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PPAALLEEOOEECCOOLLOOGGIIAA

Dunas
Assim como o Saara,
o maior deserto existente
no mundo, foi uma região
muito mais úmida
há 6 mil anos, a Amazônia,
que exibe a maior floresta
tropical do planeta,
foi submetida

fósse
no passado, pelo menos
em algumas áreas,
a climas mais secos
que o atual.
Estudos paleoecológicos
revelam que em alguns
locais – hoje cobertos
pela floresta úmida
ou por manchas

na
Amazôn
de campos – existiram,
em outras épocas,
extensas superfícies
arenosas, onde
se formaram dunas
de areia.

Arnaldo Carneiro Filho


Laboratório de Paleoecologia,
Instituto Nacional
de Pesquisas da Amazônia
Sonia Hatsue Tatumi
e Marcio Yee
Laboratório de Vidros
da FATEC-UNESP,

24 •• CCI IÊÊNNCCI IAA HHOOJ JEE •• vvooll. . 3322 •• nnºº 1191


24 91
PALEOECOLOGIA

A Amazônia, como é chamada a bacia formada pelos rios Amazonas e

FOTOS CEDIDAS PELO AUTOR


Solimões e seus afluentes, com cerca de 6 milhões
de km2, é hoje uma região de clima quente e úmido,
coberta em sua maior parte por florestas tropicais

is
densas. Apenas em alguns pontos desse imenso ter-
ritório são encontradas manchas de campos ou
savanas. No entanto, estudos científicos vêm acumu-
lando evidências de que alguns setores da região
amazônica apresentaram, em um passado ‘recente’,
períodos climáticos secos o suficiente para promo-
ver a substituição da floresta por formações vege-
tais abertas.
É o que se observa pelo menos na área norte dessa
grande bacia, onde podem ser encontrados diversos
campos arenosos, hoje recobertos por savana ou flo-
resta, indicando a ocorrência, no passado, de condi-
ções climáticas mais secas que as atuais. Em algumas

ia
dessas áreas, a disposição dos sedimentos acumula-
dos mostra claramente a formação de dunas eólicas,
que no clima atual apresentam-se como formas esta-
bilizadas por vegetação (figura 1).
As condições ambientais reinantes na Amazônia
durante os períodos glaciais do Quaternário (os últi-
mos 2 milhões de anos) ainda são um tema sujeito a
controvérsias e calorosos debates. A visão simplista
de uma Amazônia unicamente florestal, sempre ver-
de, persistiu por muito tempo. Essa, segundo alguns
autores, seria a principal causa da alta biodiversida-
de observada na região. Mais tarde, essa visão foi con-
testada por outros pesquisadores, que apontaram di-
versas evidências de que a região teria sido mais se-
ca nos períodos glaciais, enquanto nos períodos in- 

Figura 1.
Imagem do satélite
Landsat-TM5
indicando,
próximo ao rio
Aracá,
áreas de floresta
(em verde),
áreas de savana
sob cordões
de dunas
(em rosa e bege)
e áreas alagáveis
nas depressões
entre as dunas
(em preto)

Vista parcial
do Campo
de Dunas
do Mucajai (RR)

março de 2003 • CIÊNCIA HOJE • 25


PALEOECOLOGIA

terglaciais (como o atual) o clima úmido retornaria planícies da Amazônia ocidental, permitindo co-
e com ele a cobertura florestal. nexões entre os llanos da Venezuela, o chaco do Pa-
Alguns autores mais ousados, tomando por base raguai e os pampas da Argentina (ver ‘Paleoclimas
evidências relacionadas com a distribuição geográ- na Amazônia’, edição especial, em CH nº 93).
fica de certos grupos taxonômicos de plantas, inse- Estudos sobre pólens fósseis na Bolívia e sobre
tos, répteis e aves, chegaram até a indicar setores da as relações entre diferentes isótopos do carbono
Amazônia que, durante os períodos secos, manti- (12C e 13C) nos solos dos cerrados de Humaitá, no
veram formações florestais, servindo de refúgio pa- sul do estado do Amazonas (ver ‘Florestas x savanas
ra diversas espécies vegetais e animais. O isolamen- no passado da Amazônia’, em CH nº 189), indicam
to da flora e da fauna em tais refúgios, segundo es- uma franca expansão de florestas sobre cerrados
ses autores, produziu endemismos e biodiversida- nos últimos 3 mil anos. A mesma tendência é ob-
de (ver ‘O país da megadiversidade’, em CH nº 81). servada em algumas áreas ao norte da Amazônia,
Batizada de ‘teoria dos refúgios’, essa proposta tem onde os cerrados devem ter atingido sua expansão
sido duramente contestada, em particular devido à máxima há cerca de 14 mil anos. Nessa época, a va-
maneira simplista através da qual foram identi- zão do rio Amazonas era 40% menor que a atual e
ficadas as áreas que teriam sido refúgios florestais. preguiças gigantes pastavam no mosaico floresta-
Mais tarde, outras evidências – obtidas em estu- cerrado do baixo Amazonas (no Pará), em áreas
dos com pólens fósseis da serra dos Carajás, no Pará atualmente recobertas pela floresta densa.
– revelaram que a Amazônia oriental viveu, nos úl-
timos 60 mil anos, sob uma constante alternância
entre fases florestais e fases de vegetação aberta do
tipo cerrado. Evidências adicionais nesse sentido Campos
vieram de depósitos de fósseis de grandes mamífe-
ros encontrados no sudoeste (Brasil e Bolívia) e no arenosos e dunas
oeste (Equador) da Amazônia. Essa paleofauna, for-
mada quase exclusivamente por animais pastado- As evidências de que alterações climáticas provoca-
res, habitou a região pelo menos entre 37 mil e 29 mil ram, em épocas passadas, profundas mudanças nas
anos atrás, indicando que nesse período teria ha- paisagens amazônicas não param de se acumular.
vido uma extensa expansão das savanas pelas Extensas áreas de formações superficiais arenosas

Figura 2. A B C
Imagens do
satélite
Landsat-TM5
de áreas com
campos de
paleodunas
(em rosa
e bege)
e campos
de areia
situados a
norte-nordeste
da bacia
dos rios Negro
e Branco, D E F
ao norte do rio
Catrimani (A);
ao sul desse rio
(B); às margens
do rio Cuieiras,
afluente
do Aracá (C);
às margens
do rio Negro(D);
próximo a serra
do Tucano (E)
e na região
de Mucajaí (F)

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PALEOECOLOGIA

Figura 3.
Localização
dos campos
de dunas
na bacia
dos rios Negro
e Branco (A),
ao norte
da Amazônia
brasileira,
e na bacia do rio
Orinoco (B),
entre Colômbia
e Venezuela

surgiram na bacia do rio Negro (ao norte do estado Algumas dessas ‘dunas fósseis’ têm até 35 m de
do Amazonas) e de um de seus principais afluentes, altura, como as encontradas em áreas marginais ao
o rio Branco (que corta o estado de Roraima), duran- rio Negro. Outras raramente atingem 10 m de altura.
te sua longa história evolutiva. Esses campos areno- Em todos os campos de dunas identificados, estas
sos deram origem aos solos conhecidos como pod- são paralelas e alinham-se no sentido nordeste-su-
zóis, através dos quais são drenados para a calha dos doeste, o que determina um padrão bem defini-
rios, a partir do lençol freático, os compostos orgâ- do de drenagem, com ‘canais’ alongados e paralelos
nicos responsáveis pela cor escura típica das águas ocupando as depressões alagáveis entre as dunas.
do Negro e da maior parte de seus afluentes. Esses ‘canais’ podem ser observados, como ‘faixas’
Estudos realizados em perfis do solo na região mais escuras, nas imagens dos campos arenosos ao
revelam que, em alguns períodos mais secos, ocor- norte e ao sul de Catrimani (RR). Outros campos
ridos durante os períodos glaciais globais, essas su- arenosos localizados através de imagens de satéli-
perfícies arenosas perderam seu revestimento flo- te, como os da região de São José de Anauá (RR), per-
restal protetor (do tipo campinarana) e, tendo ape- to de Catrimani, não apresentam qualquer indica-
nas uma rala cobertura vegetal do tipo campina, ção de atividade eólica suficientemente importan-
foram esculpidas por ventos alísios que sopravam te para a construção de dunas.
com maior intensidade e carregavam menos umi- Também ocorrem campos de dunas fósseis nos
dade. Tais ventos, como acontece em alguns deser- limites entre a Colômbia e a Venezuela, nos llanos
tos atuais, originaram superfícies compostas por das bacias dos rios Apure, Arauca e Meta, afluentes
dunas, algumas das quais ainda se encontram rela- do Orinoco. Essa constatação permite sugerir a pre-
tivamente preservadas, nos estados de Roraima e sença de dois corredores de ação eólica durante o
Amazonas (figura 2). último período glacial: a bacia dos rios Branco e
Os campos de dunas podem ser encontrados Negro e a bacia do Orinoco (figura 3).
em áreas próximas ao rio Tacutu e à serra do Tuca- Embora tenham sido descritas por diversos au-
no (no nordeste de Roraima), em áreas da planície dos tores, as paleodunas amazônicas ainda não haviam
rios Catrimani e Anauá (no centro-sul de Roraima), sido datadas. Recentemente, porém, datações obti-
no alto rio Aracá, no município de Barcelos (no das pelo método da termoluminescência (que me-
Amazonas), e mesmo às margens do rio Negro, en- dem o dano causado em distintos materiais pelos
tre as cidades de Barcelos e Santa Isabel (também isótopos radioativos urânio 238, tório 212 e potás-
no Amazonas). sio 40) permitiram identificar diversas fases de cons- 

m a r ç o d e 2 0 0 3 • C I Ê N C I A H O J E • 27
PALEOECOLOGIA

Figura 4.
Taperera Aracá 40.000
Aracá/Ituí

00
Idades dos

.6
32
sedimentos
que formam 30.000 30.000

00
30.000
as dunas de

.0
23
00
algumas áreas

00
.8

00

.0
12

00

00
19
.0
(junto ao rio Ituí,

.4

.5
17

00
20.000 20.000 20.000

16

15
.0
afluente do 00

14
00
.2

0
12
15.000

.2
Aracá, junto

50

0
0

10

80
70
0

9.
80

8.
8.
ao próprio Aracá

7.
10.000 10.000 10.000
e em Taperera,
5.000
no rio Negro, 0
entre Barcelos DN DN DN DN DN DN DN DN DN DN DN DN DN DN
e Santa Isabel), 44.1 44.2 44.3 44.4 44.5 44.6 3.1 3.2 3.3 3.4 3.5 3.6 18 20
obtidas Idades antes do presente (AP)
pelo método
de datação por
termoluminescência

trução dessas paleodunas entre 32,6 mil e 7,8 mil sas superfícies ocupadas por solos arenosos são
anos atrás (figura 4). bastante conhecidas, estando inclusive associadas
Foram coletadas amostras dos sedimentos areno- às chamadas águas pretas, características dessa ba-
sos a cada 50 cm, até 300 cm de profundidade, em cia. Essas antigas superfícies arenosas forneceram
alguns locais (DN 44 e DN 3), ou apenas uma amostra o material-fonte dessas paleodunas. Por outro lado,
a 200 cm (DN 18 e DN 20). Algumas dessas dunas, um volume de chuvas semelhante ao atual na região
no entanto, podem ter até 35 m de altura, indicando (em torno de 2.250 mm/ano) seria um sério obstáculo
que sondagens mais profundas poderão revelar ida- à formação de dunas: a umidade do solo impediria
des ainda mais antigas que as obtidas neste estudo. o transporte dos grãos de areia pelo vento e as condi-
Nas paleodunas existentes entre Colômbia e Vene- ções mais frescas favoreceriam a instalação de uma
zuela, as idades das amostras obtidas em regiões vegetação, estabilizando as superfícies arenosas.
próximas a Apure variaram entre 36 mil e 11,6 mil É provável – segundo estudos paleoclimáticos –
anos, o que as torna relativamente contemporâneas que um regime muito mais seco e sazonal tenha
das dunas fósseis do rio Negro. imperado na época de ocorrência dessa atividade
eólica. Durante o último período glacial, a tempe-
ratura dos oceanos teria caído cerca de 6oC, o que

Os ventos poderia explicar essa ‘estação’ mais seca: os ventos


alísios entravam no continente com menor umida-

do ‘corredor seco’ de e provocavam déficits de chuvas em algumas


regiões.
Mesmo se considerarmos a distribuição atual de
Qual seria o significado paleoecológico das dunas chuvas na Amazônia, podemos perceber que exis-
do rio Negro? Seria um tanto pretensioso imaginar te uma faixa, de direção noroeste-sudeste (figura 5),
condições extremamente áridas no coração da Ama-
zônia. Além disso, dunas móveis são encontradas
hoje em diferentes condições climáticas. Os fa-
tores que condicionam a formação de dunas
Figura 5.
são múltiplos: material disponível, fraca
A distribuição
de chuvas cobertura vegetal, déficit hídrico nos solos
na Amazônia e ventos possantes. Esses fatores podem
mostra agir de maneira independente. Um exemplo
a existência está nas areias desprovidas de vegeta-
de uma larga
ção e expostas à força dos ventos
faixa
(em branco), alísios na faixa litorânea, que po-
chamada de dem ser remobilizadas e originar
‘corredor seco’, dunas, como na região dos Lençóis
onde a Maranhenses ou no litoral do Ceará.
precipitação
No caso da região do rio Negro,
não ultrapassa
FONTE: IBGE

1.750 mm algumas dessas condições estão am-


por ano plamente representadas. As exten-

2 8 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 2 • n º 1 91
PALEOECOLOGIA

Figura 6.
FONTE: INPE

Direção média,
em diferentes
épocas do ano,
dos ventos
que ocorrem
na região
da bacia
dos rios Negro
e Branco
(no círculo)

Sugestões
para leitura

CARNEIRO Filho, A.;


Schwartz, D.
e outros.
‘Amazonian
paleodunes
evidencing a drier
climate during
Late Pleistocene-
Holocene’, in
onde os totais pluviométricos anuais não ultra- dessas dunas, alguns estudos da dinâmica de se- Quaternary
Research,
passam 1.750 mm. Essa faixa é conhecida pelos dimentos litorâneos na bacia do rio Cariaco (Ve- v. 58, p. 205,
climatólogos como o ‘corredor seco’. É possível que, nezuela), próxima ao delta do Orinoco, indicam 2002.
HUGHEN, K. A.;
durante os períodos glaciais, esse corredor seco te- que a circulação dos ventos naquela região é a mes- Southon, J. R.
nha ampliado seus limites, para incluir alguns se- ma há pelo menos 12,6 mil anos (sugerindo que e outros.
‘Synchronous
tores do rio Negro, onde atualmente encontramos isso provavelmente também ocorria em outras
radiocarbon and
as paleodunas. áreas amazônicas). climate shifts
A orientação dessas dunas fósseis, preferen- A existência de dunas móveis na bacia do rio during the last
deglaciation’,
cialmente nordeste-sudoeste, tem um significado Negro parece confirmar as importantes mudanças in Science,
paleoclimático. Dunas lineares são normalmente climáticas a que foram submetidos alguns setores v. 290, p. 1.951,
2000.
produzidas em regiões onde predominam duas di- da Amazônia. Nossos resultados contrariam a con- MAYLE, F. E.;
reções de ventos: a resultante dessas direções deter- cepção simplista de uma Amazônia homogênea e Burbridge, R.
mina a direção preferencial expressa nos cordões estável quanto à dinâmica climática e ecossistêmi- e outros.
‘Millenial-scale
dunares. Para verificar se isso ocorria na região do rio ca. Eles mostram que, ao contrário de uma presumi- dynamics of
Negro quando as dunas foram construídas, é preci- da ‘calmaria ecológica’, a Amazônia foi, ao longo da southern
Amazonian rain
so determinar a condição dos ventos naquela época, sua história natural, cenário de drásticas mudan- forests’, in
o que pode ser feito com base no comportamento ças paisagísticas, verdadeiros ajustes adaptativos às Science,
atual deles. Como quase todos os locais onde estão as constantes alterações climáticas globais. v. 290, p. 2.291,
2000.
paleodunas estão situados no hemisfério Norte, os A existência de campos de dunas móveis na bacia VAZ, J. E. &
ventos que operam na região são principalmente os do rio Negro parece confirmar as importantes mu- Miragaya, J. G.
‘Thermoluminescence
alísios boreais. Os mapas das direções médias de danças climáticas a que foram submetidos alguns datting of fossil
ventos na região mostram que estas variam entre setores da Amazônia. Se os dados paleogeográficos sand dunes
in Apure,
nordeste-sudoeste e leste-oeste, o que – se isso tam- tinham mostrado que, ao menos na periferia da ba-
Venezuela’,
bém ocorria no passado – explicaria perfeitamente cia, as mudanças de vegetação entre cerrado e flores- in Acta Cientifica
a disposição das dunas (figura 6). ta foram importantes, parece evidente que no in- Venezoelana,
v. 40(1),
Embora não exista a certeza de que essa direção terior da bacia também ocorreram transforma- p. 1, 1989.
de ventos predominava na época de construção ções ecológicas. 

março de 2003 • CIÊNCIA HOJE • 29

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