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 ESCRAVATURA

O internacionalismo
abolicionista
Não bastam as explicações endógenas, ou
nacionalistas, para um fenómeno fortemente marcado
pela circulação internacional e transnacional
por Miguel Bandeira Jerónimo e José Pedro Monteiro *

A
escravatura e o tráfico de escravos pias nacionais ou nacionalistas, que não
ocorreram em múltiplas geogra- presumam a suficiência de explicações
fias. Não se esgotaram nunca endógenas para um fenómeno fortemente
em limites espaciais restritos. marcado pela circulação além-fronteiras antigos territórios colonizados. Grupos
Envolveram capitais, recursos de atores, argumentários e repertórios de extração protestante (as organizações
humanos e materiais e institui- de ação, a favor ou contra o projeto abo- católicas foram menos ativas) pugnaram
ções que extravasaram fronteiras, reais e licionista. As pressões exógenas foram com insistência pela necessidade impe-
imaginadas. Trespassaram espaços polí- decisivas. Sem elas, é de crer que o fim da riosa da supressão da escravatura e do
ticos e universos socioculturais desiguais. escravatura e do tráfico de escravos tivesse tráfico de escravos. Não clamaram apenas
Assumiram formas de expressão variadas, sido ainda mais demorado e atribulado. pela sua ilegalização. Denunciaram tenaz-
tiveram ritmos de expansão e contração Um exemplo claro da sua importância mente o modo como a proibição legal era
diferentes, de contexto para contexto, de residiu no papel das redes transnacionais, insuficiente para resolver o problema.
uma época para outra. Perduraram de sobretudo de cariz transatlântico, de ad- Esses grupos, nos quais sobressaía a
modo diverso, com legados múltiplos, vocacia da abolição da escravatura e do British and Foreign Anti-Slavery Society
que se estendem até hoje, contribuindo tráfico. Ativo desde o século XVIII, quan- (1839), estavam a par dos acontecimentos
para a sedimentação de desigualdades e do assumiu formas mais organizadas, o nos territórios coloniais ou nas longínquas
hierarquias sociais, marcando indelevel- «projecto antiescravatura» (J. Quirk) foi periferias dos impérios, muitas vezes bem
mente as nossas memórias coletivas. A sua heterogéneo e cumulativo, sem deixar de mais do que as próprias administrações.
história não é redutível a (meta)narrativas ser ambíguo. Foi feito de muitos insuces- O revivalismo missionário do século XIX,
lineares e simplistas. Exige olhares não sos e alguns, poucos, brilharetes. Ainda a eles associado, multiplicou as fontes de
paroquiais, que não se fechem num único hoje carece de conclusão: a escravatura informação sobre as realidades coloniais
local ou sociedade, e que estejam atentos não desapareceu, o tráfico de escravos e sobre as expressões locais da escrava-
a conexões transterritoriais, que amiúde também não. A sua ilegalização generali- tura e do tráfico de escravos. Estas redes
permitem uma melhor compreensão. zou-se, a sua supressão, infelizmente, não de informação foram apontando os re-
O seu estudo deve ser capaz de acomodar se tornou uma realidade global, apesar correntes desfasamentos entre a retórica
condicionalismos e dinâmicas internacio- dos enormes progressos nos últimos dois política e legal e as práticas sociais no
nais, transnacionais e globais. Não pode séculos. Nestes, as redes transnacionais terreno. Foram pondo a descoberto as
ser encerrado na mera acumulação de foram determinantes. inconsistências entre as proclamações de
investigações locais ou «nacionais». jure e as realidades de facto, instigando
Todos estes argumentos devem ser Grupos protestantes iniciativas de reforma.
repetidos em relação ao estudo das tra- A história do internacionalismo aboli- A cooperação internacional e transna-
jectórias da abolição. Na sua diversidade cionista é longa e teve vários momentos cional centrada na denúncia das iniqui-
de temporalidades e manifestações geo- importantes. Um deles coincidiu com a dades da escravatura e do tráfico, assim
gráficas, bem como na sua variedade de expansão imperial de finais de oitocentos, como da sua persistência sob múltiplas
(in)consequências, estas reclamam formas cujos efeitos sísmicos ainda hoje se fa- formas, teve um impacto notório nas
de análise que não estejam reféns de mio- zem sentir nas antigas metrópoles ou nos trajetórias do abolicionismo. Sem o es-

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Convenção escravos mascarada pelo casamento ou
da British and pela adopção e ainda a venda de crianças
Foreign Anti- para serviços domésticos. Recomendou
-Slavery Society
apenas a abolição do estatuto legal da
Esta associação
britânica foi escravatura. Lidou ainda com o tópico do
fundada em 1839 trabalho forçado, antes de este ficar nas
mãos da Organização Internacional do
Trabalho. Reconhecendo que esta prática

DE AGOSTINI EDITORE/AGE/FOTOBANCO
resvalava com facilidade para a escrava-
tura, procurou limitar e regular o seu uso.

Convenção internacional
Em 1926, uma convenção internacional
sobre a escravatura foi assinada, consti-
tuindo o primeiro instrumental interna-
cional sobre o assunto. Nenhuma garantia
de aplicação dos seus termos existia. Ne-
tudo comparado da sua intervenção, a formas de sancionamento legal objetivas. nhum sancionamento foi previsto. Ape-
história do abolicionismo fica muito mais Estabeleceram-se provisões legais contra sar disso, não deixou de ter importantes
pobre. A compreensão da sua ação aclara o tráfico de escravos marítimo e nos países consequências. Publicitou o problema a
os enormes limites das abordagens do de origem. uma escala global. Armou todos os que
abolicionismo baseadas acima de tudo Bruxelas tornou a escravatura no «pa- visavam a reforma dos impérios de infor-
numa razão legal e no processo político drão ouro da civilização europeia» (S. mação cada vez mais factual, comparável
estrito – a abolição como discurso e práti- Drescher). A sua persistência tornou-se e passível de ser utilizada com propósi-
ca políticos. Como estes grupos demons- uma fonte de embaraço reputacional para tos críticos. Pressionou os governos e as
traram sistematicamente, as prescrições os envolvidos. A «antiescravatura», por administrações imperiais a reverem as
legais e as determinações políticas não sua vez, tornou-se uma «razão moral» suas leis e a demonstrarem a sua eficácia.
esgotaram, longe disso, os tempos, os que legitimou a «dominação europeia do A constituição de um Comité de Es-
modos e os sentidos do abolicionismo. continente africano», justificando exigên- pecialistas sobre Escravatura em 1932
A escravatura e o tráfico de escravos so- cias de «ocupação efetiva» dos territórios reforçou estas dinâmicas. Os resultados
breviveram a ambos. Reconhecer este coloniais e patrocinando «missões civili- diretos foram poucos. Mas as políticas de
ponto talvez exija uma reescrita da his- zadoras». A escravatura foi gradualmente gradual supressão que os vários Estados-
tória do abolicionismo. declarada moralmente intolerável como -império prosseguiam, de modo diverso, é
A gradual institucionalização de inicia- meio de troca. Mas, nos seus múltiplos dis- certo, foram cada vez mais intensamente
tivas de regulação internacional dos dois farces, continuou como meio de produção, confrontadas com realidades que estes
fenómenos foi outro exemplo de interna- como referiu P. Lovejoy. A sua morte lenta procuravam desvalorizar. Em 1956, as
cionalismo abolicionista, no qual os movi- foi, aliás, acompanhada pela legalização Nações Unidas retomaram estes esforços,
mentos antiescravatura, sempre capazes do trabalho forçado, que também tem procurando monitorizar as transforma-
de pressionar os poderes políticos e diplo- tido um fim demorado... ções contemporâneas da escravatura. Em
máticos presentes nos grandes encontros O esforço internacionalista tendente 1975, nascia o Grupo de Trabalho sobre
intergovernamentais, desempenharam à ilegalização e supressão da escravatura as Formas Contemporâneas da Escrava-
um papel central. Pense-se na conferência e do tráfico continuou vivo durante o sé- tura. Os desafios persistiram, ainda que
internacional antiescravatura, realizada culo XX. A Sociedade das Nações, cuja fossem mudando de figura. É que o que
em Bruxelas, em 1889-1890, por exemplo. fundação definia o objetivo de «supressão se aboliu em tempos perseverou, até hoje.
Tinha África como objeto principal e, em da escravatura em todas as suas formas», Como no passado, a cooperação interna-
certa medida, visava associar a escravatu- teve uma importante comissão da escra- cional e transnacional é decisiva para os
ra e o tráfico de escravos a comunidades vatura, que mapeou, não sem inúmeros enfrentar.
«árabes». Teve algumas consequências obstáculos e frequentes disputas internas,
importantes, apesar do insucesso em defi- as realidades globais do fenómeno. A co- * Investigadores do Centro de Estudos Sociais da
nir instrumentos de supervisão efetivos ou missão condenou a servidão, a venda de Universidade de Coimbra

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