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O desenvolvimento da personalidade

por C.G. Jung


A personalidade se desenvolve no decorrer da vida, a partir de germes,
cuja interpretação é difícil ou até impossível; somente pela nossa ação é
que se torna manifesto quem somos de verdade. Somos como o Sol que
alimenta a Terra e produz tudo o que há de belo, de estranho e de mau;
somos também como as mães que carregam no seio a felicidade
desconhecida e o sofrimento. De início não sabemos o que está contido
em nós, que feitos sublimes ou que crimes, que espécie de bem ou mal.
Somente o outono revela o que a primavera produziu, e somente a tarde
manifesta o que a manhã iniciou.
A personalidade, no sentido da realização total de nosso ser, é um ideal
inatingível. O fato de não ser atingível não é uma razão a se opor a um
ideal, pois os ideais são apenas os indicadores do caminho e não as
metas visadas. (...)

Enfim, o que impulsiona a alguém a escolher seu próprio caminho, e a


elevar-se como uma camada de nevoeiro acima da identidade com a
massa humana? Não pode ser a necessidade, pois esta atinge a muitos e
todos estes se salvam pelas convenções (sociais). A decisão moral
também não pode ser, pois geralmente todos se decidem pela
convenção. O que, pois, dá o último impulso a favor de algo fora do
comum?
E o que se denomina designação; é um fator irracional, traçado pelo
destino, que impele a emancipar-se da massa gregária e de seus
caminhos desgastados pelo uso. Personalidade verdadeira sempre supõe
designação e nela acredita, nela deposita pistis ("confiança") como em
Deus, mesmo que na opinião do homem comum seja apenas um
sentimento pessoal de designação. Esta designação age como se fosse
uma lei de Deus, da qual não é possível esquivar-se. (…) Quem tem
designação (Bestimmung) escuta a voz (Stimme) do seu íntimo, está
designado (bestimmung).

A designação ou o respectivo sentimento não constitui apenas uma


prerrogativa das grandes personalidades; também aparece nas
pequenas personalidades e mesmo na menor delas, só que
acompanhada do decréscimo da intensidade, tornando-se cada vez mais
nebulosa e mais inconsciente. Parece que a voz do demônio interior se
torna cada vez mais distante, mais rara e mais confusa. Quanto menor
for a personalidade, tanto mais imprecisa e inconsciente se torna a voz,
até confundir-se com a sociedade, sem poder distinguir-se dela,
privando-se da própria totalidade para diluir-se na totalidade do grupo. A
voz interior é substituída pela voz do grupo social e de suas convenções;
em lugar da designação aparecem as necessidades da coletividade. A
não poucos sucede que, mesmo estando nesse estado social
inconsciente, são chamados por uma voz individual e assim começam a
distinguir-se dos outros e a deparar com problemas a respeito dos quais
os outros nada sabem. Em geral é impossível para esse indivíduo
explicar às outras pessoas o que lhe aconteceu, pois existe como que
um muro de fortíssimos preconceitos a impedir a compreensão.

Somente pode tornar-se personalidade quem é capaz de dizer um “sim”


consciente ao poder da destinação interior que se lhe apresenta; quem
sucumbe diante dela fica entregue ao desenrolar cego dos
acontecimentos e é aniquilado. O que cada personalidade tem de grande
e de salvador reside no fato de ela, por livre decisão, sacrificar-se à sua
designação e traduzir conscientemente em sua realidade individual
aquilo que, se fosse vivido inconscientemente pelo grupo, unicamente
poderia conduzir a ruína.
Retirado de: O desenvolvimento da personalidade; de C.G.Jung

Os Três Senhores do Ego


Uma metáfora interessante usada no Budismo Tibetano para descrever o
funcionamento do ego é a dos "Três Senhores do Materialismo": o
"Senhor da Forma", o "Senhor da Palavra" e o "Senhor da Mente". Na
apreciação que se segue dos Três Senhores , as palavras "materialismo
e "neurótico" referem-se à acção do ego.
O Senhor da Forma refere-se à procura neurótica de conforto físico,
segurança e prazer. A tecnológica e altamente organizada sociedade em
que vivemos reflecte a nossa preocupação em manipular o que
fisicamente nos rodeia, de modo a proteger-nos contra as irritações dos
brutais, inconstantes e imprevisíveis aspectos da vida. Elevadores
automáticos, carne pré-embalada, ar condicionado, autoclismos, funerais
privados, contas poupança-reforma, produção em massa, satélites
meteorológicos, retroescavadoras, luz fluorescente, empregos das-nove-
às-seis, televisão - tudo tentativas para criar um mundo manobrável,
seguro, previsível e agradável.
O Senhor da Forma não designa as situações de vida, fisicamente ricas e
seguras, que criamos per se. Refere-se mais à preocupação neurótica
que nos leva a criá-las, a tentar controlar a natureza. É ambição do ego
sentir-se alegre e seguro, tentando evitar qualquer fonte de irritação. Por
isso, agarramo-nos aos nossos prazeres e pertences, tememos a
mudança ou forçamo-la, tentamos criar um recreio ou um abrigo.
O Senhor da Palavra refere-se ao uso do intelecto em relação ao nosso
mundo. Adoptamos conjuntos de categorias que depois usamos como
utensílios, como modos de lidar com os fenómenos. Os produtos mais
desenvolvidos desta tendência são as ideologias, os sistemas de ideias
que racionalizam, justificam e glorificam as nossas vidas. Nacionalismo,
comunismo, existencialismo, Cristianismo, Budismo - todos nos fornecem
identidades, regras de conduta e interpretações de como e porquê as
coisas acontecem e são o que são.
Também aqui, o uso do intelecto em si mesmo não é o Senhor da
Palavra. O Senhor da Palavra refere-se à tendência da parte do ego para
interpretar tudo o que seja irritante ou ameaçador de um modo que
permita neutralizar a ameaça ou transformá-la em algo "positivo" do
ponto de vista do ego. O Senhor da Palavra refere-se ao uso de conceitos
como filtros que nos protegem da percepção directa das coisas. Levamos
os conceitos demasiado a sério; usamo-los como ferramentas que
solidificam o nosso mundo e nós mesmos. Se existe um mundo de coisas
nomeáveis, então "Eu" como uma das coisas nomeáveis também existe.
Não deixamos qualquer espaço para dúvidas perturbadoras, incertezas
ou confusões.
O Senhor da Mente refere-se ao esforço da consciência para se manter
ciente de si mesma. O Senhor da Mente governa quando disciplinas
psicológicas e espirituais são usadas como meio de manter a auto-
consciência, de conservar o sentimento de si. Drogas, yoga, oração,
meditação, transes, várias psicoterapias - tudo pode ser usado desse
modo.
O ego é capaz de converter tudo em seu proveito, mesmo a
espiritualidade. Por exemplo, se soubermos de alguma técnica de
meditação ou prática espiritual particularmente benéfica, a atitude do
ego é, em primeiro lugar, olhá-la como um objecto de fascínio e, depois,
examiná-la. Uma vez que o ego tem uma aparência sólida e não pode
absorver nada, só pode imitar, ele tenta examinar e reproduzir essa
prática de meditação e esse modo de vida meditativo. Conhecidos todos
os truques e respostas do jogo espiritual, tentamos automaticamente
imitar a espiritualidade, já que o envolvimento real exigiria a completa
eliminação do ego, o que, na verdade, é a última coisa que desejamos.
Todavia, não se consegue experienciar aquilo que se tenta imitar;
apenas se pode encontrar alguma área dentro das fronteiras do ego que
pareça ser a mesma coisa. O ego traduz tudo em termos do seu bem-
estar, das suas qualidades intrínsecas, e sente um grande
contentamento e exaltação por ter sido capaz de criar tal modelo.
Finalmente, conseguiu criar algo de tangível, uma confirmação da sua
própria individualidade.

Quando se consegue manter a auto-consciência dentro das práticas


espirituais, o genuíno desenvolvimento do espírito é altamente
improvável. Os nossos hábitos mentais tornam-se tão fortes quanto
difíceis de penetrar. Podemos até chegar ao ponto de alcançar o estado
totalmente diabólico de completa "Egoidade".

Embora o Senhor da Mente seja o mais eficaz em subverter a


espiritualidade, também os outros dois Senhores podem comandar a
prática espiritual. Retiros na natureza, isolamento, simplicidade, silêncio
- tudo isto pode servir para nos protegermos da irritação e ser um modo
do Senhor da Forma se manifestar. Ou talvez mesmo a religião nos
proporcione um pretexto para criarmos um abrigo seguro, um lar simples
mas confortável, para arranjarmos um parceiro amável e um emprego
cómodo e estável.
O Senhor da Palavra também está, do mesmo modo, envolvido na
prática espiritual. Muitas vezes, ao seguirmos uma via espiritual,
substituímos as nossas antigas crenças por uma nova ideologia religiosa,
mas continuamos a usá-la da mesma forma neurótica. Por mais sublimes
que sejam as nossas ideias, se as levamos demasiado a sério e as
usamos para manter o nosso ego, continuamos a ser governados pelo
Senhor da Palavra.
Se examinarmos os nossos actos, a maioria de nós provavelmente
admitirá que somos governados por um ou mais dos Três Senhores.
"Mas", podemos perguntar, "e depois? Isto é uma simples descrição da
condição humana. Sim, sabemos que a nossa tecnologia não nos pode
proteger da guerra, crime, doença, insegurança económica, trabalho
árduo, velhice e morte; nem as nossas ideologias nos defendem da
dúvida, incerteza, confusão e desorientação; nem as nossas terapias nos
protegem da dissolução de estados de consciência elevados que
temporariamente alcancemos e da desilusão e angústia que se lhe
seguem. Mas o que podemos nós fazer? Os Três Senhores parecem
demasiado poderosos para serem derrubados e, se o fossem, não
saberíamos com que os substituir."
O Buda, perturbado com estas questões, examinou o processo pelo qual
os Três Senhores governam. Questionou por que razão as nossas mentes
os seguem e se poderia haver outro caminho. E descobriu que os Três
Senhores seduzem-nos criando um mito fundamental: o de que somos
seres sólidos. Mas, afinal, o mito é falso, um grande embuste, uma
gigantesca fraude, e é a raiz do nosso sofrimento. Para chegar a esta
descoberta, ele teve de abrir caminho através das elaboradas defesas
erguidas pelos Três Senhores para evitarem que os seus súbditos
descobrissem a burla que é a fonte do seu poder. Não há outro modo de
nos libertarmos do domínio dos Três Senhores, a não ser desmontar,
camada após camada, as suas defesas.
As defesas dos Senhores são criadas a partir de material das nossas
mentes. Este material é usado por eles de modo a manter o mito básico
da estabilidade. Para vermos por nós mesmos como este processo
funciona, temos de examinar a nossa própria experiência. "Mas como",
podemos perguntar, "devemos fazer esse exame? Que método ou
ferramenta vamos usar?" O método que o Buda descobriu é a
meditação. Ele descobriu que lutar para encontrar respostas não
funciona. Só quando havia hiatos na sua luta é que a percepção clara lhe
aparecia. Ele começou a compreender que havia, no seu âmago, uma
qualidade pura e desperta que se manifestava por si mesma apenas na
ausência de esforço. Por isso, a prática da meditação implica
"abandono".

Chögyam Trungpa, Cutting Through Spiritual Materialism, Shambala


Publications, 2002 (trad. de Moksha

http://shangri-la-spirit.blogspot.com/2010/02/os-tres-senhores-do-
ego.html

Espiritualidade, religião e a experiência do divino


Para prevenir a má comunicação, gostaríamos de dizer o que
entendemos pelo termo "espiritualidade" e em que sentido o usaremos.
O termo espiritualidade deve ser reservado para situações que
abrangem experiências pessoais de certas dimensões da realidade e que
dão à vida de alguém e à existência em geral uma qualidade numinosa.
C. G. Jung usou a palavra "numinosa" para descrever uma experiência
que parece sagrada, pura e fora do comum. A espiritualidade é algo que
caracteriza o relacionamento entre a pessoa e o universo e não requer,
necessariamente, uma estrutura formal, um ritual coletivo ou a
meditação feita por um sacerdote.

Em contraste, a religião é uma forma de atividade grupal organizada que


pode ou não tender para a verdadeira espiritualidade, dependendo do
grau em que ela proporciona um contexto para a descoberta pessoal das
dimensões numinosas da realidade. Enquanto na origem de todas as
grandes religiões estão as revelações visionárias de seus fundadores,
profetas e santos, indicando o caminho, em muitos casos, com o passar
do tempo, a religião perde a ligação com o seu núcleo vital.
O termo moderno usado para a experiência direta das realidades
espirituais é a palavra "transpessoal", que significa transcender o modo
usual de perceber e interpretar o mundo desde uma posição de ego
individual ou ego corporal. Existe uma disciplina totalmente nova, a
psicologia transpessoal, especializada em experiências desse tipo, e
suas implicações e descobertas advindas dos estudos transpessoais de
consciência são de fundamental importância para o conceito de
emergência espiritual.
Os estados envolvendo encontros pessoais com as dimensões
numinosas da existência podem ser divididos em duas grandes
categorias. Na primeira, estão as experiências do "imanente divino", ou
percepções da inteligência divina expressando-se no mundo da realidade
diária. Todo tipo de criação — pessoas, animais, plantas e objetos
inanimados — parecem estar impregnados pela mesma essência
cósmica e pela mesma luz divina. Uma pessoa nesse estado compreende
repentinamente que tudo no universo é manifestação e expressão da
mesma energia cósmica criativa e que separação e fronteiras são
ilusórias.

As experiências da segunda categoria não representam uma percepção


diferente do que já é conhecido, mas revelam uma valiosa série de
dimensões da realidade que estão comumente escondidas da
consciência humana e não são acessíveis ao estado diário de
consciência. Elas podem ser atribuídas às experiências do
"transcendente". Um exemplo típico seria a visão de Deus como uma
fonte radiante de luz, de beleza sobrenatural, ou a sensação de fusão
pessoal e de identidade com Deus, percebida desse modo. As visões de
vários seres arquetípicos, como divindades, demônios, heróis lendários e
guias espirituais, também pertencem a essa categoria. Outras
experiências não envolvem meramente entidades sobre-humanas
individuais, mas reinos mitológicos inteiros, como céus, infernos,
purgatórios e vários cenários e paisagens diferentes de tudo que já foi
visto na Terra.

O que nos interessa aqui são as conseqüências práticas dos encontros


pessoais com as realidades espirituais. Para as pessoas que já os
tiveram, a existência de um Deus imanente e transcendente não é uma
questão de crença infundada, mas é um fato baseado numa experiência
direta — assim como nossas atitudes acerca da realidade material da
nossa vida diária são baseadas, primeiramente, nas percepções
sensoriais. Por outro lado, a crença é uma opinião sobre a natureza da
realidade fundamentada em uma forma específica de educação, de
instrução ou de leitura da literatura religiosa (isso necessita de validação
experimental).

Esses estados transpessoais podem provocar uma verdadeira influência


transformadora benéfica nos seus receptores e em suas vidas. Podem
aliviar várias formas de desordens emocionais e psicossomáticas, assim
como dificuldades com relacionamentos interpessoais. Podem também
reduzir tendências agressivas, valorizar a própria imagem, aumentar a
tolerância para com os outros e elevar sua qualidade de vida. Entre os
efeitos secundários positivos está, com freqüência, uma profunda
sensação de conexão com outras pessoas e com a natureza. Essas
mudanças nas atitudes e no comportamento são conseqüências naturais
das experiências transpessoais; a pessoa as aceita e as adota
voluntariamente, sem a imposição de injunções externas, preceitos,
ordens ou ameaças de punição.

A espiritualidade desse tipo, baseada na revelação pessoal direta, existe


tipicamente nas ramificações místicas das grandes religiões e em suas
ordens monásticas, que se utilizam de meditações, cantilenas
repetitivas, preces e outras práticas para induzir esses estados
transpessoais da mente. Já vimos, por diversas vezes, que as
experiências espontâneas durante as emergências espirituais têm um
potencial semelhante, se ocorrerem em um contexto de apoio e
compreensão.

Retirado do livro: A tempestuosa busca do Ser; de Stanislav e Christina


Grof
Transformação Individual e o Futuro do Planeta

Nas últimas poucas décadas, tem se tornado cada vez mais claro que a
humanidade está enfrentando uma crise de proporções sem
precedentes. A ciência moderna desenvolveu medidas efetivas que
poderiam resolver a maior parte dos problemas urgentes do mundo atual
– combate à maioria das doenças, eliminar a pobreza e a fome, reduzir a
quantidade do desperdício industrial e substituir os combustíveis não
renováveis por fontes de energia limpa.

Os problemas que permanecem no caminho não são de natureza


econômica e tecnológica. A fonte profunda da crise global está dentro da
personalidade humana e reflete o nível de evolução de nossa espécie.
Por causa das forças não domadas da psique humana, recursos
inimagináveis estão sendo desperdiçados no absurdo da corrida
armamentista, luta pelo poder e a perseguição de metas como
“crescimento ilimitado.” Esses elementos da natureza humana também
impedem uma distribuição mais apropriada das riquezas entre as nações
e os indivíduos, bem como a reorientação da ênfase puramente política
e econômica para as prioridades ecológicas que são essenciais para a
manutenção da vida no planeta.

As negociações diplomáticas, as medidas legais e administrativas, as


sanções econômicas e sociais, as intervenções militares e outros
esforços semelhantes tiveram muito pouco sucesso até o momento. De
fato, eles na realidade produziram mais problemas que soluções. Está se
tornando cada vez mais clara a razão pela qual tais medidas só
poderiam falhar. Em primeiro lugar, é impossível aliviar a crise pela
aplicação de estratégias baseadas apenas na ideologia que a criou. Em
última análise, a crise global atual é de natureza psico/espiritual. Desse
modo é difícil imaginar que ela pudesse ser resolvida sem a
transformação interna radical da humanidade e sua elevação a um nível
mais alto de maturidade emocional e consciência espiritual.

Considerando o papel de destaque da violência e da ganância na história


humana, a possibilidade de transformação da humanidade atual em um
conjunto de indivíduos capazes de uma coexistência pacífica com seus
companheiros dos sexos masculino e feminino, a despeito das diferenças
de cor, raça e convicção política e religiosa, sem falar nas outras
espécies, certamente não parece muito plausível. Estamos enfrentando
um desafio tremendo de instalar na humanidade profundos valores
éticos, sensibilidade para as necessidades dos outros, simplicidade
voluntária e um agudo senso para com os imperativos ecológicos. Num
primeiro relance, essa tarefa parece ser utópica e não realista e não
oferecer nenhuma real esperança.

Entretanto, a situação não é tão desesperadora quanto parece. Como


vimos antes, a transformação profunda do tipo necessário é exatamente
a que acontece no curso do trabalho interno sistemático usando os
estados holotrópicos, seja ele uma prática de meditação, profundas
formas de terapia experiencial ou um trabalho feito com
responsabilidade e supervisão de profissionais treinados no uso de
substâncias psicodélicas. Mudanças semelhantes podem também ser
obtidas em pessoas que experienciam crise psico/espirituais
espontâneas e têm o privilégio de dispor de um bom sistema de apoio e
acompanhamento sensível.
Uma estratégia de vida que integre o trabalho interno profundo com a
ação inspirada no mundo esterno pode assim tornar-se um importante
fator de solução da crise global, desde que praticada numa escala
suficientemente ampla. A transformação interna e a evolução acelerada
da consciência podem melhorar significativamente nossas chances de
sobrevivência e de coexistência pacífica. Eu colecionei e descrevi
sistematicamente os insights dos estudos dos estados holotrópicos na
esperança que aquelas pessoas que irão escolher tal caminho ou as que
já o estejam trilhando os considerem úteis e as ajudem em sua própria
jornada.

(Retirado de: "O Jogo Cósmico"; de Stanislav Grof)

A Prática e a Natureza da Mente


Todos têm a possibilidade da liberdade completa que não gozamos hoje.
Neste estado actual, ainda estamos na experiência de sofrimento.
Enquanto tivermos a mente consciente, a experiência de iluminação não
estará separada da mente iluminada. Devido ao dualismo, não somos
capazes de reconhecer isto.

A fixação dualística separa sujeito e objeto. Nossa qualidade básica é o


vazio, a ausência de forma, qualidade ou ponto de referência. Quando
não reconhecemos a característica de nossa mente, ficamos presos à
mente dual.

Devido à característica da mente vazia, existe o surgimento não-


obstruído da mente. Esta compreensão não-obstruída é que se chama de
clareza ou luminosidade da mente. Não reconhecendo a existência não-
condicionada da mente, temos a noção de "objeto" ou "outro" e nos
fixamos nisto. A existência da mente é livre de surgimento e
desaparecimento, de obstruções e sensações, e de fixação em um
ponto. Assim, a natureza da mente é a inseparabilidade entre
luminosidade e vazio.

Quando falamos em termos de sabedoria suprema ou verdade absoluta,


falamos desta inseparabilidade. Não estamos falando de nada fora da
própria mente. Tal natureza é a natureza de todos os fenômenos. Assim,
focando o ponto de vista confuso, vemos imagens externas e jogos
projetados pela mente.

Do ponto de vista da onisciência da mente, ter a compreensão da mente


significa ter-se a compreensão de todas as coisas. Mas como já
mencionei, não conseguimos reconhecer esta natureza da mente. O não-
reconhecimento da natureza da mente, que está livre de ponto de
referência, condicionamentos, limitações, deve-se ao apego dualístico.

A causa principal de nossa confusão são nossas tendências habituais e o


apego aos três venenos: ignorância, raiva-ódio, desejo-apego.

A ausência de entendimento da mente é a ignorância. Em oposição ao


entendimento da luminosidade e vazio, temos o "ego", o "outro" e os
"objetos". Isto é ignorância. Assim, temos a visão distorcida e pervertida
da realidade. É devido à ignorância (eu e outro, coisas), que originam-se
os demais venenos, raiva-ódio e desejo-apego. O apego a eu, meu e
coisas-minhas leva à agressão aos outros lá fora. Este é o mundo pelo
qual a mente funciona. A mente apegada e os objetos são o mesmo.
Chama-se de dupla fixação dualística a noção de ego próprio e ego dos
outros e das coisas.

Usualmente, a mente é internamente influenciada e condicionada por


estes três venenos. Assim vivemos.

Somos cativados magicamente por estas três tendências. Assim nossa


mente opera, e assim subjuga nosso corpo, gestos e fala à escravidão.
Deste modo, nosso corpo, mente e fala capitulam aos três venenos,
havendo a expansão destas ações e energias-de-hábito. Isto é o que se
diz não ter controle sobre nossa mente.

Ter controle é reconhecer a natureza da nossa mente que fica sempre


ocupada em nossas tendências habituais.

A prática do Darma é o afastamento ao apego egoísta, ou seja, é a


própria libertação. Mas, devido a estarmos apegados ao egoísmo e
dualismo, não há esperança de libertação da confusão e sofrimento.

*Esta é a transcrição da terceira palestra proferida por Sua Eminência


Jamgon Kongtrul Rinpoche III no Rio de Janeiro, em dezembro de 1988, a
convite da Ordem Monástica Karma Teksum Chohorling. Sua fala foi
traduzida para o inglês por intérprete tibetano, sendo transcrita e vertida
para o português pela equipe de Bodisatva e revisada por Anila Karma
Tsultrim Palmo.
(fonte: http://bodisatva.org/)

**Artigo completo em: http://bodisatva.org/ensinamentos/e.php?


subaction=showfull&id=1091502990&archive=&start_from=&ucat=34
Sobre a Entrega

Entregar-nos também significa reconhecer as qualidades cruas, rudes,


desajeitadas e chocantes do nosso ego, reconhecê-las e renunciar a elas.
Geralmente, achamos muito difícil mostrar e entregar as qualidades
nuas e cruas do nosso ego. Embora possamos odiar-nos, ao mesmo
tempo, vemos neste auto-ódio uma espécie de serventia. Apesar de não
gostarmos do que somos e acharmos penosa nossa auto-condenação,
ainda assim não conseguimos abrir mão deste fato completamente. Se
começamos a renunciar nossa autocrítica, podemos sentir que estamos
perdendo a nossa ocupação, como se alguém estivesse tirando o nosso
emprego. Não teríamos nenhuns outros afazeres, se tivéssemos que
renunciar a tudo; não haveria coisa alguma a que nos agarrar. A auto-
avaliação e a autocrítica são, basicamente, tendências neuróticas que
decorrem do fato de não termos suficiente confiança em nós mesmos,
"confiança" no sentido de ver o que somos, saber o que somos, saber
que podemos permitir-nos uma abertura. Podemos permitir-nos a
entrega dessa qualidade neurótica nua e crua do eu, e deixar para trás o
fascínio, deixar para trás as idéias preconcebidas. (...)

A decepção é o melhor veículo que podemos usar no caminho do


dharma. Ela não confirma a existência do nosso ego nem de seus
sonhos. Entretanto, se estamos envolvidos com materialismo espiritual,
se encaramos a espiritualidade como parte de nosso acúmulo de
aprendizado e virtudes, se a espiritualidade se transforma num meio de
nos formar a nós mesmos, o curso de todo o processo de entrega está
completamente distorcido. Se consideramos a espiritualidade um meio
de adquirirmos conforto, toda vez que tivermos uma experiência
desagradável, uma decepção, tentaremos racionalizá-la: "É claro que
isto deve ser um gesto de sabedoria da parte do guru, pois eu sei, tenho
certeza de que ele não faz nada que seja prejudicial. Guruji é um ser
perfeito e tudo o que faz está certo. Tudo o que faz, não importa o quê,
Guruji faz por mim, porque está do meu lado. Por isso estou em
condições de me abrir. Posso entregar-me com segurança. Sei que estou
seguindo pelo caminho certo." Há qualquer coisa não muito certa numa
atitude assim. Na melhor das hipóteses, ela é simplista e? ingênua.
Ficamos cativados pelo aspecto impressionante, inspirador, digno e
pitoresco de "Guruji". Não ousamos ter um outro ângulo de visão.
Desenvolvemos a convicção de que tudo quanto vivenciamos faz parte
do nosso desenvolvimento espiritual. "Eu consegui. Eu vivenciei a
experiência. Sou uma pessoa que se fez por si mesma e sei quase tudo,
porque li livros e eles confirmam minhas crenças, minhas idéias, que eu
tenho razão. Tudo coincide."

Podemos conter-nos ainda de outra forma: não nos entregando de fato


porque nos julgamos pessoas muito bemeducadas, sofisticadas e dignas.
"Por certo que não podemos entregar-nos a esta realidade prosaica,
vulgar e suja". Temos a impressão de que cada passo do caminho que
percorremos deveria ser uma pétala de lótus e criamos uma lógica que
concordantemente interpreta tudo o que nos aconteça. Se caímos,
criamos um pouso macio para impedir qualquer choque brusco. Mas, a
entrega não inclui preparativos para um pouso suave; significa
simplesmente cair em solo duro, comum, em terreno agreste, cheio de
pedras. Quando nos abrimos, caímos no que realmente existe.

Tradicionalmente, a entrega é simbolizada por práticas como a


prostração, que é o ato de cair ao chão num gesto de renúncia. Ao
mesmo tempo nos abrimos psicologicamente e nos entregamos
completamente ao nos identificarmos com o mais humilde dos humildes,
reconhecendo nossa qualidade crua e rude. Não há nada que temamos
perder quando nos identificamos com o mais baixo dos baixos. Ao fazê-
lo, preparamo-nos para ser um recipiente vazio, pronto para receber os
ensinamentos.

Na tradição budista existe uma fórmula básica: "Refugio-me no Buda,


refugio-me no dharma, refugio-me no sangha." Refugio-me no Buda
como exemplo de entrega, o exemplo do reconhecimento da
negatividade como parte da nossa constituição e de nossa abertura à
ela. Refugio-me no dharma — dharma, a "lei da existência", a vida como
ela é. Estou disposto a abrir os olhos e enxergar as circunstâncias da
vida exatamente como elas são. Não estou inclinado a vê-las como
espirituais ou místicas, mas quero ver as situações da vida como elas
realmente são. Refugio-me no sangha. "Sangha" significa "comunidade
de pessoas no caminho espiritual", "companheiros". Estou disposto a
compartilhar a experiência de toda a vida que nos cerca com os meus
companheiros de peregrinação, meus companheiros de busca, os que
caminham comigo; mas não estou disposto a encostar-me neles a fim de
obter apoio. Minha vontade é apenas caminhar com eles. Há uma
tendência muito perigosa de nos apoiarmos uns nos outros ao percorrer
o caminho. Se os membros de um grupo se firmam uns nos outros, todos
cairão se, por acaso, um deles cair. Por isso mesmo não nos apoiamos
em uma outra pessoa. Limitamo-nos a caminhar uns com os outros, lado
a lado, ombro a ombro, a trabalhar com os outros, a ir com eles. Essa
atitude com relação à entrega, essa noção de refúgio é muito profunda.
(...)

Entregar-se não significa ser inferior e tolo, nem querer ser elevado e
profundo. Não tem nada a ver com níveis e avaliações. Ao invés disso,
entregamo-nos porque gostaríamos de nos comunicar com o mundo tal
"como ele é". Não precisamos nos classificar como cultos ou como
ignorantes. Sabemos onde estamos e, portanto, fazemos o gesto de
entrega, da abertura, que quer dizer comunicação, ligação, comunicação
direta com o objeto da nossa entrega. Não nos constrangemos com
nossa rica coleção de qualidades cruas, rudes, belas e puras.
Apresentamos tudo ao objeto da nossa entrega. O ato básico da entrega
não implica a adoração de um poder externo. Antes disso, significa
trabalhar junto com a inspiração, de modo que nos tomamos um
recipiente aberto no qual o conhecimento pode ser vertido.

Dessa forma, a abertura e a entrega constituem a preparação necessária


para o trabalho com um amigo espiritual. Nós reconhecemos nossa
riqueza fundamental em vez de lastimar a pobreza imaginária do nosso
ser. Sabemos que somos dignos de receber os ensinamentos, dignos de
relacionar-nos com a riqueza das oportunidades de aprender.

(Retirado de "Além do Materialismo Espiritual"; de Chögyam Trungpa)


O Impacto do Processo Holotrópico nos Valores Éticos e no Comportamento
Antes de podermos apreciar de modo global as implicações éticas que os
profundos e transcendentes insights possam ter em nosso
comportamento, devemos levar em consideração alguns fatores
adicionais. A exploração experimental que tornam disponíveis tais
insights profundos revelam tipicamente a existência em nosso
subconsciente de fontes de informações transpessoais, biográficas, e de
nossa ganância. O trabalho psicológico realizado sobre tais dados conduz
a uma redução significativa de nossa agressividade e a um aumento de
nossa tolerância. Também encontramos um amplo espectro de
experiências transpessoais nas quais nós nos identificamos com vários
aspectos da criação. Isso resulta numa profunda reverência pela vida e
empatia por todos os seres sencientes. O mesmo processo através do
qual nós estamos descobrindo o vazio das formas e a relatividade dos
valores éticos também reduz significativamente nossa predisposição
para o comportamento imoral e antisocial e nos ensina a amar e ter
compaixão.

Desenvolvemos um novo sistema de valores que não é baseado em


normas convencionais, preceitos, mandamentos e medo de punição,
mas em nosso conhecimento e compreensão da ordem universal.
Percebemos que somos uma parte integrante da criação e que ferindo os
outros nós estaríamos ferindo a nós mesmos. Além disso, a auto
exploração profunda nos conduz à descoberta experiencial da
reencarnação e da lei do carma. Isso nos traz a percepção da
possibilidade de sérias repercussões experienciais do comportamento
prejudicial, mesmo aqueles que escapam das reações da sociedade.

Platão estava claramente consciente das profundas implicações morais


de nossas crenças no que se refere ao prosseguimento da vida após a
morte biológica. Em seu livro Leis (Platão, 1961a) ele escreve que
Sócrates dizia que a falta de conseqüências postmortem de nossos atos
seria “uma dádiva aos perversos.” Nos estágios avançados de
desenvolvimento espiritual, a combinação de decréscimo de
agressividade, declínio de orientação egocêntrica, sentimento de ser um
com os seres sencientes, e as consciências do carma torna-se um fator
importante fator que governa nossa conduta no dia-a-dia.

É interessante mencionar neste contexto Carl Gustav Jung e a crise que


ele experienciou quando percebeu a relatividade das normas e valores
éticos. Nesse ponto, ele questionou seriamente se, de um ponto de vista
elevado, realmente importa qual comportamento escolhemos e se
seguimos ou não preceitos éticos. Depois de alguma deliberação, ele
finalmente encontrou uma resposta pessoal satisfatória a tal pergunta.
Ele concluiu que, desde que não existe um critério absoluto com relação
à moralidade, toda decisão ética é um ato criativo que reflete o nosso
estágio atual de desenvolvimento de consciência e de conhecimento das
informações a nós disponíveis. Quando tais fatores mudam, nós
poderemos retrospectivamente ver a situação de modo diferente.
Entretanto, isso não quer dizer que nossa decisão anterior estivesse
errada. O que importa é que fizemos o que de melhor nos era possível
sob aquelas circunstâncias.

Embora nas experiências transpessoais avançadas possamos


transcender o mal, sua existência parece ser muito real em nossa vida
do dia-a-dia e em vários outros reinos experimentais, particularmente no
domínio dos arquétipos. No mundo da religião, nós freqüentemente
encontramos tendências a retratar o mal como algo separado do Divino
e a ele estranho. As experiências holotrópicas conduzem a um
entendimento que um dos meus clientes chamou de “realismo
transcendental.” Trata-se de uma atitude que aceita o fato de que o mal
é uma parte intrínseca da criação e que todos os domínios em que
existam indivíduos separados possuirão sempre tanto o seu lado claro
como o escuro. Desde que o mal está intrinsecamente tecido na tela
cósmica e é indispensável para a existência de mundos experimentais,
ele não pode ser derrotado ou erradicado. Entretanto, embora não
possamos eliminar o mal do esquema universal das coisas, nós
certamente podemos transformar a nós mesmos e desenvolver
caminhos radicalmente diferentes de enfrentar com sucesso o lado
sombrio da existência.

Nos profundos trabalhos experienciais nos percebemos que temos que


experimentar em nossa vida uma certa quantidade de desconforto e de
sofrimento físico e emocional que é intrínseco à existência encarnada
em geral. A Primeira Nobre Verdade de Buda nos lembra que a vida
significa sofrimento (duhkha) e ela refere-se a situações e circunstâncias
que são responsáveis por nossa miséria – nascimento, velhice, doença,
morte, associação com o que não gostamos, separação do que nos é
caro, e a não obtenção daquilo que queremos. Além disso, cada um de
nós experimenta o sofrimento que é específico para nós o qual reflete o
nosso destino e nosso carma passado.

Embora não possamos evitar o sofrimento, nós podemos ter uma certa
influência em sua ocorrência e na forma que ele se apresente. Minhas
observações ao trabalhar com os estados holotrópicos indicam que
quando confrontamos com o lado sombrio da existência numa forma
condensada e focalizada em sessões deliberadamente planejadas, nós
podemos reduzir significativamente suas várias manifestações em nossa
vida do dia-a-dia. Existem alguns outros modos nos quais a auto
exploração sistemática pode nos ajudar a enfrentar com sucesso o
sofrimento e as experiências de situações difíceis da existência. Depois
de termos aprendido a suportar a intensidade extrema das experiências
dos estados holotrópicos, nossa atitude básica ao enfrentar o início de
qualquer sofrimento sofre uma profunda mudança e as provações e
atribulações da vida do dia-a-dia serão muito mais fáceis de suportar.

Também descobrimos que não somos o corpo físico ou aquilo que os


hindus chamam de nome e forma (nāmarūpa). No decorrer de nossa
auto exploração, nós experienciamos mudanças radicais em nosso
sentimento de identidade. Nos estados holotrópicos, podemos nos
identificar com qualquer coisa, desde uma insignificante porção de
protoplasma num vasto universo material até a totalidade da existência
e a própria Consciência Absoluta. O fato de vemos a nós mesmos como
vítimas indefesas de esmagadoras forças cósmicas ou como co-autores
do script de nossas vidas terá naturalmente um profundo impacto no
grau de sofrimento que experienciamos ao viver ou, ao invés disso, no
grau de deleite e liberdade que podemos desfrutar.

"Retirado de: O Jogo Cósmico; de Stanislav Grof"


Emergência Espiritual: Para Compreender a Crise de Evolução

"O místico, dotado de talentos inatos..., e seguindo... a instrução de um


mestre, entra na água e descobre que sabe nadar; o esquizofrênico, por
sua vez, despreparado, sem orientação e sem dotes, caiu nela, ou
mergulhou voluntariamente, e está se afogando."
Joseph Campbell, Myths to Live By

Sentimentos de unidade com todo o universo. Visões e imagens de


épocas e locais distantes. Sensações de vibrantes correntes de energia
percorrendo o corpo, acompanhadas de espasmos e de violentos
tremores. Visões de divindades, semideuses e demônios. Vividos
vislumbres de luzes brilhantes e das cores do arco-íris. Temores de
insanidade, e até de morte, iminente.
Quem passar por esses fenómenos físicos e mentais extremos é rotulado
imediatamente de psicótico pela maioria dos ocidentais de hoje.
Contudo, um número crescente de pessoas parece estar tendo
experiências incomuns semelhantes às descritas acima e, em vez de se
perderem sem esperança na insanidade, esses indivíduos costumam sair
desses estados mentais extraordinários com um sentido cada vez maior
de bem-estar e com um nível superior de funcionamento na vida diária.
Em muitos casos, problemas emocionais, mentais e físicos de longa data
são curados nesse processo.

Encontramos muitos paralelos desses incidentes nas histórias de vidas


de santos, de iogues, místicos e xamãs. Com efeito, a literatura e as
tradições religiosas de todo o mundo validam o poder de cura e de
transformação desses estados incomuns para as pessoas que passam
por eles. Por que, então, as pessoas que têm essas experiências no
mundo de hoje são consideradas, quase todas, mentalmente doentes?

Embora haja muitas excepções individuais, a psicologia e a psiquiatria


dominantes não costumam distinguir entre misticismo e doença mental.
Esses campos não reconhecem em termos oficiais que as grandes
tradições espirituais que se dedicam há milênios ao estudo sistemático
da consciência humana têm algo a oferecer. Por isso, os conceitos e
práticas do budismo, do hinduísmo, do cristianismo, do sufismo e de
outras tradições místicas são ignorados e descartados
indiscriminadamente.

Neste ensaio, vamos examinar a idéia de que muitos episódios de


estados mentais incomuns, mesmo os dramáticos e de proporções
psicóticas, não são necessariamente sintomas de doenças no sentido
médico. Vemo-los como crises da evolução da consciência ou
"emergências espirituais", comparáveis aos estados descritos pelas
várias tradições místicas do mundo.

Antes de discutir em termos mais específicos o conceito de emergência


espiritual, analisemos mais de perto a relação entre psicose, doença
mental e misticismo e os fatos históricos que resultaram na rejeição das
experiências místicas e espirituais clássicas como sintomas de doença
mental por parte da ciência e da psiquiatria moderna.

A visão de mundo criada pela ciência ocidental tradicional, e que domina


a nossa cultura, é, em sua forma mais rigorosa, incompatível com toda
noção de espiritualidade. Num universo em que somente o palpável, o
material e o mensurável são reais, todas as modalidades de atividades
religiosas e místicas são consideradas reflexo da ignorância, da
superstição e da irracionalidade ou imaturidade emocional. Por
conseguinte, interpretam-se as experiências diretas de realidades
espirituais como "episódios psicóticos" - manifestações de doença
mental.
Nossas experiências e observações pessoais ao longo de anos de
envolvimento em várias formas de psicoterapia experiencial profunda
nos levaram a crer ser importante rever essa situação na psiquiatria e
em nossa visão de mundo em geral, reavaliando-a à luz de evidências da
história pregressa e recente. Um reexame radical do pensamento sobre
o misticismo e a psicose há muito tem sido adiado. Uma clara
diferenciação entre esses dois fenômenos tem amplas conseqüências
práticas para as pessoas que passam por estados de consciência
incomuns, especialmente os de ênfase espiritual. É importante
reconhecer as emergências espirituais e tratá-las de modo apropriado,
devido ao seu enorme potencial positivo de crescimento e de cura
pessoais, que em geral seria suprimido por uma abordagem insensível e
por uma medicação de rotina indiscriminada.

O grupo de desordens mentais conhecido como psicoses constitui um


grande desafio e um enigma para a psiquiatria e a psicologia ocidentais.
Essas condições se caracterizam por um profundo distúrbio da
capacidade de perceber o mundo em termos normais; de pensar e de
responder, em termos emocionais, de uma maneira cultural e
socialmente aceitável; e de comportar-se e comunicar-se de modo
apropriado.

Para algumas dessas desordens, a ciência moderna descobriu


modificações anatômicas, fisiológicas e bioquímicas de base no cérebro
e em outras partes do organismo. Esse subgrupo, denominado psicoses
orgânicas, pertence inquestionavelmente ao domínio médico. Mas não
se descobriram explicações médicas para muitos outros estados
psicóticos, apesar dos esforços concentrados de gerações de
pesquisadores de vários campos. Mesmo com a falta geral de resultados
na busca de causas médicas específicas, as chamadas psicoses
funcionais costumam ser incluídas na categoria de doenças mentais de
causa desconhecida. Trata-se do subgrupo de psicoses que nos interessa
aqui.

Diante da ausência de um claro consenso sobre as causas das psicoses


funcionais, seria mais adequado e honesto reconhecer nossa completa
ignorância quanto à sua origem e sua natureza, e só usar o termo
doença para as condições passíveis de ter descoberta uma base física
específica. Assim, podemos abrir a porta para novas abordagens de, ao
menos, algumas psicoses funcionais, criando novas perspectivas que
diferem, teórica e praticamente, da concepção médica da doença. Já
foram desenvolvidas alternativas, em particular no âmbito das
chamadas psicologias profundas. Existem várias teorias psicológicas e
estratégias psicoterapêuticas inspiradas pelo trabalho pioneiro de
Sigmund Freud.

Embora as abordagens da psicologia profunda sejam discutidas e


ensinadas nos círculos acadêmicos, a compreensão e o tratamento das
psicoses funcionais na psiquiatria dominante estão dominados, por uma
variedade de razões, pelo pensamento médico. Em termos históricos, a
psiquiatria conseguiu estabelecer-se com firmeza como disciplina
médica. Descobriu-se uma base orgânica para certos estados psicóticos
e, em alguns casos, até tratamentos efetivos para eles. Além disso,
sintomas de condições psicóticas de origem desconhecida foram
controlados por meio de tranqüilizantes, antidepressivos, sedativos e
soporíferos. Parecia lógico, portanto, estender a trajetória e esperar
sucesso ao longo das mesmas linhas em desordens para as quais ainda
não foram descobertas causas nem tratamentos.

Há outros fatos persuasivos em favor da perspectiva médica ou


psiquiátrica. A psiquiatria atribui estados e comportamentos psicóticos a
condições físicas e fisiológicas, enquanto as psicologias profundas
tentam descobrir as causas dos problemas mentais em eventos e
circunstâncias da vida do paciente, em geral ocorrências da infância. Por
conseguinte, a psicologia tradicional limita as fontes dos conteúdos da
mente a aspectos observáveis da história pessoal do cliente. A isso
chamamos de "modelo biográfico" da psicose. Os estados mentais e
comportamentos psicóticos para os quais não se pode encontrar causas
na biografia pessoal serviriam, portanto, para fornecer evidências
favoráveis ao modelo médico.

Com efeito, há significativos aspectos de muitas psicoses que não


podem ser explicados por meio do método psicológico de descobertas da
origem de todas as condições mentais na história de vida do paciente.
Alguns deles envolvem certas emoções e sensações físicas extremas
que não se podem compreender em termos da história individual da
infância ou de eventos posteriores. Incluem-se aqui, por exemplo, visões
e experiências de ser engolfado pelo universo, de torturas diabólicas, de
desintegração da personalidade e até de destruição do mundo. De igual
modo, sentimentos de culpa abismais, a sensação de danação eterna ou
impulsos agressivos indiscriminados ou incontroláveis não podem ser
associados, em muitos casos, com eventos ou condições específicas da
vida do paciente. Assim sendo, poderíamos facilmente supor que esses
elementos estranhos presentes na psique devem ser uma decorrência de
processos patológicos orgânicos que afetam direta ou indiretamente o
cérebro.

Há outras espécies de experiências problemáticas da perspectiva


biográfica, não apenas por causa de sua intensidade como em função de
sua natureza. Experiências com divindades e demônios, com heróis e
ambientes místicos ou com regiões celestiais ou infernais não têm lugar
lógico no mundo concebido pela ciência ocidental. Por isso, parece
evidente sugerir, como o faz o ponto de vista médico, que elas devem
ser produto de algum processo físico patológico de origem
desconhecida. O caráter místico de muitas experiências de estados de
consciência incomuns as inclui automaticamente na categoria de
enfermidades, visto que a espiritualidade não é considerada uma
dimensão legítima no universo material excludente da ciência
tradicional.

Contudo, recentes desenvolvimentos na área psicológica começaram a


sugerir, para essas ocorrências extraordinárias, fontes que não se
enquadram na patologia médica nem da história de vida pessoal.
Historicamente, a primeira ruptura nesse sentido foi a obra do psiquiatra
suíço C. G. Jung. Jung expandiu em muito o modelo biográfico, ao
introduzir o conceito de inconsciente coletivo. Por meio-de uma
cuidadosa análise de sua própria vida onírica, dos sonhos dos seus
clientes e das alucinações, fantasias ou delírios dos psicóticos, ele
descobriu que a psique humana tem acesso a imagens e motivos de real
natureza universal. Esses elementos podem ser encontrados na
mitologia, no folclore e na arte de culturas distribuídas amplamente, não
apenas pelo globo, mas ao longo da história da humanidade.

Esses arquétipos, como Jung os denominou, aparecem com


surpreendente regularidade mesmo em indivíduos cuja história de vida e
cuja educação carecem de exposição direta às várias manifestações
culturais e históricas. Essa observação levou-o à conclusão de que há -
além do inconsciente individual - um inconsciente racial ou coletivo
comum à humanidade. Para ele, a religião e a mitologia comparadas
eram fontes inestimáveis de informação sobre esses aspectos coletivos
do inconsciente. No modelo junguiano, muitas experiências que não
fazem sentido como derivativos de eventos biográficos, tais como visões
de divindades e demônios, podem ser consideradas manifestações de
conteúdos do inconsciente coletivo.

Embora conhecidas há muitas décadas, as idéias de Jung de início não


tiveram influência significativa fora de estreitos círculos de seguidores
dedicados. Elas estavam muito além do seu tempo e tiveram de esperar
um ímpeto adicional para se destacarem. Essa situação começou a
mudar nos anos 60, época de um grande renascimento do interesse
pelos limites mais amplos da consciência humana. Essa era de
exploração interior se iniciou com a experimentação clínica com drogas
psicodélicas entre profissionais e com a exposição pessoal de uma
parcela da população leiga, que por um certo período passou a ser
conhecida como contracultura, a essas drogas. Prosseguiu com uma
avalancha de técnicas experienciais de psicoterapia e de práticas
espirituais de toda espécie, da terapia da Gestalt à meditação
transcendental, entre terapeutas e leigos nos anos 70 e 80.

À medida que muitas pessoas passaram a ter experiências com os tipos


de imagens e símbolos que Jung atribuía ao inconsciente coletivo, bem
como a viver episódios de natureza mística clássica, essa onda forneceu
um forte apoio as idéias junguianas e uma poderosa validação das
tradições místicas do mundo, oriental e ocidental. Nessa época, ficou
evidente para muitos praticantes dessas explorações ser necessário um
novo modelo de psique cujos elementos importantes incluiriam não
apenas a dimensão biográfica freudiana como o inconsciente coletivo e a
espiritualidade junguiana.

Quando se pensa na mente em termos tão ampliados, os conteúdos das


experiências que ocorrem durante vários estados de consciência
extraordinários não são vistas como produtos casuais e arbitrários de um
funcionamento cerebral alterado. Eles são, em vez disso, manifestações
dos recessos remotos da psique humana a que não costumamos ter
acesso. E a vinda desse material inconsciente à superfície pode ser, na
verdade, curativa e transformadora, desde que ocorra nas circunstâncias
corretas. Inúmeras disciplinas espirituais e tradições místicas, do
xamanismo ao zen, representam ricos repositórios de valioso
conhecimento sobre esses domínios mais profundos da mente. Sabe-se
há séculos que muitos episódios dramáticos e difíceis podem ocorrer
durante a prática espiritual e que o caminho para a iluminação pode ser
doloroso e tempestuoso.

Assim, a luz lançada pela psicologia profunda e dos antigos legados


espirituais fornece a base para uma nova compreensão de alguns
estados psicóticos para os quais não podem ser descobertas causas
biológicas. Os desafios à psiquiatria moderna apresentados por essas
duas escolas de conhecimento nos revelam as raízes da idéia de
emergência espiritual, conceito que ora examinaremos com maiores
detalhes.

"Retirado de: Emergência Espiritual; de Stanislav e Christina Grof"

Além do Materialismo Espiritual

De acordo com a tradição budista, o caminho espiritual é o processo de


atravessar e superar a nossa confusão, de descobrir o estado desperto
da mente. Quando este estado se encontra entulhado pelo ego e pela
paranóia que o acompanha, assume o caráter de um instinto subliminar.
Dessa forma, não se trata de construir o estado desperto da mente, mas
sim de queimar as confusões que o obstruem. No processo de consumir
as confusões, descobrimos a iluminação. Se o processo fosse outro, o
estado desperto da mente seria um produto dependente de causa e
efeito e, assim, passível de.dissolução. Tudo o que é criado, mais cedo
ou mais tarde, tem de morrer. Se a iluminação fosse criada dessa
maneira, haveria sempre a possibilidade de o ego reafirmar-se,
provocando um retomo ao estado de confusão. A iluminação é
permanente porque não a produzimos; apenas a descobrimos. Na
tradição budista, a analogia do Sol que surge por trás das nuvens é
freqüentemente empregada para explicar o descobrimento da
iluminação. Na prática da meditação, removemos a confusão do ego a
fim de vislumbrar o estado desperto. A ausência da ignorância, da
sensação de opressão, da paranóia, descerra uma visão fantástica da
vida. Descobrimos um modo diferente de ser.

O cerne da confusão é o fato de o homem ter um senso de ego que lhe


parece contínuo e sólido. Quando ocorre um pensamento, uma emoção,
ou um evento, há o sentido de que alguém tem consciência do que está
acontecendo. Você sente que você está lendo estas palavras. Esse senso
do eu, na realidade, é um evento transitório, descontínuo, que em nossa
confusão parece perfeitamente estável e contínuo. Como tomamos por
real a nossa visão confusa, lutamos para manter e incrementar esse eu
sólido. Tentamos alimentá-lo com prazeres e escudá-lo contra a dor. A
experiência ameaça continuamente revelar-nos nossa transitoriedade,
de modo que lutamos continuamente para encobrir qualquer
possibilidade de descoberta da nossa verdadeira condição. "Mas",
poderíamos perguntar, "se a nossa verdadeira condição é um estado
desperto, por que nos ocupamos tanto em evitar que tomemos
consciência disso?" Porque estamos tão imersos em nossa confusa visão
do mundo que consideramos real o único mundo possível. Essa luta por
manter o senso de um eu sólido e contínuo é obra do ego.

O ego, contudo, consegue apenas sucesso parcial em sua tentativa de


defender-nos do sofrimento. É a insatisfação que vem junto com a luta
do ego que nos inspira a examinar o que estamos fazendo. E, uma vez
que sempre existem hiatos na consciência que temos de nós mesmos,
torna-se possível algum discernimento.

Uma interessante metáfora empregada no Budismo tibetano para


descrever o funcionamento do ego é a dos “Três Senhores do
Materialismo”: o "Senhor da Forma", o "Senhor da Fala", e o "Senhor da
Mente". Na discussão que se segue sobre os Três Senhores, as palavras
"materialismo" e "neurótico" dizem respeito à ação do ego.

O Senhor da Forma refere-se à perseguição neurótica do conforto físico,


da segurança e do prazer. Nossa sociedade altamente organizada e
tecnológica reflete nossa preocupação em manipular o ambiente físico
de modo a nos salvaguardar das irritações provenientes dos aspectos
crus, rudes e imprevisíveis da vida. Elevadores acionados por botões de
comando, carne empacotada, ar condicionado, privadas com descarga
de água, velórios particulares, planos de aposentadoria, produção em
massa, satélites meteorológicos, máquinas de terraplenagem, luzes
fluorescentes, empregos das nove às cinco, televisão — tudo são
tentativas de criar um mundo controlável, seguro, previsível e prazeroso.

O Senhor da Forma não significa as situações de vida em si que criamos


para serem fisicamente ricas e seguras. Refere-se, antes, à preocupação
neurótica que nos impele a criá-las, a tentar controlar a Natureza. O ego
ambiciona assegurar-se e entreter-se, buscando evitar toda e qualquer
irritação. Desse modo, agarramo-nos aos nossos prazeres e
propriedades, tememos mudanças ou forçamos mudanças, tentamos
criar um ninho ou um playground.

O Senhor da Fala tem a ver com o emprego do intelecto no


relacionamento com o mundo. Adotamos grupos de categorias que
servem como alavancas, como meios para manipular fenômenos. Os
produtos mais plenamente desenvolvidos dessa tendência sâo as
ideologias, os sistemas de idéias que racionalizam, justificam e
santificam nossas vidas. Nacionalismo, comunismo, existencialismo,
Cristianismo, Budismo — todos nos proporcionam identidades, regras de
ação e interpretações de como e por que as coisas acontecem como
acontecem.
.
Aqui, novamente, o emprego do intelecto não é em si mesmo o Senhor
da Fala. O Senhor da Fala indica a inclinação do ego a interpretar o que
quer que seja ameaçador ou irritante de modo a neutralizar a ameaça ou
transformá-la em algo "positivo" do ponto de vista do ego. O Senhor da
Fala refere-se ao uso de conceitos como filtros que nos resguardam de
uma percepção direta do que é. Os conceitos são levados demasiado a
sério; são utilizados como instrumentos para solidificar o nosso mundo e
a nós mesmos. Se existe um mundo com coisas a que se possa dar
nomes, então o "eu", como uma das coisas nomeáveis, também existe.
Nosso desejo é não deixar espaço algum para dúvidas ameaçadoras,
para a incerteza ou a confusão.

O Senhor da Mente refere-se ao esforço da consciência em conservar a


percepção de si mesma. O Senhor da Mente impera quando usamos
disciplinas espirituais e psicológicas como meios de conservar a
consciência que temos de nós mesmos, de nos agarrar ao senso de eu.
Drogas, ioga, orações, meditação, transes, várias psicoterapias — tudo
pode ser usado com essa finalidade.

O ego é capaz de converter tudo para seu uso próprio, inclusive a


espiritualidade. Se aprendemos, por exemplo, uma técnica de meditação
dentro de uma prática espiritual particularmente benéfica, o ego se põe,
primeiro, a tratá-la como um objeto de fascinação e, depois, a examiná-
la. Por fim, visto que o ego é sólido apenas na aparência e não pode, de
fato, absorver coisa alguma; só é capaz de arremedar. Em tais
circunstâncias, ele procura examinar e imitar a prática da meditação e o
modo de vida meditativo. Depois de aprendermos todos os truques e
todas as respostas do jogo espiritual, tentamos imitar automaticamente
a espiritualidade, já que o envolvimento verdadeiro exigiria uma
completa eliminação do ego, e a última coisa que desejamos fazer é
renunciar completamente a ele. Entretanto, não podemos experimentar
aquilo que estamos tentando imitar; podemos apenas encontrar alguma
área dentro dos limites do ego que pareça ser a mesma coisa. O ego
traduz tudo em termos do seu próprio estado de saúde, de suas
qualidades intrínsecas. Experimenta um sentido de grande realização e
excitação quando consegue criar um modelo desse tipo. Finalmente
criou um feito tangível, uma confirmação de sua própria individualidade.

Se formos bem-sucedidos em manter a consciência que temos de nós


mesmos através de técnicas espirituais, o desenvolvimento espiritual
autêntico será altamente improvável. Nossos hábitos mentais se tomam
tão fortes que fica difícil penetrá-los. Podemos até chegar ao
desenvolvimento totalmente demoníaco da completa "Egoidade".
Embora o Senhor da Mente detenha o maior poder para subverter a
espiritualidade, os outros dois Senhores podem também reger a prática
espiritual. O retiro no seio da Natureza, o isolamento, a gente simples,
sossegada, digna — tudo pode ser meio para nos proteger da irritação,
tudo pode ser expressão do Senhor da Forma. Ou talvez a religião nos
forneça uma racionalização para criarmos um ninho seguro, um lar
singelo mas confortável, para conseguirmos um companheiro afável e
um emprego estável e fácil.

O Senhor da Fala também se envolve com a prática espiritual. Ao seguir


um caminho espiritual, podemos substituir nossas crenças anteriores por
uma nova ideologia religiosa, continuando, porém, a usá-la da antiga
maneira neurótica. Por mais sublimes que sejam nossas idéias, se as
tomamos com excessiva seriedade e as utilizamos para manter nosso
ego, ainda assim estaremos sendo governados pelo Senhor da Fala. Se
examinarmos nossos atos, quase todos concordaremos, provavelmente,
em que somos governados por um ou mais dos Três Senhores. "Mas",
poderíamos perguntar, "e daí? Isto é simplesmente uma descrição da
condição humana.

Sim, sabemos que a tecnologia não consegue pôr-nos a salvo de


guerras, crimes, doenças, insegurança econômica, trabalho laborioso,
velhice e morte; tampouco nossas ideologias nos resguardam da dúvida,
incerteza, confusão e desorientação; nem podem as nossas terapias
proteger-nos da dissolução dos altos estados de consciência que viermos
temporariamente a alcançar ou da desilusão e angústia daí decorrentes.
Mas que outra coisa podemos fazer? Os Três Senhores parecem
poderosos demais para serem derrubados e não sabemos com que
poderíamos substituí-los." Perturbado por essas indagações, o Buda
examinou o processo pelo qual os Três Senhores governam. Investigou
por que nossas mentes os seguem e se não havia um outro caminho.
Descobriu que os Três Senhores nos seduzem criando um mito
fundamental: o de que somos seres concretos. Todavia, o mito, em
última análise, é falso, uma imensa burla, uma fraude gigantesca, a raiz
do nosso sofrimento. Para fazer essa descoberta, ele precisou romper as
defesas muito complexas erguidas pelos Três Senhores, com o fim de
impedir que seus súditos descobrissem o engano fundamental que é a
origem do poder deles.

Não poderemos, de maneira alguma, livrar-nos do domínio dos Três


Senhores a menos que nós, também, cortemos e atravessemos, camada
por camada, as suas complexas defesas. As defesas dos Senhores são
criadas com material das nossas mentes, que eles utilizam para
preservar o mito básico da solidez. A fim de enxergar por nós mesmos
como este processo funciona, precisamos examinar nossa própria
experiência. "Mas como," podemos perguntar, "haveremos de conduzir
este exame ? Que método ou instrumento vamos usar?" O método
descoberto pelo Buda foi a meditação. Ele verificou que lutar para
encontrar respostas não surtia efeito. Só quando havia brechas na sua
luta é que lhe acudiam discernimentos. Começou a dar-se conta de que
existia dentro de si uma qualidade sadia e desperta que só se
manifestava na ausência de luta. Por isso, a prática da meditação
implica "deixar ser".

Tem havido uma série de idéias errôneas acerca da meditação. Algumas


pessoas a consideram um estado mental semelhante a um transe.
Outras pensam nela em termos de treinamento, no sentido de ginástica
mental. A meditação, contudo, não é nenhuma dessas coisas, embora
lide com estados mentais neuróticos. Não é difícil nem impossível lidar
com tais estados. Eles têm energia, pressa e um certo padrão. A prática
da meditação implica deixar ser — uma tentativa de acompanhar o
padrão, uma tentativa de acompanhar a energia e a velocidade. Dessa
forma, aprendemos como lidar com esses fatores, como relacionar-nos
com eles, não no sentido de fazê-los amadurecer como gostaríamos,
mas no sentido de conhecê-los como são e de trabalhar com o seu
padrão.

Há uma história sobre o Buda em que se conta como ele, de uma feita,
transmitiu ensinamento a um famoso tocador de citara que desejava
estudar meditação. Perguntou o músico: "Devo controlar minha mente
ou devo deixá-la completamente solta?" O Buda respondeu: "Visto que
você é um grande músico, diga-me como afinaria as cordas do seu
instrumento." Disse o músico: "Eu não as deixaria ficar nem demasiado
retesadas nem demasiado frouxas." "Da mesma forma," acudiu o Buda,
"na sua prática da meditação você não deve impor nada com demasiada
força à sua mente, nem deve permitir que fique ao leu." Eis aí o
ensinamento de como deixar a mente ser de um modo bastante aberto,
de como sentir o fluxo da energia sem tentar sujeitá-lo e sem deixar que
ele se descontrole, de como acompanhar o padrão da energia da mente.
Essa é a prática da meditação.

Tal prática se faz necessária, via de regra, porque o padrão do nosso


pensamento, o nosso modo conceitualizado de conduzir a vida, ou é
demasiado manipulativo, impondo-se ao mundo, ou completamente
desgovernado e sem controle. Por conseguinte, nossa prática da
meditação precisa começar com a camada mais superficial do ego, com
os pensamentos discursivos que estão sempre a atravessar-nos a mente,
com a nossa tagarelice mental. Os Senhores empregam o pensamento
discursivo como a sua primeira linha de defesa, como peões, em seu
esforço para iludir-nos. Quanto mais geramos pensamentos, tanto mais
ocupados nos tornamos mentalmente e tanto mais nos convencemos da
nossa existência. Desse modo, os Senhores estão constantemente
tentando ativar esses pensamentos, tentando criar uma constante
sobreposição de pensamentos, para que nada mais se possa ver além
deles. Na verdadeira meditação não existe a ambição de suscitar
pensamentos, e tampouco existe a ambição de suprimi-los. Permite-se
apenas que ocorram espontaneamente e se tomem a expressão de uma
sanidade básica. Eles se tomam a expressão da precisão e da clareza do
estado desperto da mente.

Se for vazada a sua estratégia de estar sempre criando pensamentos


sobrepostos, os Senhores, então, agitam emoções para distrair-nos. A
qualidade excitante, colorida e dramática das emoções nos prende a
atenção como se estivéssemos assistindo a um filme absorvente. Na
prática da meditação não encorajamos as emoções nem as reprimimos.
Vendo-as com clareza, deixando que sejam como são, não mais
permitimos que sirvam de meios para nos entreter e distrair. Dessa
maneira, elas se tomam a energia inexaurível que executa a ação sem
ego.

Na ausência de pensamentos e emoções, os Senhores introduzem uma


arma ainda mais poderosa, os conceitos. A rotulação dos fenômenos cria
a sensação de um mundo sólido e definido de "coisas". Um mundo
estável reassegura que somos, igualmente, uma coisa sólida e contínua.
O mundo existe e, portanto, eu, que o percebo, também existo. A
meditação implica ver a transparência dos conceitos, de sorte que a
rotulação já não serve como meio de solidificar o nosso mundo e a nossa
imagem do eu. A rotulação passa a ser, simples mente, ato de
discriminação. Os Senhores ainda têm outros mecanismos de defesa,
mas seria por demais complicado discuti-los no presente contexto.

Mediante o exame dos seus próprios pensamentos, emoções, conceitos


e demais atividades mentais, o Buda descobriu que não precisamos lutar
para provar nessa existência, não precisamos ficar sujeitos ao jugo dos
Três Senhores do Materialismo. Não há necessidade de lutar para
sermos livres; a ausência de luta, em si mesma, é liberdade. Este estado
desprovido de ego é a realização da Natureza Búdica. O processo de
transformar o material da mente para que deixe de ser expressão da
ambição do ego e passe a ser, por meio da prática da meditação,
expressão da sanidade básica e da iluminação — eis o que poderíamos
chamar de verdadeiro caminho espiritual

"Retirado do livro: Além do Materialismo Espiritual; de Chögyam


Trungpa"
Como vivenciar a "loucura"
Durante uma emergência espiritual, a mente lógica é, muitas vezes,
desviada e os ricos mundos pitorescos da intuição, da inspiração e da
imaginação assumem seu lugar. A razão se torna restrita e a verdadeira
revelação fica acima do intelecto. Para algumas pessoas, essa incursão
nas áreas visionárias pode ser excitante, espontânea e criativa. Mas
várias vezes, como isso não envolve os estados da mente considerados
normais, muitas pessoas pensam que estão ficando loucas.

Quando acontece a dissolução da racionalidade como parte do


desenvolvimento espiritual, ocorre o desaparecimento de antigas
restrições mentais ou mesquinharias, que são às vezes obrigatórias,
antes que uma consciência abrangente e uma inspiração intensificada
possam tomar seu lugar. O que, na verdade, está desaparecendo não é a
capacidade de raciocinar, embora possa parecer que isso aconteça
durante um certo tempo, mas as limitações cognitivas que mantêm a
pessoa pressionada e imutável.

Enquanto isso estiver ocorrendo, o pensamento linear será às vezes


impossível, e a pessoa sentir-se-á mentalmente agitada quando a
consciência for bombardeada com o material liberado pelo inconsciente.
Emoções estranhas e perturbadoras tornar-se-ão subitamente acessíveis
e a racionalidade outrora familiar será inútil para explicar essas
ocorrências. Isso poderá ser um momento crítico muito assustador no
desenvolvimento espiritual. Porém, se uma pessoa estiver
verdadeiramente comprometida com o processo de emersão, isso será
passageiro e poderá ser uma fase de transformação muito importante.

Em The Chasm of Fire, Irina Tweedy conta suas sensações de loucura:


Meio inconsciente, de repente percebi no quarto escuro, à minha volta,
algum tipo de névoa girando, sombria, cinzenta... e logo pude distinguir
mais coisas ou seres horríveis, maldosos, obscenos, todos unidos em
relações sexuais, criaturas elementares, parecidas com animais, em
orgias sexuais selvagens. Eu tinha a certeza de que estava ficando
louca. Um arrepio de frio me deteve; alucinações, loucura; nenhuma
esperança para mim — insanidade — era o fim... As criaturas estavam
mais próximas, então, todas ao redor da minha cama... Todos aqueles
demônios deviam estar em mim! Deus misericordioso, me ajude! Não há
escapatória para mim, exceto um asilo indiano para dementes, ou uma
cela para loucos!

Às vezes, padrões desconhecidos de coincidências significativas


incomuns podem parecer governar as atividades do mundo, substituindo
a ordem mais previsível, aparentemente controlável e conhecida. Outras
vezes, as pessoas podem passar por um caos interior total; sua maneira
lógica de estruturar a realidade se desvanece e é abandonada com uma
confusa e desorganizada falta de continuidade. Totalmente à mercê de
um mundo interior dinâmico, cheio de um intenso drama e emoções
absorventes, elas não podem operar de modo objetivo e racional. Talvez
sintam como se essa fosse a destruição final de qualquer resto de
sanidade, e ficam com medo de serem levadas à loucura total e
irreversível.
.
Essa experiência de insanidade é lembrada por uma mulher depois de
sua emergência espiritual: "Senti como se minha mente estivesse sendo
destruída em milhões de pedaços. Eu não podia me agarrar aos
pensamentos como os conhecia; havia apenas fragmentos. Meu marido
tentou falar comigo, mas não pude captar-lhe as palavras. Nada fazia
sentido. Tudo estava completamente embaralhado e confuso. Eu tinha
visões de mim mesma como uma paciente crônica na enfermaria de
algum hospital estadual pelo resto da minha vida. Eu estava certa de
que esse era o modo como ficaria para sempre."
Certas tradições espirituais oferecem uma visão alternativa desse tipo
de "loucura". A "loucura santa" ou "loucura divina" é conhecida e
apreciada por várias tradições espirituais, e é diferente da insanidade
comum; é vista como uma forma de intoxicação pelo Divino que
proporciona habilidades extraordinárias e instrução espiritual. Em
tradições tais como o sufismo e a cultura americana nativa, figuras
sagradas reconhecidas como tolas ou idiotas são conhecidas por
englobar esse estado. Videntes, místicos e profetas venerados são
freqüentemente descritos como inspirados pela loucura.
.
A loucura divina é descrita pelo filósofo grego Platão como um presente
dos deuses:
.
As maiores bênçãos vêm pelo caminho da loucura, a loucura que
certamente é enviada do céu. É quando estavam loucas que a profetisa
de Delfos e a sacerdotisa de Dodona fizeram tanto para que os Estados
e as pessoas da Grécia lhes fossem agradecidas; quando sãs, fizeram
pouco ou nada... A loucura é um presente sagrado, quando devida à
providência divina.

Na cultura Okinawan, esse estado é chamado de kamidari; é um período


em que o espírito da pessoa passa por um tempo de provação, durante o
qual ela não pode agir racionalmente. A comunidade apóia a pessoa,
reconhecendo sua condição de loucura como um sinal de que está
próxima a Deus. Além disso, essa pessoa é respeitada como alguém que
tenha uma missão divina.

"Retirado de: A tempestuosa busca do Ser; de Stanislav e Christina Grof"

Problemas criados por experiências místicas ou transcendentais


Apesar das qualidades geralmente benevolentes dos estados positivos,
há duas áreas de dificuldades que podem surgir quando as pessoas têm
experiências místicas: dificuldade para aceitar ou lidar com as áreas
transcendentais, e problemas quando as experiências se relacionam com
o meio ambiente. Além disso, muitas vezes essas áreas se confundem.
.
Problemas interiores
Muita gente se sente despreparada para as diretrizes das esferas
sagradas. Estes são fatos e estados mentais desconhecidos, que
permitem às pessoas penetrar na própria consciência, o que geralmente
significa abandonar os conceitos já conhecidos sobre a realidade. Elas
também podem sentir que não são suficientemente fortes para suportar
o profundo impacto das manifestações físicas e sensoriais de
experiências místicas, ou que não estão suficientemente abertas para
manipular o seu poder. O professor espiritualista americano Ram Dass
compara essas pessoas a uma "torradeira", e sua reação a "ligar o seu
plugue em 220 volts em vez de 110, enquanto tudo torra". Recebendo
esse enorme insumo físico, mental, emocional e espiritual, elas podem
se sentir dominadas e uma reação natural talvez seja a de recuar.Uma
resposta semelhante pode ocorrer durante uma forte experiência de
luminosidade. Às vezes as pessoas sentem que sua visão está bastante
fraca ou demasiado obscurecida para lidar com a intensidade da luz
ofuscante com medo de ficar literalmente cegas se permitirem que a
experiência prossiga. Quando isso acontece, podem sentir muita dor
física ao redor dos olhos.Um praticante de meditação relembra o horror
que sentiu durante um estado transpessoal "positivo": "Foi muito
estranho... Eu havia lido sobre a experiência a luz em livros sobre
espiritualidade e só tinha ouvido falar disso como sendo algo ligado à
alegria. Eu ansiava por esse tipo de experiência há muito tempo, tentava
várias formas de trabalho interior para chegar a isso. Mas, quando
realmente aconteceu, fiquei horrorizado. Foi impressionante: era
doloroso, terrível e maravilhoso ao mesmo tempo. Senti como se tudo
aquilo fosse demais e que eu não o poderia suportar. Pensei em Moisés e
na sarça ardente, que era tão brilhante que ele teve que se afastar.
Reconheci, desamparado, que eu não seria capaz de compreender o que
acontecia."Embora o sofrimento que acontece durante um encontro
místico possa ser sentido como destrutivo e violento no início, com o
tempo as pessoas em geral o reconhecem como a dor da abertura e do
crescimento espiritual. Elas chegam até a receber isso como um sinal da
sua ligação com o Divino, como descreve Santa Teresa de Ávila:A dor
era tão aguda que eu gemia, mas o encanto dessa tremenda dor era tão
poderoso que não se poderia querer abandoná-la, nem a alma se
satisfaria com nada mais a não ser com Deus. Era uma dor espiritual,
não física, embora o corpo tivesse alguma parte nisso, até que
considerável. Era uma troca de cortesias entre a alma e Deus.A
experiência da desintegração positiva do ego, descrita acima, também
pode apresentar problemas. Enquanto algumas pessoas aceitam de bom
grado a oportunidade de se liberar e de se expandir, outras estão muito
ligadas às suas identidades individuais, e se esse momento crítico for
muito assustador, elas poderão tentar resistir ou brigar devido a isso.
Embora esse estado de perda do ego seja transitório, as pessoas que
estão passando por ele sentem que esse processo é permanente.
Aprisionadas entre o que conhecem de si próprias como são e em quem
estão se transformando, podem se perguntar: "Quem sou eu? Onde isto
está me levando? Como posso ter confiança no que está
acontecendo?"Algumas pessoas podem não confiar na realidade de suas
novas possibilidades, ou podem ter medo de que os estados que estão
sendo vivenciados sejam sinais de doença mental. Elas sentem que
estão se desviando muito do comum. Chegam até a temer que depois de
entrar em contato com o Divino tenham mudado tanto que as pessoas
do seu convívio compreenderão imediatamente que elas estão
"diferentes", e pensarão que são especiais ou loucas.Outras podem lutar
com as áreas transcendentais, não importando quão belas serenas elas
sejam, porque não sentem o valor da experiência. Conhecemos várias
pessoas com problemas permanentes de auto-imagem que se sentem
desmerecedoras de qualquer experiência que seja muito agradável ou
muito próspera. Em geral, quanto mais benevolente for o seu estado
espiritual, mais ativamente tentarão resistir a ele.Algumas pessoas ficam
deprimidas depois de entrar em contato com as áreas transcendentais,
porque sua vida diária parece árida e desinteressante, em comparação
com a radiação e a liberação que experimentaram. Um terapeuta
escreveu sobre a volta às limitações do corpo físico depois de uma
experiência mística:Naquele estado iluminado eu me senti
completamente sem limites e livre, rodeado e repleto de uma luz
brilhante, banhado por uma enorme sensação de paz. Quando comecei a
voltar ao mundo cotidiano, senti que meu novo "Eu" abrangente estava
se afunilando, voltando a ser uma unidade retraída: o meu "Eu" físico
cotidiano. Meu corpo se sentia como uma armadilha de aço que prendia
e dominava todas as minhas possibilidades. Senti a dor e o drama da
vida diária começando a me pressionar, e chorei quando ansiei por
voltar para a liberdade que havia descoberto.Algumas pessoas nessa
situação podem realmente querer permanecer num estado prazeroso,
excluindo suas responsabilidades diárias. Ou podem preferir repetir a
experiência pela qual estão passando, em vez de aproveitar a
possibilidade de vivenciar outros estágios de sua jornada espiritual que,
mesmo não sendo tão belos e extraordinários, são igualmente
importantes. Como resultado, podem abster-se de colaborar para seu
maior desenvolvimento pessoal, resistindo e até mesmo censurando
tudo o que seja inferior ao estado místico positivo.

"Retirado de: A tempestuosa busca do Ser; de Stanislav e Christina Grof"

Auto-Realização e Distúrbios Psicológicos - Roberto Assagioli


O desenvolvimento espiritual é uma longa e árdua
jornada, uma aventura por estranhas terras plenas de surpresas, de
alegrias e de beleza, de dificuldades e até de perigos. Envolve o
despertar de potencialidades até então adormecidas, a elevação da
consciência a novos domínios, uma drástica transmutação dos
elementos "normais" da personalidade e um funcionamento no âmbito
de uma nova dimensão interior. Uso o termo "espiritual" em sua
conotação mais ampla e sempre com referência à experiência humana
empiricamente observável. Nesse sentido, "espiritual" remete não
somente a experiências tradicionalmente consideradas religiosas, como
também a todos os estados de consciência e a todas as funções e
atividades humanas que têm como denominador comum a posse de
valores superiores aos comuns-valores éticos, estéticos, heróicos,
humanitários e altruístas. Na psicossíntese, entendemos essas
experiências de valores superiores como produtos dos níveis
supraconscientes do ser humano. Pode-se conceber o supraconsciente
como a contraparte superior do inconsciente inferior tão bem mapeado
por Freud e por seus sucessores. Agindo como o centro unificador do
supraconsciente e da vida do indivíduo como um todo, temos o Eu
Transpessoal ou Superior. Logo, as experiências espirituais podem
limitar-se aos domínios supraconscientes ou incluir a percepção
consciente do Eu. Essa percepção torna-se aos poucos Auto-Realização -
a identificação do "eu" com o Eu Transpessoal. Na discussão seguinte,
farei considerações acerca dos vários estágios do desenvolvimento
espiritual, incluindo o atingimento da realização do Eu. Não deveríamos
nos surpreender ao sabermos que uma transformação tão fundamental é
marcada por vários estágios críticos que podem ser acompanhados por
inúmeros distúrbios mentais, emocionais e até físicos. À observação
objetiva e clínica do terapeuta, esses elementos podem parecer os
mesmos decorrentes de causas mais comuns. Na realidade, contudo,
eles têm um significado e uma função bem distintos, precisando ser
tratados de maneira bem diferente. A incidência de distúrbios de origem
espiritual cresce rapidamente hoje acompanhando de perto o número
crescente de pessoas que, consciente ou inconscientemente, abrem o
seu próprio caminho para uma vida mais plena. Além disso, o maior
desenvolvimento e complexidade da personalidade do homem de nossos
dias e a sua mente cada vez mais crítica tornaram o desenvolvimento
espiritual um processo mais rico e compensador, mas, ao mesmo tempo,
mais difícil e complicado. No passado, uma conversão moral, uma
simples devoção sincera a um mestre ou salvador, uma amorosa entrega
a Deus costumavam ser suficientes para abrir as portas para um nível
superior de consciência e para um sentido de união e de realização
interiores. Agora, entretanto, os aspectos mais variados e complexos da
personalidade do homem moderno estão envolvidos no processo e
requerem uma transmutação e uma harmonização entre si: seus
impulsos fundamentais, suas emoções e sentimentos, sua imaginação
criadora, sua mente inquisitiva, sua vontade afirmativa, bem como suas
relações sociais e interpessoais. Por essas razões, é útil fazer uma
descrição geral dos distúrbios passíveis de surgir nos vários estágios do
desenvolvimento espiritual, assim como dar algumas indicações sobre
como tratar melhor deles. Podemos reconhecer nesse processo quatro
estágios, ou fases, críticos: Crises que precedem o despertar espiritual,
Crises causadas pelo despertar espiritual, Reações que seguem o
despertar espiritual, e Fases do processo de transmutação. Usei o termo
simbólico “despertar” porque ele sugere com clareza a tomada de
consciência de uma nova área da experiência, a abertura dos olhos até
então fechados para uma realidade interior antes desconhecida.
.
Crises que Precedem o Despertar Espiritual
Para melhor entender as experiências que costumam preceder o
despertar, devemos examinar algumas das características psicológicas
do ser humano “normal”. Dele, pode-se dizer que “deixa-se viver” em
vez de viver. Toma a vida tal como ela vem e não questiona o seu
significado, o seu valor ou o seu propósito; dedica-se à satisfação dos
desejos pessoais; busca o prazer dos sentidos e das emoções, a
segurança material ou a realização das ambições pessoais. Se for mais
maduro, subordina as satisfações pessoais ao cumprimento dos vários
deveres sociais e familiares que lhes são atribuídos, mas sem procurar
entender as bases em que esses deveres se apóiam ou a sua fonte.
Possivelmente se considera “religioso” e crente em Deus, mas em geral
sua religião é exterior e convencional e, quando se conforma às
injunções da sua igreja e participa dos seus ritos, ele acha que faz tudo o
que lhe foi exigido. Em resumo, sua crença operacional é a de que a
única realidade é a do mundo físico que ele pode ver e tocar, razão por
que tem forte apego aos bens materiais. Assim, para todos os propósitos
práticos, ele considera esta vida um fim em si mesmo. Sua crença num
“céu” futuro, se ele conceber um, é totalmente teórica e acadêmica –
como o prova o fato de ele fazer os maiores esforços para adiar o
máximo possível a sua ida para as delícias do céu. Mas pode ocorrer de
esse “homem normal” ser surpreendido e perturbado por uma mudança
– súbita ou gradual – de sua vida interior. Isso pode acontecer depois de
uma série de desilusões; não é incomum que sobrevenha depois de
algum choque emocional, como a perda de um ente querido ou de um
amigo muito amado. Mas por vezes se manifesta sem causa aparente e
no pleno gozo da saúde e da prosperidade. A mudança começa muitas
vezes com uma crescente sensação de insatisfação, de carência, de
“alguma coisa que falta” - que nada tem de material e definido; trata-se
de algo vago e fugidio que a pessoa não consegue descrever.
Acrescenta-se a isso, gradualmente, um sentido de irrealidade e de vazio
com relação à vida cotidiana. Assuntos pessoais, que antes absorviam
tanto a atenção e o interesse, parecem recuar, em termos psicológicos,
para o segundo plano; perdem importância e valor. Surgem novos
problemas. A pessoa começa a procurar a origem e o propósito da vida,
a perguntar a razão de muitas coisas que antes tinha por certas – a
questionar, por exemplo, o sentido do sofrimento pessoal e alheio, e da
justificativa possível para tantas desigualdades no destino dos
homens.Quando chegou a esse ponto, a pessoa pode entender e
interpretar erroneamente a sua condição. Muitos que não compreendem
o significado desses novos estados mentais os consideram fantasias e
devaneios anormais. Alarmados com a possibilidade de desequilíbrio
mental, esforçam-se por combatê-los de várias formas, fazendo
frenéticos esforços para recuperarem a ligação com a “realidade” da
vida cotidiana, que parece fugir-lhes. É freqüente que se atirem, com
ardor crescente, numa girândola de atividades externas, buscando novas
ocupações, novos estímulos e novas sensações. Por esses e outros
meios, podem conseguir por algum tempo aliviar a sua perturbação, mas
não podem livrar-se dela permanentemente. O problema continua a
fermentar nas profundezas do seu ser, solapando as bases de sua
existência comum, até poder irromper novamente, talvez depois de um
longo tempo, com intensidade redobrada. O estado de incômodo e de
agitação vai ficando cada vez mais doloroso e a sensação de vazio
interior ainda mais intolerável. O indivíduo sente-se confuso; boa parte
do que constituía a sua vida agora lhe parece ter desaparecido como um
sonho, sem que nenhuma nova luz tenha aparecido. Na verdade, ele
ainda ignora a existência dessa luz ou então não pode acreditar que ela
venha a iluminá-lo. É freqüente que esse estado de agitação interior seja
acompanhado por uma crise moral. Sua consciência dos valores se
enfraquece ou se torna mais sensível; surge um novo sentido de
responsabilidade e o indivíduo pode sentir-se oprimido por um pesado
sentimento de culpa. Ele julga a si mesmo com severidade e é presa fácil
de um profundo desânimo, chegando a ponto de pensar em suicídio.
Para ele, a aniquilação física parece ser a única conclusão lógica do
crescente sentimento de impotência e desespero, de colapso e de
desintegração.
.
(1)Os dados acima são, com efeito, uma descrição geral dessas
experiências. Na prática, as experiências e reações das pessoas variam
amplamente. Há alguns que nunca chegam a esse estágio agudo,
enquanto outros o alcançam quase de uma vez. Uns são mais acossados
por dúvidas intelectuais e problemas metafísicos; em outros, são mais
pronunciadas as depressões emocionais ou as crises morais. É
importante reconhecer que essas várias manifestações de crise muito se
assemelham a alguns dos sintomas tidos como característicos de
estados neuróticos e de estados psicóticos fronteiriços. Em alguns casos,
a tensão e a pressão da crise também produzem sintomas físicos como
tensão nervosa, insônia e outros distúrbios psicossomáticos. Portanto,
para lidar corretamente com essa situação, é essencial determinar a
fonte básica das dificuldades. De modo geral, isso não é difícil.
Observados isoladamente, os sintomas podem ser idênticos; mas um
exame cuidadoso de suas causas, uma consideração da personalidade
individual em sua inteireza e - o que é mais importante - o
reconhecimento de sua situação real, existencial, revelam a natureza e o
nível distintos dos conflitos de base. Em casos comuns, os conflitos
ocorrem entre os impulsos "normais", entre estes e o "eu" consciente, ou
entre a pessoa e o mundo exterior (em particular com as pessoas
próximas, como os pais, o parceiro ou os filhos). Nos casos que aqui
consideramos, contudo, os conflitos ocorrem entre algum aspecto da
personalidade e as tendências e aspirações progressivas e emergentes
de caráter moral, religioso, humanitário ou espiritual. E não é difícil
determinar a sua presença uma vez que se reconheçam a sua validade e
a, sua realidade, em vez de descartá-las como meras fantasias ou
sublimações. De maneira geral, a emergência de tendências espirituais
pode ser considerada o resultado de pontos decisivos do
desenvolvimento, do crescimento da pessoa. Há possíveis complicações:
por vezes, essas novas tendências emergentes revivem ou exacerbam
conflitos antigos ou latentes entre elementos da personalidade. Esses
conflitos, que seriam por si mesmo regressivos, são na verdade
progressivos aoocorrerem nessa perspectiva mais ampla. E o são porque
facilitam alcançar uma nova integração pessoal, mais abrangente, num
nível superior - na direção do qual a própria crise abriu o caminho. Assim
sendo, essas crises são preparativos positivos, naturais e, com
freqüência, necessários para o progresso do indivíduo. Eles trazem à
superfície elementos da personalidade que precisam ser considerados e
modificados no interesse do crescimento adicional da pessoa.
.
Crises Causadas pelo Despertar Espiritual
A abertura de um canal entre os níveis consciente e supraconsciente,
entre o "eu" e o Eu, assim como a cascata de luz, de energia e de júbilo
que a segue, costumam produzir uma prodigiosa liberação. Os conflitos e
sofrimentos precedentes, bem como os sintomas físicos e psicológicos
que geraram, por vezes desaparecem com surpreendente rapidez,
confirmando o fato de não se deverem a causas físicas, mas de serem o
resultado direto de um esforço interior. Nesses casos, o despertar chega
a uma real resolução. Mas em outros casos, não muito incomuns, a
personalidade não consegue assimilar direito o influxo de luz e de
energia. Isso ocorre, por exemplo, quando o intelecto não é bem
coordenado e desenvolvido; quando as emoções e a imaginação são
descontroladas; quando o sistema nervoso é demasiado sensível; ou
quando a entrada de energia espiritual, dado o seu caráter súbito e a
sua intensidade, é insuportável.
.
(2)A incapacidade mental de suportar a iluminação, ou uma tendência
de autocentração ou vaidade, podem levar à interpretação errônea,
disso resultando, por assim dizer, uma "confusão de níveis". A distinção
entre verdades absolutas e relativas, entre o Eu e o "eu" fica imprecisa e
as energias espirituais que entram podem ter o efeito infeliz de
alimentar ou de inflar o ego pessoal. O autor descobriu um incrível
exemplo desse efeito prejudicial no Hospital Psiquiátrico de Ancona,
Itália. Um dos internos, um homenzinho simples, fotógrafo, declarava
calma e persistentemente ser Deus. Ele construíra, em torno dessa idéia
central, grande número de delírios fantásticos sobre hostes celestiais
comandadas por ele; ao mesmo tempo, era a mais pacífica, gentil e
educada pessoa que se possa imaginar, sempre pronta a servir aos
médicos e pacientes. Era tão confiável e competente que fora
encarregado da preparação de remédios e até tinha as chaves da
farmácia. Sua única falha de comportamento nessa função era um
ocasional roubo de açúcar para agradar a alguns dos outros internos.
Terapeutas de visão materialista provavelmente o considerarão, tão-
somente, um paciente afetado por delírios paranóides; mas esse simples
rótulo diagnóstico oferece pouca ou nenhuma ajuda na compreensão da
natureza e das causas verdadeiras desses distúrbios. Por conseguinte,
parece valer a pena explorar a possibilidade de uma interpretação mais
profunda da ilusória convicção desse homem. A experiência interior do
Eu espiritual, e a sua íntima associação com o seu pessoal, dão um
sentido de expansão interior, de universalidade, assim como criam a
convicção de se participar de alguma maneira da natureza divina. Nas
tradições religiosas e doutrinas espirituais de todas as épocas,
encontramos inúmeras comprovações dessa questão - algumas delas
expressas em termos avançados. Há na Bíblia uma frase explícita: "Eu
disse: vós sois deuses; e todos vós sois filhos do Altíssimo." Santo
Agostinho: "Quando ama algo, a alma torna-se semelhante a ele; se
amar coisas terrenas, torna-se terrestre, mas se amar a Deus não se
tornará Deus?" A expressão mais extrema da identidade do espírito
humano, em sua essência pura e verdadeira, com o Espírito Supremo
está contida no ensinamento central da filosofia vedanta: Tat Tvam Asi
(Tu És Isto) e Aham evam param Brahman (Em verdade, eu sou o
Supremo Brahman). Como quer que concebamos o relacionamento entre
o eu individual, ou "eu", e o Eu Universal, consideremo-los semelhantes
ou diferentes, distintos ou unidos, o mais importante é reconhecer com
clareza, e manter sempre presente, na teoria e na prática, a diferença
entre o Eu em sua natureza essencial - aquilo que tem sido chamado de
"Fonte", "Centro", "o Ser profundo", o "Ápice" de nós mesmos - e o
pequeno eu, ou "eu", identificado com a personalidade comum, da qual
costumamos ter consciência.
.
(3) A desconsideração dessa distinção tem conseqüências absurdas e
perigosas.A distinção fornece a chave para a compreensão do estado
mental do paciente citado e de outras formas extremas de auto-
exaltação e autoglorificação. O erro fatal de quantos são vitimados por
essas ilusões é atribuir ao seu eu pessoal, ou "eu", as qualidades e
poderes do Eu Superior ou Transpessoal. Em termos filosóficos, trata-se
de um caso de confusão entre uma verdade relativa e uma verdade
absoluta, entre os níveis empírico e transcendente da realidade.
Exemplos dessa confusão não são incomuns entre pessoas que ficam
perturbadas ao terem contato com verdades grandes demais ou com
energias demasiado potentes para a apreensão pelas suas capacidades
mentais e para a assimilação pela sua personalidade. O leitor sem
dúvida se lembrará de exemplos de auto-engano semelhante entre
seguidores fanáticos de vários cultos. Está claro que, nessa situação, é
no mínimo perda de tempo argumentar com a pessoa ou ridicularizar a
sua aberração; isso só vai servir para despertar a sua oposição e o seu
ressentimento. O melhor é mostrar-se simpático e, embora admitindo a
verdade última de sua crença, assinalar a natureza do seu erro e ajudá-
la a aprender a fazer a necessária distinção de níveis. Há também casos
em que o súbito influxo de energias produz uma perturbação emocional
que se exprime num comportamento descontrolado, desequilibrado e
desordenado. Gritar e chorar, cantar e ter explosões de vários tipos
caracterizam essa modalidade de resposta. Se for ativo e impulsivo, o
indivíduo pode ser facilmente impelido, pela excitação do despertar
interior, a desempenhar o papel de profeta ou de salvador; pode fundar
uma nova seita e começar uma espetacular campanha de
proselitismo.Em alguns indivíduos sensíveis, há um despertar de
percepções parapsicológicas. Eles têm visões, que acreditam ser de
seres exaltados; podem ouvir vozes ou começar a escrever
automaticamente, aceitando as mensagens ao pé da letra e obedecendo
a elas de modo irrestrito. A qualidade dessas mensagens é
extremamente variada. Algumas contêm refinados ensinamentos e
outras são muito pobres ou sem sentido. Sempre devemos examiná-las
com muita discriminação e um sólido julgamento, e sem nos deixarmos
influenciar pela sua origem incomum nem por alegações do seu pretenso
transmissor. Não se deve atribuir nenhuma validade a mensagens que
contenham ordens definidas e determinem a obediência cega, nem às
que tendem a exaltar a personalidade do receptor.

Reações ao Despertar Espiritual


Como dissemos, um despertar interior harmonioso é caracterizado por
uma sensação de júbilo e de iluminação mental que traz consigo uma
percepção do sentido e do propósito da vida; ela dissipa muitas dúvidas,
oferece a solução para muitos problemas e fornece uma fonte interior de
segurança. Ao mesmo tempo, surge a compreensão de que a vida é una
e uma chuva de amor flui pelo indivíduo desperto para os semelhantes e
para toda a criação. A personalidade anterior, com seus contornos
grosseiros e características desagradáveis, parece ter passado para o
segundo plano, e uma nova pessoa, amorosa e adorável, sorri para nós e
para o mundo inteiro, ávida por ser gentil, por servir e por compartilhar
suas riquezas espirituais recém-adquiridas, cuja abundância lhe parece
grande demais para ser contida. Esse estado de júbilo exaltado pode
durar por períodos variáveis, mas está fadado a desaparecer. O influxo
de luz e de amor é rítmico, como todas as coisas do universo. Depois de
algum tempo, diminui ou cessa e a maré cheia é seguida pela vazante. A
personalidade foi infundida e transformada, mas essa transformação
raramente é permanente ou completa. O mais comum é a reversão de
uma ampla parcela de elementos da personalidade envolvidos ao seu
estado anterior. O processo fica mais claro se observarmos a natureza
de uma experiência culminante em termos de energias e de níveis de
organização. Dada a sua natureza sintetizadora, as energias
supraconscientes agem sobre os elementos da personalidade de
maneiras que tendem a levá-los ao seu próximo nível superior de
organização. Alcançado esse nível, há liberação de energia sinérgica e
esta produz o êxtase, o enlevo e o júbilo característicos dessas
experiências. A depender da quantidade de energia supraconsciente
irradiada pelo Eu, da capacidade da pessoa na época e de muitos outros
fatores, esse nível superior de organização pode ou não ser estável. Na
maioria dos casos, ele permanece enquanto o Eu irradiar a sua energia.
Mas uma vez que essa energia seja retirada - o que termina por
acontecer, devido à natureza cíclica da atividade do Eu -, há uma
tendência mais ou menos pronunciada na personalidade no sentido de
reverter ao seu nível precedente de organização. Por razões de clareza,
podemos considerar três resultados possíveis que tipificam as
conseqüências desse processo:
.
1. A energia do Eu é forte o bastante para alcançar essa integração
superior da personalidade, bem como para transformar ou decompor os
padrões e tendências inerentes à personalidade que tenderiam a fazê-la
reverter ao estado precedente. Esse resultado é relativamente raro e é
ilustrado por casos em que a vida da pessoa é súbita e
permanentemente elevada e transformada como decorrência direta e
imediata de um despertar espiritual.
.
2. A energia transmitida pelo Eu é menos intensa e/ou a personalidade é
menos capaz de uma resposta, razão por que, embora se atinja um nível
superior de organização, apenas algumas das tendências e padrões
regressivos da personalidade passam por uma transformação total,
sendo a maioria deles, tão- somente, neutralizados temporariamente
pela presença de energias superiores. Por isso, a integração superior
alcançada pela personalidade só se mantém enquanto a energia do Eu
estiver sendo transmitida de modo ativo. Quando essa energia é
retirada, a personalidade reverte ao estado precedente. Mas permanece
- e isso costuma ser a parte mais útil da experiência - um modelo ideal e
um sentido de direção que a pessoa pode usar para completar a
transformação por meio dos seus próprios métodos intencionais.
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3. A energia transmitida pelo Eu não é suficiente para produzir o nível
superior de organização. Isso faz a energia ser absorvida pelos blocos e
padrões ocultos que impedem a integração superior. Isso resulta em sua
energização e desvelamento, que permitem que os reconheçamos e
lidemos com eles. Nesses casos, a experiência costuma ter uma
qualidade dolorosa e a sua origem transpessoal costuma passar
despercebida. Mas, na realidade, o valor é o mesmo, pois a experiência
pode mostrar à pessoa os próximos passos a serem dados para ela
alcançar os mesmos alvos e estados, assim como nos outros casos.
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Com efeito, é importante lembrar que a experiência da pessoa não
costuma enquadrar-se perfeitamente em nenhuma dessas categorias
definidas. A maioria das experiências espirituais contém uma
combinação, em várias proporções, de mudanças permanentes, de
mudanças temporárias, do reconhecimento de obstáculos que devem ser
vencidos e da vivida compreensão do que significa existir nesse plano
superior de integração. Essa compreensão torna-se um modelo ideal, um
farol luminoso na direção do qual se pode navegar e que se pode
eventualmente alcançar pelos próprios meios. Mas a vivência da retirada
das energias transpessoais e da perda do estado de ser exaltado é
necessariamente dolorosa e pode, em alguns casos, produzir reações
fortes e sérios problemas. A personalidade redesperta e se afirma com
força renovada. Todas as pedras e resíduos que tinham sido cobertos e
ocultados pela maré cheia surgem outra vez. Ocorre por vezes a
vitalização de propensões e impulsos inferiores até então adormecidos
no inconsciente pelo influxo de energias superiores, ou a sua rebelião
amarga contra as novas aspirações e propósitos, que constituem um
desafio e uma ameaça à sua expressão descontrolada. A pessoa, cuja
consciência moral está agora mais aperfeiçoada e exigente e cuja ânsia
de perfeição tornou-se mais intensa, julga com maior severidade e
condena a própria personalidade com renovada veemência; ela pode
alimentar a crença errônea de que se tornou ainda menos do que era. Às
vezes, a reação da personalidade se intensifica a tal ponto que leva o
indivíduo a negar de fato o valor e até a realidade de sua experiência
recente. Surgem na mente dúvidas e críticas e ele é tentado a encarar a
coisa toda como uma ilusão, uma fantasia ou uma intoxicação
emocional. Torna-se amargo e sarcástico, ridiculariza a si e aos outros, e
até vira as costas aos seus ideais e aspirações superiores. Contudo, por
mais que tente, não pode retornar ao seu antigo estado; ele teve a
visão, e a beleza e o poder de atração dela permanecem com ele apesar
de seus esforços para suprimi-los. Ele não pode aceitar a vida cotidiana
como antes nem satisfazer-se com ela. É assaltado por uma "saudade do
divino" que não o deixa em paz. Em casos extremos, a reação pode ser
tão intensa que se torna patológica, produzindo um estado de depressão
e até de desespero, com impulsos suicidas. Essa condição muito se
assemelha com a depressão psicótica - antes denominada "melancolia"
-, caracterizada por um agudo sentido de indignidade, uma auto-
depreciação e uma auto-acusação sistemáticas, que podem ficar vividas
a ponto de gerarem o delírio de que se está no inferno, condenado por
todo o sempre. Há também uma forte e dolorosa sensação de
incompetência intelectual; uma paralisia da força de vontade,
acompanhada por indecisão e incapacidade de agir. Mas, no caso de
quem teve um despertar interior ou alguma realização espiritual, esses
distúrbios não devem ser considerados uma mera condição patológica;
têm causas distintas, muito mais profundas, como o indicaram Platão e
São João da Cruz com analogias semelhantes. Platão, na famosa alegoria
contida no Livro Sete da República, compara o homem não iluminado
com prisioneiros numa caverna ou gruta escura, e diz: No início, quando
algum deles se liberta e é subitamente compelido a levantar-se e a olhar
em torno, caminhando na direção da luz, sobrevém-lhe agudas dores; o
clarão o incomodará e ele não poderá ver as realidades cujas sombras
vira em seu estado anterior. São João da Cruz usa palavras curiosamente
semelhantes ao falar da experiência que denominou "a noite escura da
alma": O eu está nas trevas porque é cegado por uma luz acima de suas
condições... Tal como os olhos enfraquecidos e toldados padecem
quando a clara luz os atinge, assim também o espírito, em razão de sua
impureza, sofre inexcedíveis dores quando a Luz Divina brilha de fato
sobre ele. E quando os raios da pura Luz reluzem sobre o espírito para
expelir as impurezas, este se percebe tão impuro e insignificante que
tem a impressão de que Deus Se pôs contra ele e de que ele mesmo se
contrapôs a Deus. As palavras de São João sobre a "luz" que "reluz sobre
o espírito para expelir as impurezas" tratam da natureza essencial do
processo. Mesmo do ponto de vista limitado da personalidade, isso pode
parecer um retrocesso ou uma fase indesejável - "tem a impressão de
que Deus Se pôs contra ele e de que ele mesmo se contrapôs a Deus" -,
da perspectiva muito mais ampla do Eu Transpessoal, essa fase, muitas
vezes chamada, adequadamente, de "purgação", é na verdade um dos
mais úteis e frutíferos estágios do crescimento. A luz do Eu brilha sobre
as "impurezas" e as traz à consciência do indivíduo para facilitar o seu
processo de trabalho com elas. Embora por vezes possa ser laborioso,
esse processo é um aspecto fundamental de um canal confiável e
permanente de contato entre a pessoa e a sua natureza transpessoal ou
supraconsciente. O modo correto de lidar com alguém afetado por esse
tipo de crise consiste em transmitir-lhe uma real compreensão da
natureza da crise. É como se a pessoa tivesse voado até o topo da
montanha, banhada pela luz do sol, e percebesse a glória e a beleza do
panorama que se estendia aos seus pés, mas tivesse sido obrigada a
voltar, com relutância, reconhecendo, arrependida, que o difícil caminho
para o alto deve ser trilhado passo a passo. O reconhecimento de que
essa descida - ou "queda" - é um evento natural traz alívio emocional e
mental e encoraja o indivíduo a empreender a difícil tarefa de enfrentar
o caminho da Auto-Realização. Em última análise, a crise é superada
com a percepção de que o valor verdadeiro e mais profundo da
experiência é o fato de oferecer, como eu disse, uma "visão palpável" de
um melhor estado de ser e, portanto, um mapa, um modelo ideal para o
qual a pessoa pode dirigir-se e que pode tornar-se uma realidade
permanente.
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O Processo de Transmutação
Esse estágio segue o reconhecimento de que as condições necessárias a
serem atendidas para a elevada façanha da Auto-Realização são uma
regeneração e uma transmutação completas da personalidade. Trata-se
de um processo longo e multilateral que compreende várias fases: a
remoção ativa dos obstáculos ao influxo e à operação das energias
supraconscientes; o desenvolvimento das funções superiores
adormecidas ou não-desenvolvidas; e períodos em que se pode deixar o
Eu Superior agir, mediante a receptividade à sua orientação. Trata-se de
um período deveras frutuoso e memorável, cheio de mudanças, ou de
alternâncias entre luz e trevas, entre alegria e sofrimento. É uma época
de transição, de saída da velha condição sem ter ainda alcançado a nova
de maneira firme; um estágio intermediário em que, como bem se disse,
a pessoa é como uma lagarta em transformação na borboleta alada. Mas
o indivíduo em geral não tem a proteção de um casulo onde passar a
metamorfose em paz e em recolhimento. Ele deve - particularmente em
nossos dias - permanecer onde está na vida e continuar a cumprir da
melhor maneira as suas tarefas familiares, profissionais e sociais. É um
problema semelhante ao dos engenheiros que reparam uma estação
ferroviária sem interromper o tráfego. Apesar dos desafios desse
empreendimento, a pessoa vai sentindo, em sua ação, um progresso
gradual e crescente. Sua vida fica impregnada de um sentido de
significado e de propósito, as tarefas corriqueiras são vitalizadas e
elevadas pela sua crescente consciência do seu lugar num esquema
mais amplo de coisas. Com a passagem do tempo, o indivíduo reconhece
com maior plenitude e de modo mais claro o caráter da realidade, do
homem e de sua própria natureza superior. Começa a desenvolver um
quadro conceitual mais coerente que lhe permite melhor entender o que
observa e vive, e que lhe serve não apenas de meio de orientação para
um conhecimento mais profundo, como também de fonte de serenidade
e ordem em meio às circunstâncias mutantes da vida. Como resultado,
ele começa a dominar cada vez mais tarefas que antes pareciam além
da sua capacidade. Autuando, cada vez mais a partir de um centro
superior de unificação da personalidade, ele harmoniza os seus diversos
elementos de personalidade numa progressiva unidade; e essa
integração mais completa dá-lhes maior eficácia e mais alegria.Esses
são os resultados geralmente observados, no curso de um longo período
de tempo, como decorrência do processo de transmutação da
personalidade sob o impulso de energias supraconscientes. Mas o
processo nem sempre tem fluidez absoluta. Isso não causa surpresa,
dada a complexidade da tarefa de refazer a personalidade em meio às
circunstâncias da vida diária. Como regra geral, algumas dificuldades
existem em quase todos os casos e é possível observarmos estágios
temporários em que se manifestam condições opostas às que mencionei.
Isso costuma ocorrer imediatamente depois da passagem do auge de
excitação, e o indivíduo retorna à sua tarefa dual de autotransformação
e atendimento das muitas exigências da vida. A aprendizagem da
habilidade de usar as próprias energias dessa forma em geral demora
algum tempo e pode durar o tempo que antecede a implementação
equilibrada das duas tarefas e sua eventual compreensão como uma
única atividade. Por isso, não espanta encontrarmos estágios em que a
pessoa fica tão envolvida com a autotransformação que a sua
capacidade de lidar de maneira bem-sucedida com os problemas e
atividades da vida normal pode ser prejudicada. Observada de fora e
avaliada em termos da eficiência comum, orientada para resultados, ela
pode parecer temporariamente menos capaz do que antes. Nesse
estágio transitório, a pessoa pode não escapar de julgamentos injustos
por parte de amigos ou de terapeutas bem-intencionados mas sem
iluminação, podendo vir a ser alvo de observações pungentes e
sarcásticas sobre como os seus "elevados" ideais e aspirações espirituais
a tornam fraca e incapaz na vida prática. Esse tipo de crítica é muito
doloroso e sua influência pode gerar dúvidas e desânimo. Quando
ocorre, essa provação constitui um dos testes a serem enfrentados no
caminho da Auto-Realização. Seu valor está no fato de ensinar a vencer
a sensibilidade pessoal, constituindo uma oportunidade de
desenvolvimento da independência interior e da autoconfiança sem
ressentimentos. Deve-se aceitá-la com alegria ou, ao menos, com
serenidade, e usá-la como uma oportunidade de criação de força
interior. Se, por outro lado, as pessoas do ambiente do indivíduo forem
iluminadas e compreensivas, sua ajuda será grande e lhe poupará
muitos atritos e sofrimentos. Esse estágio passa, com o tempo, à medida
que a pessoa aprende a dominar e a unificar a sua tarefa dual. Mas
quando as complexidades da tarefa não são reconhecidas nem aceitas,
as tensões naturais do crescimento, presentes no processo, podem ser
exacerbadas, durar por longos períodos ou se repetirem com freqüência
desnecessária. Isso ocorre em especial quando o indivíduo se envolve
tanto no processo de auto-transformação que exclui o mundo exterior
com uma introversão obstinada e excessiva. No crescimento humano,
são naturais os períodos de introversão saudável; mas se forem levados
a extremos ou transformados em atitude geral de afastamento da vida
do mundo, podem gerar inúmeras dificuldades para a pessoa, não
somente com amigos, colegas e familiares impacientes e críticos como
interiormente, quando a introversão natural se torna auto-obsessão.
Dificuldades semelhantes podem surgir se a pessoa não lidar com seus
aspectos negativos revelados no processo de despertar espiritual. Em
vez de transmutá-Ios, ela pode refugiar-se em fantasias interiores de
perfeição atingida ou em fugas imaginárias. Mas o conhecimento
reprimido das imperfeições reais o assombra e aqueles que a cercam
contestam as suas fantasias. Sob essa dupla pressão, não é incomum
que a pessoa seja acometida por uma variedade de problemas
psicológicos, como insônia, depressão emocional, exaustão, aridez,
agitação mental e inquietação. Esses distúrbios produzem com facilidade
toda espécie de sintomas e desordens de natureza física. Muitos desses
problemas podem ser bastante reduzidos ou eliminados de vez mediante
a busca do próprio processo de crescimento com afinco, dedicação e
zelo, mas sem identificação com ele. O cultivo de um compromisso
desapegado dá à pessoa a flexibilidade necessária para a máxima
realização da tarefa. O indivíduo pode então aceitar as tensões exigidas
do processo novo e complexo; pode recusar-se a ter autopiedade a partir
do perfeccionismo frustrado; pode aprender a ver a si mesmo com
humor e dispor-se a fazer experiências com mudanças e arriscar-se a
mudar; e pode voltar-se, com auto-aceitação de suas atuais limitações,
para pessoas competentes - terapeutas profissionais, conselheiros ou
amigos iluminados – em busca de apoio e de orientação. Outro conjunto
de dificuldades pode ser causado pelo esforço pessoal excessivo de
aceleração de percepções superiores mediante a inibição e a repressão
violentas dos impulsos agressivos e sexuais - tentativa que só serve para
intensificar os conflitos e os seus efeitos. Essa atitude costuma resultar
de concepções morais e religiosas demasiado rígidas e dualistas. Isso
provoca a condenação dos impulsos naturais, considerados "ruins" ou
"pecaminosos". Hoje, um grande número de pessoas abandonou
conscientemente essas atitudes, mas ainda pode estar
inconscientemente condicionado por elas em alguma medida. Essas
pessoas podem manifestar ambivalência ou oscilação entre duas
atitudes extremas - a repressão rígida e a expressão incontrolada de
todos os impulsos. Esta última, embora catártica, não é uma solução
aceitável do ponto de vista ético nem da perspectiva psicológica; ela
sempre produz novos conflitos - entre os vários impulsos básicos, ou
entre eles e as barreiras impostas pelas convenções sociais e pelas
exigências das relações interpessoais. A solução está, na verdade, ao
longo das linhas de uma gradual reorientação e de uma gradativa
integração harmoniosa de todos os impulsos da personalidade, primeiro
por meio de reconhecimento, da aceitação e da coordenação adequados
deles e, depois, pela transformação ou sublimação da quantidade
excessiva ou não utilizada.
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(6) A realização dessa integração pode ser bastante facilitada pela
ativação de funções supraconscientes e pelo direcionamento deliberado
para o Eu Transpessoal. Esses interesses mais amplos e de natureza
superior agem como um ímã, que atrai para cima a "libido" ou energia
psíquica investida nos impulsos "inferiores". Um tipo final de dificuldade
que merece menção pode atingir o indivíduo em períodos nos quais o
fluxo de energias supraconscientes é fácil e abundante. Se não for
controlado com sabedoria, esse fluxo energético tanto pode perder-se
numa excitação e numa atividade febris, como, pelo contrário, manter-se
em demasia paralisado e inexpressivo, o que provoca o seu acúmulo e
pode levar a sua alta pressão a causar problemas físicos. A solução
apropriada é dirigir, de maneira propositada, construtiva ou harmoniosa,
esse influxo de energia para a operação da regeneração interior, da
expressão criativa e do serviço proveitoso.
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O Papel do Guia
Vivemos uma época em que um número cada vez maior de pessoas
passa pelo despertar espiritual. Por essa razão, os terapeutas,
conselheiros e outros profissionais assistenciais, assim como leigos,
podem ser chamados a servir de recursos e de guias a pessoas que se
acham nessa situação. Por conseguinte, pode ser útil considerar a
função da pessoa passível de estar próxima de alguém submetido a esse
processo, bem como alguns dos problemas nele envolvidos. Em primeiro
lugar, não devemos perder de vista o fato central de que, embora
possam ter bastante semelhança exterior, e até uma aparente
identidade entre si, os problemas que podem acompanhar as várias
fases da Auto-Realização e os problemas da vida normal têm causas e
significações muito distintas, devendo ser tratados de maneiras
correlativamente diferentes. Em outras palavras, a situação existencial
em cada caso é não somente outra, como, num certo sentido, oposta. As
dificuldades psicológicas da pessoa comum costumam ter um caráter
regressivo. Esses indivíduos não conseguiram fazer alguns dos ajustes
interiores e exteriores que constituem o desenvolvimento normal da
personalidade. Diante de situações difíceis, responderam com reversão a
formas de comportamento adquiridos na infância, ou jamais
ultrapassaram de fato certos padrões infantis, quer os reconheçam como
tais, quer os racionalizem. Por outro lado, as dificuldades advindas da
tensão e do esforço nos vários estágios da Auto-Realização têm, como
eu disse antes, um caráter especificamente progressivo.
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(7) Elas se devem ao estímulo gerado por energias supraconscientes,
pelo "impulso vindo de cima", pelo chamado do Eu, tendo como
determinantes particulares o conseqüente conflito entre essas energias
e os aspectos "médios" ou "inferiores" da personalidade. Jung descreveu
a crise de forma marcante: Ser "normal" é uma esplêndida idéia para os
fracassados, para todos os que ainda não conseguiram sua adaptação.
Mas para pessoas dotadas de uma capacidade bem maior do que a da
média, para quem jamais é difícil alcançar o sucesso e cumprir a sua
parte na obra do mundo - para essas pessoas, limitar-se a ser normal
representa o leito de Procusto, o tédio insuportável, a esterilidade e o
desespero infernais. Em conseqüência, há tantas pessoas que ficam
neuróticas porque são apenas normais, como há pessoas que o são
porque não podem tornar-se normais. É claro que o modo de ajudar
esses dois grupos distintos de pessoas deve ser totalmente diferente. É
provável que a ação apropriada para o primeiro grupo seja não somente
insatisfatória como perniciosa para o segundo. O destino das pessoas do
primeiro grupo é duplamente difícil se elas são guiadas por quem não
compreende nem sabe avaliar as funções supraconscientes, que ignora
ou nega a realidade do Eu e a possibilidade da Auto-Realização. Esse
guia pode ridicularizar as incertas aspirações superiores da pessoa ou
persuadi-la a reforçar a couraça da personalidade contra a insistente
batida do Eu Transpessoal. Isso pode agravar a condição, intensificar a
luta e retardar a solução. Por outro lado, um guia de inclinação espiritual,
ou que ao menos entenda as realidades e realizações superiores e tenha
simpatia por elas, pode ser de grande ajuda ao indivíduo quando este,
como é costumeiro, ainda estiver no primeiro estágio, o da insatisfação,
da agitação e da busca inconsciente. Se este tiver perdido o interesse
pela vida, se a existência cotidiana não o atrai, se ele estiver procurando
alívio em direções erradas, indo e vindo por becos sem saída, e se ainda
não vislumbrou a realidade superior, a revelação da causa real do seu
problema e a indicação da solução indesejada, do feliz desfecho da crise,
podem constituir um apoio precioso na geração do despertar interior,
que é, por si só, a principal parte da resolução. O segundo estágio, da
excitação emocional e da exaltação - em que a pessoa pode ser levada
por um entusiasmo excessivo e cultiva a ilusão de ter conseguido uma
realização permanente - requer uma delicada advertência de que o seu
estado de bênção é necessariamente temporário e uma indicação das
vicissitudes que a esperam. Isso a preparará para o início da terceira
etapa, que costuma envolver, como vimos, uma reacção dolorosa e, por
vezes, uma profunda depressão, à medida que a pessoa "desce" de sua
experiência superior. Se tiver sido advertido de antemão, o indivíduo
poderá evitar muitos sofrimentos, dúvidas e desânimos. Se não tiver
contado com essa espécie de alerta, pode receber do guia muita ajuda,
configurada na confirmação de que a sua condição é temporária, e de
forma alguma permanente ou desesperadora como ele se sente
compelido a crer. O guia deve declarar com insistência que o
recompensador resultado da crise justifica a angústia - por mais intensa -
por que ele passa. Podemos dar-lhe grande alívio e encorajamento ao
citarmos exemplos de pessoas que passaram por uma provação
semelhante e saíram dela. No quarto estágio, durante o processo de
transmutação - que é o mais longo e mais complicado -, o trabalho do
guia é correspondentemente mais complexo. Alguns dos seus aspectos
importantes são:
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• Esclarecer o indivíduo sobre o que de fato acontece dentro dele e
ajudá-lo a encontrar a atitude correcta.
• Ensiná-lo a controlar sabiamente e dominar, mediante o uso habilidoso
da vontade, os impulsos vindos do inconsciente, sem reprimi-los por
meio do medo ou da condenação.
• Ensinar-lhe as técnicas de transmutação e sublimação de energias
agressivas e sexuais. Essas técnicas são a solução mais eficaz e
construtiva de muitos conflitos psicológicos.
• Ajudá-lo no reconhecimento e na assimilação apropriados do influxo de
energias do Eu e dos níveis supra-conscientes.
• Ajudá-lo a expressar e a usar essas energias no amor e no serviço
altruísticos. Isso tem especial validade no combate à tendência de
introversão e de auto-centração excessivas que costumam manifestar-se
nesse e em outros estágios do auto-desenvolvimento.
• Guiá-lo pelas várias fases da reconstrução de sua personalidade em
torno de um centro interior superior, ou seja, na realização de sua
psicossíntese espiritual.
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(8)Ao longo deste artigo, enfatizei o aspecto mais difícil e doloroso do
desenvolvimento espiritual, mas não se deve concluir disso que quem
está no caminho da Auto-Realização esteja mais propenso a ser afectado
por distúrbios psicológicos do que outros homens e mulheres. O estágio
de sofrimento mais intenso muitas vezes não ocorre. Em muitas pessoas,
esse desenvolvimento se realiza de maneira gradual e harmoniosa, de
modo que as dificuldades são superadas e os vários estágios percorridos
sem reacções severas de qualquer espécie. Por outro lado, as desordens
emocionais ou sintomas neuróticos da pessoa comum costumam ser
mais sérios, mais intensos e difíceis de suportar e de tratar
terapeuticamente do que os vinculados com a Auto-Realização. É em
geral difícil tratar deles de modo satisfatório porque, como os níveis e
funções psicológicos superiores dessas pessoas ainda não foram
activados, há pouco a que recorrer para mostrar o valor de suportar os
sacrifícios necessários e aceitar a disciplina requerida para fazer os
devidos ajustes. Os problemas físicos, mentais e emocionais que surgem
no caminho da Auto-Realização, por mais sérios que pareçam, não
passam de reacções temporárias, subprodutos, por assim dizer, de um
processo orgânico de crescimento e de regeneração interiores. Portanto,
ou desaparecem espontaneamente passada a crise que os causou ou
cedem com facilidade ao tratamento adequado. Além disso, os
sofrimentos decorrentes de períodos de depressão, de refluxo da vida
interior, têm a abundante compensação dos períodos de renovado
influxo de energias supraconscientes e da antecipação da liberação e do
aprimoramento da personalidade inteira, a serem produzidos pela Auto-
Realização. Essa visão é a mais potente inspiração, o alívio infalível e
uma fonte constante de força e de coragem. Portanto, como dissemos, o
mais importante é relembrar essa visão com a maior vivacidade e a
maior frequência possíveis. Um dos grandes serviços que podemos
prestar a quem labuta no caminho é ajudar as pessoas a manter diante
dos olhos a visão como o seu objectivo sempre presente. Por
conseguinte, a pessoa poderá antecipar e ir experimentando de forma
crescente o estado de consciência do indivíduo Auto-Realizado. Trata-se
de uma condição caracterizada pelo júbilo, pela serenidade, pela
segurança interior, pelo sentido de calma força, de claro entendimento e
de amor radiante. Em seus aspectos mais elevados, trata-se da
realização do Ser essencial, da comunhão e da identificação com a Vida
Universal.

"retirado do livro: Psicossíntese; de Roberto Assagioli."

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