistema, são coisas lógico esse entendimento, reproduzem grande
incompatíveis (p. 172). equívoco. Ao criticar esse pensamento, o autor
Umas das características que Harvey mais expõe: para haver reprodução de capital, a
admira no capitalismo é o modo como se liberdade e a dominação têm de caminhar juntas,
apropria, a todo o momento, da vida cotidiana, tem de situarem-se “nos extremos de uma
reinventando-se; mais que isso, reproduzindo-se contradição que adota muitas formas sutis e
a ponto de dar origem a tantas contradições. matizadas por não dizer disfarçadas” (p. 201).
O autor mergulha, adiante, empilhando Sendo assim, os trabalhadores são livres num
argumentos e dispondo de exposições concretas duplo sentido. Livre para vender sua força de
que o ajudam a memorar a Reprodução social trabalho aos capitalistas e livres (despossuídos
(13ª contradição). Para assegurar a reprodução nos termos de Harvey) do controle sobre os
social, o capital humano necessita especializar-se meios de produção. É exatamente nesse modo de
e, ainda assim, não produz com a destreza de um submissão que situa-se este paradoxo, já que a
maquinário. Em condições normais de realização liberdade que conhecemos associa-se ao
da atividade laboral (normas e temporalidades privilégio e camufla as formas de escravaturas (p.
previstas na Organização Internacional do 203 e 203).
Trabalho - OIT) o trabalhador (capital humano) Escoltado na ânsia de constituir
não consegue ser altamente produtivo ao ponto argumentos que conectem a enorme gama de
de gerar mais-valia suficiente para que o capital paradoxos que o sistema capitalista apresenta
siga em sua abundante acumulação, nem mesmo em sua fase atual, o autor retrata, de forma
com altos níveis de especialização educacional. O única, as três últimas contradições. As
ponto de vista de Harvey, que é o mesmo de contradições perigosas são grandes riscos para o
Marx, assevera que o trabalhador só pode presente imediato, não apenas para a capacidade
produzir mais-valia em condições de exploração, do motor econômico do capitalismo continuar a
isso porque a reprodução social absorve uma funcionar, como também para a reprodução da
grande quantidade de trabalho não pago (p. 188). vida humana em condições minimamente
Os trabalhadores assumem importância razoáveis.
no âmbito da produção de mais-valia e também A primeira das contradições perigosas (15ª
ao receber seus salários (que se apresentam cada contradição), abarca o Crescimento exponencial
vez menores) já que, ao recebê-los, devem infinito e sua insuficiência diante do modelo

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econômico que se tem apresentando ao longo possibilidades de acumulação. Nesse ínterim, faz-
dos últimos anos. Como foi exposto nas se necessário observar a crítica de Harvey à
contradições anteriores, o capital segue na busca postura que se tem diante dos desastres naturais:
infinita de obter mais benefícios, ora explorando aos seus olhos, trata-se de uma contradição
de modo desavergonhado a classe trabalhadora, interna e não externa ao capital (p. 253), que
ora se apropriando de formas de reprodução aliena a sociedade ao ponto de aceitar o modelo
antes não apropriadas. Ou, ainda, utilizando-se de ecossistemas artificiais e tecnocráticos
de artifícios midiáticos, constituindo uma funcionais ao capital.
sociedade pautada no espetáculo e no consumo. Seguindo a apresentação das contradições
A grande questão é que o lucro exacerbado que nutrem o que poderia ser, no entendimento
também pode tornar-se um grande problema de Harvey, o declínio do sistema capitalista, o
para o capital, afinal, “onde vai parar todo este autor apresenta o último capítulo, A revolta da
dinheiro excedente?” (p. 228). natureza humana: alienação universal (última
Desde sua aparição, até os dias de hoje, o contradição). No movimento criado pelo autor, a
capital tem encontrado saídas, como alienação (da terra, da mente e do corpo) é
empréstimos aos bancos, aos Estados ou ainda apontada como um elemento crucial. Os
dívidas contraídas por hipoteca. No fetichismos e ficções, que infiltraram a vida
entendimento do autor, essa perpétua cotidiana e tornaram-na sublimada,
acumulação do capital em um ritmo exponencial sistematizada e alienada, introduziram também
mediante a criação exponencial de dinheiro pode necessidades supérfluas, “pervertidas em prol da
descarrilhar a relação econômica que move o circulação do capital” (p. 268).
motor do capital. E, como se sabe, a economia do A qualquer momento, os grupos excluídos
crescimento zero resultante seria a sentença da (coletivo de trabalhadores) podem afrontar
morte do capitalismo. Isso porque, sem essas coletivamente as múltiplas formas de alienação e
formas de “expansão não haveria capital” rebater o insustentável modelo do sistema
(p.228). Em suma, “é como se estivéssemos no capitalista, tal qual se apresenta. Seria uma
quadrado número vinte e um do tabuleiro de forma de combater as desigualdades sociais e as
xadrez e não pudéssemos seguir” (p. 225). disparidades econômicas, de pôr fim à
Todavia, esse modelo se apresenta exploração desmedida do meio ambiente,
insustentável quando o tema é a Relação do encontrando por exemplo, alternativas para a
capital com a natureza (16ª contradição). Ao perpetuação da acumulação do dinheiro.
seguir nessa acumulação infinita, o capital Após a apresentação dos dezessete
necessita acumular todos os elementos presseitos, Harvey aponta o que nomeou de
encontrados no meio ambiente, privatizando-os, perspectivas de um futuro feliz e disputado: a
mercantilizando-os, sem levar em conta: as promessa do humanismo revolucionário,
relações com os recursos naturais, com a considerações em que expõe, com a mesma
capacidade de absorver substâncias coerência textual e dialética apresentada ao
contaminantes ou de lidar com a degradação dos longo de toda a obra, questionamentos ao leitor
habitats, a perda de biodiversidade, o risco para um mundo melhor que este que temos
ambiental, a contaminação da qualidade do ar, herdado. O autor indica possibilidades de
da terra e da água ou, ainda, o esgotamento e/ou reivindicar e reinventar os direitos no plano do
alteração da natureza (p. 241). espaço, para assim gozarmos da plenitude de
O desenho que se apresenta na uma vida realizada.
atualidade, mostra-se insuficiente e caminha com Nessa perspectiva, todos os capítulos
vistas ao esgotamento das fronteiras de jorram em nós gotas de pensamentos que
expansão do capital, agudizando a degradação transbordam em nossas mentes e nos fazem
cancerosa da natureza para adquirir novas refletir sobre nosso compromisso como

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pesquisadores e agentes sociais diante de um


futuro repleto nuvens carregadas de incertezas
que nos amedrontam e assombram.
Na obra, Harvey questiona o pensamento
colonial que se instaurou na sociedade
preconizando a nós, pesquisadores, ao mesmo
tempo agentes sociais, a tarefa de desconstruir
ou “curar as mentes das almas danificadas” (p.
280). Para tanto, critica o pensamento humanista
que evidencia determinadas categorias de análise
(sobretudo a do indivíduo), demonstrando que, a
ciência humana se faz da totalidade, desde o
plano cotidiano até se chegar aos elementos
complexos que compõem a sociedade.
Como em Karl Marx, a esperança de
Harvey é que o conjunto de trabalhadores
perceba o perigo que os ameaça muito antes que
a pobreza chegue ainda mais longe (momento
que o dano aos seres humanos e ao meio
ambiente já será grande demais para ser
recuperado). É necessário, portanto, que a Bela
Adormecida desperte a tempo, para que
possamos assistir a um final parecido com os dos
contos de fadas (p. 283).
O excerto abaixo, retirado do último
capítulo da obra, finaliza magistralmente a
abordagem marxista de David Harvey e toda a
construção a qual fizemos essa breve
apresentação: O capitalismo nunca vai cair por si
próprio. Terá de ser empurrado. "A acumulação
de capital nunca vai cessar. Terá de ser
interrompida. A classe capitalista nunca vai
entregar voluntariamente seu poder. Terá de ser
despossuída" (p. 258), compreender isso, foi e
segue sendo (nos termos de Karl Marx)
fundamental.

REFERÊNCIAS
HARVEY, David. Seventeen contradictions and the
end of capitalism. Londres: Editora Profile Books,
2014.
HARVEY, David. Diecisiete contradicciones y el fin
del capitalismo. Barcelona: Iaen, 2015.

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